domingo, 3 de setembro de 2017

Sapiens: uma forma sutil e inteligente de defender o capitalismo

O aclamado “best-seller internacional”, intitulado Sapiens: uma breve história da humanidade, do historiador israelense Yuval Noah Harari, constitui-se na mais nova arma ideológica da grande mídia para propagandear e defender o capitalismo. O livro, traduzido para vários idiomas e figurando há várias semanas como o mais vendido, já foi indicado por personalidades como Barack Obama, Mark Zuckerberg, Bill Gates e Pedro Bial; e por periódicos como Financial Times e The Times.
            Do ponto de vista literário, o livro é muito bem escrito e agradável de ler. Faz várias conexões históricas e científicas que refletem não apenas um profundo conhecimento da evolução histórica humana, como também da ciência e da tecnologia. Seguidamente faz ligações entre a história e a biologia que são muito interessantes, porém, perigosas. São construções teóricas minuciosas e refletidas, resultado de todo o acúmulo acadêmico do autor. Por tudo isso, é um livro que merece ser estudado, embora com profundas ressalvas.
Na sua narrativa há uma defesa informal do capitalismo, bastante sutil, que o difere de ideólogos reacionários como Olavo de Carvalho, Percival Puggina e Jair Bolsonaro. Estes exaltam freneticamente o capitalismo quando condenam enfaticamente o comunismo ou qualquer regime que se diga “socialista”, mesmo que não o seja de fato. Em suas retóricas, fica claro que o capitalismo é um sistema perfeito e insubstituível. Qualquer crítica ao capitalismo é vista mecanicamente como defesa do “comunismo” ou da “esquerda”, merecendo apenas a fogueira da Santa Inquisição.
            Ao contrário destes ideólogos da direita, o autor de Sapiens permite-se certas críticas ao capitalismo, ainda que todas sejam extremamente pontuais e dúbias. Sobressai uma estranha mescla de ironia e reconhecimento de contradições que lhe dão alguma intimidade com o leitor. Isso se diferencia bastante dos métodos tradicionais de propaganda ideológica da direita. O principal objetivo desta “tática”, quase como um “mea-culpa”, é defender o capitalismo de conjunto. Ao reconhecer muitos problemas no sistema, se credencia mais adiante para reafirmá-lo, às vezes sutilmente, às vezes abertamente, como a única saída realista e possível. Esta construção literária perpassa todo o livro, que pode ser considerado como parte do elo da intelectualidade burguesa pós-moderna para fazer terra arrasada da luta pelo socialismo, reafirmando nas entrelinhas o “fim irreversível do socialismo” e o triunfo inexorável do capitalismo.

1) Os mitos partilhados:
            Ao longo de sua exposição, acompanhamos uma análise que se estende da pré-história do gênero homo sapiens até os tempos modernos, demonstrando as modificações na sociedade, na economia, na família e nas crenças humanas. Yuval define estas crenças como mitos partilhados, que seriam algo intersubjetivo; isto é, “que existe na rede de comunicação ligando a consciência subjetiva de muitos indivíduos”, existindo na “imaginação partilhada de milhares de pessoas” (páginas 124 e 125). Dentre estes “mitos partilhados” – que também podem ser considerados como a própria cultura humana – estariam conceitos como nacionalidade, religiões, direitos humanos, dinheiro, mercado, capitalismo e socialismo (dentre outros).
            Num dado momento de sua evolução, os sapiens foram desenvolvendo a linguagem e a capacidade de partilhar mitos entre contemporâneos e entre gerações. Estes mitos possibilitaram o desenvolvimento de um instinto de cooperação em massa de milhares de estranhos. Sem ele a sociedade não duraria um dia a mais. Segundo o autor mesmo reconhece, “a maior parte destas redes de cooperação humana foi concebida para a opressão e a exploração” (página 113), embora não diga de quem, nem tire maiores conclusões de suas premissas. Mesmo sendo uma contribuição notável, a utilização que faz deste conceito, bem como as conclusões, são bastante reacionárias e niilistas.
            Dentro de uma lógica filosófica idealista, o autor sustenta que “o sistema econômico moderno não teria durado um único dia se a maioria dos investidores e banqueiros não acreditasse no capitalismo”; ou seja: parte-se da ideia de que em pleno século 21 os banqueiros e investidores modernos (numa palavra: os capitalistas) acreditam honestamente no seu sistema como algo positivo. Seria apenas uma questão de crença? A simples crença ou não crença, dissociada de condições materiais para sustentar uma ordem, tal como o exército, a polícia, a forma de organização da indústria, do trabalho e, dentro deste elo, a grande mídia e o senso comum (que ajudam a sustentar os mitos partilhados, sobretudo para os trabalhadores e o povo pobre), seria capaz de derrubar um sistema? Indo mais além, os capitalistas poderiam pensar de outra maneira que não “acreditando” no seu sistema? Esta justificativa dos “mitos partilhados” se aplicaria muito mais aos trabalhadores e ao povo pobre (e mesmo para a classe média) do que para os capitalistas e seus políticos, que comandam os fios e os tentáculos das marionetes que fazem o mecanismo funcionar, tendo, em sua maioria, perfeita clareza da podridão e das consequências dos seus atos e da lógica do seu sistema. Poderíamos dizer que os capitalistas – bem como o alto clero medieval – partilham mitos, fazendo os outros acreditarem neles, mas eles próprios não creem naquilo que professam.
            Com muito esforço e boa vontade, podemos condescender que Platão, Aristóteles e outros aristocratas escravistas gregos e romanos acreditavam nos seus mitos escravistas, como aquele que afirmava que os escravos tinham uma “natureza escrava” e os homens livres uma natureza “livre” (página 142). Certamente sua posição social e sua condição material era parte integrante da lógica do seu raciocínio. Não havia na época críticos a esta filosofia. Estes filósofos eram o que de mais alto a sociedade escravista tinha produzido no campo ideológico; ao contrário dos capitalistas modernos, que sofreram e sofrem inúmeras críticas de teóricos proletários e revolucionários. O papel dos ideólogos modernos, dentre os quais, podemos conceder a honra ao próprio Yuval, é trabalhar para distorcer a realidade e o juízo dos trabalhadores para justificar e sustentar a aberração de uma sociedade de classes, em pleno século 21. Sendo que o próprio reconhece que “é amplamente sabido que políticas baseadas nas últimas descobertas em agronomia, economia, medicina e sociologia podem eliminar a pobreza” (página 275). Ainda afirma que “os sapiens são animais relativamente fracos, cuja vantagem está em sua capacidade de cooperar em grande escala” (página 167). Este é, justamente, o ponto de partida para o socialismo, que Yuval se nega a reconhecer. Prefere continuar partilhando o preconceito antissocialista e novas ideologias de classe para dificultar a emancipação dos trabalhadores.
            Os mitos partilhados, ainda que sejam mitos, não surgiram do além e não pairam no ar. São o reflexo, mais ou menos direto, de três premissas fundamentais: I - da prática social, representada, sobretudo, pelo trabalho humano e por sociedades específicas que engendravam este trabalho; II - das lacunas do conhecimento e da ciência, que necessariamente levam à necessidade de preenchimento com fantasias e mitos; e III - das ideologias de dominação que as classes dominantes lançaram mão ao longo da história para manter seus privilégios. Estes mitos não poderiam surgir e se manter se não fossem resultado de um imperioso reflexo de condições materiais determinadas historicamente para fazer funcionar a máquina de uma sociedade, também determinada historicamente.

2) A disseminação do anticomunismo
            Esta suposta compreensão de que é possível superar a pobreza – expressa na página 275 – é apenas mais uma saudação à bandeira. Yuval, na verdade, ajuda a partilhar o mito da “incompatibilidade genética do sapiens para a igualdade social”, sustentando que “talvez a pobreza social jamais seja erradicada” (página 276). É no meio destas divagações contraditórias que entram defesas subliminares do capitalismo, feitas através de “declarações desinteressadas” sobre as “facilidades” do dinheiro, do mercado e contrapondo-as a declarações, também “desinteressadas” e en passant, de que “o ideal igualitário do comunismo produziu tiranias cruéis que tentaram controlar todos os aspectos da vida cotidiana” (página 173 – grifos nossos). Reparem que não se trata de uma sociedade determinada historicamente que se degenerou em uma tirania cruel, mas quem as produziu foi o próprio ideal igualitário do comunismo.
            Seria estranho que um historiador, tão bem informado sobre todas as coisas, desconhecesse a história da URSS e a luta entre o stalinismo e o trotskismo. Ele deveria saber, também, que a tentativa de “controle sobre todos os aspectos da vida cotidiana” foi obra do regime instaurado por Stálin, que se espalhou para outros países que também afirmaram-se “comunistas”, como Coréia do Norte, China e o leste europeu. Tanto conhece esta diferença, que Yuval cita as farsas judiciais do stalinismo na página 372. Conhecendo esta diferença nada desprezível entre o programa marxista e o trotskista, de um lado, e o que foram os regimes stalinistas, de outro, fica evidente que se trata de uma opção consciente pela disseminação do anticomunismo e pela apologia do capitalismo.
Esta alusão ao “stalinismo”, contudo, só é usada quando convém, uma vez que Yuval associa (tal como faz a grande mídia e a intelectualidade burguesa) Lenin aos genocídios cometidos por Stalin e Hitler. Ora, é preciso aqui um trabalho histórico rigoroso: Lenin dirigiu o jovem Estado Soviético durante uma guerra civil contra 14 exércitos imperialistas. Se fuzilou a família do czar ou prisioneiros militares é porque esteve envolvido na lógica inexorável de uma guerra, tal como Abraham Lincoln, Charles de Gaule ou Wiston Churchill foram obrigados a fuzilar ou condescender durante as guerras em que estiverem envolvidos como homens públicos. Lenin nada tem a ver com a transformação da KGB num horripilante espião civil; e muito menos com as farsas dos processos de Moscou, que assassinaram e fuzilaram homens públicos, civis e militares em uma conjuntura sem guerra e sem ameaças diretas à URSS (a não ser que Lenin tenha feito tudo isso diretamente do post-mortem). Sabemos, por relatos de Trotsky, que Lenin preparava uma luta sem quartel contra a burocracia stalinista (que na época estava em formação), ao ponto de podermos desconfiar seriamente de um possível assassinato a mando do próprio Stalin (ainda que Trotsky nunca tenha afirmado isso).
Yuval não quer reconhecer essa diferença. Trata, ao longo de todo o livro, “comunismo” como sinônimo do que chamamos de “regime stalinista”. Um historiador tão bem informado como Yuval ignorar a diferença dos primeiros anos do regime soviético (1917-1929) da sua posterior degeneração em stalinismo (1930 em diante) é um tanto estranho. Seria ignorância ou má fé?
Em diversas outras passagens do livro a conclusão é a mesma, tal como um samba de uma nota só: “a única tentativa de governar o mundo de forma diferente – o comunismo – foi tão pior em praticamente todos os aspectos concebíveis que ninguém tem estômago para tentar de novo” (página 343); seguida pela conclusão: “podemos não gostar do capitalismo, mas não podemos viver sem ele (idem – grifos nossos). Na primeira afirmação há uma impropriedade, pois existem centenas de organizações socialistas pelo mundo que reivindicam o legado bolchevique (e, lamentavelmente, muitas que ainda também reivindicam o legado stalinista). Na segunda, estaríamos condenados ao capitalismo pela suposta inexorável ineficiência do comunismo ou simplesmente porque não podemos viver sem ele. Quem não poderia?
O socialismo/comunismo é um sistema econômico alternativo ao capitalismo. Ele não cai do céu, pronto e acabado, mas precisa ser construído a partir de uma revolução que supere a sociedade capitalista. Isto significa dizer que ele nascerá do próprio capitalismo, com todas as suas contradições, ideologias, hábitos, mentalidades, cultura, etc. Para que tudo isso seja realmente superado é necessário medir os acontecimentos não como um consumidor que liga ao PROCON para saber por que a sua mercadoria “não funciona” – tal como faria um pequeno-burguês –, mas como a evolução de um processo histórico. Isto é o beabá para qualquer historiador.
É preciso olhar a “experiência socialista” pela ótica do proletariado; e não como faz Yuval, que a olha pelo olhar da burguesia. O capitalismo necessitou de anos para superar o feudalismo. O povo francês passou fome logo após a Revolução Francesa de 1789; depois do cansaço da explosão popular, ajudou indiretamente a levar ao poder Napoleão; foi um processo social longo, contraditório e traumático, que deixou inevitáveis cicatrizes, mas criou as bases do desenvolvimento social e econômico futuro, ainda que não tenha resolvido (e nem poderia) os problemas essenciais da fome e da miséria, que seguem pendentes. Os grandes capitalistas sabotaram as experiências socialistas para “que não dessem certo” por diversos meios, tal como a nobreza feudal sabotou as possibilidades do “capitalismo dar certo” – até que foi definitivamente derrotada nas revoluções francesas de 1789, 1830 e 1848. A burocracia stalinista sabotou o “comunismo” por dentro, surgindo como reflexo de uma conjunção de fatores: baixo nível cultural, econômico e social da Rússia, somado à ascensão do nazi-fascismo na Europa; e o imperialismo o sabotou por fora através do boicote do mercado mundial, dentre outros meios.
O livro de Yuval ainda dissemina o tradicional senso comum reacionário de que os “socialistas” não querem trabalhar e só “viver bem” (tal como a direita atual se refere pejorativamente aos programas sociais dos países de terceiro mundo, como se isso fosse socialismo/comunismo). Segundo Yuval, o lema marxista de que “todos trabalhariam conforme suas necessidades” transformou-se, na prática, em “todo mundo trabalharia o mínimo possível e receberia o máximo que conseguisse” (página 184). Como não podem responder às argumentações marxistas e trotskistas, os ideólogos da burguesia lançam preconceitos e confusões. Yuval segue aqui a mesma tática daquela corrente de internet que apresentava a “ineficiência do socialismo” a partir de uma suposta “experiência de um professor de economia da universidade do Texas”, que resolveu dar a mesma nota para todos os alunos. Isso já foi desmascarado como mais uma farsa contra o pensamento socialista[i]. Yuval a repete de uma forma sutil e diluída no longo corpo de seu texto.
Também podemos perceber a fuga de debates reais sobre a experiência econômica e social da URSS – expressos, em sua maioria, pela obra de Trotsky – quando o autor esconde-se atrás dos velhos jargões burgueses: o “comunismo” seria “utópico” (página 206); as leis marxistas da história seriam “sobre humanas” (página 237); haveria a pregação de um “paraíso comunista aqui na terra” (página 251). Segundo Yuval, os “comunistas” afirmaram de modo religioso que “Marx e Lenin haviam revelado verdades econômicas que jamais poderiam ser refutadas” (página 264). Aqui há, novamente, uma confusão proposital entre o marxismo e stalinismo. Para Marx, Lenin e Trotsky, a visão socialista deve se basear no materialismo dialético, que reconhece a mudança como algo permanente e que não existem dogmas. Quem transformou as “verdades econômicas” em algo irrefutável e dogmático foi Stalin e seus seguidores. Trotsky morreu para demonstrar isto. Esta “omissão” de Yuval seria desconhecimento?
Como conhecedor do processo dialético da disseminação cultural de ideias e conceitos, Yuval afirma que “o humano morre, mas a ideia se espalha” (página 251). Parece que é justamente isso que ele quer evitar com o seu anticomunismo; isto é, que a ideia comunista se espalhe, supere os erros do passado e perceba que o stalinismo foi um regime político degenerado, que quase nada tem a ver com “comunismo”, a não ser o fato de ter surgido da Revolução Russa de 1917 e a ter traído nas décadas seguintes, como muito bem atesta o livro A Revolução Traída (1937), de Trotsky.
Yuval definitivamente é um seletivo e incoerente crítico do comunismo. Seu livro é novo, mas as críticas são velhas. As “críticas” ao capitalismo, por sua vez, são lançadas para ludibriar o pensamento independente.

3) A defesa das “revoluções econômicas” do capitalismo e os mitos partilhados sobre o mercado
            O cerne do pensamento de Yuval sustenta que o capitalismo é um sistema econômico essencialmente revolucionário, cujo “desejo humano egoísta de aumentar o lucro privado é a base para a riqueza coletiva”, o que seria “uma das ideias mais revolucionárias na história – não só de uma perspectiva econômica como também de uma perspectiva moral e política” (página 322). O capitalismo propiciou a Revolução Industrial inglesa, que por sua vez, ocasionou um grande impulso para a ciência e “resultou em poderes sobre-humanos e energia praticamente sem limites” (página 386) para a sociedade.
            Esta análise não é propriamente uma novidade. Marx e Engels já haviam analisado este papel econômico revolucionário do capitalismo no seu desenvolvimento histórico, embora de uma forma bem menos generosa e ufanista. Eles escreveram que “a burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção; portanto as relações sociais todas. A conservação inalterada do antigo modo de produção era, pelo contrário, a condição primeira de existência de todas as classes anteriores. A permanente revolução da produção, o ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a incerteza e o movimento eternos distinguem a época da burguesia de todas as outras”[ii].
            Yuval, contudo, vai além. Embeleza a ganância. Afirma que a economia moderna se difere da economia pré-moderna porque os investidores confiam no futuro e possuem um benéfico egoísmo, que quer fazer o “bolo crescer” pensando supostamente no aumento da riqueza e da prosperidade coletivas. Esta seria a base para o crescimento econômico ilimitado proporcionado pela sociedade capitalista, e não a exploração do trabalho organizado da classe trabalhadora. Segundo a lógica de Yuval, os últimos 500 anos teriam gerado uma “ideia de progresso que convenceu as pessoas a confiarem cada vez mais no futuro. Essa confiança gerou crédito; o crédito trouxe crescimento econômico real; e o crescimento fortaleceu a confiança no futuro e abriu caminho para ainda mais crédito” (página 321).
            É certo que o lucro reinvestido na produção econômica faz o “bolo crescer” e gera crescimento econômico. Isso foi a lógica do sistema por séculos e, apesar de suas crises econômicas periódicas, dos inúmeros desempregados gerados por elas e da miséria crescente resultante, serviu para nos trazer até aqui. O problema, contudo, é que há uma santificação dos investimentos capitalistas. Estes não seriam parte de um sistema econômico definido historicamente e fadado a desaparecer, para ser substituído por outro (seja o socialismo ou a barbárie); mas cai de maduro, por toda a sua lógica, que seriam a solução definitiva. Esta “pureza” dos investimentos não existe. 
              Por mais importante que tenham sido para destravar a economia e fazê-la andar para frente, possuem inúmeros efeitos colaterais, que já são bem conhecidos. Como os sapiens são seres pensantes e reflexivos, caracterizados por evoluírem superando problemas, não podem simplesmente se dar ao luxo de não perceberem estes efeitos colaterais (a não ser, é claro, se parte destes sapiens queiram manter seus privilégios, frutos de suas condições sociais). Quem tem o monopólio de investir o seu lucro novamente na produção, para que ele volte a crescer, é a burguesia. Nem sempre no que ela decide investir é o melhor pra sociedade. Em épocas de recessão ela geralmente não reinveste, piorando a crise econômica; ou diminuindo a produtividade por medo da queda da sua taxa de lucros em um mercado em contração. Aí estão diversos parques industriais de grandes empresas multinacionais produzindo com capacidade reduzida, propondo demissão voluntária ou férias coletivas aos seus trabalhadores..
            Os investimentos da burguesia produzem também agiotagem, capitais fictícios e fraudes, além de poderem aumentar proporcionalmente à miséria dos trabalhadores. Se nos últimos 500 anos cumpriram, sem dúvida, um papel revolucionário ao superar a produção econômica do feudalismo, fazendo o “bolo crescer” e incrementando mercados, nos últimos 150 anos transformaram-se em imperialismo, em monopólios e trustes de bancos e grandes transnacionais que definem preços e praticamente estrangularam o “livre mercado”. Já tomamos consciência do papel deste imperialismo, que se tornou um entrave ao real desenvolvimento da humanidade. Este imperialismo pode fazer uma economia crescer ou bloqueá-la; eleger governos ou derrubá-los; condenar ditaduras ou dar suporte a elas; através de sua mídia pode exaltar um mentiroso e transformá-lo em herói ou caluniar e desmoralizar alguém que defenda uma posição mais independente e progressista.
A suposta “liberdade individual” garantida pelo mercado, que é cantada em verso e prosa por Yuval e tantos outros, é, portanto, falsa. Certamente é maior do que foi nos sistemas econômicos anteriores e nos regimes stalinistas. Porém, o consumismo, os padrões do mercado, da educação, as imposições dos empregos e, sobretudo, o medo do desemprego, impõem a padronização e um senso comum que tende a nivelar por baixo e abafar a individualidade autêntica.
            Dentro desta lógica perversa, Yuval chega ao cúmulo de afirmar que “a classificação de risco de um país é muito mais importante para seu bem-estar do que seus recursos naturais. As classificações de risco indicam a probabilidade de um país pagar suas dívidas. Além de dados puramente econômicos, levam em consideração fatores políticos, sociais e até mesmo culturais. Um país rico em petróleo, mas amaldiçoado com um governo despótico, guerra endêmica e um sistema corrupto geralmente receberá uma classificação de risco alta” (página 337). Há que se perguntar quem pode definir o que é um “governo despótico”? Os capitalistas ou os trabalhadores conscientes? É evidente que um país que usar os royalties do petróleo para investir na educação e saúde públicas e não para pagar os banqueiros e acionistas, será demonizado como “despótico” (tal qual o governo pseudo-socialista da Venezuela); enquanto que um autêntico governo despótico, que esmaga as liberdades democráticas dos trabalhadores e oprime violentamente as mulheres, mas paga religiosamente em dia os agiotas (como o governo monárquico da Arábia Saudita, aliado estratégico do imperialismo), pode ser visto como um “governo livre”. Yuval tem a desfaçatez de defender essa chantagem, afirmando que um governo que desconsidere estas agências de classificação de risco provavelmente “continue relativamente pobre, já que não será capaz de levantar o capital necessário para aproveitar ao máximo sua riqueza de petróleo” (idem).
            Ora, o Brasil é um dos mais fiéis pagadores da sua dívida pública. Tem aumentado progressivamente o valor do orçamento federal destinado aos especuladores e agiotas internacionais às custas do aumento da miséria do povo, da destruição dos serviços públicos e do futuro da nação, enquanto que estas agências seguidamente rebaixam a nota do país ao seu bel prazer. Funcionando com base no terrorismo psicológico, a “classificação de risco” constitui-se num cínico mecanismo de escravidão. Yuval é um historiador bem informado. Certamente deve saber que a famosa agência de classificação e risco Standard & Poor's classificou como "A" o banco norte-americano Lehmann Brothers exatamente no mês em que iria quebrar, desencadeando a crise econômica mundial de 2008. Na mesma época cometeram um erro de 2 trilhões de dólares para menos no cálculo da dívida pública dos EUA. Estas mesmas agências de classificação de risco maquiaram números meses antes da Grécia e Espanha decretar o default econômico. Até mesmo setores da burguesia reconheceram (timidamente) as falhas destas agências[iii].
            Em sua apologia do mercado, Yuval parece ter tropeçado naquilo que critica, isto é, na “literatura romântica”. Só que ao invés de ser romântico pela luta contra o mercado e o Estado, é romântico no sentido de deusificá-lo. Demonstra-se como mais um fiel do credo capitalista. Segundo Yuval, “a revolução industrial deu ao mercado novos poderes gigantescos, proveu o Estado de novos meios de comunicação e transporte e colocou à disposição do governo um exército de escriturários, professores, policiais e assistentes sociais. (...) Com o tempo, os Estados e os mercados passaram a usar seu poder crescente para enfraquecer os vínculos tradicionais da família e da comunidade” (página 369). O mercado e o Estado capitalista desenvolveram-se como o reflexo mais ou menos direto do crescimento populacional humano e de suas novas instituições, que não mais podiam atender aos vínculos sociais anteriores. Porém, a sagacidade de Yuval demonstra-se quando ele afirma que o indivíduo (sem definir bem qual) é o beneficiário indubitável deste domínio do mercado e do Estado, pois estes nos fornecem trabalho, seguro-saúde e uma aposentadoria; se quisermos estudar uma profissão, as escolas do governo estariam lá pra nos ensinar (página 370). Se é certo que o mercado e o Estado fornecem tudo isso a uma parte da sociedade, por outro lado, é mais certo ainda que a maioria dos países do mundo (que são semicoloniais) ainda não dispõem de todos estes benefícios justamente porque trabalham para sustentar o Estado de bem-estar social nos países imperialistas. Além disso, a crise estrutural do capitalismo – que já estava bastante evidente em 2015 – está obrigando-o a retirar todos estes direitos através dos seus ajustes fiscais e planos de austeridade mundo afora. Isto não impede Yuval de defender estes mesmos planos, como se pode ver na sua apologia das “reformas da previdência” e “trabalhistas”, bem no estilo do governo Temer (PMDB): “os fundos de pensão e os mercados de trabalho devem se reajustar a um mundo em que os sexagenários talvez sejam os novos balzaquianos” (página 421).
            Marx e Engels foram os primeiros a reconhecer que a evolução econômica da humanidade se dá repleta de contradições. Isto é, nem toda a exploração econômica de uma classe deixa de ter reflexos positivos para a evolução da sociedade, ainda que custe a vida de gerações inteiras. O escravismo, apesar de todo o barbarismo de suas relações sociais de produção, representou um avanço em relação ao selvagismo pré-histórico. O capitalismo, em relação ao feudalismo e ao escravismo, a mesma coisa. Porém, isso é bastante diferente de tentar justificá-lo e convencer as mentes independentes a sustentá-lo. Uma vez que a humanidade tomou plena consciência dos seus efeitos colaterais, não há mais nenhuma justificava para a omissão de combatê-los, a não ser a hipocrisia e o cinismo de quem quer sustentar posições sociais privilegiadas.

4) Aldeia global ou imperialismo mundial?
            No debate internacional a tese central de Yuval é que o imperialismo não é um vilão, tal como tem sido apresentado pela maioria dos historiadores até hoje. Esta visão, segundo ele, seria infantil e limitada. A expansão do imperialismo ao longo do tempo trouxe inúmeros avanços sociais, tecnológicos e científicos que são desconsiderados por aqueles que o veem como vilão. O Império Britânico, norte-americano e até mesmo o soviético (ao qual ele também chama de império) teriam não apenas sido os responsáveis por grandes evoluções científicas, como também promotores da paz mundial. Nas palavras de Yuval: “Pintar todos os impérios de preto e condenar todos os legados imperiais é rejeitar a maior parte da cultura humana”; e conclui: “os ganhos e a prosperidade trazidos pelo imperialismo romano propiciaram a Cícero, Sêneca e Santo Agostinho o tempo livre e os recursos necessários para pensar e escrever” (página 201). Assim como faz uma confusão intencional na questão dos investimentos capitalistas, atribuindo o crescimento econômico a esta benevolência dos capitalistas e não à força de trabalho do proletariado; da mesma forma Yuval atribui a prosperidade ao imperialismo romano e não aos escravos, que estavam organizados de tal forma que propiciaram o tempo livre necessário para que a elite pudesse ler, escrever e se desenvolver.
            É possível compreender que os impérios realmente promovam uma evolução tecnológica e científica. Poucos períodos históricos podem ser estudados sem a existência da dominação de impérios. Esta tem sido a tônica da evolução humana. O problema, contudo, é que no passado não possuíamos o grau de consciência e compreensão da história que possuímos agora. Os impérios eram, talvez, a única estrutura social possível e conhecida. Hoje temos avanços em várias áreas científicas – que praticamente podem andar de forma autônoma – e podemos prescindir dos impérios como promotores exclusivos dos avanços científicos e tecnológicos.
Os apologistas do capitalismo sempre justificaram as guerras como grandes impulsionadoras do desenvolvimento econômico e tecnológico. Parte desta argumentação servia para continuar apoiando a existência e a deflagração de guerras. É indubitável que as guerras e o imperialismo contribuíram, de forma contraditória (e bizarra!) para o avanço tecnológico e científico. Devemos olhar este avanço como uma contribuição que custou inúmeras vidas e que deve ser superado por outros métodos. Não podemos mais tolerar isso como justificativa. O ócio dos gregos antigos (baseado no trabalho escravo) não contribuiu menos para a evolução científica da humanidade do que as guerras. Os diversos métodos científicos já desenvolvidos e conhecidos hoje, somado ao excedente de produção, fruto do crescimento econômico, podem ser a base para a continuidade da evolução científica e tecnológica, e não mais as guerras e o imperialismo.
Quem defende o oposto, em pleno século 21, só pode apostar na ingenuidade do senso comum ou nos próprios interesses do imperialismo e de sua indústria bélica. É preciso democratizar não apenas a política, mas a economia e a ciência. O caminho apresentado por Yuval é o que seguimos até o momento. Através do eufemismo da “aldeia global”, utilizado pela grande mídia e por vários outros intelectuais burgueses, tenta colocar uma máscara de amizade no imperialismo. Certamente o mercado mundial, o Estado capitalista e mesmo o imperialismo contribuíram, de forma contraditória e degradante, para a evolução das comunicações e dos transportes. Esta evolução contribuiu para que hoje possamos saber o que acontece em tempo instantâneo no outro lado do mundo. Porém, junto com o imperialismo há a censura midiática, política, econômica, ideológica, etc. Uma censura muito mais sutil e arguta do que a censura explícita de uma ditadura (embora o imperialismo também se utilize desta quando necessita).
Yuval fala exaustivamente sobre o casamento da ciência com o imperialismo e o capitalismo, mas ignora totalmente o aumento assustador que estes promovem às religiões de caça-níquel (como a explosão das igrejas evangélicas, por exemplo, que sobrevivem a partir de um capitalismo selvagem e propagam o mais pernicioso obscurantismo) e às pseudociências (já muito bem desmascaradas por Carl Sagan). Enquanto o imperialismo detém o monopólio da mais alta tecnologia, ele financia e mantém artificialmente o povo no obscurantismo através das igrejas e das suas imposições midiáticas, do consumismo, da padronização de opiniões e de programas idiotizantes.
Nos países de terceiro mundo a ciência é permanentemente sabotada pelo imperialismo (basta olharmos o quanto estas nações são obrigadas a usar os recursos que deveriam ser investidos em educação, ciência e tecnologia para pagar os juros e amortizações das suas “dívidas” públicas). Só os grandes centros econômicos detentores de grandes somas de capitais podem se dar ao luxo de reinvestir seus impostos e recursos em pesquisa científica e tecnológica, mantendo o monopólio sobre as suas “descobertas” e as vendendo, a preço de ouro, para os países de terceiro mundo.
A despeito de todo o avanço tecnológico, a concentração de renda do capitalismo conserva a maior parte da população na pré-história. Modernidade e selvagismo convivem, lado a lado, na sociedade imperialista atual, sem que isso impeça os intelectuais burgueses de continuar exaltando esta “evolução” amputada e problemática. Querem, com isso, embelezar o monstro porque o monstro os embeleza. A tarefa dos trabalhadores conscientes consiste em livrar a evolução humana (seja a tecnológica, científica ou moral) deste parasitismo de classe, que pretende justificar o injustificável para não perder sua posição social privilegiada de comando.
           
5) A “pax americana”
            Yuval não para na defesa do capitalismo e do imperialismo travestida de defesa “realista” da ciência e tecnologia. Ele cruza o rubicão e vai muito além. Afirma que a sociedade capitalista global “é dominada por uma elite que ama a paz” (página 384). Ele procura sustentar esta piada macabra da seguinte forma: “a ameaça de um holocausto nuclear promove o pacifismo” (idem). Esta é a mesma lógica de Stálin e de Kim Jong-un da Coréia do Norte. Casualmente eles não foram lembrados.
Uma paz baseada no medo é realmente uma paz? Por certo que o medo de uma guerra nuclear pode frear guerras mundiais, mas estas estão longe de ter um fim. Desde a crise dos mísseis o imperialismo mudou de tática. Evita confrontos abertos e promove a guerra com parceiros regionais. Trocando em miúdos, o imperialismo terceirizou a guerra e ainda hoje lucra como nunca, seja através da indústria bélica, do tráfico de armas ou de drogas. Yuval tenta relativizar as atuais carnificinas que assolam o mundo nas guerras do Iraque (1991 e 2003), Kosovo (1996, 1999), República Democrática do Congo (1997-2003), Eritréria-Etiópia (1998), Chechênia (1999-2000), Afeganistão (2001), Líbano (2006), Russo-georgiana (2008), Líbia (2011) e Rússia-Ucrânia (2014) como se fossem guerras com mortes desprezíveis. A guerra da Síria iniciou em 2011 e dura até hoje, sem previsão de término. Os investidores e a elite mundial parecem pouco preocupados com o seu desfecho. O lucro da indústria bélica movimenta as guerras no Oriente Médio[iv] (região onde vive Yuval). Só para se ter uma ideia: um cálculo por baixo, feito pelo Congresso Americano, revela que as guerras no Iraque e Afeganistão consumiram quase U$1 trilhão até o início de 2010. Este dinheiro é injetado direta e indiretamente na indústria bélica. Apesar de muitos países, como o Brasil, não estarem em guerra, vivem uma verdadeira guerra civil subterrânea com o tráfico de drogas (inclusive com mais mortes que a guerra da Síria). Não apenas o Brasil sofre com este problema, mas também o México e a Colômbia (dentre outros).
Yuval está em franca contradição com a realidade quando afirma que “a guerra se tornou menos lucrativa” (página 384). Amplos setores da própria mídia burguesa afirmam que a crise econômica mundial não afetou a lucratividade da indústria bélica. Pelo contrário. O setor bélico dos EUA aumentou o faturamento em 20% ao ano[v]. Qual outro setor da economia é capaz deste prodígio hoje? Os acordos de ajuda mútua entre EUA e Israel chegaram à cifra recorde de U$3,8 bilhões. A Elbit – empresa insraelense que produz armas e tecnologia militar – é uma das que mais lucra, tendo ramificações e fechando vários negócios em distintas regiões do globo. Yuval também considera o genocídio de palestinos promovido por Israel como uma “guerra” (página 398) e não a carnificina de um povo preso, vigiado e torturado, que conta com total apoio “humanitário” do imperialismo. Da mesma forma, os conflitos regionais, na sua lógica, possuem mortos desprezíveis se comparado a outras guerras. Este fato justificaria o argumento de que a elite mundial ama a paz.
O melhor mercado para o capitalismo continua sendo a guerra. Ao contrário do que afirma Yuval, o imperialismo sempre foi e continuará sendo uma das principais fontes de ódio e violência organizada, geradora de guerras e instabilidades ao redor do mundo. Yuval não pode dar o braço a torcer e precisa enxergar uma “época de paz” no período que estamos vivendo porque não existem guerras mundiais generalizadas. Desconsidera propositalmente a guerra localizada, do tráfico e de informação. Faz um malabarismo teórico e político para esconder que a “pax atômica” é como a “pax romana”: enquanto o imperialismo domina, explora e mata está tudo certo.
A nossa paz atual – a “pax americana” – é apenas uma paz de cemitérios.

6) A felicidade da burguesia é mais importante que a dos trabalhadores
            Dois temas atuais são abordados por Yuval quando sua narrativa se aproxima do fim: a crise da relação com a natureza, fruto do consumismo; e o problema da felicidade. São dois temas inevitáveis para a contemporaneidade. Sobre o primeiro tópico, Yuval define o que seria esta “desordem ecológica” que pode “ameaçar a sobrevivência do próprio Homo Sapiens: “O aquecimento global, o aumento do nível dos oceanos e a poluição disseminada podem tornar a Terra menos habitável para a nossa própria espécie, e o futuro, consequentemente, pode testemunhar uma disputa cada vez maior entre a capacidade humana e desastres naturais induzidos pelo homem” (página 362). A sua conclusão, no entanto, é surpreendente: “Muitos chamam este processo de ‘destruição da natureza’. Mas, na verdade, não é destruição, é transformação” (idem).
            O nosso autor parte do pressuposto que a natureza não pode ser destruída, o que é correto; mas a nossa espécie, dentro desta natureza, pode. Afirma que as matrizes energéticas mudam com o tempo e que não devemos nos alarmar com a possibilidade do fim do petróleo, por exemplo, pois a pesquisa científica e o investimento em tecnologia trabalham diariamente para desenvolver novos tipos de energia. Isso é parcialmente correto.
            É certo que a humanidade pode e certamente vai desenvolver novos tipos de energia, capazes de superar a matriz que provém dos hidrocarbonetos. Isso, porém, não resolve o problema central, que é a exploração predatória dos recursos naturais e a sua finalidade central, que é abastecer uma sociedade baseada no consumismo. Este é intrínseco a atual fase do capitalismo. Vender produtos com plásticos, de materiais descartáveis ou fundamentados na obsolescência programada é a característica central do consumismo atual. Os lixões a céu aberto e o lixo eletrônico na maioria dos países do mundo é um problema sério, ao qual Yuval parece menosprezar ou mesmo ignorar. O nosso autor precisa agir desta forma porque defende o capitalismo; e este sistema só pode sustentar a sua taxa de lucro, atualmente, mantendo um consumismo neurótico e desenfreado. É esta, possivelmente, a razão central para Yuval relativizar a destruição da natureza. Esta postura política, contudo, é um novo crime da sua parte.
            O lucro está acima da preservação da natureza, das relações humanas, da vida! Nenhuma catástrofe ambiental atual tem feito a burguesia pisar no freio. Ao contrário, paga cientistas e ideólogos (como já nos demonstrou Carl Sagan) para relativizar ou mesmo negar a existência do aquecimento global. O nosso organismo divorciado de uma natureza sadia e que tenha seus ciclos respeitados e preservados, certamente contribuirá para produzir seres humanos mais “mecânicos”, doentes e infelizes.
            A publicidade do mercado capitalista, por sua vez, tenta nos “vender a felicidade” a todo o momento. Não é de hoje que este tema tem sido usado pela burguesia como forma de lançar a confusão sobre o senso comum. A felicidade é um conceito subjetivo. Não existe uma felicidade universal; nem o ser humano pode ser plenamente feliz. A tristeza e a infelicidade fazem parte do crescimento. Não há como evoluir sem um parto doloroso, que sobrevém mais cedo ou mais tarde. Os ideólogos do capitalismo tentam vender um cosmético de “felicidade” total. Bastaria a “liberdade” individual e de consumo para suprir as carências da felicidade humana.
            Yuval nos traz dados biológicos. Segundo ele a felicidade seria, biologicamente falando, apenas uma liberação de serotonina, dopamina e oxitocina no nosso organismo, constituindo-se em uma fórmula simples que “está reagindo a vários hormônios que inundam a sua corrente sanguínea e à tempestade de sinais elétricos pipocando em diferentes partes do seu cérebro” (página 396). A felicidade humana, restrita a esta fórmula genérica, transforma os sapiens em meros seres animalescos, sem capacidade crítica e uma complexa racionalidade própria. A relação com o meio externo e, em especial, com a sociedade, passa a ser fundamental. Uma liberação de “serotonina” após compras no shopping, o sexo descartável ou a uma corrida na esteira podem dar uma sensação momentânea de felicidade. Mas ela seria uma “felicidade” induzida pelos mecanismos do sistema econômico, que impõem o consumismo (Coca-cola: abra a felicidade; Magazine e Luíza: vem ser feliz), os relacionamentos superficiais e certos padrões de beleza, que lançam centenas de milhares de pessoas para desperdiçar energia e força de trabalho nas academias.
            Certamente que uma ditadura tende a deixar os seres humanos mais infelizes (ainda que possa deixar uma parcela bastante grande de indivíduos felizes e até mesmo produzindo serotonina, dopamina e oxitocina). Mas isso se dá dessa forma porque as ligações sociais são destruídas e impedidas de se desenvolverem livremente. O indivíduo é anulado parcial ou totalmente e a sua livre ligação com outros indivíduos é sabotada.
            Sabemos que a exploração de classe, resultado de uma longa jornada de trabalho, somado aos problemas financeiros, destrói a possibilidade de uma vida familiar e social mais coesa e feliz para os trabalhadores. O ócio criativo e de lazer praticamente inexiste para eles. Apenas a burguesia desfruta do tempo disponível para a cultura, as artes, a família, as viagens, os jantares, etc. O mundo gira para garantir-lhe todo o conforto, em detrimento da maioria da população. A classe média almeja atingir a mesma posição, embora não saiba que dificilmente poderá ascender a tal posto. Fica à mercê da insegurança social e econômica. Pra piorar, com a finalidade de manter o seu poder, a burguesia e seus ideólogos lançam por vários meios – mas especialmente através da grande mídia – diversas campanhas, abertas ou disfarçadas, de disputas políticas e econômicas que dividem ainda mais a sociedade e lançam uns contra os outros; classe trabalhadora contra a classe média; e vice-versa. Logo, os ideais de “felicidade” não podem ser muito maiores do que abrir uma coca-cola ou tomar Rivotril.
A felicidade humana não pode se resumir apenas à “bioquímica”. Se assim fosse, bastaria que os psiquiatras liberassem remédios de tarja preta para toda a população e estaria tudo resolvido. Os remédios psiquiátricos e a sua subsequente “bioquímica” são um reles anestésico para um problema que não pode ser solucionado individualmente. A felicidade só é real quando compartilhada. Portanto, a sociedade e a interação com os outros tem um papel fundamental para a felicidade humana. Uma sociedade que se baseia na segregação social de classes e na exploração da maioria por uma minoria, não pode falar seriamente sobre felicidade. Esta também é um monopólio de quem pode comprar o que o consumismo exige, ter o sexo e a companhia de quem o dinheiro pode comprar; bem como os padrões de beleza impostos pelo mercado.
Uma nova sociedade socialista precisa não apenas ter uma nova forma de interação entre os indivíduos, possibilitando a sua realização profissional, artística, filosófica, científica, etc., mas trabalhar no sentido de os torná-los mais autônomos e úteis socialmente falando. Criar uma verdadeira corrente do bem que compartilhe trabalho, solidariedade, cooperação, relações mais cordiais e amor. Que o produto do trabalho da maioria seja também controlado e desfrutado pela maioria; e não apenas por uma minoria oportunista e privilegiada, seja ela uma burguesia ou uma burocracia parasitária. Numa palavra, que o crescimento econômico seja usado para desenvolver a consciência de toda a humanidade, num compartilhamento incessante entre si, elevando à civilização e à cultura aqueles que hoje estão penando na pré-história em pleno século 21.

7) Fim do socialismo?
            O livro de Yuval pretende fazer terra arrasada do socialismo. Utilizando-se de um grande arsenal científico e metodológico, o autor lança mão de inúmeros senso-comuns e invoca até mesmo o “gene egoísta”. Sua principal intenção é manter toda a intelectualidade “vacinada” contra o socialismo. Aproveita-se da tradicional confusão entre regime stalinista e “comunismo”. Toda a sua argumentação resume-se à tentativa de mostrar que o “socialismo morreu” e que “ninguém teria mais estômago para tentar lutar pelo comunismo novamente”. Tenta, como todo o ideólogo burguês, puxar a roda da história para trás.
            Não é casual que haja um niilismo subjacente em todas as principais conclusões em relação à humanidade. Como sabemos, o niilismo cai como uma luva para se defender o status quo. O seu “otimismo” é o reflexo da sua defesa velada do capitalismo: frio, calculista, sem vida; em suma: tem medo de suas próprias conclusões, mas não deixa de defendê-las.
            O socialismo não morreu; nem pode ter fim enquanto existir o proletariado. Será sempre uma possibilidade a espreitar a burguesia. Sabemos, pela experiência histórica, que a vitória do socialismo não é inevitável, mas isso não quer dizer que ele chegou ao fim ou que “ninguém mais tem estômago de lutar por ele”. A burguesia, a classe média e a alienação do proletariado o sabotam. A barbárie social pode se impor ao invés do socialismo, tal como previra corajosamente Rosa Luxemburgo. Cabe aos trabalhadores conscientes procurar cumprir o seu papel histórico, manter os princípios e a coerência (que valem ouro nesta época), ajudando o proletariado na sua organização e conscientização, sobretudo combatendo aqueles que por trás de uma máscara de civilização, modernidade e boa literatura, escondem as guerras, a opressão, a exploração e a miséria, tais como Donald Trump, Michel Temer, Jair Bolsonaro, Vladmir Putin, Xi Jinping e Yuval Harari.

8) Epílogo: um animal que tem uma classe dominante que se acha deus
            O livro conclui sua explanação abordando o tema da “vida biônica”, fazendo referência à uma “profecia de Frankenstein”. Com o avanço da medicina e da tecnologia, os seres humanos estariam se encaminhando para a construção de seres cibernéticos, metade humanos, metade máquinas, tal como a ficção científica já tinha antecipado com os cyborgs. Muitas provas de laboratórios dos EUA demonstrariam a base para os seres humanos futuros, com experiências exitosas de implantação de mãos, pernas e braços biônicos.
            Se a ciência e a tecnologia continuarem progredindo neste rumo, os seres do futuro seriam “algo verdadeiramente superiores a nós” (página 424). Segundo Yuval, provavelmente estes seres biônicos deverão ter interesses religiosos diferentes da religião cristã ou islâmica; e que sua organização social certamente não seria comunista ou socialista (página 425). Eis aí, novamente o ponto. Usando-se da artimanha do avanço tecnológico, Yuval pretende dissociar a necessária superação do capitalismo para uma forma superior de organização social, mais justa e progressista. Não é somente por serem cyborgs que os seres humanos (ou estes supostos seres cibernéticos) deveriam desejar outra crença religiosa ou outra organização social. Mudando suas condições materiais e de compreensão da natureza, devem mudar também suas reivindicações.
A humanidade teve diversas crenças ao longo da história. Um adorador do deus Rá no Egito antigo jamais sonharia que séculos depois haveria uma migração massiva para adorar Alá em Meca. Da mesma forma, um camponês medieval e o seu senhor, adoradores do deus único cristão, jamais aceitariam a diversidade religiosa dos tempos atuais em uma sala de aula da escola pública brasileira, que reúne católicos, evangélicos, ateus, espíritas e umbandas.
Na questão da organização social há uma confusão proposital. É certo que a organização socialista/comunista da sociedade futura não poderá ser uma repetição mecânica do que foi a URSS. A história nos deu uma severa lição. Todo o autêntico marxista a aprendeu. Qualquer organização social futura que quiser ser chamada de progressista, além das liberdades individuais básicas (ainda que não absolutas), deverá socializar a riqueza acumulada pelo capital, pelos bancos, pelas grandes empresas. Isto é: deverá democratizar a economia, seja lá como isso vai se dar e tenha o nome que tiver. Até mesmo alguns setores burgueses, pequeno-burgueses e a totalidade dos socialistas reformistas, que sonham com a “humanização do capitalismo”, reconhecem que é necessário “distribuir renda, taxar as grandes fortunas e criar uma democracia direta”. Os marxistas costumam chamar isso de “socialismo”, defendendo que enquanto houver ditadura de classe da burguesia sobre a imensa maioria, o único meio de se chegar até a democratização da economia é através de uma revolução socialista.
Yuval profetiza que a nova ordem maleável produzida pelo capitalismo “parece ser capaz de conter e até mesmo iniciar mudanças estruturais radicais sem ruir em conflitos violentos” (página 377). Esta contenção só pode ser a cooptação dos trabalhadores pela burguesia, através de diversas armadilhas. Os conflitos violentos serão inevitáveis enquanto a burguesia impuser as suas guerras de rapina pelo mundo e a sua exploração de fome. Não é casual que, como vimos, Yuval minimize as guerras imperialistas “terceirizadas”, que proporcionam lucros estratosféricos para a burguesia e centenas de milhares de mortos, bem como a sua violência, o seu ódio e xenofobia, achando apenas a “revolução” como algo violento. Aí está todo o seu caráter de ideólogo burguês, apesar de se vender (e ser vendido pela grande mídia e universidades) como “neutro”.
A burguesia, com o seu toque de Midas, transformará novamente a tecnologia dos cyborgs em privilégio de poucos: se este cenário idealizado por Yuval se concretizar, apenas a elite poderá regenerar-se de doenças, amputações e limitações com a biotecnologia; a grande massa da população continuará a viver na pré-história, penando em difíceis condições econômicas e sociais. Desse jeito, apesar do discurso da alta tecnologia, a roda corre pra trás. Voltamos ao princípio.
Enquanto o capitalismo for o modo de produção hegemônico, sem ser superado por uma sociedade socialista (que nada tem a ver com os regimes stalinistas), superior e regulada por trabalhadores conscientes e autônomos, a burguesia continuará sendo um deus no céu, a desfrutar de todas as maravilhas da ciência, da tecnologia e do trabalho da imensa maioria da população mundial; enquanto que os trabalhadores viverão iludidos num inferno criado e mantido pelos de cima, cujos ideólogos muito bem remunerados, como Yuval, ajudarão a fazê-los aceitar como normal.




NOTAS


[i] A campanha contra o socialismo nas correntes de internet. Disponível em: http://conscienciaproletaria.blogspot.com.br/2017/02/a-campanha-contra-o-socialismo-nas.html
[ii] Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels. Extraído de: https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap1.htm
[iii] Ver: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/agencias-de-classificacao-de-risco-falharam-na-crise-global-de-2008-11976989.
[iv] Ver: http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=3481&id_coluna=91
[v] Ver: http://exame.abril.com.br/revista-exame/a-industria-de-150-bilhoes-m0051720/

3 comentários:

  1. Quem escreveu o texto ou come coco, ou não leu o livro ou não tolera qualquer análise que não seja o materialismo histórico. Um pouco de capim feve figurar na sua alimentação.

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  2. Legal os "robôs" bolsonaristas prestigiando o blog. Demorou pra o descobrirem. Mas achamos bacana que fez efeito. Sempre com grandes argumentações como "come coco" ou só leram "mimimi". Esta é a direita, este é o capitalismo em decadência.

    O texto totalmente embasado com todas as citações do texto, contendo inclusive as páginas e "quem escreveu o texto não leu o livro". Parece que, na verdade, quem come capim adulterado e não pode fazer outra coisa que não "mimimi", por não ter absolutamente nenhum argumento sério, é a direita. E isso está cada vez mais evidente. Ódio pelo ódio.

    De fato o método utilizado para criticar Yuval é o materialismo histórico, e como se pode ver, foi plenamente exitoso...

    Da próxima vez vamos melhorar essas críticas gurizada! Senão ao invés de comer capim vocês vão retroceder à condição de ameba.

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