"Quanto ao dia e à hora da segunda vinda ninguém
sabe,
nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão somente o
Pai"
(Mateus 24:36).
Diz a tradição inspirada nas sagradas
escrituras que deus envia de tempos em tempos um messias para redimir a
humanidade dos seus pecados. Segundo a crença ocidental, já se passaram mais de
dois mil anos e quase duas décadas desde que ele enviou o último. Era tempo de
redimir esta nova gama de pecados cometidos pela humanidade ao longo deste último
período. O lugar escolhido, tal como a dois mil anos atrás, foi uma província
miserável de um território dominado por um império: Porto Alegre.
Algum
infiel incrédulo pode perguntar: mas porque deus escolheu logo Porto Alegre?
Ora, porque deus tem seus acessos de vontade, como as sagradas escrituras nos
demonstram; e estas, como sabemos, se bastam a si mesmas. De mais a mais, havia
uma música de uma banda gaúcha que dizia que Jesus Cristo iria voltar e que em
Porto Alegre ele iria morar. Muitas crianças, com seus corações puros, cantaram
aquela canção, e esta foi sentida por deus como uma forma de oração. Assim, acabou
por escolher Porto Alegre e viu que isso
era bom.
Zaz! Um clarão desceu do céu. Lá estava
Jesus, com sua túnica branca envolta por um pano vermelho, vestindo as suas
surradas sandálias, exalando bondade e pureza através de uma aura brilhante
dourada, parado, de pé, na pracinha do Julinho, em plena Av. João Pessoa, às
14h de uma movimentada quarta feira. Muitos passageiros de ônibus nas paradas ou
simples transeuntes olharam com grande curiosidade aquela estranha figura,
vestida daquele jeito, caminhando lentamente em direção à Redenção. Uns
cochichos e pequenas risadinhas puderam ser ouvidos vindos de longe. “Mais de dois mil anos se passaram e eles
ainda não aprenderam”, pensou Jesus consigo mesmo. Chegou próximo de uma
das paradas da Av. João Pessoa e disse: “Não
julgais para não ser julgado”. E então, uma explosão de gargalhadas começou
a ressoar por todos os lados. “Perdoa-os
pai”, disse Jesus, olhando pra cima, “eles
ainda não sabem o que fazem”. Retomou a sua marcha em direção à Redenção.
***
Chegando nos bosques da grande praça,
Jesus se deparou com dois mendigos brigando por um resto de marmita e pão, que
haviam encontrado em um banco ao léu. Os impropérios vindos de ambos os lados
eram dolorosos. “Eu vou te matar”, um dizia. “Eu vou quebrar toda a tua cara”,
respondia o outro.
“Calma
e paciência”, disse Jesus levantando uma mão e levando a outra ao coração, “Vamos resolver esta contenda com a paz
interior”. Imediatamente os dois mendigos se largaram e olharam aquela
curiosa figura que caminhava em sua direção. Os olhos de um deles se arregalaram.
Ele disse: “Mas, mas é Jesus!”. O outro não se conteve e caiu na gargalhada:
“Tu só pode tá louco da cola!”.
“Não,
é Jesus mesmo”, disse o primeiro, esfregando os olhos. “Isso mesmo, vós estais certo, sou eu, Jesus”. Uma aura dourada
subiu por trás da cabeça de Cristo, que chegou a alumiar o interior do bosque
da esquina da Av. João Pessoa com a José Bonifácio. “Ó senhor, me perdoe”,
disse o primeiro, se atirando aos pés do redentor.
“Todo aquele que reconhecer os seus
pecados e se arrepender sinceramente por eles será perdoado”, falou Jesus colocando a sua mão
esquerda sobre a cabeça do mendigo. Este se pôs a chorar, baixinho.
O
outro, incrédulo, ficava olhando, distante. “Estou
sentindo falta de fé por aqui”, disse Jesus, admirado com a incredulidade
de um deles. “Me alcance aquele pedaço de
pão”, pediu ao mendigo ajoelhado. Rapidamente ele atendeu ao mestre. Jesus
tomou aquele pedaço duro e velho de pão e o ergueu aos céus, olhando fixamente
para uma grande nuvem que pairava sobre a praça. “In nomine patris, et filii, et spiritus sancti. Amen”,
murmurou Cristo. De
repente surgiu em suas mãos mais 10 pães, completamente novos e apetitosos,
como se tivessem recém saído do forno. “Deus seja louvado”, gritou o primeiro
mendigo, se ajoelhando novamente de fronte ao mestre. Pegou rapidamente um
pedaço de pão e começou a comer, faminto.
“Dai de comer a quem tem fome e de
beber a quem tem sede”,
pronunciou solenemente Jesus, olhando para os dois mendigos. O incrédulo
remexeu em um saco preto próximo ao banco e puxou de lá uma faca de cozinha.
Ameaçou Jesus e o mendigo ajoelhado: “Parado os dois, senão furo vocês! Passem
pra cá os pães”. Tomou de assalto o que queria, os colocou em um saco maior e
saiu correndo em direção à Av. Oswaldo Aranha. “Perdoa-o pai, ele não sabe o que faz”, lamentou-se Jesus, olhando
para os céus.
***
Um pouco cansado e abatido, Jesus
deitou-se em um dos bancos da Redenção para dormir, sempre acompanhado do
mendigo, seu novo discípulo, que dormiu no chão, ao lado do mestre.
Foram
acordados na manhã seguinte por uma ambulância, que passou fazendo um escândalo
com sua sirene, em direção ao Hospital de Pronto Socorro (HPS). Jesus acordou
dando um salto do banco e caindo ao lado do mendigo. Na Palestina de 20 anos
após o seu nascimento nunca tinha visto nada semelhante.
“Alguém
deve estar morrendo”, sussurrou o mendigo. Jesus se pôs de pé e disse: “Precisamos ajuda-lo. Para onde estão indo?”.
O mendigo se levantou e disse a Jesus que estavam indo ao Hospital de Pronto
Socorro. Foram caminhando a passos largos para lá.
Chegando
ao saguão do hospital, se depararam com centenas de doentes pelas cadeiras,
pelo corredor, esperando atendimento ou mães e pais tentando amenizar o choro
de suas crianças. Era quase uma visão do inferno. Tudo desorganizado. Uma verdadeira
baderna! Jesus entrou no saguão, mas o mendigo foi impedido de entrar por um
segurança.
“Deixa-o passar, é meu discípulo.
Ele está arrependido de seus pecados e por isso merece o reino dos céus”, ordenou Jesus ao segurança. Este
se pôs de pé, dizendo: “Aqui não é lugar pra vagabundo! E quem tu pensa que é
vestido desse jeito? Jesus?”. “Sim”,
respondeu Cristo, exalando sua luz dourada. O segurança recuou, assustado.
Jesus se aproximou de um jovem que tinha a perna quebrada e gemia muito.
“Quando vão atender meu filho?”, perguntava a mãe, consolando seu filho e
tentando amenizar sua dor. Colocando a mão sobre a perna quebrada, Jesus falou
em tom solene e ríspido: “Levanta-te e
anda!”. O jovem largou a mão da mãe e se levantou de um só pulo. Todos que
estavam em volta se espantaram. Uma senhora se colocou a fazer sinais da cruz
pensando se tratar de algum tipo de bruxaria.
“Ouçam a palavra de deus, todos
vocês”, gritou
Jesus para os presentes, “olhem como
estão tratando seus iguais”, apontou para o mendigo, que olhava tudo da
rua, “por que ele não pode entrar aqui?
Aqui não é a casa de deus também? Onde os leprosos e doentes são tratados? Por
que há tantos doentes sem atendimento? Por que esta criança chora mesmo estando
no seio de sua mãe?”. O segurança sentiu como se aquilo fosse o princípio
de um motim. Suas ordens estritas eram pra manter a tranquilidade do ambiente.
Chamou reforços pelo rádio.
Alguns
presentes filmavam o que dizia aquela estranha e divina figura com seus
celulares e outros apenas olhavam, estarrecidos. “Eu voltei para redimi-los dos seus pecados”, continuava Jesus já
de cima de um banco, “conheça a verdade e
a verdade vos libertará!”. Nesse instante reforços da segurança do hospital
e da Brigada Militar adentraram o recinto. Pegaram Jesus pelos braços e
colocaram-no na parede: “Este é o elemento?” gritou o capitão. “Sim”, respondeu
prontamente o primeiro segurança. “Aquele é o seu cúmplice”, apontou para o
mendigo na rua, que se pôs a correr, sendo facilmente detido logo na esquina
com a Oswaldo Aranha. O jovem que teve a perna curada se colocou na defesa de
Jesus: “Como são capazes de fazer isso com Jesus Cristo, nosso senhor?”. O
policial logo deu uma chave de braço no rapaz e o colocou na viatura, junto com
Cristo e o mendigo. Foram levados para o Palácio da Polícia. Lá foram fichados,
interrogados e por total ausência de provas, liberados. Alguns curiosos, ao
saberem da notícia e ao verem os vídeos circulando nas redes sociais, foram até
o Palácio para ver como estavam tratando o “suposto” Jesus. Saíram pela porta
dos fundos, mas foram recebidos por estes olhares curiosos.
Jesus
e seu séquito, que já havia crescido para um grupo de cerca de 15 pessoas,
voltaram caminhando para a Redenção. Sentaram-se no meio dos seus escuros
bosques, fizeram uma fogueira, e Jesus começou a lhes falar, novamente, sobre o
Reino dos Céus. Um deles, seguidor de uma igreja evangélica, relatou como era a
sua crença e o que lhe professavam os seus pastores. Disse que certa vez viu um
pastor do templo perto da rodoviária curar uma mulher possuída pelo demônio.
Jesus achou muito estranho. Ficou reflexivo. “Quero ir conhecê-la”, disse Cristo. O evangélico concordou em
leva-lo a aquele templo na manhã seguinte.
***
Ao perceber o esbanjamento da
construção, com seus vitrais e ornamentos, Jesus ficou impressionado. Em nada
se assemelhavam aos templos de Jerusalém. O evangélico corou um pouco. Mesmo
assim, entrou no culto acompanhando Jesus, que olhava tudo com grande
curiosidade e serenidade.
O pastor, em cima do palco, reparou a
entrada de elementos estranhos: “Alto lá, quem são vocês?”. Cristo ergueu uma
mão aos céus e a outra ao coração, pronunciando: “Eu sou o caminho da verdade e da vida”. O pastor ficou um pouco desconfiado.
Não sabia se tudo aquilo fazia parte do culto. Ninguém tinha lhe avisado nada.
Parte dos crentes fez um sonoro “oh!”. Percebendo a sedução dos presentes, o
pastor logo disse: “É você senhor?”. “Sim,
sou eu, Jesus de Nazaré; estou de volta para acertar contas com aqueles que
ainda não entenderam meus ensinamentos, para redimi-los dos seus pecados”.
“Mas
será mesmo ele?”, ouviam-se algumas vozes incrédulas do meio do plenário.
“Senhor, como podemos ter certeza de que é mesmo o nosso messias reencarnado?”,
aproveitou-se o pastor. “Todo aquele que
for puro de coração, logo me perceberá, sem necessidade de provas”, ia
dizendo Jesus, quando rapidamente adentrou no palco dois assistentes do pastor carregando
uma grande bacia cheia de água.
“Eis aqui o desafio para tirarmos a
dúvida:”, bradou o pastor com o dedo em riste, “se este homem for mesmo o nosso
messias ele caminhará sobre esta água”. O pastor apontava ensandecidamente para
a bacia e agitava o plenário. Descalçando as sandálias, Jesus reparou que o
mendigo e o jovem do HPS estavam entre a multidão, esperando algum milagre.
Puxou a barra da saia da túnica para cima e pisou suavemente sobre a água, que
espalhou leves círculos concêntricos por onde o Senhor pisava, sem afundar ou
mesmo abalar o espelho d’água. O pastor e toda a plateia fizeram um “oh” duplo!
O
pastor, falando com a escuta, sussurrou: “Daonde saiu este filho da mãe? Ele tá
caminhando de verdade sobre a água!”. O produtor que estava na escuta,
respondeu: “Não tenho a menor ideia; mas tu já sabe o que fazer, certo?”.
“Aleluia,
irmãos, Jesus Cristo voltou”, disse o pastor voltando-se para a multidão.
Muitas mãos com seus celulares tiravam fotos e gravavam vídeos. Uma senhora
começou a chorar convulsivamente dizendo: “Ele voltou! Ele voltou! Aleluia”. O
pastor então domou aquele frenesi: “Depositem agora mesmo o seu dízimo online
na maquininha à sua frente; não deixe Jesus afundar com sua falta de crença,
contribua agora mesmo...”. Luzes começaram a brilhar ao fundo do palco.
E
Jesus, vendo o espetáculo, começou a se desequilibrar, como se fosse afundar. Então
parou, ainda flutuando sobre as águas, e respirou fundo. Reequilibrou-se.
Sentindo todo o ranço presente naquela atmosfera, Jesus começa o seu sermão: “Parem de transformar a casa de meu Pai em
um mercado!”. Todos ficaram atônitos e um súbito silêncio se fez. Ele
prosseguiu: “Tirai daqui estas coisas;
não façais da casa de meu Pai uma casa de negócio. A minha casa será chamada
casa de oração; vós, porém, a fazeis covil de salteadores”.
O
pastor então pulou sobre Jesus, para fazê-lo afundar, mas acabou virando a
bacia e levando o Senhor ao chão. “Este homem é um impostor, homem de pouca fé,
fora já do nosso templo”. O público ficou confuso. “Só pode ser o capeta nos
tentando!”, gritava o pastor. Imediatamente uma grande vaia estourou por todos
os lados do templo, ressoando para a grande porta de entrada, que dava para as
paradas de ônibus da Av. Júlio de Castilhos. Alguns olhares curiosos se
colocaram a observar. “Fora daqui, pecador imundo!”, berrava o pastor,
gesticulando com as mãos e tendo os olhos faiscantes, “o verdadeiro Jesus disse
na Bíblia para tomarmos cuidado porque muitos iriam aparecer fingindo ser o
messias”. O pastor chegou a descer alguns degraus do seu púlpito para apontar a
porta da rua: “Este homem é a reencarnação do demônio que veio aqui tentar a
nossa fé; fora já daqui Lúcifer, você não nos enganará...”. E muitas senhoras e
jovens começaram a fazer o sinal da cruz descompassadamente. Outros presentes
ficaram confusos, batendo cabeça.
Abaixo
de uma grande vaia, Jesus e seus seguidores saíram do templo em direção ao
centro. Olhares curiosos continuavam a espreitá-los por todos os lados. Mesmo
com todo este incidente, muitos fiéis colocaram o vídeo na internet.
Inevitavelmente tornou-se um dos trending
topics de muitas redes sociais. A mídia foi obrigada a ter que falar sobre
o assunto. ZH dominical dizia: “Quem é
este homem? De onde ele vem? Qual a sua mensagem?”; o Correio do Povo colocou
como uma submanchete: “O que quer nos
dizer um homem que se veste como Jesus e está assustando os moradores do centro
histórico?”. Convites de entrevistas em programas de TV foram enviados. Instigado
por tal fenômeno, alguns repórteres começaram a procurar o suposto messias.
Como ouviram os boatos de que ele morava por entre os bosques da Redenção, começou
a ter uma grande incursão de jornalistas por entre as árvores da grande praça,
tentando algum furo de reportagem.
***
Não
era difícil encontra-lo. Desde que ouvira um homem tocando saxofone no pequeno
templo de Buda, perto dos bambus, atrás do Araújo Vianna, Jesus passou a viver
ali. Gostou da tranquilidade, do silêncio das tardes nubladas e frias, das
pontes em estilo japonês. Aos domingos as crianças corriam soltas pelos seus
gramados. Sentiu uma grande paz de espírito ali. De dentro da casinha, que possuía
uma disforme estátua de um “Buda” gordo, Jesus orava, pregava ao seu séquito,
que agora já tinha aumentado ainda mais. Alguns seguidores, mais ortodoxos,
passaram a dormir com barracas ao lado do pequeno templo de Buda e aquele
deslocamento de miseráveis atrás do Senhor já começava a despertar preocupação
nas autoridades.
Certa
vez um repórter pegou Jesus pregando aos seus seguidores em um domingo
ensolarado. Ele dizia: “Todos nós
buscamos a iluminação, seja na minha religião, seja na religião de Buda. Todos
pregamos o amor, a compaixão, a vida desapegada de valores materiais, fúteis.
Para atingir a pureza de coração ou a iluminação, no Nirvana, todos nós devemos
cultuar a paz interior. Olhem para o universo! Lá devemos desvendar as leis de
deus juntos, com condições dignas para todos os seres humanos...”. As
imagens fizeram sucesso. Viralizaram nas redes sociais e as grandes emissoras
do país retransmitiram-nas em alguns programas de esoterismo.
O
Arcebispo de Porto Alegre, percebendo que a Igreja Católica estava ficando em
desvantagem em relação a tudo isso, fez um convite solene para Jesus visitar a sua própria casa: a Catedral
Metropolitana de Porto Alegre, filial da Santa Sé de Roma. A mídia noticiou o
fato. Foi montado um grande evento para recepcionar Cristo. Uma multidão se
espremeu na Praça da Matriz para ver a chegada do Senhor. Católicos VIPS
ganharam senhas para ocupar assentos nos bancos do interior. Padres, freiras, figuras
públicas e notáveis políticos gaúchos e nacionais ombreavam o governador do
Estado, que também cancelou sua agenda para estar presente na solenidade.
Sem
nenhum tipo de glamour, Jesus chegou com o seu séquito de mendigos, jovens,
esfarrapados e prostitutas, sob o olhar atento dos presentes. Flashes explodiam
por todos os lados, as câmeras estavam posicionadas, celulares, gravadores,
tudo registrando um momento histórico. Jesus subiu as escadas, seguido pelos
seus discípulos (que foram detidos nos portais de entrada), e caminhou, por
entre os bancos da catedral, até o seu altar. Os olhares estavam firmes; nem
piscavam. Não queriam perder nenhum momento daquele grande acontecimento.
O Arcebispo
de Porto Alegre sorriu e disse: “Bem vindo de volta à sua casa, Senhor”. Após,
ajoelhou-se aos pés do redentor. “Pare
com esses protocolos. Ponha-te de pé homem”, falou Jesus, rispidamente.
Lançou um rápido olhar sobre a mesa, com suas taças, candelabros, hóstias.
Voltou seu olhar para as páginas da Bíblia, aberta logo ao lado. Ia começar a
falar: “Ora, há algo errado ali. Eu não disse
isso...”, quando o Arcebispo celebrou: “Viva a volta de nosso Salvador”. E
os presentes gritaram: “Hosana nas alturas, glória vós Senhor”.
Jesus
deu um passo atrás. “Então”, disse
ele, “o que a Igreja que diz falar em meu
nome tem feito pelos pobres?”. O Arcebispo mais que depressa tomou a
palavra: “O nosso Papa tem defendido a causa do povo, meu Senhor. Falado em
retomar os valores de São Francisco de Assis e de voto de pobreza, como o
senhor mesmo falou nas sagradas escrituras. Nós fazemos campanhas do agasalho,
de arrecadação de alimentos...”. Jesus sentiu uma atmosfera de hipocrisia no
ar.
“Cristo,
temos o louvado por anos”, disse uma senhora de traços severos e trajando um
belo terno feminino cor de carmim; “Eu venho a missa todos os domingos”, exaltou-se
outra, sentada mais ao lado. Um burburinho começou a vir do fundo. O Arcebispo
falou mais próximo do microfone: “Que bons ventos o trazem de volta, Jesus,
nossos Senhor?”.
“Venho relembrar minha mensagem, que
parece ter sido esquecida”,
falou Jesus, também se aproximando do microfone. “Ó Senhor, estamos sedentos
por ouvi-la”, disse o Arcebispo.
“Como é feliz aquele a quem o Senhor
não atribui culpa, e em quem não há hipocrisia! Enquanto eu mantinha escondido
os meus pecados, o meu corpo definhava de tanto gemer.”, iniciou Jesus. Um súbito silêncio
se fez. Ele parou de falar no microfone, porque sua voz podia ser ouvida da
rua. “Os mestres da lei e os fariseus se
assentam na cadeira de Moisés. Obedeçam-lhes e façam tudo o que eles lhes
dizem. Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que pregam. Eles
atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos
não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los. Tudo o que fazem é
para serem vistos pelos homens. Gostam do lugar de honra nos banquetes e dos
assentos mais importantes nas Igrejas; de serem saudados nas praças e de serem
chamados cidadãos de bem. Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas!
Vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem
deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo. Vocês devoram as casas das
viúvas e, para disfarçar, fazem longas orações. Por isso serão castigados mais
severamente”.
Aquilo
parecia tão direto, verdadeiro e ríspido. Um mal estar geral se instalou no ar.
De repente, um homem se levantou do meio dos bancos da Catedral e disse: “Como
saberemos que este homem não é um impostor se passando por Cristo?”. Um novo
burburinho e cochichos explodiram por todos os lados. O Arcebispo pediu calma
no microfone. “É verdade! Queremos um milagre!”, gritou outro homem de um dos
extremos da grande igreja; “É isso mesmo! Queremos um milagre”, gritou uma
mulher um pouco mais a frente. E a massa dos presentes começou a gritar em
uníssono: “milagre, milagre, milagre...”. Jesus tomou a palavra novamente pelo
microfone e disse: “Tragam-me um jarro d’água”.
Todos pararam instantaneamente. Um coroinha subiu no altar levando um jarro grande
cheio de água. “Beba um gole”, ordenou Jesus ao Arcebispo. Ele virou o jarro em
um cálice e tomou: “É água”, confirmou.
Jesus
ergueu as mangas de sua túnica e colocou uma mão no interior do jarro, fazendo
escorrer um pouco de água pelas laterais, e pronunciou: “In nomine patris, et filii, et spiritus sancti. Amen”. De repente
borbulhas vermelhas começaram a submergir na superfície, tal como se Cristo
tivesse cortado a própria mão e o sangue jorrando colorisse o recipiente. O
Arcebispo tonteou para um lado; quase caiu. “Aqui
está seu milagre, Fariseu!”, disse Jesus enxugando a mão na toalha da mesa.
O Arcebispo serviu um cálice e tomou: “É vinho!”, ele gritou. Alguns curiosos
se levantaram para ver de perto. O Arcebispo passou o cálice para o primeiro ao
seu lado: “É realmente vinho!”, ele confirmou.
“Aleluia”,
gritou o político que estava sentado na primeira fila. Muitos começaram a
gritar também: “Aleluia! O senhor voltou!”.
“Por que gritam em meu nome vocês
que estão cegos?”,
indagou Jesus no microfone, “Se alguém
jurar pelo santuário, isto nada significa; mas se alguém jurar pelo ouro do
santuário, está obrigado por seu juramento. Cegos insensatos! O que é mais
importante: o ouro ou o santuário que santifica o ouro?”. O Arcebispo
interrompeu: “Mas Senhor, temos cultivado sua palavra por séculos”.
“Por isso mesmo”, continuou Jesus, “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus,
hipócritas! Vocês dão o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas têm
negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e
a fidelidade. Vocês limpam o exterior do copo e do prato, mas por dentro estão
cheios de ganância e cobiça. Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por
fora, mas cheios de ossos e de todo tipo de imundície por dentro. Assim são
vocês: por fora parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de
hipocrisia e maldade”.
“Por
que é tão duro conosco, Senhor?”, disse uma senhora em prantos, próximo das
primeiras filas, “Nós comemoramos a sua ressurreição todos os anos, merecemos o
seu reconhecimento”.
Irado
e de dedo em riste, Jesus falou: “Uma
mentira de fariseus, de hipócritas! Vocês edificam os túmulos dos profetas e
adornam os monumentos dos justos. E dizem que se tivessem vivido no tempo dos
nossos antepassados, não teriam tomado parte com eles no derramamento de sangue
dos profetas. Assim, vocês testemunham contra si mesmos, que são descendentes
dos que assassinaram os profetas. Acabem de encher a medida do pecado dos seus
antepassados! Se purificam rezando pelos pecados do passado para continuarem
cometendo assassinatos de profetas no presente”. Uma senhora se atirou no
chão chorando. Os políticos consternaram-se. Não havia clima sequer para tirar
uma foto, pois qualquer tipo de sorriso seria forçado e mentiroso. O Arcebispo,
sentindo o drama da situação, propôs: “Vamos cantar uma canção sacra para encerrar esta linda cerimônia
de reaproximação”.
“Eu não ordenei o seu encerramento”, gritou Jesus, “Por que todas as casas que vocês falam ser minhas estão tomadas por
homens de negócio, por vendilhões do templo? Por que a Igreja concentra ouro em
suas esculturas e altares? É assim que quereis cultuar minha memória? Por que
possui terras, imóveis, universidades, rádios e televisões, enquanto tantas
pessoas passam fome? Por que os meus seguidores autênticos deixastes do lado de
fora, nas escadarias deste templo?”. O Arcebispo, meio constrangido, aproximou
o microfone da caixa de som, o que fez ecoar uma horripilante microfonia por
toda a catedral, atormentando os presentes: “Er, meu senhor... a Santa Sé
possui tudo isso pra melhor propagar a sua palavra. Talvez possamos entrar em
contato com o Papa no Vatic...”.
Jesus
virou os castiçais e taças de metal no chão. O barulho assustou os presentes,
que exclamaram interjeições de horror.
“Basta!”, gritou Jesus, “Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai uma casa de aparências.
Falo pela última vez: é mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do
que um rico entrar no reino dos céus”. Vozes horrorizadas e de protesto
começaram a ecoar no fundo da catedral. “Vais
me dizer também que a Santa Inquisição foi para melhor propagar a minha
palavra?”, insistia Jesus, descompassadamente e já descabelado.
O
governador, vendo os apuros do Arcebispo, tentou intermediar: “Mas Senhor,
diga-nos agora, o que queres que façamos por sua santidade?”. Jesus virou-se
para o governador, e controlando a sua indignação, disse: “Quem tem muitas roupas, dê roupa ao que não tem. Quem tem bastante
alimento, faça o mesmo. Não cobrem nada além daquilo que foi determinado. Não
usem da violência e não caluniem ninguém”.
“Mas
vejam só”, disse um cidadão que estava sentado na primeira fila, “este homem só
pode ser um comunista infiltrado”. De repente um burburinho submergiu do fundo:
“Vai pra Cuba, seu comunista, comedor de criancinha!”. Garrafas e pequenos
crucifixos de madeira começaram a ser jogado para cima do altar. O Arcebispo
levantou a batina para se proteger.
“Por que o Vaticano tem um banco só
seu?”, continuou
Jesus, indignado, “O que está havendo com
vocês? Não entenderam nada?”. A população explodiu em xingamentos de ódio
incontido. “Saia daqui seu comunista!”, gritavam uns, “Onde você já viu isso
dar certo?”, berravam outros. “Nós defendemos os valores da família, seu
pervertido”, gritou um grupo de senhores e senhoras, sentados mais à direita, na
primeira fileira.
Jesus
insistiu, gritando: “Seria perfeitamente
viável que todos vivessem de forma digna se dividís...” uma taça de metal
acertou-lhe a cabeça, fazendo escapar um filete de sangue em sua testa. Se
defendendo dos xingamentos e dos objetos voadores, Jesus procurava o caminho da
saída. Começou a ser chutado, cuspido, socado, de um lado e de outro. Com muita
dificuldade encontrou seus discípulos, na rua, que passaram a defendê-lo em
forma de escudo humano. Desceram correndo a rua da ladeira.
Quando
a calmaria se fez, o Arcebispo rezou, então, uma nova missa em nome da
ressurreição de Cristo e todos os fiéis fizeram o sinal da cruz. Com sua voz
calma e tranquila, novamente acalmou aquele povo. Ao saírem da catedral, colocaram
uma pedra em cima do assunto. As mulheres retornaram à cozinha e às
necessidades básicas dos filhos; os maridos dividiram-se entre alguns bares da
Cidade Baixa ou da Goethe. Outros adentraram o prostíbulo da R. Olavo Bilac. As
velhas reclamações e pequenas intrigas entre uns e outros voltaram à tona,
exigindo novas orações e pedidos piedosos.
***
Jesus
prostrou-se frente aos seus discípulos, sentando no cercado do templo de Buda,
na Redenção. “Perdoem-nos. Eles não sabem
o que fazem”, disse ao mendigo. “Estão cada vez piores, mestre”, ele
respondeu a Jesus, “eles nos humilham todos os dias e nas raras vezes que nos
dão esmolas dizem que temos que deixar as ruas e ir trabalhar, como se houvesse
emprego para todos”. “Não vamos perder a
fé”, disse Jesus, que olhava para a paz do laguinho da praça oriental. “Olhai os lírios do campo”, ele
prosseguiu, “procure a alegria no olhar
de uma criança. Por que nós iremos perder a fé por causa destes incidentes tão
pequenos?”. Juntos rezaram de mãos dadas uma oração bem diferente das que
conhecemos.
***
A
volta inesperada de Cristo gerou uma silenciosa revolução espiritual em muitos
setores da sociedade. Grandes nomes da política nacional, banqueiros,
empresários, apoiados por pastores de igrejas evangélicas e por bispos e
arcebispos da Igreja Católica, estavam extremamente preocupados. Entraram em
contato uns com os outros. Criaram organizações mútuas. Diziam: “Este impostor
está trazendo graves prejuízos para a fé do povo brasileiro”; “precisamos dar
um basta nisso”. Apesar da sociedade oficial ter jogado Jesus para o gueto,
deixando-o restrito à mata da Redenção, seus milagres e ensinamentos tinham se
proliferado pelas redes sociais ou mesmo pelo boca a boca. Então, a grande
mídia sensacionalista começou uma campanha de perseguição a “aquele ser
demoníaco, de outro mundo, paranormal, que só poderia ser o prenúncio de algo
muito pior”.
Uma
campanha publicitária foi desencadeada 24h na televisão, com anúncios
patrocinados. Jesus estava alheio a ela. O Globo Repórter e o Repórter Record fizeram
programas especiais sobre o assunto: mostraram imagens diabólicas, com cenas
editadas de feições brabas e distorcidas de Jesus em seus protestos contra os
ricos, feitas por cinegrafistas amadores. Foram contatadas “vítimas” de sua
ação demoníaca: “Ele baixou o satanás no
meu corpo”, disse um deles, com voz distorcida e imagem desfigurada no
rosto. “Ele disse que eu não precisava ter vergonha das minhas vergonhas”,
dizia outra mulher, com as mesmas desconfigurações para preservar o anonimato. “É
preciso dar um basta antes que seja tarde”, afirmavam vários tabloides do Rio
Grande do Sul e do Brasil. “Este bandido tem que ir pra cadeia”, diziam os
jornalistas do Balanço Urgente e do Geral do Brasil.
***
A noite estava estrelada e calma.
Sentado nos degraus de entrada do templo de Buda, Jesus dividia o pão e o vinho
com seus discípulos. “Este é o meu corpo,
que agora vos dou. Vamos celebrar o amor, carnal e espiritual, de forma pura e
alegre”, falava Jesus enquanto passava um pedaço de pão ao jovem, que
estava sentado ao seu lado. De repente ouviram uma agitação vinda do chafariz
central. De lá vinha uma multidão, com tochas e pedaços de pau em direção ao
local em que Cristo se encontrava com seus discípulos.
“Lá estão eles”, disse o bispo a um
exército de pastores. “Prendam este impostor”, falou um político, que estavam
acompanhando a multidão, seguido por policiais, que imediatamente agarraram
Jesus e o levaram dali, sob o olhar atônito dos seus discípulos. Muitos
embrenharam-se nos bosques da Av. Oswaldo Aranha com a Av. Setembrina. Negaram
Cristo pra poderem sobreviver à ira daqueles que ali estavam, a bradar um ódio
incontido.
Após colocarem algemas em seus pulsos, Jesus
foi levado para o presídio central, sem interrogatório, sem passagem pelo
Palácio da Polícia, sem direito à habeas
corpus. Naquela noite foi torturado, despido, lançado no meio de outros
presos. Ali ficou sendo ridicularizado, mas com o passar de algumas horas e o
brilho de sua aura, acabou ganhando a simpatia dos demais presos. Por isso,
Jesus foi lançado numa solitária. Nesta cela definhou e sentiu o peso dos seus
machucados por uma noite inteira. Uma parte dos discípulos de Jesus ficou
velando a entrada do presídio todo este tempo. Ao saber disso, associações
cristãs e evangélicas convocaram seus fiéis para dispersar aquela manifestação
insensata de “baderneiros miseráveis, drogados, que mal podiam caminhar e
pensar”. Um confronto se deu entre os dois grupos. Novamente o boca a boca e as
imagens de internet fizeram a chapa esquentar. Era preciso dar um fim o quanto
antes àquela figura.
“Se você é filho de deus, então não
teme a morte”, disse o sargento da Brigada Militar a Jesus. “Não”, respondeu ele, firmemente.
“Espero que o senhor não fique bravo comigo, eu apenas cumpro ordens”, recuou o
sargento, “lamentavelmente precisamos levá-lo para o alto do Morro da Polícia”.
***
O céu tinha amanhecido nublado e
prenunciava um temporal. Um séquito de peregrinos abria uma nova via crúcis
para o cume do Morro da Polícia. “Vamos dar um fim a este impostor como ele
merece”, membros da associação católica e evangélica diziam, enquanto pregavam
as hastes da nova cruz: “Se ele se chama de Cristo, então vai ser tratado
enquanto tal. Será que ele vai descer à mansão dos mortos, ressuscitar no terceiro
dia para subir aos céus?”, agitou o pastor Macedo, que estava no meio de um
grupo de engravatados.
Da rótula da Av. Teresópolis, de fronte
ao presídio feminino, se podia vislumbrar o mórbido espetáculo, que se traduzia
em um amontoado de apedrejadores modernos, trajando, em sua maioria, terno e
gravata, mas, também, chinelo de dedos e calças rasgadas. A cruz já estava
pronta, apenas esperando o messias para começar o sacrifício a deus. Desta vez
não houve Maria Madalena para enxugar o sangue e o suor, nem um Barrabás para ser
solto; apenas uma multidão de Judas, alimentada, sobretudo pelo ódio; aliás, muito
ódio, irracional e incontido, pronto pra apedrejar todo aquele que ousasse
falar em liberdade ou questionar a dubiedade da ética e da moral de sua sociedade.
Estando já deitado sobre a cruz e
prestes a ser pregado novamente, Jesus disse suas penúltimas palavras: “Porto Alegre, Porto Alegre, que matas os
profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os
teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não
quiseste!”. “Cala a boca, viadinho”, gritou um pastor que estava preparando
o martelo e os pregos, “não tem ninguém aqui pra registrar o que tu diz”.
Ao
sentir os primeiros pregos sendo cravados nas mãos e nos punhos, Cristo chorou.
A cruz foi eriçada ao alto e fincada no chão. Das calçadas da terceira
perimetral, transeuntes olhavam aquela cena, curiosos e distantes. Pensavam se
tratar de uma encenação pascal. Mas achavam estranho, pois não estávamos na
quaresma. Mesmo assim, nada faziam, apenas olhavam.
Uma
chuva de pedras, tomates, alfaces, palavrões e agressões verbais descompassadas
e incontidas caíram sobre Jesus. A mídia nada noticiou. Sentindo o fim
inevitável e o novo vagar de sua alma, Jesus pronunciou suas últimas palavras: “Perdoa-os pai, eles não...”.
Parou
por um instante. Refletiu. Tomou o fôlego final: “Não pai, não os perdoe. Mais de dois mil anos se passaram. Eles já
sabem o que fazem...”. Agonizou por mais alguns minutos e morreu. As
consciências estavam tranquilas outra vez.
***
Três
dias se passaram e uma vigília de beatas católicas, evangélicas e de curiosos
ficou velando o local onde Cristo havia sido crucificado e enterrado, com velas,
terços e muitas lamentações. Passou o quarto dia e nada. O quinto e nada. No sexto,
começaram a recolher seus pertences e levantaram acampamento.
Desta
vez, ele não ressuscitou. O ódio tinha sido deveras desagregador.
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