Capítulo 1
O sono letárgico
Dormir. Em qualquer época, dormir é um dos principais tranquilizantes
para as dores da vida. Alivia o estresse corporal e mental. O calor das
cobertas: uma reprodução do útero! A negação da realidade, sempre perigosa! É a
sedução de Thanatos, que mostra um caminho para o fim das dores, do sofrimento
sem fim que é existir e se defrontar com a vida. A doce sensação do sossego
absoluto!
Acorde Uílson, são 5h30min! O mal estar que percorre o corpo à mínima ideia de ter que despertar,
sair dessa letargia gostosa, e caminhar para o purgatório do dia-a-dia, causa
calafrios perturbadores. A falta de um norte, de não sabermos onde estamos; a
sensação de um profundo desamparo.
Acorde Uílson, são 5h35min! A realidade que vivemos nos sonhos é muito atraente e convincente. Como
pode haver outra realidade? Queremos o silêncio! Tudo está em paz; e quisera
nós pudéssemos manter tudo sempre assim. Dorme Uílson, esquenta o teu coração!
Este mundo cão não te merece!
Acorde Uílson, são 5h40min! Última chamada! Você vai
se atrasar! Por que por um único dia não
podemos ser donos dos nossos desejos? Por que sempre tão cedo? Durma! Mergulhe
profundamente no oceano dos sonhos, onde a água é quente e relaxante! Lá não existem
gerentes, supervisores, capatazes, competidores, dores...
Acorde Uílson, são 5h45min! Alerta vermelho! Você vai
se atrasar! Um rasgo, um colapso, uma
passagem truncada. Onde estou? Quem sou eu? O contraste do olhar encontra a
tela da televisão com a mensagem do robô despertador dizendo: “Levante-se imediatamente, Uílson, você
vai perder o transporte! Primeiro Air Bus
saindo do terminal em 15 minutos!”.
Uílson Silva esfregou os olhos.
O céu matinal estava verde acinzentado e no horizonte desenhava-se um temporal.
Ele levantou-se, retirou o cartucho de oxigênio do respirador eletrônico e
colocou um novo. Dirigiu-se ao banheiro, escovou os dentes e depois vestiu-se
vagarosamente. Da sala o robô alertou: – Cinco minutos restantes para não perder
o Air Bus!
O robô despertador fazia parte do controlador
doméstico, uma espécie de marcação sensorial de um instrumento organizador e auxiliar
do seu trabalho, cronometrando horários, tempos de lazer, de idas ao banheiro;
servia também como despertador. Recebera o controlador no ato do seu contrato
de trabalho. Não questionava o porquê daquilo, mas no fundo sentia-se
incomodado. Não havia como não se sentir! Todos os seus colegas também sentiam
o mesmo, mas ninguém podia falar absolutamente nada.
Ao sair de seu edifício, Uílson
somou-se a uma multidão de homens e mulheres que se dirigiam ao trabalho antes
do sol nascer para ganhar o “pão nosso de cada dia”. A maior parte, ainda
sonolenta, andava como uma manada de gado dirigindo-se ao matadouro. Só que
nesse caso a morte era em prestações, minguando dia a dia, hora a hora. Caminhavam
automaticamente até o terminal de onde saíam as naves-transportadoras,
conhecidas como Air Bus. No primeiro
horário elas saíam pontualmente, mas sempre abarrotadas de gente.
Todos passavam suas digitais num micro computador de
bordo e adentravam as últimas maravilhas da tecnologia: ônibus que flutuava!
Uílson foi até o último banco e sentou-se ao lado de uma mulher de meia idade,
de aparência triste. Mal se olharam. Em menos de 5 minutos o Air Bus estava totalmente lotado, mais
parecendo uma lata de sardinha flutuante. A mulher se debruçou sobre Uílson em
razão do peso que um passageiro de pé exercia sobre ela. Debruçado no vidro,
com o olhar perdido dentre aquelas milhares de vidas perdidas, Uílson iniciou
sua viagem de todos os dias.
Dentro do Air Bus
ninguém se falava. Todos compenetrados nos seus microcomputadores de bordos
acoplados aos seus celulares, que também faziam parte dos controladores
domésticos cedidos pelas empresas, vendido pela mídia como o que havia de mais
moderno em
tecnologia. Neste mesmo Air
Bus das 6h15min existia um sujeito que se rebelava sozinho e
inconscientemente contra esta solidão em massa. Falava alto
coisas disparatadas, gesticulava, cantava. Todos apenas se entreolhavam
assustados, alguns com ares de horror, e depois voltavam a se fechar no seu
mundo e o Air Bus seguia rasgando os
céus da cidade, que já estava quase desperta.
Uílson olhou pela janela as primeiras gotas que
começavam a cair do céu. O último temporal tinha sido uma grande enxurrada que se
transformou em chuva ácida, destruindo e corroendo a moradia mais humilde de
muitas pessoas, sobretudo nas slums cities.
Será que essa pequena catástrofe natural se repetiria hoje? – pensou consigo
mesmo. Ele não estava preparado. A sorte era que desembarcava próximo da
empresa. Olhou para o lado como que querendo conversar, mas ninguém lhe
correspondeu. Acionou o feed de
notícias do seu celular. Várias mensagens, repetitivas, vazias, algumas
patéticas! Propagandas de uma felicidade fictícia. Ele não precisava deste tipo
de sublimações naquela hora da manhã. Guardou o celular no bolso e fechou os
olhos.
***
Uílson Silva era um sujeito pacífico e neutro. Não se
metia em brigas, não saía à noite, não discutia, nem tinha opção política;
respeitava seus vizinhos e colegas, trabalhava de manhã até de noitinha e não
seguia o seu coração, apenas a rotina: da casa para o trabalho, do trabalho
para casa. Pensava ser feliz; uma felicidade morna que ele não sabia bem definir.
Refletia o seu tempo: profundo vácuo existencial preenchido por necessidades
artificiais, mas sem nenhum tipo de questionamento mais crítico. Encontrava um
pouco de “humanidade” nas artes e na leitura de livros. “Tudo tem o seu tempo,
e as coisas vão melhorar”, ele pensava sem muita confiança. Não era casado. Seu
último relacionamento, que durou 2 anos e meio, havia lhe deixado profundas sequelas.
Após alguns meses de agonia, foi se apagando aos poucos até descobrir que
estava sendo traído. A partir daí se desencantou profundamente com o “amor”,
caindo em uma terrível depressão que era um marco em sua vida. Ele costumava
falar às pessoas próximas: “antes do fim do meu namoro; depois do fim do meu
namoro”. Sentiu medo de envolver-se novamente para não vivenciar todo aquele
sofrimento, pois julgava que as cicatrizes estavam fechadas, portanto, o
assunto estava encerrado! Depois disso se envolveu com algumas outras mulheres,
mas sem maiores expectativas. Foram relacionamentos tão descartáveis quanto uma
garrafa de refrigerante. Satisfazia os seus desejos e depois se desinteressava.
Talvez estivesse reproduzindo o que tinham feito com ele – refletia. Como
resultado, levava uma típica vida de solteiro. Freqüentava chats e encontros virtuais, pela internet, e na vida real sentia um
pouco de medo quando se aprofundava algum tipo de relação humana, seja ela sexual
ou mesmo de amizade.
Uílson trabalha na mega-empresa multinacional Killer Instinct Technology, mais
conhecida como KIT, onde é operador de call
center, vendendo lotes de armamento de última tecnologia. Cumpre
regularmente suas metas, muito embora não seja o melhor operador de sua unidade,
beirando até mesmo as raias da mediocridade. Nunca questionou qual a finalidade
de sua função social, apenas a executava para ganhar o seu salário, o auxílio
habitação e os tubos de oxigênio. A KIT é, segundo a definição do seu portfólio
publicitário, “uma gigantesca empresa
produtora de armamentos pacificadores, utilizados para promover e manter a
democracia nos quatro cantos do planeta”. Produz suas mercadorias através
de robôs controlados por apenas um operário (substituído por turnos), que
comanda todo o maquinário por meio de um computador central.
Este inovador progresso técnico é movido por um novo
combustível, conhecido como Residual Fuel.
Em um passado não muito distante, era popularmente chamado de “chorume”. Foi a
fonte mais barata encontrada pelos engenheiros e economistas após o esgotamento
dos poços de petróleo. Por ser de fácil obtenção, o Residual Fuel permite compensar a queda da taxa de lucro, que vinha
ocasionando grandes “prejuízos” às empresas multinacionais. No que tange à
obtenção de matérias primas, dos resíduos tóxicos e da poluição resultante
deste novo maquinário, não vêm ao caso explanar no momento, basta dizer que a
KIT, ainda segundo o seu portfólio, “foi
premiada pela International Association of Green Peace por sua preocupação ambiental”, e também, “saudada pelo governo como uma grande colaboradora na redução dos gases
de efeito estufa, trabalhando para concretizar a meta de diminuir a emissão de
gases poluentes em 1.250% até os anos 3000” . A mídia, o governo e os acionistas
da KIT estão otimistas! Por isso, já indicaram a empresa de antemão ao Prêmio
Nobel Internacional da Preservação da Natureza em razão destes esforços ambientas,
sem muitos resultados práticos, mas que “serve de exemplo” (para quem? Se
perguntava Uílson). Esta nova fonte de combustível tem acelerado alguns
impactos ambientais, que são ignorados pelo governo e por alguns cientistas,
pagos pelas corporações oficiais, que afirmam ser natural o Planeta Terra viver
um ciclo a cada 500 mil anos de chuvas ácidas, vendavais elétricos, grandes
secas, deslizamentos de encostas e tsunamis sazonais. Os gases poluentes
escassearam o ar respirável, obrigando a população a consumir tubos artificiais
de oxigênio, fornecido apenas àqueles que estão empregados como uma parte dos
benefícios “salariais” – o item dos contracheques, chamado também de auxílio-oxigênio,
que dá direito a receber também os respiradores eletrônicos.
É por tudo isso que Uílson,
apesar dos pesares, sente-se tranquilizado por ter emprego. A situação nos demais
estados do seu subpaís é calamitosa. Foram criadas as zonas de reabilitação nas
periferias dos grandes centros urbanos para despejar hordas de seres-humanos
sem trabalho e sem perspectiva de vida. A criminalidade nestes bairros chega a
800% e estão dominadas pelo tráfico de drogas, de armas, de comida, de remédios
e de tubos de oxigênio. Estas zonas chegam a conformar países, como é o caso do
departament of Bolivia, dentre
outros, cujas fronteiras são demarcadas por muros gigantescos e
intransponíveis, controlados por soldados e por radares ultra-sônicos. Estas
regiões foram sorrateiramente excluídas dos livros didáticos escolares e do
telejornal da mídia oficial. Uílson apenas viu alguma menção sobre elas na
escola, nas aulas de geografia, mas sempre que saía do colégio – que odiava,
pois se sentia como um prisioneiro – não pensava mais no assunto.
O subpaís de Uílson Silva era
agora chamado de State of Brazil e
estava subordinado à Organization of American
States, liderada pelos United States
of America (EUA). Todo o presidente eleito no Brazil era um membro de voto consultivo no parlamento da OAS, que, por sua vez, enviava um
representante para a instituição internacional que dirigia as sucursais
continentais, conhecida como World’s Parliament
of United Nations, cuja cúpula era controlada pelo World Bank e pelo Monetary
International Fund – órgãos onde as decisões eram realmente tomadas (já
haviam indícios de que outros países do mundo, como China e Rússia, estavam
fundando um parlamento mundial paralelo, que disputava com o World’s Parliament of United Nations a
hegemonia mundial). Mais da metade do que o subpaís arrecadava em tributos e
impostos era destinado para o World Bank,
não tendo nenhum retorno de investimento social além de tecnologia de segunda
mão. Os serviços públicos não mais existiam depois que foram privatizados, um a
um, desde o final do século 20 até o início da década de 2030. Excluindo os
membros da grande burguesia, as “pessoas comuns”, para conseguirem estudar, serem
atendidas em um hospital ou terem tratamento de saúde, precisavam estar
empregadas ou possuir algum tipo de renda. Mesmo recebendo salário era impossível
pagar de uma só vez por estes “serviços públicos”, por isso, muitos bancos
davam créditos para “possibilitar acesso” a eles, gerando futuras dívidas
impagáveis para a maioria das famílias brasileiras. Estas dívidas viravam
verdadeiras bolas de neves.
Toda esta estrutura política e econômica era obscura
para Uílson, que nunca procurou conhecê-la e estudá-la melhor. Aceitava-a como
inquestionável, tal como as leis da natureza. Se submetia a ela como quem se
submete a uma força divina: votava, de 4 em 4 anos, cumprindo suas “obrigações
de cidadão livre”. Como todos brazilians
citizens, Uílson sentia-se desconfortável com a política – sobretudo com a
corrupção, que imaginava rolar solta nos bastidores, mas sem ter como provar –,
atribuindo todos estes problemas à causas esotéricas, extraterrenas, cujo um
reles indivíduo comum, como ele, jamais poderia interferir; que dirá
solucioná-las!
O atual Presidente do State of Brazil era ligado ao Workers Party (as siglas dos partidos –
bem como de várias outras convenções – passaram do português para o inglês
visando “facilitar” a comunicação nas instituições políticas internacionais).
Era o 4º presidente operário e o 2º negro da história do subpaís. O WP controlava todo o movimento sindical
através da maior central sindical, que estabelecia uma relação estreita com as
empresas nacionais e multinacionais, inclusive com a KIT, sendo considerada a
única oficial (ao total existiam 29 centrais sem nenhuma diferença substancial
entre si). Este era o principal trunfo do WP
frente a todos os demais partidos. Todas as 75 siglas político-partidárias eram
outro mistério para Uílson, que não via absolutamente nenhuma diferença entre
elas. Por essas e por outras é que Uílson não “se metia em política” e
considerava que isso era um antídoto à toda a podridão daquele meio. Pensava
que, desta forma, conservaria a sua pureza humana; afinal de contas, “não valia
a pena perder tempo com isso”.
***
Após desembarcar do Air Bus, Uílson dirigiu-se a entrada da KIT, onde já se formava a tradicional
fila de todas as manhãs. Uma seqüência de olheiras fundas em rostos
entristecidos, banhados à remédios de tarja preta ou qualquer outro tipo de
droga. Todos esperavam para passar pelas roletas eletrônicas, onde eram
“reconhecidos” e revistados por um Raio X identificador. Logo após esta breve
“identificação”, adentravam a um grande saguão, com um piso lustroso, espelhos
pelas paredes e colunas de mármores que afunilavam o caminho até os elevadores
panorâmicos. No prédio da KIT existiam 15 andares e cada um deles tinha uma
sala de operações de call center:
compra e venda, cobrança de faturas, crédito, armazenamento e retenção, suporte
técnico, relações públicas, serviço de atendimento ao “cliente”, etc. Uílson
trabalhava no 13º andar, o setor da cobrança e venda. Sempre que desembarcava
dos elevadores ele ficava olhando perdidamente para o Rio Guaíba – que estava
mais espumoso, marrom e “morto” do que nunca, lembrando um grande rio Tietê –
através dos grandes vitrais de entrada da sua operação que lhe proporcionavam
uma visão panorâmica, inclusive das espessas nuvens cinzas amareladas lançadas,
provavelmente, pelo Pólo Petroquímico de Triunfo, lá ao longe, do outro lado do
rio. Contudo, dentro da sua sala de operações, os postos de atendimentos (PAs)
eram tão espaçados e longe das janelas que era impossível “perder tempo”
olhando para a rua, sem falar na pressão constante dos supervisores e na webcam que cuidava da produtividade dos
operadores em serviço.
Naquele dia a entrada dos funcionários estava
transcorrendo sem nenhum sobressalto. Os gerentes e supervisores da KIT entendiam
por “sobressalto” a aparição dos militantes sindicais de oposição, que ninguém
sabia ao certo quem eram, pois panfleteavam mascarados e da forma mais rápida
possível. A panfletagem sindical era rigorosamente proibida. Claro que não diziam
isso abertamente; tanto as leis da empresa quanto as sociais previam “liberdade
sindical”, contudo, qualquer operador que fosse descoberto exercendo esse tipo
de “direito” era sumariamente demitido, perdendo salário, tubos de oxigênio e o
direito à habitação, tendo que se deslocar inevitavelmente às Slums cities. Se quisesse fazer
movimento sindical, que se incorporasse ao sindicato dos telefônicos (que era o
sindicato oficial da KIT). Os próprios operadores que pegavam o panfleto eram
mapeados e passíveis de demissão, só que com outras justificativas. Uílson não
pegava nenhum panfleto porque naturalmente sentia medo. Com o tempo, foi
ficando cada vez mais curioso, tentado a se arriscar para ver o que havia de
tão proibido neles. A maioria dos trabalhadores da KIT, contudo, não gostava
deste “tumulto”. Sempre que uma panfletagem relâmpago acontecia, os
supervisores ficavam mais autoritários, agressivos e ameaçadores. Consequentemente,
muitos operadores viam estes “agitadores mascarados” como inimigos. Alguns
diziam: “se não fosse por estes baderneiros a gente teria tranqüilidade para
trabalhar”. Muitos queriam agradar os supervisores entregando os panfletos para
eles ou tentando descobrir a identidade dos “baderneiros”. Grande parte dos
operadores eram jovens oriundos das universidades e, por não encontrar trabalho
na sua área, eram absorvidos pelo setor de serviços, como os call centers. O peso deste setor era
sentido pela empresa, que já havia aberto convênio com as diversas
universidades de rápida conclusão, mesmo que o curso não tivesse nada a ver com
a função que exerciam na KIT. O próprio Uílson era usuário deste convênio,
cursando Filosofia na Universidade Evangélica (UE), onde fez um único amigo,
com quem debatia questões transcendentais e, às vezes, políticas. Os familiares
de Uílson – em especial os seus tios, que era com quem ele mais mantinha
contato – consideravam um curso sem futuro e recomendavam estudar direito,
administração de empresas, design ou engenharia. Ultimamente sentia-se
desmotivado com os estudos em função do tempo, pois a esmagadora maioria das
cadeiras era “à distância”, para não atrapalhar as horas de trabalho.
Após passar pelo Raio X identificador, Uílson
dirigiu-se aos elevadores panorâmicos, sendo seguido pela massa de operadores
do seu turno. Quando entraram na sala de operações, o turno da noite estava se
preparando para sair. Esta manobra era sempre um grande evento; quase um
realinhamento militar. Centenas de operadores saíam juntos, com olhar
desesperado para se livrar daquele fardo, enquanto que os novos operadores
assumiam seus lugares com aflição, colocavam o headset e um identificador de digitais abria o programa com as
metas já exibidas em um canto da tela do computador.
Os operadores podiam ganhar comissão de acordo com as
suas vendas. A venda por telefone ou pela internet de 1 caixa de armamento
pesado era a responsável pela maior comissão. Porém, havia diversas outras
“promoções”: metralhadoras, uzis,
fuzis, bombas, cartuchos, granadas, balas de diversos calibres. Outro setor era
responsável pela venda de aviões, tanques, jipes, radares, etc. O setor de Uílson
era soft, vendendo apenas “armamentos
leves”. Por conseguinte, a comissão do setor hard era muito maior, mas somente alguns operadores conseguiam
ascender até aqueles postos de atendimento e venda. No porfólio da KIT se fala
em competência, estudo e dedicação, no entanto, todos operadores sabiam que a
verdadeira seleção era feita através de preferências sexuais dos supervisores,
que seduziam e se aproveitavam das operadoras numa verdadeira rede informal de
prostituição dentro da própria empresa. Ninguém ousava questionar alguma dessas
decisões, e desde que o programa de
satisfação do funcionário havia sido instalado nos computadores, gravando
as falas informais dos operadores, os simples questionamentos que corriam soltos
à boca pequena acabavam sendo punidos com a demissão.
O regime de trabalho era garantido por câmeras,
controle do tempo e das idas ao banheiro. Quando um operador cansava e “fazia
corpo mole” – para usar o jargão dos supervisores e dos grandes meios de
comunicação da época – aparecia uma gravação em seu computador contando o tempo
parado. Se mais de três gravações aparecessem num mesmo dia o salário era descontado
impiedosamente. Cinco poderia resultar em demissão. Uílson
sentia uma opressão engasgada na garganta, sobretudo quando dormia e seu sonho
era infiltrado por diversos olhos e por aquela pavorosa sensação de estar sendo
observado, além do medo permanente do desconto do salário e do desemprego.
Porém, até certo ponto achava tudo isso normal, afinal, tinha um emprego e uma
casa com oxigênio entubado – privilégio de poucos!
A manutenção do lucro da KIT era fruto da venda de
armas, que ora eram vendidas para os setores do governo oficial e provinciais,
ora para os setores “rebeldes” das regiões longínquas que estavam em guerra
contra o governo oficial. Sendo assim, a empresa ganhava duplamente e sempre se
apresentava como neutra, promotora do desenvolvimento tecnológico e econômico
de “diversas regiões”. Uílson não procurava se inteirar mais da política da
empresa em que trabalhava. Simplesmente cumpria a sua jornada de trabalho e
corria para casa, para fugir do mundo, onde se escondia nas revistas eletrônicas
ilustradas, nos jogos de computadores e nos livros de literatura. De todo o
lucro da KIT, apenas 8% era destinado ao “pagamento” dos funcionários. Os 92%
restantes eram enviados para os acionistas da indústria bélica que viviam muito
longe – a maioria nos EUA e uma pequena parte em Israel.
No centro da sala de operações erguia-se, majestosa,
uma sala de vidro, onde os supervisores faziam suas reuniões, ficavam observando
os operadores trabalhar e, eventualmente, chamavam-nos para inquirições
individuais. Ninguém ouvia o que falavam, mas podiam ver os seus lábios
movendo-se, suas mãos gesticulando e as suas feições. Grande parte disso era
apenas teatro; uma forma de intimidar os operadores para que trabalhassem mais.
Pelo menos uma vez por dia as várias gradações de supervisores se reuniam na
sala de vidro e ouviam a “ordem do dia” do supervisor-mor, o gestor, que era o
subordinado direto da direção geral da KIT naquela sala de operações. Logo em
seguida, saíam da reunião como cães de caça que farejaram uma presa
encurralada. Recaía sobre a mente e os nervos dos operadores a cobrança das
novas metas recém decretadas. Cada supervisor utilizava-se de suas armas para
cobrar sua equipe: amigáveis ou ameaçadores; sorrindo ou com o semblante
fechado; prometendo uma folga ou o corte salarial e a demissão.
***
Naquele dia, curiosamente não tinha havido nenhuma
reunião até aquele momento. Todos trabalhavam mais leves, mas sempre receosos.
Uílson reparou que os supervisores de algumas equipes chamaram individualmente
alguns de seus operadores, cochichando-lhes ao pé do ouvido. Muitos se
levantaram, colocaram seus headseats
nas divisórias dos Postos de Atendimentos e entraram na sala de vidro. Uílson
pensou que se tratava de mais uma daquelas reuniões que cobrariam mais produtividade
e menos “corpo mole”. Ficou aliviado por perceber que não tinha sido incluído
neste grupo. Baixou os olhos e centrou-se em seu computador. Ligou para três
clientes e conseguiu fechar negócio com um.
De repente, um burburinho começou em um ponto da sala
de operações. Uílson levantou seus olhos e viu que algo muito estranho
acontecia na sala de vidro. Uma das operadoras que havia sido chamada para a
sala gritava e gesticulava. Estava completamente vermelha e chorava. Os
próprios colegas que estavam com ela tentaram acalmá-la, mas não conseguiram.
Imediatamente dois seguranças entraram na sala de vidro e prontificaram-se,
como que esperando por ordens. Toda a sala de operações tremeu. Um clima
elétrico pairava no ar. Ninguém mais conseguia concentrar-se no que fazia.
Todos ficaram com um olho no seu computador e o outro na sala de vidro. Os supervisores
que estavam fora, sentindo o clima pesado, começaram a circular pela operação para
intimidar os operadores, obrigando que prestassem atenção apenas no seu
computador. Mas o clima dentro da sala de vidro parecia não ter solução e
continuava a hipnotizar os demais operadores. Uílson suava frio! Sentia as suas
mãos formigarem. Subitamente a porta da sala de vidro se abre e a operadora,
que Uílson logo reconheceu como sendo Rotielle, uma amiga dos primeiros anos de
operação, gritava aos prantos enquanto era arrastada pelos seguranças: “E
agora? O que será de mim? Seus monstros! Seus monstros!”. E as lágrimas
brotavam-lhe incessantemente; ela soluçava como uma criança. Os demais
operadores que estavam juntos na sala saíram atrás dela em fila indiana, com
uma cara não menos pior. Os seguranças acompanharam todos eles para fora da
sala de operações. Enquanto passava aquele verdadeiro cortejo fúnebre, logo em
seguida vieram os supervisores que passaram a encarar todos os operadores
ameaçadoramente de cima. O clima opressivo tomou conta da sala de operações. Ninguém
sabia ao certo o que havia ocorrido na sala de vidro, mas todos concluíram que
só podia se tratar de uma nova demissão. Somente naquela semana já haviam sido
18 demissões sumárias, sem aviso prévio ou qualquer outra forma de advertência.
Todos estes “entraves” legais foram extintos com a “reforma” trabalhista
implantada algumas décadas antes através de uma constituinte; inclusive o
seguro desemprego, que como alguns patrões alegaram nos debates do parlamento e
dos tribunais, era uma forma injusta de sustentar gente improdutiva (um
eufemismo para o que eles usualmente chamavam de “vadio”).
Na sua pausa de 10 minutos – que era rigorosamente
cronometrada pelo computador –, Uílson saiu da sala de operações e desceu até o
8º andar, onde ficava o terraço, conhecido vulgarmente como “o fumódromo”, na
esperança de conseguir alguma informação sobre sua amiga. Lá, os operadores
fumavam, tomavam café e trocavam meias palavras sobre suas angústias e
impressões do dia-a-dia; à exceção das vezes em que lá se encontravam alguns
supervisores, que intimidavam e coagiam os assuntos, desviando-os para as conversas
mais triviais. Também era em torno deste “fumódromo” que rondava como um
espectro por todos os corredores da KIT a famosa lenda do operador que se
suicidou atirando-se do parapeito do edifício. Ninguém sabia ao certo seu nome,
seu setor, a data do fato. A empresa fez todo o esforço para abafar o caso até
o ponto de parecer que tudo não passava de uma lenda. Quando entrou no
“fumódromo”, um grupo de operadores estava em volta dos colegas demitidos.
Rotielle estava bem ao centro e ainda soluçava, com os braços cruzados e a mão
trêmula, tendo um cigarro entre os dedos. Ela dizia: “Não tenho dinheiro para
chegar até o final do mês e os meus tubos de oxigênio praticamente se acabaram.
Agora é só ar da rua! Como vou fazer com os meus filhos?” E desabou em um choro
fininho e tortuoso.
Todos estavam horrorizados e tentavam consolá-la de
alguma forma. Quando Rotielle encontrou seus olhos com os de Uílson, este
pareceu congelar. Não sabia o que lhe dizer. Apenas sorriu timidamente,
tentando-lhe demonstrar afeto de alguma maneira. Que tragédia! Que injustiça!
Passou pela cabeça de Uílson, como um trovão, os panfletos dos “agitadores
mascarados”, que certamente deveriam falar da situação da empresa e dos
direitos trabalhistas, quase inexistentes. A sua curiosidade para conhecê-los
aumentou. No instante que começava a sentir o sangue ferver, o bip do seu
celular avisou que ele iria “queimar” a pausa de 10 minutos, e que isso
significava mais corte salarial. Não esperou pelo elevador. Subiu correndo
pelas escadas até a sala de operações. Até o final do expediente daquele dia trabalhou
com um misto de ódio, impotência e medo.
***
Quando o relógio marcou 20h40min, Uílson desplugou-se
do computador, passou o polegar pelo identificador digital e apressou-se para a
porta. Uma massa de operadores saiu conjuntamente com ele, enquanto os trabalhadores
do turno da noite preparavam-se para entrar novamente, com uma cara tão sofrida
e acuada.
Do trajeto do terminal do Air Bus até a rua de seu edifício Uílson foi atormentado pela
lembrança do episódio que vivenciara naquela tarde. Pelo menos uma vez por
semana os operadores acompanhavam aquele tipo de cena. A tensão psicológica era
constante; fazia parte da “política pedagógica” da empresa: o que veriam no dia
de amanhã? Sentia-se exaurido, abatido, injustiçado! Como seria bom dormir;
dormir profundamente, esquecer! O extremo cansaço que percorria o seu corpo
quando deixou a KIT transformou-se numa agonia quando chegou em casa. Sentiu-se
frenético e perdeu completamente o sono. Nem o banho quente demorado conseguiu
aliviá-lo. Sempre tinha dificuldades para dormir, mas evitava dopar-se com
remédios (tal como fazia a maioria dos seus colegas de serviço). Procurava ler
e ver TV como forma de se acalmar, sem notar que a TV tinha sempre o efeito
inverso. Geralmente lia e via TV ao mesmo tempo. Ora lia algumas páginas, ora
olhava para a TV quando alguma luz saltava-lhe no rabo do olho. Finalmente
abandonava completamente o livro ou o tablet
e ficava vidrado, olhando para a TV. Seu ritmo corporal se acelerava e ele nem
percebia. As horas voavam. Era exatamente o oposto do trabalho! O controlador
doméstico avisava que já passava da meia noite e Uílson nem se dava conta e
tampouco se importava. Era como se estivesse hipnotizado. Lutava
inconscientemente contra o sono porque sabia que ao dormir baixaria a guarda e
deixaria a “porta aberta” para saírem as más lembranças do dia, da semana, da
vida!
Existiam apenas 14 canais de TV aberta e mais de 600
“fechados” na TV paga. Porém, os programas eram muito similares no essencial;
ou seja, todos de baixo nível. Uílson não tinha condições financeiras para
pagar por um pacote de “TV fechada”; aliás, nem tinha interesse. No passado já
teve um pacote com alguns canais fechados e, de mais a mais, não sentia que os
programas de TV lhe preenchessem o vazio da alma. Pelo contrário. Sentia que
lhe intensificavam este vazio e a falta de perspectivas, sobretudo nos domingos
que antecediam a volta ao trabalho.
Mesmo assim decidiu continuar
assistindo TV, já que era o único entretenimento disponível no seu curto
horário de “lazer”. No primeiro canal que sintonizou se deparou com um programa
religioso. Centenas de fiéis orando juntos com um pastor, que naquele momento
procurava convencê-los insistentemente do poder divino contra as forças
diabólicas que estava assombrando a sociedade. Suportou alguns minutos e trocou
de canal. No outro, se deparou com o “Studio dos famosos” – um programa de fofocas
e intriguinhas que envolvia o nome de pessoas “famosas” (atores, cantores,
jogadores de futebol, lutadores) ligadas ao showbusiness
da moda. A falsidade daquelas risadas, a desconexão total com qualquer vestígio
do mundo real, bem como o caráter plástico e superficial dos assuntos lhe
causou repulsa instantânea, mas mesmo assim suportou por alguns minutos. Sentiu
alguns impulsos involuntários de curiosidade para saber mais detalhes da vida
pessoal e da briga de um casal de atores, que foram flagrados se agredindo em
público em uma praia famosa do Rio de Janeiro. Estava esperando os detalhes,
mas as apresentadoras imediatamente começaram o anúncio publicitário de um novo
cosmético que “iria revolucionar os cabelos e a pele das mulheres”. Então,
trocou de canal.
A outra emissora transmitia uma
luta do campeonato de “vale-tudo” Gladiator
Mortal Combat – 2084 Champions league. A luta já estava no 5º round e um
dos lutadores estava no chão, agonizando, semi inconsciente, enquanto que o
outro, de pé, lhe chutava a cabeça. Sangue espirrava por todo o octógono e a
torcida, vidrada e em uma só voz, queria ver o espancamento até a morte. Uílson
vidrou-se. Por um instante foi como se uma força magnética lançada pela TV lhe
penetrasse na mente através dos olhos. Neste instante ele esqueceu de todos os
seus problemas. Queria ver se o outro realmente iria chutá-lo até a morte. Mas
não tardou muito para ser chamado de volta à realidade pela razão; e, então,
conseguiu trocar o canal sentindo um terrível mal-estar pelo “edificante espetáculo”
que acabara de olhar. Ao invés de ir relaxando para dormir, a cada troca de
canal despertava mais. Era como se recebesse choques de adrenalina em um corpo
amorfo.
O outro canal – campeão de
audiência – estava transmitindo o Meia
Noite News. O comentarista econômico falava com o jornalista âncora: – Os
índices econômicos estão melhorando. Nunca tivemos índices de desemprego tão
baixos! Imediatamente Uílson pensou consigo mesmo: “O que explica então a
demissão de toda uma equipe da KIT, os bolsões de misérias, as pessoas dormindo
na rua, as slums cities?”.
A sua linha de raciocínio foi cortada pela fala do
comentarista econômico: – Mas ainda não está bom! Temos muito o que avançar!
Nossos custos de produção seguem muito altos se comparados com os do sudeste
asiático. Não há como competir com os produtos daquela região se nós pagamos
tantos privilégios aqui, como o auxílio-habitação e o auxílio-oxigênio. E isso
só para citar alguns! É preciso desonerar o nosso empreendedor. Na China e no
Kyrgyzstan, por exemplo, o auxílio-oxigênio foi abolido e substituído pela
purificação de ar dentro do ambiente de trabalho, o que garantiu o aumento das
receitas das grandes transnacionais e a satisfação dos seus empregados... Toda
essa exposição era um tanto hermética para Uílson, que não era muito versado em economia. Agüentou
enquanto pôde; então, trocou de canal.
Na outra emissora passava um filme de sexo explícito.
No exato momento em que ele sintonizou o canal, o sexo chegava ao seu auge.
Uílson sentiu-se extremamente excitado. Todos os seus impulsos mais animais
entraram em convulsão.
Foi neste instante que ouviu o controlador doméstico, ao
sentir através de um sensor que Uílson ainda estava acordado, comunicar-lhe: “1h35min
da madrugada! Tempo de sono restante: 4 horas e 25 minutos”. A profunda
excitação sexual entrou em violento conflito com a consciência de culpa por
ainda estar acordado e, sobretudo, por estar olhando um programa de TV tão
rasteiro e animal como aquele.
Trocou de canal e viu um novo pastor de outra Igreja
Neo Evangélica pregando. Mudou para outro canal e finalmente encontrou um
programa interessante sobre ciência, que tratava das últimas descobertas sobre
o universo. Aos poucos, os debatedores foram descambando da discussão
científica para os raptos extraterrestres e aparição de discos voadores. E o
programa guinou tanto que logo apareceram vítimas que comprovavam os
seqüestros. Uílson logo se aborreceu e trocou de canal novamente. No outro
canal estava um sujeito tomando banho em uma piscina de fezes, enquanto que os seus
colegas de programa riam da sua situação como abobados. Sentiu náuseas! Até que
lhe surgiu uma força interna súbita perante aquele show de degeneração humana.
Juntou toda aquela energia e conseguiu desligar a TV. Ficou de olhos abertos,
olhando para a escuridão do quarto, sentindo a pulsação do seu corpo e uma
terrível sensação de desamparo pelo dia de amanhã.
Relances do dia de trabalho, da demissão dos colegas e
dos olhares perscrutadores dos supervisores lhe cortaram a mente como um raio
em céu sereno. Virou-se de bruços. Respirou fundo uma, duas, três vezes. Um
profundo mal estar percorreu-lhe o corpo como se fossem nuvens cinzentas
prenunciando um temporal. Finalmente apagou.
***
Dorme pobre
amigo, dorme, enquanto te resta uma esperança. Dorme em paz, que os dias de
desengano não tardarão a chegar. Mais cedo do que pensas, vais entender por que
os capitalistas podem perfeitamente vender sua mercadoria com lucro, sem para
isso precisar enganar a ninguém. Então, o teu sono não será mais tão tranqüilo
assim. Verás, em tuas noites, o capital, como um pesadelo, que te oprime e
ameaça sufocar-te. Com os olhos aterrorizados vais vê-lo crescer, como um
monstro com cem dentes de vampiro penetrando nos poros do teu corpo, para
chupar o teu sangue. Tomando proporções desmesuradas e gigantescas, de sombrio
e terrível aspecto, com olhos e boca de fogo, vais vê-lo transformando suas
garras em uma enorme tromba aspirante em que vão desaparecendo milhares de
seres humanos: homens, mulheres, crianças. De tua fronte corre agora um suor de
morte, porque o monstro está se aproximando, para agarrar a ti. Mas teu último
gemido será abafado pelo riso apavorante do monstro, satisfeito em sua gula.
Quanto mais próspero, mais desumano…[1]
Capítulo 2
O lento alvorecer
Muitos dias como aquele se passaram
na vida de Uílson Silva: da casa para o trabalho; do trabalho para casa. O
veneno corrosivo da alienação e da rotina ia pouco a pouco lhe asfixiando.
Uílson sentiu a necessidade de romper aquele elo; precisava de uma pitada de
autonomia, de “ar puro”, de vida! Ao contrário de outros momentos de sua existência,
desta vez a necessidade de mudança não lhe causou medo. Ele não quis fugir
deste sentimento e resolveu encará-lo, ainda que neste momento não tivesse
plena consciência disso.
Eis que mais um dia comum começava. Na fila de entrada
da KIT, ainda sonolento, Uílson esperava para passar pelo Raio X identificador,
quando subitamente escutou um burburinho vindo de trás. Virou-se imediatamente
e viu um “agitador mascarado” distribuindo panfletos, operador por operador,
com grande destreza e rapidez. A maioria dos operadores não pegou o panfleto.
Os que pegaram por susto, imediatamente o atiraram para longe, jogaram no lixo,
largaram ao léu como se fosse ferro em brasa, temendo represálias futuras. Sem
saber que impulso o guiou naquele momento, Uílson agarrou um panfleto, dobrou-o
rápida e discretamente, e o guardou nas suas roupas íntimas. Quando o “agitador
mascarado” chegou próximo do primeiro da fila, dois seguranças saíram correndo
do saguão de entrada para prendê-lo e ele, correndo, diluiu-se na multidão que
caminhava como um formigueiro na avenida de fronte à entrada da empresa. Os
seguranças alertaram todas as unidades, colocaram outros agentes de prontidão,
chamaram a polícia; mas já era tarde.
A panfletagem teve repercussões violentas dentro da
empresa não apenas por trazer denúncias contundentes, mas por desacatar a
autoridade patronal de permitir panfletagens somente do sindicato oficial. Na
sala de vidro os supervisores reuniram-se para debater o ocorrido e tomar
algumas providências. Via-se o gestor rodeado de supervisores, vermelho de
raiva, olhos faiscando, segurando um panfleto que era agitado para cima e para
baixo, querendo que todos os operadores percebessem a sua indignação. Suando
frio, controlando a curiosidade, Uílson suportou o papel dobrado nas suas
cuecas durante todo o expediente, até de noite, quando estaria a salvo em casa.
“Hoje cabeças vão rolar!”, falou o operador ao lado de
Uílson, que se virou e se deparou com a figura de Christian soltando a sua característica
risadinha fina: “hi, hi, hi”. Instantaneamente Uílson sentiu profundas náuseas
porque não suportava esse tipo de comentário e nem as intriguinhas que
Christian, o fofoqueiro da operação, espalhava semanalmente. Era uma forma que
ele encontrava para tentar contornar a mediocridade de sua vida e o vácuo
existencial. Com gente assim, Uílson não era muito receptivo e nem dava muita
conversa. Mas lá estava Christian, com os seus olhos cravados em Uílson,
esperando uma resposta. “Já sabem quem é este baderneiro que veio aqui nos
infernizar de manhãzinha”, ele continuou, “parece que é um operador da
retenção, do décimo andar”. Christian não tinha a menor ideia do que falava,
apenas tinha ouvido um comentário leviano no fumódramo e reproduzia inconseqüentemente
para ter o que falar. “Como você sabe?”, perguntou Uílson. “É só o que falam na
empresa. Parece que já estão organizando a papelada para a sua demissão, hi,
hi, hi”. Uílson controlou-se; respirou fundo e olhou para o lado. O supervisor
se aproximou e mandou que “parassem de fazer corpo mole, pois o tempo estava
passando”. Christian caninamente centrou-se de corpo e alma no seu computador e
esqueceu-se de Uílson, que se sentiu mais leve e voltou-se para a sua mesa de
trabalho. Olhou para o relógio e pensou na hora de ir embora como um andarilho
sedento que atravessa o deserto e só pensa em um copo d’água.
***
Entrou no seu apartamento com um
misto de euforia e aflição. Atirou sua mochila num canto e procurou o cômodo do
apartamento mais distante da sala, onde ficava o controlador doméstico.
Sabia-se, aberta ou sutilmente, que todos os principais meios de comunicação
(TV, celulares, computadores, rádios transmissores, controladores domésticos)
estavam grampeados. Nenhuma empresa de comunicação admitia, mas Uílson tinha
visto diversas reportagens na grande mídia sobre este assunto, principalmente
quando uma emissora queria desmoralizar a concorrente e, então, publicizava
estes “segredinhos”. Seja legal ou ilegalmente, que diferença faz? Uílson não
era bobo o suficiente para pagar pra ver.
Entrou na área de serviço – a
peça mais distante da sala –, sentou-se em um banquinho próximo a máquina de
lavar roupas, desamassou o papel e começou a ler. O panfleto estava escrito em
letras miúdas, com uma grande foto de uma mobilização popular e um pequeno
gráfico que trazia informações sobre o lucro da empresa. Ele dizia mais ou
menos o seguinte:
Oposição Sindical – Boletim Nº 58 – junho de 2084
Colegas
operadores!
Estamos
sendo roubados diariamente. Enquanto a KIT lucra trilhões, nossos salários,
auxílio-moradia e tubos de oxigênio são arrochados, dia a dia. Centenas de
nossos irmãos são demitidos quase que diariamente, perdendo toda a perspectiva
no futuro. A direção da empresa chora miséria, afirmando que não pode pagar
mais, nem dar novos e melhores tubos de oxigênio para os seus trabalhadores.
Tudo isso é mentira!
Enquanto
as empresas e os conjuntos residenciais das classes mais abastadas ficam com as
melhores zonas da cidade – o centro e as zonas adjacentes –, vemos as slums cities
se espalharem por todos os cantos. A alta tecnologia não chega à classe
trabalhadora. Somos vítimas de uma lógica cruel: a riqueza que produzimos
dentro das grandes empresas nos torna mais pobres e miseráveis, enquanto que a
burguesia (a classe dominante) torna-se mais rica e ostentadora. A riqueza
deles está alicerçada em nossa pobreza. Não temos direitos sindicais,
políticos, sociais. Nosso único direito é trabalhar até morrer! A natureza está
sendo destruída a ritmos assustadores: o oxigênio artificial, as chuvas ácidas,
os maremotos e enchentes fazem parte do nosso cotidiano. Os mais pobres estão a
mercê da destruição da natureza por parte das grandes empresas.
É
necessário retomarmos o caminho da luta independente. O Sindicato dos Operadores
da KIT é um braço da empresa e do WP. Está controlado até a medula, servindo
apenas aos interesses patronais, ao mesmo tempo em que faz um teatro ao fingir
defender os operadores. Beneficiam-se dos seus cargos, da liberação do
trabalho, dos seus salários fixos. Usam a máquina sindical e a sua autoridade
para esfriar a indignação, para fazer assembleias onde quem realmente decide
são os supervisores e gerentes da KIT. Resumidamente: adoçam os opressores
diante dos oprimidos; sufocam o espírito de protesto e, consequentemente,
condenam os interesses dos trabalhadores.
A
nossa sentença, como dizia a grande revolucionária alemã do século XX, Rosa
Luxemburgo, continua sendo: “socialismo ou barbárie”. E a barbárie está nos
vencendo, fruto das inúmeras traições dos partidos e sindicatos conciliadores,
que abandonam a luta de classes em troca de algumas benesses materiais.
Queremos retomar a luta sindical independente no sentido da revolução
socialista. Precisamos colocar a ordem social capitalista abaixo. Hoje pode parecer
impossível, mas não é! Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Enquanto existir
capitalismo existirá proletariado, e enquanto existir proletariado, o
socialismo será sempre uma necessidade imperiosa e latente! A revolução
socialista é a nossa única esperança de futuro, de acabar com a destruição da
natureza e da vida!
-
Contra a pressão das metas e do assédio moral!
-
Imediata readmissão dos demitidos: pelo direito ao trabalho!
-
Desmascarar as mentiras de que a KIT não tem dinheiro para dar reajuste decente
aos trabalhadores e novos tubos de oxigênio: pela imediata abertura das contas
da KIT pelos operadores!
-
Fora os controladores domésticos que apenas servem para cuidar a nossa vida!
-
Pela revolução socialista, única forma de acabar com as desigualdades sociais e
garantir um futuro para a humanidade!
Seguiam em anexo dois endereços
de blogs: um da corrente sindical de oposição e o outro de uma organização
política, chamada Justiça Proletária.
Uílson ficou perplexo. De todo
aquele texto conseguiu absorver apenas 50%, porque todas aquelas relações
políticas lhe eram de difícil assimilação. Mas o essencial lhe calou fundo.
Sentiu um turbilhão de coisas. Não sabia bem o que era “socialismo”. Ouvira de
familiares, amigos e da mídia as piores referências. Quando essa palavra era
pronunciada virava alvo de todo o tipo de bombardeio: ideológico, político,
cultural; da má fé do senso comum, da raiva pessoal e, sobretudo, da
ignorância. Chegava a sentir um pouco de medo pela ideia de “mudança social”
que o socialismo defendia e representava. A grande “democracia” do norte
permitia tudo: culto a qualquer religião, qualquer programa de TV, divulgação
de qualquer material impresso. A única coisa expressamente proibida era falar
em “socialismo”, pois a partir daí tudo estava sutilmente ameaçado: emprego e
reputação social. Leu de novo todas aquelas palavras de ordens: seria possível
concretizá-las? Não estariam eles realmente loucos? Por que se arriscavam tanto
para entregar um material como este? O pior de tudo era que o panfleto não
falava nada além do óbvio, da verdade que se procura embaçar com a máscara do
cotidiano. E como era sincero! Em uma época de declínio profundo, de hipocrisia
institucionalizada, de degeneração pessoal e moral, a sinceridade vale mais do
que tudo!
O panfleto foi um grande
motivador para Uílson começar a estudar sobre “socialismo”. Ele procurou,
ingenuamente, sobre o assunto na internet, nas livrarias do centro da cidade,
na biblioteca da UE. Conseguiu um material precioso no blog da Justiça Proletária, que fora indicado no
próprio panfleto. Lá encontrou uma sessão de “formação teórica”, que lhe tirou
muitas dúvidas, porém, criou outras novas. Uílson não se intimidou com elas.
Seguiu, dentro do seu tempo livre, estudando os textos dos teóricos clássicos
do socialismo científico, bem como as análises atuais feitas na “sessão de
conjuntura” do mesmo blog. Quando chegava do trabalho a noitinha, Uílson lia
horas a fio tanto na internet, quanto nos livros que conseguiu achar, a conta
gotas, perdidos nas livrarias e na biblioteca. Adentrava a madrugada e não
assistia mais televisão, que ficou esquecida num canto do quarto. Semanas se
passaram com este trabalho intelectual intenso. Durante este tempo algo novo
nascia no peito de Uílson. Mesmo os resquícios da sua grande depressão
emocional pareciam estar sendo definitivamente superados. Ele encontrou força
para suportar a realidade e, sobretudo, a grande solidão em massa dos
movimentados centros urbanos. Quem sabe não pudesse fazer alguma coisa para
trabalhar no sentido inverso? Ser realmente útil? Quis retomar o contato com os
colegas da faculdade, com outros amigos que o tempo afastara, até mesmo com
colegas da KIT. O mundo pareceu pequeno para o que Uílson estava sentindo
dentro do peito. A sua cabeça fervilhava em uma verdadeira tempestade de ideias
ininterrupta. Uma “luz”, ele não sabia muito bem de onde, parecia estar sendo
jogada sobre a realidade, trazendo à vista fatos e elementos até então imersos
na mais profunda escuridão.
Nesta euforia, a vigilância de
Uílson sobre os grampos foi se abrandando, até esquecer-se dela. Passava mais
horas na internet pesquisando sobre “socialismo” do que nas redes sociais,
jogando, ou fazendo qualquer outra trivialidade online. Deu-se conta da sua displicência
e passou a acessar a internet através de lan
houses, mas já era tarde. De lá, criou um e-mail falso e enviou uma
mensagem para os blogs da oposição sindical da KIT e da Justiça Proletária solicitando um encontro.
***
Dias mais tarde o sindicato dos
telefônicos apareceu na KIT para fazer uma “contra panfletagem”, provavelmente convocado
pela própria empresa. Fazia um calor insuportável. O céu estava nublado em um
tom cinza amarelado e uma densa nuvem de poeira pairava sobre a cabeça dos transeuntes,
dificultando a visão. Parecia que um novo temporal se avizinhava. Uma parte dos
operadores estava se preparando pra voltar do intervalo do almoço e, quando
chegaram a porta de entrada da KIT, se depararam com os dirigentes do sindicato
panfleteando livre e tranquilamente, com a supervisão compassiva dos seguranças.
Uílson pegou uma cópia do
panfleto e se encaminhava para voltar ao trabalho, quando ouviu: “Este é o material
do sindicato”, falou um dos sindicalistas, que era alto, encorpado e de cabelos
grisalhos. “Não dêem ouvidos aos baderneiros que aparecem por aqui falando mal
do sindicato e da empresa. Se vocês souberem quem eles são, denunciem! O nosso
sindicato defende o trabalhador”. Uílson reparou que quase todos os operadores
pegavam o panfleto, sem medo de represálias, muito embora poucos lessem e os
que liam não entendiam suas verdadeiras intenções. Na fila do elevador, Uílson
começou a ler o panfleto, que dizia mais ou menos o seguinte:
Sindicato dos telefônicos – Sinttel – Boletim Nº388 – junho de 2084.
Recentemente
o grupo de baderneiros, intitulado “oposição sindical”, atacou novamente,
caluniando o nosso sindicato e menosprezando todos os avanços que tivemos junto
à empresa. Não acredite em baderneiro! Trabalhador acredita no seu sindicato!
Compareça
à Assembleia amanhã, 7h30min, para discutir o nosso plano de Participação nos
Lucros e Resultados (PLR) da empresa (os operadores que comparecerem receberão
atestado de presença que poderá ser apresentado posteriormente aos seus superiores).
Seguia no texto o local da
realização da assembleia. Uílson achou aquele panfleto profundamente diferente
do panfleto da “oposição sindical”. Era menos polido. Tinha um veneno
subjacente. Apesar de não entender exatamente aonde queriam chegar, Uílson suspeitou
que havia uma tentativa de “mostrar serviço” para que a oposição não ganhasse
espaço. Foi a primeira vez, em 2 anos de KIT, que percebeu esta diferença. Quis
sentir o clima dentro da empresa para decidir se participaria ou não da assembleia.
***
Abriu a porta do fumódromo e
sentiu um vento de chuva no rosto. O tempo estava virando. No extremo canto do
parapeito encontrou Christian conversando trivialidades com alguns colegas. Ele
exibia o cabelo com o último corte da moda, uma jaqueta de couro fashion e um
cigarro entre os dedos. Falava e gesticulava com desenvoltura e fazia de tudo
para ser o centro das atenções. Quando Uílson se aproximou segurando
propositalmente o panfleto do sindicato, Christian desviou o olhar para ele e
abriu um sorrisinho: “Ah, o panfleto do sindicato. Uílson sempre querendo falar
de coisas chatas”, e soltou sua risadinha fina “hi, hi, hi”. “Vamos ir na
assembleia amanhã?”, indagou Uílson, fixando o olhar nos colegas que estavam
com Christian. Helen, uma operadora da Retenção, prontamente afirmou: “Eu não
me meto nessas coisas. As últimas demissões foram feitas em razão da
participação no sindicato”. Uílson reparou que esta afirmação não tinha nada a
ver com a realidade. Muito provavelmente ela tenha sido induzida a pensar isso
por alguma fofoca sem fundamento de Christian. Os últimos operadores demitidos
foram mandados embora em razão do tradicional “corte de gastos”. A sua fala, se
apegando a uma mentira, expressava, consciente ou inconscientemente, uma
desculpa para esquivar-se da responsabilidade de participar da assembleia. “Eu
também não vou ir” – disse Christian, quase em êxtase por ouvir o que dissera
Helen – “isso é tudo perda de tempo. Vou ficar trabalhando por que não quero
ser demitido” – ficou olhando Uílson com a boca aberta e um leve sorrisinho nos
cantos. “E você, Uílson, o que vai fazer?” – perguntou Christian, que de
repente se demonstrou muito interessado. “Eu não sei ainda, estou me decidindo”
– tergiversou Uílson por medo de que Christian pudesse sair por aí espalhando a
notícia, mas já sabendo intimamente que estava decidido a participar. “Nossa!
Queimei minha pausa!” – falou de chofre Helen, levantando-se e tocando fora o
seu cigarro. Os outros a seguiram.
Naquele dia, o clima na operação
estava tranqüilo. Na sala de vidro os supervisores estavam reunidos, mas
debatendo calmamente, sem nenhum tipo de exaltação. Uílson e Christian
sentaram-se e plugaram-se. Não voltaram mais a se falar até o final daquele
dia.
***
De noite, antes de chegar em casa, Uílson decidiu
passar em uma lan house para ver se
havia recebido resposta. Sentou-se em um computador e acessou sua conta falsa.
Lá estava o seguinte e-mail:
Caro colega,
Recebemos a
sua mensagem e gostaríamos de marcar um encontro. Por questões de segurança pedimos
que compareça a assembleia sindical de amanhã e sente em uma das extremidades
do auditório, vestindo uma camiseta amarela ou portando um lenço branco. Caso a
sua participação na assembleia seja inviável, aguarde novo contato.
Nossas
saudações revolucionárias.
Uílson saiu da lan
house com muitas dúvidas e inquietações. Pensava no que poderia acontecer,
pois nunca tinha participado de um evento sindical, mas resolveu encarar para
ver no que ia dar, até porque a panfletagem acontecia normalmente com o total
consentimento da empresa. Quando pisou na calçada sentiu os primeiros pingos
grossos de chuva que prenunciavam um temporal. Ainda tinha que andar duas
quadras. Ao cruzar a rua que dividia as duas quadras um trovão fez as janelas
dos edifícios ao seu redor estremecerem. As ruas esvaziaram-se em um piscar de
olhos. Parecia que o céu ia desabar sobre a cidade, com gotas pesadas que
viraram granizo. O vento fazia a chuva lhe chicotear as pernas, os braços, a
cabeça.
Entrou em casa encharcado. Tirou a roupa molhada,
abriu o armário e puxou do fundo da gaveta uma camisa amarela e a colocou
cuidadosamente sobre uma estante para não esquecê-la no dia seguinte. Tomou um
banho rápido e enfurnou-se embaixo das cobertas, enquanto ouvia o forte
chicotear da chuva na janela. Um relâmpago clareou o quarto. O medo, o frio, o
cansaço, a expectativa, todos misturados, exauriram Uílson e fizeram-no adormecer
em alguns segundos.
***
O despertador robô do
controlador doméstico o chamou apenas uma vez. Levantou no primeiro aviso,
vestiu a camisa amarela (e por via das dúvidas colocou um lenço branco na
mochila), se arrumou, tomou café requentado e foi para a rua. Ao sair do seu
edifício sentiu que a chuva da noite anterior não tinha amenizado o calor, mas
o intensificara. O mormaço dificultava a respiração ao máximo, mesmo às 6h da
manhã. Ainda era noite, mas Uílson percebeu que o céu continuava nublado.
Caminhou apressadamente para o terminal e reparou um rastro de destruição:
postes, placas, sinaleiras, janelas, paredes, todos danificados, meio
corroídos. Ouviu alguns gemidos vindos de um beco, próximo de onde estava
passando. Percebeu três moradores de rua com algumas queimaduras na pele,
resultado da chuva da madrugada, que provavelmente tornara-se chuva ácida. Não
pôde fazer nada por eles, como a maior parte das pessoas que passavam apressadamente
e fingiam não vê-los. Tomou o Air Bus
em direção à KIT. A assembleia seria realizada em um edifício próximo a
empresa, como era de costume do sindicato.
Desembarcou na estação
rodoviária, conjuntamente a muitas outras pessoas que se espremeram para passar
pela porta de saída do Air Bus.
Cruzou a passarela rolante e, logo em seguida, passou pela frente de um grande
templo da Igreja Evangélica, que se erguia majestoso com os seus vitrais de neon
com detalhes em ouro, retratando cenas bíblicas. Uílson se flagrou contemplando
todos estes vitrais e a gigantesca estrutura arquitetônica da Igreja. Na porta
de entrada do templo viu fiéis, de terno e gravata, entregando o Jornal da
Igreja, que é recheado de notícias políticas, nada religiosas, convocando os
transeuntes – inclusive o próprio Uílson, que passava exatamente naquele instante
– a entrar um pouco para conhecer a “doutrina”. Mais adiante viu pessoas
tomando passes e sendo “exorcizadas”. Lembrou-se involuntariamente de sua tia
evangélica fervorosa, que não perdia um único culto dominical e reproduzia
todos os discursos dos pastores. O relógio ainda não tinha batido 7h da manhã e
aqueles indivíduos já estavam ali: catequizando ou militando? Dava para
distinguir esse tipo de Igreja de um partido político se ela dispunha de jornal
para divulgar sua “doutrina” e visão de mundo, reuniões periódicas de “formação”,
militância e disputa ideológica? Somente um crente cego ou um ingênuo
incorrigível poderia pensar o contrário.
Perdido nessas reflexões, Uílson caminhou mais alguns
metros e ficou de frente para a porta de entrada do edifício onde ocorreria a
assembleia. Era um prédio muito grande, espelhado e futurista. Ficava do outro
lado da mesma avenida da KIT, quase em sua frente. Hesitou em entrar. Sentiu um
calafrio por todo o corpo. Respirou fundo; tomou coragem e subiu o primeiro
degrau de entrada. De repente um terrível medo apossou-se do seu corpo e uma “força
invisível” lhe puxou para fora do prédio. Foi incontrolável! Deu meia volta e
saiu. No mesmo instante, quando ia cruzando a porta de saída, sentiu-se
ridículo, covarde, fujão. Neste conflito consigo mesmo saltou-lhe à vista todo
o seu drama. Agora era tarde! Imerso em um mar de pensamentos tempestuosos,
andava de um lado para o outro, para frente e para trás, como uma barata tonta.
Deu-se conta do seu ridículo: o que poderiam pensar? Parou. Disfarçou um pouco
olhando para o quadro pendurado em cima do balcão do porteiro, que lia jornal
em seu celular e tomava café, parecendo alheio a todo o seu sofrimento. Uílson
olhava para o quadro, mas não via nem lia nada. O medo lhe cegava, lhe
ensurdecia, lhe tirava qualquer possibilidade racional. Lembrou-se do seu
antigo gato, em cima da estante, olhando sua mãe lhe mandar para o colégio:
“vai para aula, sem choro! Você já é quase um rapaz. Chuva não é desculpa!”.
Vozes entraram em seu devaneio e Uílson percebeu que estavam atrás dele. Sentiu
um cutuco no braço: “Uílson, você por aqui?”. Virou-se e deparou-se com o seu
supervisor, que lhe olhava com um sorrisinho. Suas pernas amolecerem. Reparou
com o canto do olho que havia mais 4 supervisores com ele. Mecanicamente lançou
um sorriso amarelo, procurando desesperadamente disfarçar o seu estado interno,
o grande duelo que suas forças emocionais estavam travando. “E-eu vim ver o que
ia se passar por aqui!”, sussurrou Uílson desviando o olhar para o chão. “Que
grande bobagem acabei de falar”, pensou instantaneamente. “Está certo!”, respondeu
o supervisor, “aproveite bem!”. Deu um tapinha nas costas de Uílson e virou-se
em direção aos elevadores.
“Aproveite bem” – Uílson ficou
profundamente encasquetado com este “conselho”. Esperou os supervisores
entrarem no elevador para escapar do constrangimento de subir com eles. Reparou
em alguns outros operadores que entraram no saguão do edifício, também em
direção aos elevadores. Reconheceu alguns rostos das pausas no fumódromo, mas
não os conhecia bem. Engoliu seco, respirou fundo e dirigiu-se aos elevadores:
agora já era definitivamente tarde pra desistir. Depois de toda esta crise
solitária, Uílson sentiu-se estranhamente mais forte.
Desembarcou no 12º andar, da
onde tinha uma esplêndida vista do Rio Guaíba e de um mórbido céu nublado. O
calor atenuara-se um pouco, mas ainda estava abafado. Entrou no auditório e
refrescou-se com o ar condicionado, que deixava o ambiente até um pouco frio.
Sentiu sua respiração melhorar. Olhou para o chão e reparou no lustrado do piso
o seu reflexo quase como se fosse um espelho; as cadeiras estavam
matematicamente organizadas e no alto do palco erguia-se uma mesa com 6
cadeiras estofadas, aonde estavam um aglomerado de pessoas, umas de pé, outras
sentadas, todas conversando entre si em pequenos grupos e com semblante
taciturno. Provavelmente eram os dirigentes do sindicato. Reparou que o
auditório não estava lotado. Deveriam ter, no máximo, umas 30 pessoas. Para uma
empresa como a KIT, que possuía mais de 5 mil funcionários, achou bastante esvaziado.
Logo a frente da mesa estavam sentados alguns supervisores, dentre os quais, o
seu. Esparsamente, via um operador aqui, outro acolá. Conforme lhe haviam
solicitado por e-mail, procurou uma extremidade e sentou-se lá, com sua camisa
amarela e o seu lenço branco ao ombro: os dois “sinais” juntos, para não haver
dúvidas! Enquanto se acomodava percebeu a entrada de mais alguns operadores. Reconheceu
no meio de um grupo de operadores Rotielle, a antiga colega que havia sido
demitida alguns meses atrás. Logo depois deste grupo de operadores entrou um
verdadeiro exército de supervisores que foram se juntando aos que já estavam
nas primeiras filas. Uílson gelou!
“Mas esta assembleia não era de
trabalhadores? O que faz este batalhão de supervisores por aqui?”. Uílson ficou
pensando abismado e, ao mesmo tempo, estático, como se ficar absolutamente
imóvel nesta “selva” lhe garantisse a sobrevivência perante os seus predadores.
Uma microfonia ecoou fundo por todo o auditório causando desconforto aos
ouvidos dos presentes. “Vamos dando início a nossa assembleia” – falou um homem
grisalho, que estava sentado ao centro da mesa. Todos os operadores e
supervisores que ainda estava de pé ou conversando procuraram assento e
silenciaram. A assembleia começava com quase 45 minutos de atraso.
A atual direção do Sinttel era
ligada ao WP e à sua central sindical,
porém, nunca tocavam neste assunto; era quase uma filiação clandestina. Se
elegia como chapa única há pelo menos 30 anos. Em todas as suas antigas gestões
foram fazendo alterações estatutárias em assembleias como a que ocorria naquele
momento que era praticamente impossível qualquer operador de base organizar uma
chapa para disputar o sindicato. Em cada assembleia, a diretoria sindical fazia
um verdadeiro ritual, com muitas frases pomposas e combativas que, para um desavisado,
poderiam soar como verdadeiras. Uílson estava alerta sobre a trajetória
daqueles sindicalistas. Tinha lido quase todo o blog da oposição sindical e,
por isso mesmo, tinha uma visão um pouco mais criteriosa. O homem grisalho que estava
falando naquele momento era conhecido como Marconny. No alto de seus 40 anos,
tinha uma cara alongada, um corpo atlético e vestia uma camiseta do sindicato
que dizia: Sinttel – 143 anos de luta –
filiado à UCW. Seu linguajar era arcaico, doutrinário, beirando as raias da
grossura. Falava em “trabalhador” e “contra a patronal” a cada 5 minutos, como
um disco quebrado. O seu linguajar era estranho não apenas aos operadores
presentes, mas para toda a sua base de representação. Estava ali cumprindo um
formalismo e, como tal, necessitava de palavras adequadas para a ocasião. Seu
discurso soava estranho e sem vida aos ouvidos de Uílson.
Do lado direito de Marconny estava sentado Juan
Santiago, um argentino que residia no Brazil
há muitos anos, mas sem perder o forte sotaque castelhano. Enquanto Marconny
falava, ele fingia mexer em um lap top
e a cada cinco minutos mexia a cabeça afirmativamente, como se estivesse
assentindo a tudo o que dizia seu colega. Santiago gozava de grande prestígio
dentro das esferas da burocracia sindical e partidária do WP. Havia quem dissesse que ele era a cabeça pensante do sindicato,
enquanto que Marconny e os demais eram só os executores. Do lado esquerdo
deles, estava sentado um “novo membro”, cooptado recentemente do setor de
suporte técnico da KIT. Era mais jovem que os outros dois e a principal
finalidade de sua cooptação era justamente aparentar que havia renovação dentro
dos quadros do sindicato, mostrando que gente nova assumia os antigos postos,
geralmente ocupado por senhores de idade. Talvez uma forma de responder as
críticas da oposição sindical? Ele olhava quase que hipnotizado para o que
dizia o seu chefe. Imerso nestas reflexões que toda aquela situação lhe
despertara, Uílson foi chamado de volta à assembleia quando ouviu o ponto
principal da pauta: o reajuste salarial de 2084.
“Como todos sabem – dizia
Marconny – a KIT andou enfrentando problemas econômicos que impedem que nós,
trabalhadores, exigíssemos mais da patronal. E nós temos que ser espertos! Temos
que saber a hora de avançar e a hora de recuar! A proposta não é nenhuma
maravilha, mas é o que se tem para agora! A KIT ofereceu 0,01% de PLR em 4
parcelas até novembro de 2086 e nós achamos que devemos aceitar, porque o nosso
sindicato fez um grande esforço para chegar até este índice”. Todo o plenário
ouvia em absoluto silêncio, em parte atônitos, em parte alheios, sem poder ou
com medo de influir sobre tudo aquilo. Uílson começou a suar! Sentiu suas
têmporas latejando e um fio de suor escorrendo pelas costas. Mais 15 minutos de
justificativas foram costuradas perante o plenário, que aprofundava o seu
estado atônito. Não houve abertura para fala dos presentes e ninguém
reivindicou tal direito.
Chegou o momento da votação. Marconny se levantou e
ficou de pé na frente da mesa, visivelmente nervoso e consternado. Perguntou,
com uma voz rachada que refletia sua aflição oculta: “Quem vota a favor da
proposta?”. A maioria dos supervisores levantou a mão favoravelmente, junto com
alguns operadores isolados. Só aquele número já dava a vitória à aceitação da
“proposta”. Mesmo assim, ele continuou: “Contrários?”. Ninguém teve a ousadia
de levantar a mão, nem mesmo Uílson. “Abstenções”, perguntou por último Marconny.
Algumas mãos tímidas ergueram-se, mas Uílson continuou imóvel, sem ter votado
em nenhuma das 3 propostas. O “medo da represália” foi a explicação que ele deu
para si mesmo, como um alento para a sua consciência de culpa.
Marconny retomou a palavra: “Bem
pessoal, a proposta foi aprovada por maioria”. Soltou um suspiro, afastando o
microfone da boca, enxugou o suor da testa e sentou-se novamente. “Agradecemos
a presença de todos”, dizia ele quando subitamente parou, pois um dos membros
da direção se aproximou e cochichou algo ao pé do seu ouvido. O cenho de
Marconny franziu-se. Eles entraram em uma breve discussão, longe do microfone.
Por fim, com um rosto contrariado, Marconny voltou-se ao público: “Estão me
falando aqui que aconteceu um probleminha há algum tempo atrás, he, he, he. Uma
colega, que está aqui presente, foi demitida e ela quer falar alguma coisa”.
Marconny a procurou nas cadeiras do plenário e ela submergiu do meio de um
grupinho. Era Rotielle, que levantou-se aflita, segurando alguns papéis que
foram levantados enquanto ela falava, mas ninguém, à exceção do grupo que a
rodeava e da própria mesa, conseguia ouvi-la porque não tinha microfone. “Não
temos mais tempo, companheira”, respondeu ligeiramente Marconny. Rotielle
começou a gesticular e a levantar mais alto a sua papelada. A direção do sindicato
começou a se levantar querendo induzir ao fim da assembleia, mas Rotielle não
se deu por vencida e se aproximou correndo da mesa. O que ela gritava ficou um
pouco mais audível: “Eu fui demitida injustamente! O que o sindicato pode fazer
por mim? Preciso de ajuda!”. Marconny e Santiago se precipitaram sobre ela: “Se
acalme, companheira! Não podemos discutir sobre isso, o nosso tempo acabou!”.
Falavam isso enquanto a seguravam pelos braços. “Como acabou?”, Rotielle
perguntou desesperada, já começando a chorar e a se debater. Santiago
pressionou o dedo contra o ouvido, como se falasse com uma escuta, e disse algo
que era inaudível para Uílson. Imediatamente entraram seguranças do edifício
que a pegaram pelos braços e a retiraram do plenário. Marconny, visivelmente
constrangido, falou no microfone: “Er... desculpe por este pequeno incidente,
pessoal! He, he, he! Fiquem vocês sabendo que a assessoria jurídica do nosso
sindicato trabalhará incansavelmente para resolver o problema da colega de
vocês”. Deram por encerrada a assembleia. Os trabalhadores começaram a se
levantar e a se dirigir à porta de saída. Uílson começava a se levantar quando
sentiu uma trombada que o levou de volta para sua cadeira. “Ei, você!”, disse
sem pensar. Não conseguiu olhar para o rosto de quem havia trombado com ele,
quando reparou que havia um pequeno envelope dobrado no seu colo, onde se lia
letras escritas à lápis: “leia em casa”. Uílson rapidamente colocou o envelope
em sua mochila e se dirigiu para a saída do auditório o mais rápido possível.
Não esperou os elevadores; desceu de escada, de dois em dois degraus.
Sentiu um bafo quente no rosto
quando saiu pra rua: o calor havia voltado com força e dificultava muito a
respiração. A assembleia tinha durado 1h, mas a sensação era de que havia se
passado 5h. Mal tinha começado o dia e Uílson já se sentia cansado. Uma espécie
de ressaca lhe percorreu todo o corpo ao perceber que teria que trabalhar até
as 20h40min – e eram recém 9h44min! Caminhou com passos bovinos para a KIT,
procurando aproveitar ao máximo esse pequeno “tempo livre”.
***
Abriu a porta de entrada do
apartamento e as luzes se acenderam automaticamente. O controlador eletrônico
disparou: “Boa noite, Uílson! Você tem uma mensagem da KIT”. Seu coração
disparou e a imagem da assembleia da manhã lhe invadiu os pensamentos. Acionou
na tela do controlador as mensagens de voz: “Uílson, queremos falar com você na
sala do gestor, amanhã de manhã, antes do expediente, sem falta!”. Puxou uma
almofada e sentou-se, desconsolado, no meio da sala. Ali ficou, pensativo e
aflito, como que paralisado pela angústia. E agora? Se fosse demitido como
Rotielle? E se perdesse todos os “benefícios” e tivesse que se mudar para uma slum city? Ou pior ainda: vagar pelas
ruas como um indigente, pois Uílson era muito orgulhoso para pedir ajuda para
os seus parentes. Conteve o ímpeto de chorar. Respirou fundo e procurou pensar
em outras coisas. Tentou consolar-se lembrando que “quem morre de vésperas é
peru” – velha máxima lida nos gibis franceses da infância. Um surdo sentimento
de desespero espalhou-se pelo seu corpo: uma vontade louca de se humilhar
perante os chefes, pedir-lhes desculpas; uma vontade insuportável de desistir
de tudo! É loucura! Lembrou-se do envelope recebido de manhã, na assembleia
geral. Pensou em queimá-lo, sem lê-lo, mas subitamente mudou de ideia. Correu
até a sua mochila e o tirou de lá. Desdobrou-o cuidadosamente e tirou um papel de
dentro, que dizia o seguinte:
Caro colega,
Nos
encontramos no restaurante Pallace, do outro lado da Avenida, duas quadras
adiante da KIT, no intervalo do almoço, na última mesa à esquerda, antes do
banheiro masculino. Um colega estará sentado lá lendo um livro e usando uma
camisa xadrez vermelha. Caso não possa comparecer, esperamos o seu comunicado
via e-mail até amanhã pela manhã.
Saudações
revolucionárias!
Após ler, Uílson amassou os papéis e os queimou. Ficou
pensativo. Se envolver com estes revolucionários seria cavar a própria cova.
Mas já era quase meia noite. Não poderia avisar por e-mail que “não poderia
ir”, conforme lhe foi solicitado. Se ele não fosse, não honraria a sua palavra,
ainda mais depois de uma comunicação clandestina tão dispendiosa para ambos os
lados. Além do que, já se considerava na “lista negra” da KIT por ter participado
da assembleia. Estou perdido mesmo! Que a KIT vá para o inferno! Falava tudo
isso como se houvessem dois Uílsons. Um, o de sempre: medroso, cansado,
acomodado; o outro: querendo sempre dar um passo à frente! Este último era realmente
desconhecido para ele, pois na maior parte do tempo de sua vida esteve
soterrado pelos anseios do primeiro. Estava o descobrindo dia após dia, ficando
espantado a cada um desses passos novos rumos ao desconhecido.
Passou a noite toda com uma angústia profunda; numa
luta contra si mesmo. “Vou perder meu emprego e a minha vida vai piorar” – uma
voz interna lhe dizia. Outra respondia: “Perder o quê, seu merda?”. “Seu merda? Tenho, sim, muito medo de perder
meu emprego, minha casa, meu salário, meus tubos de oxigênios! E se eu for
obrigado a ir pra uma slum city”.
“Você já perdeu a sua vida em um emprego que não gosta, com gente que não gosta,
sendo humilhado diariamente. Você já vive em uma slum city moral, pessoal, diária! A diferença, no fundo, será a
possibilidade de você viver de verdade! Na realidade você já é um cadáver
ambulante, que ri socialmente, que vive socialmente uma vida de mentiras da
qual quer livrar-se, seu projeto de gente! Chora para si mesmo, vive de depressão
em depressão, morrendo em
prestações. Não seja um cagão: se você não tem pelo que
viver, então encontre pelo que morrer”. Raiva, ódio, medo, aflição, angústia! Uílson
nadava para chegar a superfície deste mar emocional. Sentia os olhos pesados e
dor nas pálpebras, nos ombros, nas costas. Então, às 3h10min da madrugada, exausto
de tanto nadar e após vário avisos do controlador eletrônico, não resistiu mais
ao cansaço psicológico e apagou-se.
***
Ao abrir a grande porta de
entrada da sala de operações, Uílson estranhou vê-la às escuras, com os computadores
apagados e as cadeiras quase vazias. A única luz que iluminava o ambiente era a
das grandes janelas ao fundo da sala, que começavam a irradiar para dentro do
prédio os primeiros raios avermelhados de sol e de alguns postos de
atendimentos do turno inverso, que ainda trabalhavam. Reparou que a sala de
vidro estava iluminada por uma tímida luz e percebeu alguns vultos em seu
interior. Aproximou-se, pé ante pé, e bateu na porta. Ouviu uma voz abafada lá
de dentro: “Pode entrar, Uílson”. Adentrou o ambiente e visualizou o gestor do
seu andar sentado atrás da mesa, repleta de papéis, canetas e um lap top no lado esquerdo. Viu, também,
dois supervisores, dentre os quais o da sua equipe, de pé, ao lado do gestor. Engoliu
seco. Foi aproximando-se da mesa. “Sente-se”, o gestor ordenou apontando a
cadeira em sua frente.
Wesley Giovanni havia se tornado
gestor há mais ou menos 3 anos, nomeado diretamente pela alta cúpula da KIT.
Gozava de grande prestígio perante os acionistas da empresa, que tinham o
escritório na Avenida Paulista – uma das poucas regiões habitáveis de São Paulo
após a grande seca –, mas acompanhavam os negócios diariamente através da
internet. Giovanni era quase calvo, tinha os olhos azuis em formato asiático,
grandes pomos no rosto e estava um pouco acima do peso. Usava uma camisa com o
símbolo da KIT e tomava café. Quase nenhum operador tinha acesso a ele. Somente
o viam entrando e saindo da sala de vidro e tendo os seus acessos de raiva
contra os panfletos da oposição sindical ou a baixa produtividade da operação.
Era comum ouvir pela boca pequena – sobretudo de Christian – que ele saía com
muitas meninas da operação, prometendo fazê-las “crescer dentro da empresa”.
Certa vez, Uílson ouviu uma colega de equipe afirmar que saía com o gestor e que
iam começar a namorar em
breve. Semanas depois, ele a viu chorando no fumódromo e
soube, através de Christian, que o gestor estava flertando com uma operadora de
outro andar.
Naquela manhã, Giovanni recebeu Uílson com um
sorrisinho cínico. Perguntou-lhe à queima roupa: “Então você esteve na assembleia
do sindicato ontem pela manhã, não é mesmo?”. Um gelo percorreu a espinha
dorsal de Uílson. “S-sim!” – disse ele com voz sumida e sentindo uma opressão
por todo o corpo. “Reparamos que você não votou a favor da proposta da
empresa”, continuou o gestor, “e por isso chamamos você aqui. Queremos saber se
você é contra o esforço da empresa e do sindicato para chegar a um acordo?”. Os
olhares inquisidores dos três pairavam ameaçadoramente sobre sua cabeça. Uílson
não conseguia raciocinar, só sentia medo. Disparou sem refletir: “N-não!”.
Giovanni levantou a sobrancelha esquerda e coçou o queixo: “Hmm! Isso significa
então que o seu voto é favorável e lá, durante a assembleia, você... digamos,
esqueceu de votar?”. “E-eu não entendi muito bem na hora. F-foi por isso!”.
“Aham! Muito bem!”, disse o gestor puxando um papel da gaveta, “então pedimos
que você assine aqui para comprovar que é favorável ao acordo coletivo com o
sindicato” e apontou para uma folha impressa, com um texto extenso e de letras
miúdas, contendo uma linha em branco com o nome de Uílson e a sua matrícula de
trabalho. Uílson sentiu-se sufocado! Queria sair correndo dali. Os olhos dos
seus supervisores continuavam cravados nele. Ouviu algumas vozes ao fundo e
reparou que os operadores começavam a chegar para trabalhar. Algumas luzes se
acendiam. “Eu não quero fazer isto” uma voz interna gritava em sua mente, mas
sem ousar sair de sua boca. Refém de toda aquela situação, não teve opção.
Pegou a caneta com a mão trêmula e assinou como se fosse uma navalha rasgando sua
própria carne. “Agradecemos a presença! Agora pode ir”, falou Giovanni olhando
fixamente para Uílson, que levantou-se do seu lugar como que por um impulso e
foi em direção a porta. O gestor e os supervisores sorriam. Uílson saiu da sala
de vidro com a sensação de levar um piano nas costas. Imediatamente reparou
vários olhares curiosos lhe fuzilando. Dirigiu-se ao seu posto de atendimento,
colocou o headseat na cabeça,
plugou-se no sistema e começou a trabalhar.
***
As 11h55min o seu celular despertou. Era o lembrete
eletrônico que Uílson tinha programado para não se esquecer do encontro com o
militante da oposição sindical, no restaurante Pallace. Acionou o controlador eletrônico do seu computador e
selecionou a pausa almoço, que era de
20 minutos. Foi em direção à porta de saída.
Ao sair para a rua sentiu um calor sufocante. O céu
estava nublando e provavelmente iria desabar um novo temporal. Um ventinho de
chuva cortava o ar. Caminhou apressadamente para o Pallace; não tinha tempo a perder! A porta de vidro automática se
abriu e adentrou o recinto, que fervilhava como um formigueiro. Mulheres e
homens sentados no balcão, ao longo das mesas, conversando calorosamente e
propagando um barulho ensurdecedor. Pessoas se chocavam ao passar pelo
corredor, estreito em razão da quantidade de gente que ia de um lado para o
outro, segurando pratos, copos, talheres. O restaurante Pallace era freqüentado majoritariamente pelos operadores da KIT,
embora fosse popular para outros trabalhadores do centro da cidade também.
Uílson achou estranho ter combinado um encontro “clandestino” justamente ali.
Olhou para um lado e para o outro discretamente. Ao longe avistou o “contato”:
lá estava ele, com a sua camisa xadrez vermelha, lendo um livro e sentado antes
do banheiro masculino. Uílson reparou que era um rapaz, talvez um pouco mais
novo do que ele, de vasta cabeleira, barba por fazer e rosto alongado. Usava
óculos de aros pretos e lia compenetradamente uma... Bíblia? Será que é ele
mesmo? Aproximou-se e perguntou: “Posso me sentar?”. O rapaz levantou os olhos
para ele e sorriu: “Mas é claro! Já estava pensando que você tinha desistido!”.
“Não sou tão covarde quanto aparento!”, brincou Uílson, puxando a cadeira.
“Eu me chamo Eduardo, e você?”, disse ele estendo a
mão para Uílson. “Eu me chamo Uílson, Uílson Silva!”, disse apertando a mão de
Eduardo, “eu trabalho no setor de cobrança e vendas da KIT”, se repreendeu em
pensamentos por ter falado tanta coisa em tão pouco tempo. Por isso contra
atacou: “E você, trabalha na KIT também?”. “Não! Eu trabalho numa outra empresa
de call center. Vim especialmente para
falar com você por que fui designado pela nossa organização”, disse Eduardo
sorrindo e tomando um gole de suco que estava na mesa. “Achei estranho você
estar lendo a Bíblia”, comentou Uílson. Eduardo riu: “É um livro insuspeito,
guardião da moral e dos bons costumes. Poderia me passar como um ‘bom
evangélico’, não é mesmo?”. Ajeitou-se na cadeira, pigarreou e retomou a
palavra: “Então Uílson, diga-me, por que nos procurou?”.
Uílson não tinha se preparado para o encontro. Não
sabia ao certo o porquê tinha entrado em contato com uma organização revolucionária
clandestina. Passou-lhe pela cabeça toda a crise da noite anterior e dos
últimos meses. “Eu estava muito cansado!”, disse Uílson sem refletir sobre o
que dizia, como que hipnotizado pelo zumzumzum do restaurante. “Cansado?”,
surpreendeu-se Eduardo. “Digo... estava cansado de uma vida sem sentido!
Comecei a reparar nas pequenas coisas do dia a dia e percebi que algo está
muito errado, mas não sei muito bem o quê. Sei lá! Frente a tudo isso parece
que os panfletos que vocês lançavam na porta da KIT começou a fazer algum
sentido pra mim, ao mesmo tempo que me pareceram loucura também!”. Eduardo riu,
mexeu com o canudo o seu suco e disse: “Nesta sociedade, fazer alguma coisa
sensata sempre parece loucura! Vivemos imersos numa rotina que nos aliena e nos
tritura, pouco a pouco. Não sentimos prazer em trabalhar e as relações humanas
transformaram-se em relações comerciais, de consumo, enfim, de compensação
sentimental, de hipocrisia. Infelizmente não apenas entre os colegas de
trabalho, os familiares e vizinhos, mas no sindicato também, onde esse tipo de
relação deveria ser abominado. A propósito, o que achou da assembleia sindical
de ontem?”. Uílson refletiu um pouco, pediu um suco pelo computador de bordo da
mesa e falou: “Achei um tanto estranha, truncada. Me senti constrangido pela
grande presença de supervisores e a baixa participação de operadores, que
algumas vezes reclamam, mas não fazem nada, não participam das atividades do
sindicato!”. “Além da alienação política, social e da extenuante jornada de
trabalho”, analisou Eduardo, “talvez muitos deles não vejam razão nisto; se
sintam pouco motivados a participar em uma assembleia ‘estranha e truncada’,
não é mesmo?”. “Sim”, assentiu Uílson. “Nós lamentamos essa atitude também, mas
ainda é preciso percorrer um longo caminho para se retomar as mobilizações que
já aconteceram no passado”, completou Eduardo. “Hoje pela manhã fui chamado
pela supervisão da empresa e fui obrigado a assinar um termo de apoio à
proposta da empresa”, desabafou Uílson. “É mesmo?!”, surpreendeu-se Eduardo,
“bando de canalhas!”.
O controlador eletrônico de Uílson disparou: faltam 3 minutos para o fim da “pausa
almoço”! Uílson olhou com olhos aflitos para Eduardo, que compreendeu que
precisavam encaminhar algo. “Muito bem, Uílson! Você se disporia a participar
de uma reunião mais ampla de apresentação política e teórica de nossa oposição
sindical e de nossa organização revolucionária?”, questionou-lhe Eduardo,
olhando fixamente em seus olhos e mantendo um ar sério. “S-sim”, disse Uílson,
“mas não posso me comprometer agora, eu tenho contas e os tubos de oxigênio...”.
“Se acalme!”, o tranquilizou Eduardo, “trata-se apenas de uma discussão de
formação política, teórica e sindical”. “Tudo bem”, falou Uílson um pouco mais
firme e convencido, “eu preciso realmente sair da rotina, senão vou enlouquecer!”.
“Ok”, disse Eduardo, “então nos encontramos sábado, às 8h da manhã nas paradas
dos Air Bus que vão para Restinga,
ali no terminal da Borges, certo?”. “Mas... mas lá é uma slum city!” observou Uílson, aflito. “Não tenha medo do novo,
amigo”, falou Eduardo em tom confiante, “fique tranqüilo! Temos companheiros
que moram lá”. “Tudo bem”, assentiu Uílson oferecendo a mão para Eduardo, “nos
encontramos sábado, às 8h”. “Combinado!”, disse Eduardo apertando a mão de Uílson.
“Ah”, exclamou Eduardo: “deixe o celular e o controlador eletrônico em casa,
conectados a algum canal de TV”. Levantaram-se e despediram-se.
Capítulo 3
Pílula azul ou vermelha?
O sábado amanheceu com um ar
fresco. Uma brisa soprada do Guaíba subia a Borges de Medeiros junto com Uílson,
muito embora o dia estivesse nublado e quente. Pairava sobre o céu do centro da
cidade uma espessa camada de nuvens em tom amarelado. Apesar de lhe desagradar ter
que acordar cedo no sábado, Uílson gostava de caminhar no centro quase deserto.
Podia reparar na arquitetura dos prédios, novos e antigos, nas pessoas
caminhando mais calmamente, numa paz interna por não ter que ir ao inferno da
KIT. Naquela manhã do primeiro sábado de setembro, apenas algumas lojas e
bancas de revistas funcionavam, com poucos transeuntes que caminhavam pelas
calçadas e observavam os poucos Airbuses
que chegavam, descarregavam passageiros e logo levantavam vôo, seguindo seus
cursos.
Uílson olhava distraído uma banca
de jornal, que além das últimas edições dos principais jornais do Brazil e do mundo, comercializava
produtos eletrônicos. Em diversas prateleiras se espalhavam revistas,
propaganda de aplicativos para celular, pen
drives de revistas semanais de fofoca, de musculação e saúde, de histórias
em quadrinhos, até os jornais do país, que estampavam as suas manchetes sensacionalistas:
“A economia cresceu 0,1% e saiu da recessão técnica”; “Desemprego é o menor em
10 anos e a pobreza recua – especialistas dizem que o país nunca teve tantas
oportunidades”; “Polícia prende o criminoso que aterrorizava a slum city de Alvorada”. Mais ao fundo da
banca havia a sessão de pornografia, que preenchia uma prateleira inteira.
Uílson pegou um livro de literatura e folheou-lhe algumas páginas. “Ainda
prefiro ler assim”, pensou ele consigo mesmo. Foi testando um pen drive com as obras completas da “literatura brasileira do século 19 e 20” que Uílson percebeu a
chegada de Eduardo, que vinha subindo a Borges. Se encontraram casualmente,
fora do local combinado, a parada do Air
Bus-Restinga, pois ainda faltavam 10 minutos para as 8h. “Vendo as
manchetes do dia?”, perguntou Eduardo, sorrindo. “Não, estava olhando alguns
livros para celular”. Cumprimentaram-se e caminharam para a parada do Air Bus. Durante a subida, Uílson,
censurando-se por ter falado muito mais do que Eduardo no primeiro encontro,
perguntou: “No Pallace você não me
disse o seu sobrenome. É Eduardo do quê?”. “É Eduardo Cambará!”, disse ele,
sorrindo. “Esse nome não me é estranho. É sonoro e familiar!”, disse Uílson
olhando para frente. “Sim, é da literatura. De O Tempo e o Vento, do Erico Veríssimo”. Uílson empolgou-se: “Então
seus pais gostam deste livro?”. Eduardo riu e disse que se tratava apenas de um
codinome, por questões de segurança. Não disse mais nada sobre isso; nem Uílson
perguntou.
Após uma longa espera na parada, partiram rumo à
Restinga, uma das slum cities mais
perigosas e abandonadas da região metropolitana. Entre uma e outra parada, a viagem
durou cerca de 20 minutos. Antes de chegarem ao terminal central da Restinga,
Uílson reparou em uma propaganda do governo federal, que dava início às “comemorações
do 7 de setembro”: “Brasil: 262 anos de
um país cada vez mais independente!”. “Se somos realmente independente, por
que precisam afirmar isso?”, indagou Eduardo, voltando-se para Uílson, que estava
tão acostumado àquele tipo de propaganda que ficou pensando nessa pergunta até
o final do dia. “Toda a sociedade capitalista assimilou o método nazista, de
Goebbels.”, disse Eduardo. “Eles precisam reafirmar uma mentira diversas vezes
e por todos os meios, numa espécie de lavagem cerebral social, feita com alta
tecnologia aliada à adaptação ao senso comum, muitas vezes apelando para o lado
emocional da população. O Brazil
continua tão dependente quanto era em 1500, 1822 ou 1930. A elite brasileira
especializou-se em evitar rupturas. Apenas aprendeu a modificar a forma de
dominação, usando o método de catarse social e apoiando-se em um movimento dos
trabalhadores domesticado pela ‘esquerda’ dita ‘socialista’, que compactua com
a burguesia e trai a luta sindical”. Uílson lembrou-se da assembleia sindical.
Talvez fosse disso que Eduardo estivesse falando.
Enquanto discutiam o passado colonial brasileiro,
ainda não superado, o Airbus pousou
suavemente no terminal da Restinga. Lá transitavam centenas de pessoas: umas
pedindo esmola ou simplesmente paradas, olhando o movimento; outras vendendo
café, sucos, salgados, balas, amendoins. Caras e bocas sofridas, suadas, sem
dentes; pés com chinelos, sandálias, sapatos furados, ou mesmo sem sapatos.
Cachorros sarnentos e com as costelas salientes corriam atrás de meninos que
brincavam aos bandos, de pés descalços e narizes escorrendo. Ao desembarcar do
Airbus Uílson sentiu o bafo quente que vinha da rua. Em menos de uma hora o
calor já tinha dissipado o ar fresco da manhã. Uílson reparou nas cabines das
empresas dos Airbuses que ficavam no
fundo do terminal. Viu seus técnicos e mecânicos trabalhando dentro de uma sala
equipada com computadores, confortáveis cadeiras estofadas e ar condicionado e
oxigenado. No fundo, havia uma estação policial que vigiava não apenas o
terminal, mas toda a slum city
através de câmeras revestidas por um aço especial espalhadas por toda a Avenida
Central da Restinga; dispunha de muitos computadores e comunicadores; viaturas
flutuantes de última geração e o temível “caveirão” – um verdadeiro tanque de
guerra terrestre ou aéreo, que adentrava as ruelas da Restinga e podia atirar e
até mesmo bombardear qualquer casa ou região daquela slum city – que, naquela manhã, encontravam-se ameaçadoramente
estacionados ao lado dos Airbuses.
Dois policiais em roupas especiais conversavam na entrada da estação. Do outro
lado, carroças puxadas por cavalos esqueléticos e carrinhos de tração humana,
usados para levar papelão, latinhas, garrafas e plástico, andavam embaixo do
tráfego incessante de Airbuses. Que
contraste! Aquela visão valia mais do que compêndios inteiros de sociologia e
explicava muito mais eloquentemente a “lei do desenvolvimento desigual e
combinado”! Em pleno século 21, com toda a tecnologia disponível, a maior parte
da população ainda vivia na pré-história.
“O segredo para sobreviver aqui é não olhar ninguém
nos olhos, fingir que não é com você e seguir sempre a trilha da avenida
principal”, orientou Eduardo. Um policial mirou os dois com um olhar
inquisidor. “Somos alunos da UE, chefe! Vamos fazer trabalho social”, disse
Eduardo apressando o passo.
O asfalto e as lajotas do terminal logo foram cedendo
terreno para o chão batido. Casinhas de madeira empoleiravam-se uma sobre as
outras, entrecortadas por casas de tijolo à vista, completadas com compensado e
telhados de zinco desemparelhados. Entre um casa e outra erguia-se um templo
evangélico, de material um pouco mais elaborado, de onde ouvia-se cantos gospel
e sermões inflamados. Uílson contou 3, desde o terminal até o final da segunda
quadra. Em um beco sem saída ouvia-se gritos de tortura (talvez estupro?) e cachorros
brigando por restos de um cadáver, que jazia semi-nu numa isolada calçada de
concreto. “É o saldo do último tiroteio”, avisou Eduardo. Uílson apavorou-se.
Teve ímpetos de voltar correndo, mas conteve-se. Passaram por um boteco de
madeira que exalava um cheiro de gordura com sarro de cigarro. Duas prostitutas
insinuaram-se aos rapazes, que ignoraram e continuaram a sua marcha (“pelo
mundo de Hades” – iria refletir Uílson em sua casa, dias mais tarde). Aproximaram-se
de uma ponte sobre um esgoto, que exalava um cheiro de carniça misturada com
fezes. Dejetos boiavam junto a pneus, latas, garrafas plásticas. Um menininho
negro, de pés descalços e barriga de vermes que escapava para fora da camisa,
coçando a cabeça, olhou para Uílson enquanto eles cruzavam a ponte. No seu
olhar encontrava-se condensado a inocente injustiça de um povo inteiro,
reprimido por séculos. Uílson engoliu seco. Ao longe ouviu-se um tiroteio, que
fez o seu coração disparar; Eduardo parecia mais acostumado. A sua segurança
deu um pouco mais de segurança para Uílson. Pararam por alguns instantes atrás
de uma parede de concreto, “talvez por medo de uma bala perdida?”, pensou
Uílson. Vozes se misturaram ao seu pensamento. Reparou na sua esquerda, de
fronte a um barraco de madeira, um pastor evangélico benzendo um amontoado de
corpos humanos ensangüentados. Ao seu lado uma mulher chorava convulsivamente e
gritava: “Jesus salva! Jesus salva! Tende piedade de nós!”. “Que mundo é esse?
Quanto tempo vivi enclausurado num mundinho fácil de ilusões!”, pensava Uílson,
desconsolado.
Finalmente os dois dobraram a esquina e entraram em
uma ruela repleta de casebres por todos os lados. Algumas com muros cinzentos,
outras com portas que davam diretamente na terra do chão batido. Crianças e
cachorros corriam; mulheres subiam segurando sacolas e pacotes. Era a rua onde
morava o companheiro da Justiça Proletária.
A sua casa funcionava como uma espécie de sede informal. Pararam em frente a
uma casa verde escura, de concreto escurecido e de dois andares; já se
encontrava meio corroída em razão das chuvas. Nela, moravam duas famílias, uma
em cada andar. A escada que conduzia ao segundo andar desembocava em um
portãozinho na rua. A debaixo era separada da rua por um murinho de cimento e
uma grade de ferro caída. Uílson percebeu que iriam adentrar na casa de baixo.
Eduardo bateu palmas.
Um homem encorpado, de meia idade, nem muito alto, nem
muito baixo, abriu a porta. Ao ver Eduardo e Uílson ali, parados, sorriu. Saiu
na direção deles falando em um português com forte sotaque castelhano: “Como estão,
compañeros?”.
Era José Battle y Ordoñez, um velho militante dos
movimentos sociais que veio do State of
Uruguay fugindo da perseguição da polícia e do governo. Já morava no Brazil há cerca de 20 anos, mas o seu
sotaque carregado fizeram os vizinhos lhe apelidar de “Castelhano”. Nascido em Treinta y três, cidade do interior do
sub país vizinho ao sul do Brazil, mudou-se
para Montevidéu com 14 anos, onde trabalhou como engraxate, feirante, estivador
e, por vim, operário numa fábrica de casacos, onde envolveu-se com o movimento
sindical. Contrariando todas as leis de “segurança nacional”, José Battle
ajudou a organizar uma greve contra a demissão de 50 operários e por melhores
condições de trabalho. Como não se enquadrou às orientações da central sindical
uruguaya de acabar com a greve, foi denunciada por ela à patronal e à polícia. Caindo
fora do “sindicalismo legal”, acabou submetido a uma perseguição cruel,
escondeu-se por meses em casas de companheiros nos subúrbios de Montevidéu, mas
em razão da intransigência da polícia e do governo, foi obrigado a voltar para
o interior, onde continuou sendo procurado. Morou escondido por 6 meses no
cemitério de Mercedes, sobrevivendo graças a solidariedade dos colegas de
trabalho, que lhe enviavam mantimentos e algum dinheiro, e dos coveiros, que
lhe cederam a casinha onde guardavam os instrumentos do ofício. Não podendo
suportar mais esta situação, emigrou para o Brazil
escondido na caçamba de um caminhão antigo. Quando desembarcou em território
brasileiro, morou na rua por 2 meses, até ser levado pela polícia para uma slum city, se mudando posteriormente para
outras três slum cities. Conseguiu, a
muito custo, emprego como mecânico, pedreiro, costureiro e terminou como
repositor de estoques em uma grande rede de supermercados. Foi nesse emprego
que conheceu Rosa, a mãe de seus dois filhos brasileiros, Alejandro e Juanito,
que cresceram brincando e correndo por debaixo das mesas e se entrelaçados às
pernas dos militantes, que discutiam calorosas polêmicas semanalmente nas
reuniões de sua casa.
José Battle gozava de grande prestígio por entre os
seus vizinhos, pois explicava a eles a conjuntura política, dizendo o que
estava por trás das frases e declarações dos governos – sobretudo em épocas
eleitorais –, e ajudava-os dando-lhes conselhos sindicais, políticos e pessoais.
Muitas vezes dividiu pão, leite, café e livros com os demais moradores, que não
tinham nada para dar aos seus filhos. Sempre irônico, José Battle gostava de
pregar peça em todos que conviviam ao seu redor. Era a sua maneira peculiar de
aprofundar os laços de amizade e, até mesmo, políticos (com os militantes
proletários, é claro, pois estes ele não considerava apenas como amigos, mas
como parte de sua família). Pelo fato de sediar as reuniões da organização
revolucionária em sua casa, às vezes misturava as questões políticas e
familiares, o que desagradava um pouco Eduardo. Quando exaltado, em razão das
acaloradas discussão, José Battle apresentava algumas confusões teóricas – campo
no qual era muito limitado. Mas, apesar disso, a sua honestidade e ardor revolucionário
contra as injustiças – muitas das quais ele sentia dolorosamente na própria
pele – eram inquestionáveis; ele compreendia o essencial da teoria marxista, à
sua maneira, como o reflexo da sua vida cotidiana.
“Pensei que não vinham mais”, disse ele, fechando o
portão de ferro após os dois companheiros passarem. “Rosa, traz o chimarrão”,
gritou José Battle da rua para a esposa. O jeito espalhafatoso lhe era peculiar;
muito embora ele nunca faltasse com respeito a ninguém. Rosa esperava a entrada
dos companheiros com a cuia na mão, sob olhar atento dos dois filhos. “Sejam
bem vindos, camaradas”, disse ela, passando a cuia para Eduardo. “Catarina está
esperando por vocês lá nos fundos”, completou ela apontando para a porta da cozinha,
que dava para um pátio de cimento onde se acumulavam diversos tipos de entulho.
José Battle, Eduardo e Uílson seguiram em fila indiana para a salinha improvisada
dos fundos, o local onde ocorriam as reuniões.
Lá estava sentada, folheando livros e papéis, Catarina
Santos, que ao perceber a entrada deles, levantou os olhos e sorriu. “Bom dia,
camaradas!”, saudou ela. Catarina era uma mulher no alto dos seus 40 anos, mãe
de três filhos; já havia militado em muitas organizações políticas e sindicais,
inclusive no partido do governo, o WP,
de onde foi expulsa informalmente, através de métodos burocráticos de
bastidores. Assim como os demais, sofria a marginalização da sociedade e
compreendia a imperiosa necessidade de se “fazer alguma coisa”. Aderira à oposição
sindical e, posteriormente, à Justiça
Proletária, há mais ou menos 1 ano atrás. Reuniram-se os 4 em torno de uma
mesa improvisada, repleta de livros e papéis, e rodeada por várias caixas,
roupas, varais, madeiras, bem perto do fundo da salinha, onde jazia uma churrasqueira
entulhada de mais papéis, cadernos, polígrafos e livros.
“Fico muy feliz que la reunião em mi casa tenha
atraído las personas más distintas!”, disse
em seu mal português, José Battle, sorrindo e olhando para os
companheiros presentes. Eduardo não perdeu tempo: “Bueno, companheiros!
Convocamos essa reunião com alguns membros da nossa organização para
discutirmos tópicos da teoria marxista e ver se Uílson, que nos mandou um
e-mail faz algum tempo, tem acordo com o programa político e com a ideia geral
de nossa oposição. Pra começarmos, seria interessante que todos nós nos apresentássemos
para ele, e ele para nós”. Uílson assentiu com a cabeça. “Comece por você,
Catarina”, indicou Eduardo.
Catarina contou resumidamente a história da sua vida, destacando
detalhes que impressionaram e causaram uma espécie de constrangimento em Uílson. Nascida no
interior do Estado, Catarina foi molestada pelo tio desde os 4 anos de idade.
Os seus pais desconfiavam, vendo marcas em seu corpo e reparando no seu
desespero para inventar qualquer tipo de desculpas para não ir para casa da avó
(pois ela morava num sobradinho em um terreno junto ao tio), mas nada faziam. O
tio gozava de grande prestígio social, sobretudo na família, pois era um grande
fazendeiro. Ele chantageava Catarina, dizendo que se ela contasse para os pais
iria espalhar “coisas terríveis a seu respeito”, ou simplesmente ameaçava bater
nela. Vivendo num verdadeiro inferno desde esta época, suportou calada tal
situação, sofrendo até os 13 anos, quando certo dia, ao sair do banheiro e sentir
a presença imunda de seu tio, que chegava próximo dela empurrando-a de volta para
dentro do box e já levantando sua blusa, subitamente explodiu em ira, ameaçando
gritar para “todo o mundo ouvir se ele encostasse aquelas mãos sujas nela novamente!”.
Desde aquele dia ele nunca mais ousou lhe tocar, mas fez todo o possível para
complicar a sua vida: mandou jagunços espancarem seus pretendentes; quando
Catarina conseguia emprego, ele subornava os chefes para lhe demitirem; preparou,
junto ao reitor da Universidade do Interior, sua expulsão da faculdade de
enfermagem. Nunca deixou prova alguma de tais sabotagens, nem nunca ninguém da
família desconfiou que tudo era obra do tio, mas Catarina tinha a mais profunda
convicção de que se tratava dele. Seu pai dizia que “Catarina não prestava para
nada! Era uma menina-macho, que só se enfiava em confusão”. Cansada daquela
vida, sem ter mais forças para conseguir suportar, veio para a capital, onde
trabalhou como operária tecelã, comerciária e, finalmente, como operadora de call center na empresa concorrente da
KIT. Todo este “currículo” aproximou Catarina das lutas sindicais e, principalmente,
da luta feminista. Estudou todos os clássicos marxistas sobre o tema e se
desiludiu profundamente com o feminismo pequeno-burguês que imperava nas outras
organizações políticas, além do WP.
Após romper com todos estes entraves, passando por mil crises existenciais,
tendo pensado em se suicidar diversas vezes; lá estava ela, sentada de frente
para eles, militando pela revolução socialista! Foi apenas aí que conseguiu
encontrar sentido neste “mundo cão”, que mais parece um “calvário”, segundo a
sua expressão.
Eduardo acompanhava o cenho franzido de Uílson,
provavelmente muito chocado com o relato que lhe desnudava uma realidade
escondida debaixo do tapete oficial da hipocrisia. Pediu que José Battle y
Ordoñez se apresentasse para Uílson. Ele contou brevemente a sua história,
desde a emigração do Uruguay até a sua adesão à Justiça Proletária. Ao finalizar, Uílson lhe perguntou: “Seu nome
também é um codinome da literatura?”. “No, compañero! Este é mi nombre verdadero,
inspirado em lo más grande presidente da história del Uruguay”, disse ele com
os olhos lacrimejantes.
Eduardo Cambará foi sucinto, pois não gostava muito de
falar sobre si. Revelou seu verdadeiro nome: Thomas Wallace; muito embora todos
os militantes já estivessem acostumados a lhe chamar pelo codinome. Filho de
uma família de classe média, Eduardo rebelou-se ainda jovem contra a
desigualdade social, que sempre lhe causou profunda consternação. Ainda na
faculdade, aderiu a uma corrente de “esquerda” do WP, a ala conhecida como Socialist
Workers Party (SWP), onde entrou em contato com a literatura revolucionária
e desenvolveu sua própria visão de mundo dentro dela. Na conferência regional
de 2080 foi eleito para a direção estadual da corrente e, não tardou muito,
entrou em atritos com os principais dirigentes do SWP e WP, respectivamente.
Escreveu textos e artigos de análise sobre a realidade nacional e estadual para
o jornal do partido que despertaram a atenção em seu talento precoce. Logo, a
conduta reformista e etapista da direção do SWP
e do WP foi duramente criticada por
ele, gerando um grande mal estar na direção do SWP. Todos os principais “teóricos” destas organizações foram
escalados para combater o jovem Thomas, que naquela época tinha apenas 25 anos
de idade. Ainda confessou que foi muito difícil lutar contra aqueles teóricos,
que sempre foram referência para ele; mas afirmou que “os discípulos não seriam
dignos de seus mestres se não ousassem contrariá-los quando julgassem que eles
não tinham razão”. Sabendo do seu peso na direção do partido, eles abusavam
justamente desta autoridade para enquadrar e domesticar os militantes mais
rebeldes dentro da estrutura oficial. Eduardo não fugiu do enfrentamento. No
início de 2081 foi expulso do SWP e
do WP com um discurso capcioso de
“afastamento”, mesma época em que havia entrado na empresa de call center concorrente da KIT para
desenvolver um trabalho político. Junto com outros 60 companheiros, dentre os
quais José Battle, fundou a Justiça
Proletária no início de 2082 e a oposição sindical telefônica no final do
mesmo ano.
Quando chegou a sua vez, Uílson não falou muito, pois
não tinha desenvoltura para “discursar em público”, tal como os outros haviam
demonstrado. Sentiu-se tímido, mas contou do seu desencantamento com a
sociedade, da sua percepção de que “algo está muito errado” e concluiu relatando
como e quando decidiu entrar em contato com a oposição sindical.
Após as apresentações, iniciaram a discussão teórica e
política. Uílson ouviu atentamente durante cerca de 30 minutos sobre a exploração
dos trabalhadores, a luta de classes – que todas as teorias “modernas” daquela
época juravam não mais existir –, a função social do Estado e a produção de
mais-valia. Neste ponto, discorreram sobre a tendência da queda permanente da
taxa de lucros dos grandes conglomerados capitalistas e da miséria crescente
dos trabalhadores, o que obriga o Estado a cobrir esta queda tendencial drenando
o dinheiro público para o setor privado, isto é, para os grandes empresários,
banqueiros e agiotas, às custas da vida do povo. Uílson ouvia tudo atentamente,
sem perguntar nada. Eles prosseguiram.
Uma vez que de um lado se acumulam riquezas
incontáveis e a tecnologia mais avançada, que são sustentadas com a opressão cada
vez maior do povo, é preciso maquiar esta contradição da realidade. O melhor
método é a distorção institucionalizada para embaçar a visão, a reflexão e o
juízo. É aí que entram os grandes meios de comunicação, os ideólogos e
acadêmicos que passam a justificar o injustificável, tentando sustentar as
desigualdades sociais afirmando que elas são inevitáveis efeitos colaterais do “progresso”;
ou que as pessoas não querem trabalhar, não tem qualificação ou são simplesmente
preguiçosas; ou que preferem o crime porque são “más por natureza”. Centenas de
milhares de seres-humanos vegetam na miséria, na indigência, na ignorância e
são ensinadas apenas a obedecer, a aceitar, a temer. Poderia o capitalismo
sobreviver sem esta renovação permanente de mão-de-obra barata, ignorante,
esfomeada, disponível para ser explorada em qualquer serviço? A burguesia e a
sua sociedade oficial escondem este tipo de debate atrás de uma lavagem
cerebral em massa feita pela grande mídia, pelos seus slogans vazios de
“direitos humanos”, “democracia” e de “liberdades individuais”. Os governos
também utilizam-se deste método publicitário burguês sem compromisso com a
realidade. Eles afirmam: “Brazil: um país
de todos!”, enquanto que mais de 50% da população vive na pobreza; ou
ainda: “um país cada vez mais
independente”, enquanto que sua economia e política encontram-se totalmente
subordinadas aos ditames do imperialismo. Frente a este estado de coisas, o
socialismo é uma necessidade histórica, pois é o sistema econômico que se
propõe a enfrentar este impasse. Somente em uma sociedade socialista poderemos
“humanizar” as relações de produção, taxar as grandes fortunas, acabar com a
especulação financeira, a má distribuição de renda – conforme se escuta por aí
da boca dos “socialistas dos dias de festa” – e, consequentemente, com a
miséria e a barbárie, que vemos crescer todos os dias diante de nossos olhos.
Para vê-la basta olhar pela janela da casa de José Battle, caminhar por uma slum city ou mesmo quebrar o gelo
hipócrita da invisibilidade social criada contra os moradores de rua nos
centros das grandes capitais. Os meios de comunicação, as igrejas e as
universidades atuais demonizam o socialismo porque ele representa a única saída
para esta barbárie, porque vai direto ao ponto e termina com os seus
privilégios e monopólios: a propriedade privada, as bases econômicas da
sociedade, o poder político e ideológico. Uma vez no poder, os trabalhadores
avançados deverão, através da sua ditadura, reorganizar a economia,
socializando os principais meios de produção capitalista (grandes fábricas,
empresas, terras, bancos, meios de comunicação e transporte) e incentivar a
participação do proletariado através dos conselhos populares, que geralmente
surgem no calor da luta revolucionária. Sabemos, disse Eduardo, que tudo isso é
um processo muito contraditório, porque a burguesia não aceita perder o poder
político e econômico sem resistência e uma luta reacionária encarniçada. É por
isso que se faz necessário a garantia do poder socialista pela força de um
Estado proletário, pelo menos até a elevação cultural, material e do nível político
dos trabalhadores mais atrasados.
Após ouvir tudo em silêncio e ter concordado
instintivamente com a maior parte delas, Uílson, apossado por uma força inconsciente
cínica, tomou a palavra: “Eu realmente concordo que a nossa sociedade está
doente... na verdade está podre, decadente! Isso me faz sentir medo do futuro,
uma grande falta de perspectiva! Acho, sinceramente, que a humanidade está
condenada! Vejam só os nossos colegas de trabalho! Eles parecem estar sedados
com morfina, não se incomodam com a exploração, a opressão, com uma vida de faz
de conta! Acho muito difícil superar essa sociedade hipócrita em que vivemos
com uma proposta socialista, que exige transformações radicais e profundas.
Tudo isso me soa muito bem, mas me parece um sonho!”.
Eduardo respirou fundo, coçou o queixo e olhou para
José Battle e Catarina, que lhe retribuíram o olhar. Ele ia ensaiando uma
resposta, quando Catarina tomou a palavra: “Camarada, sabemos que a tarefa que
estamos propondo é imensa, ainda mais para as pequenas organizações
revolucionárias como a nossa, e que pode lhe assustar um pouco, mas não se pode
condenar a humanidade de antemão. Os desafios colocados à ela vêm desde a
pré-história, da construção dos alicerces da sociedade, que geraram todo o tipo
de conflito, com avanços e retrocessos, crises, destruições e superações. Cá
estamos nós! A humanidade, apesar dos pesares, já superou cataclismos, pestes,
guerras, crises e revoluções. Somos, precisamente, o resultado de tudo isso e,
para citar Rosa Luxemburgo, venceremos desde que não tenhamos desaprendido a
aprender. Nem todas as pessoas ficam congeladas em suas insatisfações; pelo
contrário, existe gente que produz meios de articulação para promover mudanças,
elevar o nível de consciência da população, existe gente que de fato se importa
e trabalha para concretizar ‘projetos’ idealizados sobre as mudanças que
precisam ocorrer para que possamos começar a falar em uma sociedade saudável
econômica e biopsicossocialmente. É nestas pessoas que devemos nos inspirar,
não nas que estão ‘paradas’, acomodadas! Por mais que sejamos muito pequenos,
não estamos sozinhos. A humanidade não se coloca tarefas que não é capaz de
resolver. As bases para o socialismo já estão dadas há, pelo menos, 2 séculos.
Falta coragem, dedicação e tenacidade da vanguarda para a construí-lo. Esta
vanguarda é o elo fundamental com as massas, com a concretização das tarefas
concretas que precisam ser resolvidas. Se esta vanguarda vira as costas à estas
tarefas, seja motivada pelo oportunismo, medo ou covardia, então a sociedade
capitalista ganha um novo fôlego, se rearma e vai se perpetuando. A construção
do socialismo é a nossa tarefa mais urgente. Sabemos que isso demanda tempo, é
uma construção a longo prazo, pois as suas condições ainda precisam ser
criadas: organização, conscientização e luta revolucionária dos trabalhadores.
Em primeiro lugar, é preciso construir um partido revolucionário proletário,
completamente independente dos partidos burgueses ou reformistas. Se não
tivermos esta perspectiva, ficaremos correndo em círculos e chafurdando na
barbárie; procurando a culpa de tudo isso nos lugares errados: nas forças
sobrenaturais, em ‘deus’, nos signos, nas seitas secretas, na suposta má índole
e no egoísmo ‘congênitos’ e ‘imodificáveis’ do ser humano, nos familiares, nos
colegas de trabalho. Nisso tudo, a burguesia e o seu roubo social saem de
‘lombo liso’, para usar uma expressão do interior; isto é, saem ilesas. Então,
tudo se perpetua, pois o essencial não é nunca questionado! Não podemos
atribuir o nosso medo e receio aos nossos colegas. Queremos construir uma
organização de vanguarda justamente para puxarmos estes colegas ‘sedados com a morfina
do niilismo’, para que comecem a olhar a realidade sem estarem dopados e para
que andem com as próprias pernas; os colegas incorrigíveis, que não querem ver
e nem andar, deixaremos soltos à própria sorte: a vida se encarregará deles ou
serão levados pelo vácuo do turbilhão das forças em luta, seja a dos
trabalhadores ou a da burguesia. Não podemos nos pautar por eles; muito menos
nos paralisar por causa deles. Se queremos que o socialismo, de possibilidade
histórica, passe a ser uma realidade rompendo com o ‘mundo dos sonhos’, então
temos que trabalhar concretamente neste sentido, desde o campo teórico, até a
militância prática; desde a elevação do nível teórico dos trabalhadores, até a
luta contra o oportunismo político das organizações de ‘esquerda’ e da
burocracia sindical. Para isso, é preciso formação teórica, dedicação, leitura,
estudo, militância nos movimentos sociais e nos sindicatos, para lutar contra
esta acomodação, que leva ao espontaneísmo e à manipulação por parte das
direções traidoras. Os nossos colegas de trabalho provavelmente não tenham esta
disposição no momento; muitos talvez não a tenham por toda a vida. O que
queremos saber é se você tem esta
disposição”.
“Com um sindicato como o dos telefônicos isso é
impossível”, interrompeu de repente Uílson, um pouco desnorteado por ter ouvido
todo aquele discurso.
“Não há dúvida de que é”, continuou Catarina, “por
isso propomos a expulsão da burocracia sindical dos sindicatos, que é composta
por aqueles ‘trabalhadores’” – Catarina frisou as aspas com os dedos da mão – “‘mais
bem remunerados’ e que não representam mais os interesses independentes dos
trabalhadores de base, mas os seus próprios, enquanto casta, e os da direção da
empresa e do governo. Não casualmente, toda a direção do sindicato dos
telefônicos é filiada ao WP, o
partido do governo, que tem estreitas relações com as multinacionais. Porém,
para expulsá-los do sindicato, também é necessário organização, consciência e
militância”.
José Battle, após ouvir as colocações de Catarina
segurando-se, tomou a palavra: “Esta forma de colocar a questão é bastante
pequeño-burguesa, compañero! O que tenemos a perder com una proposta
revolucionária como esta? Solamente nostras cadeas. Ya um pequeño-burguês tem
miedo, tem sus negócios y una máscara de aparências para mantener. Nosotros no!
Jogaremos al ar las corrientes, la hambre, la miséria, la opressión. No tenga
miedo, Uílson! Mios colegas estan prostrados tambiém. Lo más importante é no
desanimar. Se aprende a luchar, luchando! Pero, existem ‘colegas’ que rompem
com a alienación y aderem a organizaciones ‘socialistas’ reformistas y traidoras.
A estos seria mucho mejor que no fizessem nada y seguissem sedados, porque
mucho ajuda aquele que no atrapalha”.
Eduardo, julgando ver a discussão descambar, disse:
“Companheiros, vejo essa questão levantada pelo Uílson como muito subjetiva.
Tudo o que foi falado aqui tem um viés objetivo, parte da realidade econômica e
da sociedade atual, tal como ela é. As conclusões também partem destas
premissas. Quero tentar fazer uma síntese delas! Por apresentarmos os problemas
dessa maneira, Uílson, não significa que estejamos desconsiderando as questões
subjetivas. Vamos julgar cada coisa ao seu tempo. Primeiro fazemos a análise
geral, dos fatos e da realidade objetiva. Se o socialismo estivesse condenado
do ponto de vista objetivo, então realmente não haveria nada a fazer.
Simplesmente deveríamos nos esconder em um porão e esperar a morte chegar pela
degeneração completa. Por mais trágico e desesperador que pareça ser o nosso
futuro quando olhamos para o presente, podemos modificá-lo se começarmos a
lutar por ele agora. Se não temos condições reais e concretas para fazer uma
revolução neste momento, devemos criar estas condições: retomar os sindicatos
das burocracias sindicais, elevar o nível político dos trabalhadores,
conscientizá-los e organizá-los, fortalecer e construir um partido
revolucionário com esta finalidade. Hoje somos pequenos e apenas um embrião
disso tudo, mas podemos e devemos dar passos concretos na unificação de várias
outras organizações políticas, que estão espalhadas não apenas pelo Brazil, mas pelo mundo também”. Eduardo
serviu um chimarrão com a cuia que estava parada em cima da mesa e calou-se,
chupando a bomba.
Uílson concordou com a maioria das colocações.
Sentiu-se ofendido muitas vezes, pois foi realmente alvejado de todos os lados.
Mas não é do tipo fácil, que se entrega por qualquer desentendimento. Sentiu-se
à vontade para falar: “Durante esta minha crise existencial, quando mandei o
e-mail para a oposição, li muito sobre socialismo. Vi algumas posições,
conversei com amigos e familiares. No essencial elas convergem para a mesma conclusão:
‘socialismo não deu certo em lugar nenhum e sempre vira ditadura’, me falaram
sobre os países ‘socialistas’ do século passado e me mandaram ler livros como ‘A insustentável leveza do ser’, ‘A Revolução dos Bichos’, ‘1984’ e ‘O Zero e o Infinito’. Citaram alguns outros mais atuais que agora
eu não me lembro, mas que seguem a mesma linha. Não tive tempo e nem vontade de
ler todos, mas alguns eu baixei da biblioteca virtual da faculdade e li. Eles
corroboram com a ideia dos meus tios, por exemplo, que se arrepiam só em ouvir
falar de socialismo. Eu não concordo com isso. Penso sim que precisamos fazer
alguma coisa, tanto é que estou aqui. Gostaria de saber o que vocês pensam a
respeito”.
O chimarrão roncou. Eduardo o colocou em cima da mesa,
ajeitou-se na cadeira e respondeu o seguinte: “Não acho que estes livros sejam
uma boa referência para saber o que foi a União Soviética e as demais ‘experiências
socialistas’. São por demais tendenciosos. Muitos destes autores foram
diretamente financiados pela CIA, a agência secreta do imperialismo
norte-americano. Para começar o debate, gostaria de dizer que o socialismo não
é um produto, uma mercadoria, ou um eletrodoméstico, que se pega na prateleira
de um supermercado, testa sua ‘eficiência’ e se não sai como o esperado, se
liga ao PROCON para reclamar, dizendo que ‘não funcionou’ conforme o manual de
instruções. Não! O socialismo é um sistema econômico alternativo ao
capitalismo. Ele não cai do céu, pronto e acabado, mas precisa ser construído a
partir de uma revolução que supere a sociedade capitalista. Isto é, trocando em
miúdos, significa dizer que ele nascerá do próprio capitalismo, com todas as
suas contradições, ideologias, hábitos, mentalidades, cultura, etc. Para que
tudo isso seja realmente superado é necessário medir os acontecimentos não como
um consumidor que liga ao PROCON para saber porquê a sua mercadoria ‘não funciona’,
mas como a evolução de um processo histórico. É preciso olhar a ‘experiência
socialista’ pela ótica do proletariado e não da burguesia. O capitalismo
necessitou de anos para superar o feudalismo. O povo francês passou fome logo
após a Revolução Francesa de 1789; depois do cansaço da explosão popular,
ajudou indiretamente a levar ao poder Napoleão; foi um processo social longo,
contraditório e traumático, que deixou inevitáveis cicatrizes, mas criou as
bases do desenvolvimento social futuro, ainda que não tenha resolvido (e nem
poderiam) os problemas essenciais da fome e da miséria, que seguem pendentes. Os
grandes capitalistas sabotaram as experiências socialistas para ‘que não dessem
certo’, tal como a nobreza feudal sabotava as possibilidades do ‘capitalismo
dar certo’, até que a burguesia, utilizando-se da força do povo, fez revoluções
que foram destruindo definitivamente as bases do feudalismo que sustentava o
poder da nobreza, utilizando-se para isso de diversas formas de ditaduras,
abertas ou disfarçadas. Uma das principais diferenças com a revolução
proletária é que a burguesia sempre esteve orbitando as esferas dominantes da
sociedade, juntos ao poder político; já o proletariado é uma classe acostumada
a servir e a dizer ‘amém’, sem nenhuma experiência de comando. Por isso, é
preciso insuflar-lhe coragem através da organização e da conscientização, e não
fazê-lo dócil e submisso, tal como o faz a burocracia sindical e as suas
correntes políticas oportunistas. Ao invés de lhe receitar aqueles livros de
literatura, para serem honestos, os seus amigos e familiares deveriam ter lhe
indicado os livros de Trotsky, que fazem uma análise científica minuciosa sobre
o que foi a URSS. Eles próprios deveriam ler as obras de Trotsky e não apenas
aqueles livros tendenciosos. Acontece que ainda hoje, passados mais de 100 anos
da Revolução Russa de 1917 e dos seus escritos, Trotsky ainda segue censurado,
sendo muito difícil ter acesso à sua obra. Veja se alguma das grandes editoras
do país publica suas obras nas bibliotecas virtuais e nas livrarias. Somente os
sebos e as livrarias alternativas disponibilizam estes livros; e ainda assim,
com grandes dificuldades. Na análise trotskista podemos ver os reais motivos da
degeneração da URSS, a ascensão de Stálin e, o mais importante, a conjuntura
internacional, que selou não apenas o destino da URSS, mas de todo o mundo. A
burocracia de Stálin pavimentou o caminho para a restauração capitalista,
ocorrida ainda no século passado, mais ou menos em 1989, e ainda hoje estamos
pagando o preço das suas traições, tanto dentro da URSS, quanto fora dela”.
Eduardo calou-se por um instante, respirou fundo e
como ninguém se manifestou, continuou: “As guerras mundiais do século passado
fizeram soar o esgotamento do capitalismo e a sua transformação em imperialismo. Todas
as suas contradições insolucionáveis e a luta pela hegemonia mundial entre os
países imperialistas levaram a humanidade à estas guerras que mataram milhões
de pessoas; mas levaram também à Revolução Russa de 1917, que imediatamente
apavorou a burguesia mundial. A luta entre o imperialismo europeu teve como
resultado a elevação do imperialismo norte-americano ao status de imperialismo
hegemônico – hegemonia esta que começou a entrar em declínio a partir da crise
de 2008. Inglaterra, França e Alemanha estavam esgotadas e eram possíveis
cenários para uma revolução proletária. Durante todo o século 20 e início do
21, o imperialismo norte-americano foi o responsável por conter a onda
revolucionária que se espalhava pelo mundo a partir da URSS. Ele salvou o
capitalismo, assim como outrora, no século 19, a Rússia czarista salvou a
nobreza monárquica ‘feudal’ na Europa. Logo após a Segunda Guerra Mundial,
quando o capitalismo foi reestruturado através desta hegemonia norte-americana,
isto anulou momentaneamente as disputas inter imperialistas – pois de uma forma
ou de outra todos foram obrigados a se subordinar à nova hegemonia mundial – e
permitiu a atuação conjunta do capitalismo contra a URSS, que foi isolada do
mercado mundial e das relações comerciais e diplomáticas. A muito custo, a URSS
conseguiu criar uma base industrial autônoma, capaz de permitir-lhe uma certa
independência de ação e de fornecer recursos econômicos e militares limitados à
outros países – sobretudo aos africanos, que em meados do século 20 se
enfrentavam com o imperialismo. A URSS procurou se apoiar economicamente,
sempre de forma burocrática e instável, em alguns outros países recém tornados
independentes na África e na Ásia, mas todas essas tentativas eram
violentamente atacadas pelo imperialismo ianque. Basta olhar para as guerras da
Coréia e do Vietnã, sem falar em guerras desencadeadas por parceiros regionais
do imperialismo, tais como aconteciam no Oriente Médio. Todas elas foram
financiadas e apoiadas pelo imperialismo norte-americano, que com a vitória
sobre os outros imperialismos nas guerras mundiais, havia se transformado em
explorador do mundo todo e, como tal, necessitava também ser uma grande força
contra-revolucionária e repressiva em escala global. Usou-se de todo o tipo de
chantagem: econômica, política, militar; financiou e sabotou regimes
ditatoriais e ‘democráticos’; instigou ou desencadeou abertamente guerras; ameaçou
com armas atômicas e químicas. Pior do que isso! Usou efetivamente armas
químicas e nucleares contra outros povos, alguns ainda agrários! Os EUA superaram
todas as suas crises econômicas a partir da exploração brutal de suas
semi-colônias espalhadas por todos os continentes; em especial a América Latina.
Pressionada e sabotada pelo imperialismo a nível internacional e dirigida por
uma política catastrófica da camarilha de Stálin internamente (com reflexos não
menos catastróficos externamente), a URSS só poderia caminhar no sentido da
restauração capitalista. Eis aí os principais motivos que explicam o porquê que
o ‘socialismo não deu certo’. Agora diga-me, Uílson, você já viu esta
explicação em algum lugar: TV, universidades, escolas, jornais, revistas?”
“N-não”, disse Uílson mais para concordar do que
refletidamente.
“Seguramente, não!”, prosseguiu Eduardo, “a ótica
trotskista sofre uma censura (nem tão) disfarçada da ditadura da sociedade
burguesa. Ela é sumariamente excluída”.
“Mas, então, por que os EUA venceram a URSS na chamada
‘Guerra Fria’? Isso não seria uma demonstração da superioridade do capitalismo
sobre o socialismo?”, indagou timidamente Uílson.
“Em primeiro lugar é preciso levar em consideração que
os EUA não eram apenas o primeiro dos imperialismos, mas o coração de um
sistema econômico de âmbito mundial, enquanto que a URSS era o centro de uma
economia isolada e majoritariamente regionalizada. Em segundo lugar, não
devemos nunca esquecer que o sistema mundial que controlava o mercado
internacional continuou sendo sempre capitalista, operando segundo as suas
premissas e controlando os principais países neocoloniais, fonte das principais
matérias primas. Ou seja, a primeira geração histórica de países ‘socialistas’
foi um elemento minoritário, isolado e cercado por um conjunto de nações capitalistas
hostis, que trabalhavam no sentido de isolar e destruir os países ditos
socialistas. Os EUA se valiam de centenas de nações, do mercado mundial e das
suas matérias primas, enquanto que a URSS precisava fazer brotar leite de
pedra. Estavam numa posição infinitamente privilegiada em relação à URSS. Sem
falar na política levada a cabo pela burocracia stalinista, que serviu para
enfraquecer a expansão da revolução socialista pelo mundo e intensificou o
isolamento da URSS. Foi o resultado da política nefasta da burocracia stalinista,
que defendia a possibilidade de existir ‘socialismo em um só país’, o que
Trotsky e os fatos históricos demonstraram ser uma falácia”.
“Eu ouvi dizer que em uma possível sociedade socialista
o avanço tecnológico seria paralisado”, afirmou Uílson sem muita convicção,
mais por “inércia intelectual” do que por qualquer outro motivo.
“Na verdade”, seguiu Eduardo, “o socialismo, mesmo com
a sua distorção stalinista, desenvolveu grandes tecnologias, como os satélites,
radiotransmissores e outros meios de comunicação, além de contribuir para o
avanço científico de diversas outras áreas, como a medicina, a psicologia, a
pedagogia, astronomia, etc. Aliás, a socialização do conhecimento é um pré
requisito para que a ciência e a tecnologia continuem avançando. Se existiram
problemas na experiência soviética, isso deveu-se aos problemas relativos à
burocratização stalinista e ao isolamento imposto pelos imperialismos
capitalistas, pois uma vez que a industrialização e as formas coletivas de
propriedade progrediam, maiores eram as tendências ao estancamento em razão do
domínio da burocracia stalinista, que se mostrou absolutamente incompatível com
as formas mais desenvolvidas de economia. Retomar a democracia dos conselhos
operários, os sovietes, passou a ser uma necessidade vital do ponto de vista da
planificação econômica socialista. A planificação burocrática representava um
crescente emperramento da economia e do avanço tecnológico. Mas isso não pode
ser debitado na conta abstrata do ‘socialismo’ ou do ‘comunismo’, como sempre
fazem os intelectuais burgueses e a grande mídia. Outra questão, não menos
importante, é que o avanço tecnológico capitalista representa uma destruição
sem precedentes da natureza. Ele fala em ‘sustentabilidade ambiental’, mas tudo
isso é uma farsa quando vemos a poluição proveniente das fábricas, das suas
máquinas; o desmatamento de florestas inteiras. Veja só o caso escandaloso da
Amazônia. Os grileiros a desmatam desde meados do século 20. Intensificaram
este desmatamento assustadoramente no início do século 21 a tal ponto que agora, em
fins do século, já desmataram 50% de toda a floresta e também do Pantanal. O
consumismo desenfreado leva não só ao desmatamento, mas ao aumento exponencial
do chamado lixo eletrônico, dos lixões a céu aberto, dentre outras formas
artificiais de manutenção do consumo. De que vale um ‘avanço tecnológico’ cujo
principal resultado é a destruição do planeta? Qualquer avanço tecnológico,
para ser real, deve ser verdadeiramente sustentável para a natureza (onde os
seres-humanos estão indissociavelmente incluídos). Somente um sistema econômico
que não esteja baseado no lucro, mas sim nas necessidades sociais daqueles que
trabalham e no respeito aos ciclos da natureza, pode representar um futuro para
a humanidade. Além disso, a tecnologia capitalista cresce como força
destrutiva: olhe a indústria bélica, que domina 40% do orçamento mundial e é
responsável por genocídios e carnificinas em guerras pelo mundo, em especial no
continente africano, mas aqui nas slums
cities latino-americanas também, onde o narcotráfico, em conluio com os
políticos e as grandes empresas domina regiões inteiras. Esta questão da
indústria bélica você pode reparar pelo lucro da própria empresa onde você
trabalha, Uílson”.
Catarina aproveitou as colocações de Eduardo e
completou: “A tecnologia também é controlada por poucos e é feita para poucos.
Ela não é usada para libertar o homem das longas, aborrecedoras e alienantes
jornadas de trabalho, para que os trabalhadores possam se humanizar nas artes e
na cultura, mas é usada para aumentar a margem de lucro desempregando
trabalhadores, para desenvolver novas formas de exploração e de controle
social, ao mesmo tempo em que destrói arrasadoramente o meio ambiente, bem como
disse o Eduardo. As chamadas ‘casas inteligentes’, que estão na moda para os
biliardários, são acessíveis a menos de 1% da população brasileira e mundial.
No meio dos bolsões de miséria dos grandes centros urbanos surgem os magníficos
condomínios de luxo, que são verdadeiras ‘cidades proibidas’ da China imperial.
Vi em uma reportagem recente que a grande burguesia, pressentindo as
catástrofes ambientais – algumas, talvez, irreversíveis – já está se mudando
gradativamente para as estações espaciais na órbita da Terra, onde a pressão
atmosférica é menor e grandes turbinas de oxigênio purificado garantem o ar
muito mais puro do que aqui, no chão. Os ‘avanços científicos na área da astronomia’
levaram à especulação imobiliária na órbita da Terra e na Lua, que está a todo
vapor, bem como em outros planetas da Via Láctea, mesmo que não haja tecnologia
para se chegar lá. Enquanto isso, a população trabalhadora e subempregada
vegeta numa miséria pré-histórica, morre de fome, de doenças que já tem cura há
séculos; em sua maioria são analfabetas, andam em Airbuses lotados, não tem acesso real à cultura e à própria
tecnologia. Antigamente as favelas eram uma vergonha nacional. Depois de uma
grande campanha midiática, que encontrou respaldo nas universidades e nas
escolas, foram sendo naturalizadas e transformadas em ‘respeitáveis’ slums cities e nas ‘regiões em
desenvolvimento’. Passaram a atribuir conceitos para classificar os índices
‘toleráveis’ ou ‘não toleráveis’ de pobreza, de desenvolvimento humano,
natalidade e mortalidade, até que as slums
cities passaram a ser absolutamente normais e até aceitáveis. Muitos são os
programas de TV, rádio e de internet que exaltam a ‘cultura da periferia’,
cultuando a pobreza e a miséria, sem nenhum tipo de escrúpulos. Idiotizam os pobres
no seu próprio ambiente, tentando fazê-los aceitar tudo aquilo como natural e
belo. Ainda acrescentaria o seguinte: não existe um único tipo de socialismo,
baseado em uma receita de bolo. As experiências do século 20 desenvolveram-se
em países extremamente atrasados de base agrária, o que dificultou enormemente
a evolução tecnológica, sem falar na ascensão da burocracia stalinista e no
isolamento internacional. A História nunca nos brindou com uma revolução em um
país imperialista, de grande industrialização e com as forças produtivas mais
desenvolvidas. Certamente as perspectivas seriam outras, bem como hoje o seria uma
nova revolução nos antigos países ditos ‘socialistas’, como Rússia e China, que
se encontram sobre outras bases materiais. Mesmo no Brazil, que é um subpaís neocolonial, se pode ver muito mais recursos
que serviriam de suporte a um desenvolvimento socialista do que no início do
século 20” .
“Houveram perseguições, execuções e casos terríveis na
URSS”, disse Uílson, “hoje, pelo menos, podemos falar o que pensamos e vivemos
em uma democracia, ainda que limitada. Não seria o caso de tentarmos
radicalizar esta democracia e irmos construindo gradativamente as mudanças que
precisamos?”.
“Será mesmo que vivemos em uma democracia limitada?”,
disse Catarina, se antecipando a Eduardo. “No trabalho, no dia a dia, não
podemos falar o que realmente pensamos e sentimos. Vivemos a ditadura do
emprego, da ameaça permanente de ‘ir pra rua’, de vermos nossos filhos morrendo
de fome ou na falta de perspectiva. Somos obrigados a aceitar tudo o que nos é
imposto o tempo inteiro. Não podemos opinar seriamente sobre a política econômica.
Este regime pode ser mais ‘brando’ do que foi o stalinismo (ou o que eles
gostam de chamar de ‘socialismo real’), mas não menos desprezível e nefasto. Tudo
isso não aparece tão claramente. Está ocultado por trás do discurso permanente
da grande mídia de que vivemos em uma democracia, que é diferente da ‘ditadura
comunista’, que não ‘respeita os direitos humanos’ e a ‘liberdade individual’, etc.
O fato é que a burguesia permite uma certa liberdade enquanto não sinta uma
ameaça real, enquanto veja o movimento sindical totalmente subordinado e
controlado, isto é, absolutamente estéril. Porém, a coisa muda de figura quando
os trabalhadores se organizam e se conscientizam; aí sobrevêm as ditaduras
militares, como as várias que já vivemos ao longo da História da América Latina
e do mundo. A repressão hoje é feita disfarçadamente: dentro das empresas,
atrás do assédio moral, da ameaça de desemprego, da pressão oculta; e fora das
empresas, na demissão e perseguição dos sindicalistas e militantes combativos,
nas periferias, nas slums cities,
feita de forma seletiva pela polícia e pelo Exército. Veja os belos nomes que
nos brindam: “polícia pacificadora”! É a que mais mata e tortura jovens pobres
e negros nas periferias. Temos visto tanto no Brazil quanto no resto do mundo o funcionamento pleno de um Estado
terrorista que se utiliza de métodos legais e ilegais – nos quais o
narcotráfico é apenas mais um ‘sócio’ – com igual naturalidade para reprimir
qualquer voz questionadora do povo organizado e utilizado para semear o medo na
população desorganizada, para que saibam dos riscos de questionar o modelo
econômico e político vigente no nosso subpaís e no mundo. Este terrorismo impera,
sobretudo, nas ‘terras de ninguém’; ou seja, aqui nas slum cities, onde jovens, principalmente negros, são sumariamente
torturados e executados, sem que ninguém saiba dos seus paradeiros. Enquanto
isso, a mídia aliena todos os demais setores, principalmente a
pequena-burguesia, de que está ‘tudo bem’, a ‘economia cresce’, vivemos em
‘Estado democrático de direito’ e de ‘bem estar social’. Sendo assim, este
pessimismo no futuro provavelmente esteja baseado em alguma ‘esperança tática
oportunista’, isto é, em alguma ilusão, como talvez a espera por uma mudança
‘lenta e gradual’, sem sofrimentos ou contradições, como a eleição de algum
candidato ‘messias’, que resolverá nossos problemas sem precisarmos nos chocar
com a realidade; enfim, baseada em alguma esperança que não precise olhar a
realidade de frente para enfrentá-la. Não Uílson. A burguesia imperialista
ultrapassa em brutalidade, em cinismo e infâmia todas as suas antecessoras, uma
vez que defende com unhas e dentes a barbárie criada por ela própria, pois
disso depende o seu lucro e o privilégio da exploração. Somente a revolução
proletária pode libertar a humanidade deste círculo vicioso e decadente”.
“Eu acrescentaria ainda”, disse
Eduardo levantando um dedo para pedir um “a parte” na intervenção de Catarina,
“a questão psicológica e a condição humana dentro do sistema capitalista. Os
nossos colegas e os trabalhadores em geral, além de estarem cegos pela
alienação cotidiana da mídia e das relações de produção, estão condicionados
por uma luta voraz pela sobrevivência, entrando em concorrência com outros
‘colegas’, para escapar do desemprego, da miséria e, por fim, da fome. Tudo
isso os obriga, em sua maioria inconscientemente, a se submeterem à hipocrisia
oficial, a se sujeitar à ela e à qualquer coisa que lhe garanta as condições de
vida. Existe maior tirania do que essa, que nos consome aos poucos, sem
percebermos, mentindo cotidianamente que vivemos em uma democracia? Esta submissão
à hipocrisia social cotidiana, vai familiarizando os trabalhadores com ela até
o ponto de torná-la um hábito pernicioso”.
Uílson ouvia tudo em silêncio,
digerindo cada uma dessas palavras com uma sensação de medo e impaciência
crescentes. Como é difícil olhar a realidade de frente, enfrentá-la, querer
sinceramente modificá-la! Como o sono letárgico, em casa, debaixo das cobertas,
é sempre melhor! Porém, tudo na vida tem um preço: esta conduta, além de nos
alienar e idiotizar, também nos desumaniza. Enquanto ouvia Eduardo finalizar a
sua fala, Uílson refletia sobre tudo isso.
O relógio na parede da salinha
anunciava que já passava do meio dia e o calor aumentara assustadoramente,
dificultando a respiração. A casa de José Battle não dispunha de respiradores
eletrônicos e oxigênio entubado. Para o povo pobre das slum cities reservavam as máscaras hospitalares descartáveis,
contudo, justamente naquele dia, José Battle não tinha mais para oferecer aos
convidados sem prejudicar a própria família. Combinaram, então, que dentro de
uma semana fariam uma nova reunião na casa de Catarina, em um bairro da capital
que não era uma slum city, mas
situava-se perto de uma.
***
No terminal da Restinga,
enquanto esperavam o Air Bus que os
levaria de volta até o centro histórico, Eduardo e Uílson conversavam olhando o
movimento de carroças, carrinhos e pessoas, de um lado para o outro, como um verdadeiro
formigueiro.
“E, então, companheiro, o que achou da discussão?”,
perguntou Eduardo, curioso. “Gostei muito! Tudo o que vocês fazem é realmente
importante; imprescindível, eu diria!”, respondeu Uílson. “Agora está em suas
mãos!”, falou Eduardo, sorrindo. Uílson surpreendeu-se: “Em minhas mãos?”.
“Sim, camarada! É como acontece
naquele filme antigo: o personagem principal toma consciência da máquina
absurda que lhes esmaga, engana e oprime; a partir daí tem duas opções: se
tomasse a pílula azul ia pra casa, entraria em um ‘sono profundo’ e estaria
tudo acabado; se tomasse a pílula vermelha iria acordar para a ‘vida real’ e perceber
que era apenas o começo. Qual delas você tomaria?”.
O Air Bus que esperavam chegou bem neste momento, dispersando a
discussão. Em questão de alguns segundos lotou. Eduardo e Uílson sentaram-se em
assentos diferentes, separado por uma muralha de indivíduos que se esmagavam de
pé. Voltaram a se falar somente muito tempo depois.
Capítulo 4
O que não avança, retrocede!
Afundado no lamaçal da rotina,
da mesmice, da luta surda pela vida cotidiana, Uílson sentiu uma ressaca
pós-reunião que trazia de contrabando um medo inconsciente pelas tarefas que
foram discutidas naquela ocasião, sem falar na visão da slum city, que tinha ficado gravado em sua memória como ferro em brasa. O medo resultante
levou Uílson a fugir dos militantes: desligou o celular, não respondeu e-mails
e ligações, evitava olhar qualquer coisa sobre o assunto na internet. Quanto
peso aqueles militantes carregavam nas costas! A vergonha de não acompanhá-los
na mesma jornada para dividir tamanho fardo o fazia pensar em mil desculpas
(consciente e inconscientemente) para fugir daquele compromisso. Estranhamente,
o “tiro” de todo aquele debate parecia ter saído pela culatra. Uílson,
relutando e sabotando inconscientemente de todas as formas a nova consciência
que tinha adquirido, caia cada vez mais numa vida pequeno-burguesa. Parecia
querer virar as costas para as tarefas práticas que a “nova consciência” lhe
exigia, mesmo que não tivesse total clareza delas. Ia trabalhar todos os dias
de “nariz tapado”, fingindo não ver ou relativizando as injustiças. Dizia a si
mesmo que “afinal de contas nem tudo estava tão errado assim”. Naturalmente não
conseguia se convencer porque ainda havia honestidade em algum lugar perdido de
sua consciência. Começou, então, a sair pelos barzinhos da Cidade Baixa
procurando embriagar-se para tentar tornar a vida mais aceitável. Misturava-se
com toda aquela gente fútil, que não tinha outro compromisso a não ser com a
satisfação da sua própria mediocridade, com a criação das condições para a sua
fuga da realidade como uma espécie de anestesia mental para vidas vazias que
ocorriam religiosamente todos os finais de semana. Como era duro olhar a
realidade sem a embriaguez da alienação! Como é difícil suportar o peso de tudo
isso nos próprios ombros!
Uílson ainda não compreendia a necessidade de reunir
com um grupo político consciente, como a oposição sindical, por exemplo, para
dividir estas tensões e, ao mesmo tempo, procurar uma visão comum de tudo isso
para superar este estado de coisas. Mais ainda: não entendia que esse era o
único remédio para combater a dureza de olhar uma sociedade fundamentada na
exploração e na hipocrisia.
Não fossem os relatos de outros
membros da oposição sindical que trabalhavam na KIT de que Uílson era realmente
um operador, que ia trabalhar todos os dias, Eduardo, Catarina e José Battle
teriam dado como certo que haviam sofrido uma infiltração policial. Uma vez que
esta hipótese foi descartada, restou a dúvida, que encontrou a explicação parcial
no medo e no trauma pós-primeira reunião. Os militantes da oposição sindical e
da Justiça Proletária, até certo
ponto, já estavam acostumados com estes sumiços. Uílson não havia sido o
primeiro e muito provavelmente não seria o último. Sabiam que era realmente
muito difícil suportar o isolamento e a pressão da luta de classes,
principalmente a hipocrisia e o peso da ditadura de classe, disfarçada sob
rótulos de “democracia”, de “felicidade”, de “única saída possível”. Sabiam,
também, que estas palavras floreadas ajudavam a confundir a mente de muitas
pessoas. A repressão e a ilusão ideológica fazem parte da dominação de classe
da burguesia e se constituem em duas faces de uma mesma moeda. De certa forma,
quando acontecia este tipo de reação de cada “candidato” à militante, isto
servia como uma espécie de peneira que selecionava os elementos mais firmes,
capazes de suportar a luta de classes. Eduardo repetia seguidamente que
“construir um partido revolucionário é a tarefa mais difícil que um ser humano
já se propôs cumprir”. José Battle, por sua vez, sempre via nestas vacilações
iniciais “os elementos da consciência e da vida pequeno burguesa”; e
acrescentava: “lo que no avança, retrocede!”. Tirando um pouco do seu típico
exagero e impaciência – compreensíveis, dadas as suas condições de vida –, ele
estava certo. Em uma sociedade dividida em classes, não se podia ficar em cima
do muro, querendo estar de acordo com um e com o outro ponto de vista ao mesmo
tempo. Eles sabiam que Uílson não tardaria a estar de frente a esta velha disjuntiva
novamente e, a depender da sua atitude frente a ela, avançaria ou retrocederia
para sempre.
A metáfora das pílulas de
Eduardo tinha calado fundo na consciência de Uílson, que continuou por semanas
tentando atenuá-la. “Pílula azul ou vermelha?”. Num arroubo de impaciência em
sua fuga, se envolveu com uma colega de faculdade, chamada Renata Stuart, que encontrou
em uma de suas incursões pela vida noturna. Ao contrário de Uílson, ela não
trabalhava, mas também tentava esquecer a sua falta de personalidade e de perspectiva
de vida no fundo de um copo de cerveja. A diferença é que, no caso de Renata,
tudo isso se processava de forma inconsciente. Juntos mergulharam por semanas
em diversas marcas de cerveja e chope; eventualmente em uma piscina de uísque ou
vodka. De noite se amavam com tamanha fúria que esqueciam momentaneamente os
dias seguintes, suas responsabilidades, relações familiares e de trabalho. Uílson
não deixava de ir ao trabalho por que sofria de uma doença chamada
“responsabilidade aguda”, herança da criação paterna, mas o seu estado
emocional e alcoólico o levou a se atrasar diversas vezes, o que teve
consequências nefastas sobre o seu salário. Era desta “responsabilidade aguda”
que provinha toda a sua crise de consciência, da qual Uílson tentava se ver
livre. Durante 1 mês o sexo sustentou o relacionamento como um refúgio para
ambos. Uílson tentou construir com Renata algum tipo de objetivo comum de vida,
por menor que fosse. Foi depositando, gradativamente, todas as suas esperanças
de felicidade nela. Não uma esperança verdadeira, mas aquela esperança descartável
e falsa que vemos nas propagandas de TV. Seja como for, Uílson ia levando a
vida desse jeito.
***
Numa manhã de outubro, ao entrar
na sala de operações, Uílson ficou sabendo que Christian tinha sido promovido a
supervisor no último processo seletivo interno. Lá estava ele, ostentando a sua
nova variação de corte de cabelo da moda, usando uma jaqueta moderna que cobria
a camisa social azul com o símbolo da KIT. Gesticulava dando orientação aos
seus subordinados. Em cada um de seus gestos se via o grande prazer que tinha
em ordenar, em desfrutar cada momento de sua “autoridade” sobre os outros.
“Como isso é possível?”, se perguntava Uílson enojado. Não que desejasse a vaga
que Christian acabara de ocupar; definitivamente não tinha esse tipo de
ambição. Mas por que uma pessoa tão vazia ocuparia um cargo de supervisão e
gerência sobre outros operadores? Justamente uma pessoa cuja única preocupação
tinha sido fofocar incansavelmente e comemorar qualquer desgraça alheia, seja de
colegas, de amigos, de familiares de ambos, enfim, de todo e qualquer um que
pudesse lhe proporcionar alguma excitação que lhe desviasse o foco de sua vida
vazia. Certa vez espalhou um boato em toda a operação de que muitos setores
iriam fechar e todos perderiam o emprego porque um novo aplicativo de
inteligência artificial assumiria o atendimento geral da operação. Tal fofoca
causou profunda comoção em todos os operadores. Christian acreditava, até certo
ponto, que isso poderia ser verdade, mas nunca fez questão de averiguar a
veracidade dos fatos e a real probabilidade de isso acontecer. Preferiu
espalhar o boato para “alertar os colegas”. No fundo, se divertia cumprindo
esse papel. Muitas vezes fazia isso inconscientemente, tamanho era o prazer que
sentia. De certa forma ele acabava reproduzindo o que faz a grande mídia
através do seu jornalismo comercial. Em conversas quando eram colegas de
operação, Christian confessara a Uílson que a sua grande alegria era “ver os
outros se darem mal”. Ele comemorava qualquer tipo de desentendimento, briga de
casal, bate-boca público; em suma: tudo o que causasse cizânia para quebrar a
normalidade da rotina e contribuir para apagar a consciência da nulidade do seu
ser. Uílson desprezava esse tipo de pessoa que encontrava na fofoca e nas
intriguinhas a forma de fugir da mediocridade da sua própria vida. Naquele dia,
não conseguiu pensar em outra coisa; e cada vez que lembrava disso sentia um
arrepio de náusea e indignação. Como aquele tipo de gente conseguia chegar a um
posto de comando? Não estaria algo profundamente errado? Só podia ser esta a
conclusão, pois haveria melhor forma de controle e comando do que de uma pessoa
que tem como objetivo de vida fofocar e produzir intriguinhas? Certamente a
direção da empresa conhecia a personalidade de Christian, afinal de contas, não
tinha como não conhecê-la, uma vez que sua fama se estendia por todos os
andares da KIT.
Esta “mudança” dentro da empresa
prenunciava para Uílson maus augúrios. Christian lhe disse sorrindo e com a mão
em seu ombro: “Uílsinho, você está escalado para trabalhar no próximo
domingo!”. O contrato de trabalho de Uílson previa jornada de trabalho em apenas
dois sábados por mês, e não no domingo. Uma “breve modificação” contratual,
como muitas que aconteciam dentro da empresa com o total consentimento da Justiça
do Trabalho e do governo, alterara o regime de trabalho de Uílson, que tentou
argumentar dizendo que não trabalhava aos domingos. Christian apresentou
inúmeros argumentos judiciais, documentos, cláusulas, normas regulamentadoras e
decretos governamentais que davam a possibilidade de proceder desta forma.
Uílson não teve outra opção senão cumprir a nova imposição. E muitas outras
“inovações judiciais” como esta foram sendo introduzidas na KIT: Uílson foi
convocado a trabalhar em todos os feriados até o carnaval de 2085, além de
revezar um domingo sim e um domingo não com colegas da sua equipe. Como se tudo
isso não bastasse, ainda teve as suas metas triplicadas sob risco de desconto
salarial. Durante toda aquela semana ia embora da KIT como se tivesse um piano nas
costas. O seu único consolo era deleitar-se com a presença de Renata quase
todas as noites em sua casa.
Por influência dela, Uílson deu
mais atenção à faculdade, aos seus polígrafos e livros. Decidiu se matricular
em cadeiras presenciais para freqüentar as aulas da UE mais seguidamente e,
principalmente, para acompanhar e controlar Renata. Sentia muito sono por só
poder freqüentá-la à noite, mas mesmo assim resistia firme. Pensou ser no campo
acadêmico que poderia dar mais contribuições à humanidade, uma vez que a sua
vida profissional estava perdida. Apesar de toda a sua fuga de si mesmo, Uílson
ainda queria ser útil de alguma forma. Porém, na universidade tomou um banho de
água fria! Deparou-se com filosofias cosméticas, padronizadas, até mesmo de
auto ajuda; sistemas filosóficos, expressos através da publicação de montanhas
de livros, que não chegavam nem perto do campo de batalha da realidade. Sentiu
o profundo abismo entre elas e o marxismo. Para a universidade as classes não
existiam mais, muito menos luta de classes! O que dirá então falar em “ditadura
do proletariado”? Sentiu o grande contraste entre o que se discutia ali e uma
única reunião na casa de José Battle. Os professores diziam que a sociedade
estava vivendo a época do capitalismo gasoso, onde tudo é fugaz e nenhum conceito
pode ser defendido. Segundo eles, a mudança ocorre ininterruptamente e, por
isso mesmo, invalidaria qualquer conceito.
“Descobriram a América!” – pensava ironicamente
Uílson. Segundo o polígrafo da cadeira que Uílson cursava, se podia ler que “a teoria do capitalismo gasoso é centrada
na análise dialógica da subjetividade ultra-moderna atemporal e amaterial”.
“Que língua é esta?”, pensava ele enquanto mostrava para Renata, que parecia
não se importar muito com tudo aquilo, lendo e escrevendo seus trabalhos e
resumos com tal convicção que parecia realmente ter entendido tudo. Seria
fingimento? Se questionava ele, ao mesmo tempo em que se repreendia. Uílson,
por sua vez, sentia-se desarmado e desorientado no meio desta enxurrada de
abstrações, defendidas com tal afinco que qualquer contestação que fizesse a
elas era imediatamente acusado de “dogmático” ou de “viver no século 19” . Ele pensava que a universidade
não tinha produzido nenhuma análise realmente séria da realidade social,
nenhuma frase nova, nenhuma contribuição consistente, apenas um grande
imbróglio hermético destinado a doutrinar na abstração os estudantes
universitários ingênuos. A partir daí, muitos alunos universitários que
gostariam de fazer carreira, conseguir uma bolsa ou simplesmente se formar,
acabavam dançando conforme a música. Outros deixavam-se inflamar pela vaidade,
assim como diversos professores, que sustentavam uma fama e um status sem
conteúdo, vestindo um disfarce de teorias e ideias modernas, mas que, na
verdade, só demonstrava a Uílson a situação diletante em que se encontrava o
mundo acadêmico.
Uílson reencontrou o seu velho amigo, Daniel Hermann,
com o qual discutiu temas muito caros à esquerda, como socialismo e revolução.
No início da sua faculdade, Daniel simpatizava com alguns agrupamentos
políticos mais à esquerda dentro do WP,
mas agora, havia se convertido totalmente ao “anarquismo”. Não o anarquismo
clássico de Bakunin e Proudhon, mas um anarquismo moderno, pastoso, mais
próximo de uma base de sustentação do governo, que, utilizando-se das
nomenclaturas e termos anarquistas, não queria nenhum tipo de compromisso com a
luta sindical ou estudantil consciente. Uílson falou a Daniel que tinha
discutido com uma organização revolucionária chamada Justiça Proletária. Ao ouvir tal declaração, Daniel exclamou: “Esse
nome me causa espanto, Uílson! Me remete ao século 19!”. “Logo você falando
isso, Dani! Lembro-me que era um grande entusiasta de uma das alas de esquerda
do WP. O que houve?”. “Uílson, é
preciso se atualizar! As classes não existem mais! Esse negócio de partido e de
ditadura do proletariado não vinga, nem nunca vingou! É por isso que tornei-me
um libertário! Nenhum tipo de controle é bom! Temos que mudar a nossa forma de
ativismo: precisamos ir até as comunidades carentes, temos que fazer trabalho
voluntário, aprender a falar a sua língua, dialogar com eles com as suas
músicas e com a sua própria cultura! O povo unido funciona sem partido”.
Involuntariamente o lado honesto de Uílson, que ainda possuía algum escrúpulo,
pensou: dialogar com este linguajar acadêmico? E se ele não quer nenhum tipo de
dominação e partido, então por que votou no partido do governo nas últimas
eleições e fez campanha para ele no facebook? Algo não fecha em tudo isso!
Daniel Hermann estava no último semestre do curso de filosofia, ao contrário de
Uílson, que fazia suas cadeiras à conta-gotas por causa do trabalho. Logo,
Daniel começou a falar com grande entusiasmo de um novo autor que estavam
estudando em aula e que defendia a tese do “capitalismo gasoso”. Como estavam se
comunicando em línguas diferentes, logo o assunto acabou e ficaram se olhando,
um pouco sem graça. Despediram-se. Ambos estavam caminhando em sentidos tão
opostos que não voltaram a se falar nunca mais.
As universidades se banalizaram
a tal ponto que eram jocosamente chamadas pelos estudantes mais conscientes do
movimento estudantil de “uniesquina”, brotando como cogumelos depois da chuva
nos grandes centros urbanos, graças às generosas isenções de impostos e
incentivos fiscais do governo. As universidades públicas não mais existiam.
Foram totalmente privatizadas na década de 60, na chamada “reforma
universitária modernizante”, que também foi denunciada pelo movimento estudantil
independente de “grande onda privatizadora”. E quanto mais estas universidades
defendiam teorias ultra-modernas, pós-modernas, descoladas da realidade dos
trabalhadores e do povo pobre, mais “estrelas” e reconhecimentos recebiam do
Ministério da Educação Superior. A propaganda favorável da grande mídia e dos
índices governamentais era proporcional à quantidade de abstrações e subjetividades
defendidas pela universidade. Uílson se aborreceu profundamente com esta
situação. Ao comentar estes pensamentos com Renata acabaram brigando feio.
Capítulo 5
As ilusões perdidas
O celular de Renata Stuart não
atendia nenhuma chamada há dias. Todas as ligações caiam na caixa de mensagens.
Uílson digitava freneticamente o seu número na tela do celular; ligava uma,
duas, dez vezes! E todas as ligações não recebiam retorno.
Foi numa quinta feira cinzenta de outubro que o mundo
de Uílson caiu totalmente. Acessou seu e-mail e lá estava o que emocionalmente
para ele equivalia a uma bomba para um soldado:
Foi bom enquanto durou! Não me procure mais!
R.
Uílson teve rompantes
psicóticos. Quis sair correndo de casa e ir atrás dela. Pensou em ligar pra
xingá-la, humilhá-la, gritar-lhe todos os impropérios que conhecia. Mas não fez
nada disso. Caiu numa depressão profunda. Chorou e bebeu durante uma semana.
Faltou 3 dias seguidos ao trabalho e teve o desconto salarial correspondente. Ficou
eufórico quando recebeu uma mensagem do controlador eletrônico pensando que era
Renata lhe pedindo para voltar, mas tratava-se apenas da direção da empresa lhe
intimando a comparecer ao trabalho no dia seguinte, caso contrário, perderia o
emprego. Apesar destes dias de depressão, Uílson era um funcionário que não
dava maiores prejuízos à empresa; pelo contrário, podia ser preservado por ela,
pois era dócil, prestativo, e, além do mais, a KIT tinha investido alguns dólares
reais na sua formação profissional para ensiná-lo a operar o seu sistema
tecnológico. Em todo o seu longo tempo de KIT – recordista se comparada aos
outros operadores, que suportavam, no máximo, 6 meses –, era a primeira vez que
Uílson havia faltado.
Os acionistas da KIT tinham
desenvolvido um novo método de proceder frente às ausências por enfermidades:
cansados de investigar atestados médicos, planos de saúde e listas de
hospitais, a direção da empresa, seguindo a onda de outras grandes
multinacionais, abriu uma enfermaria interna e começou a medicar os seus
próprios funcionários. No início apenas receitava remédios de tarja preta a
preços acessíveis. Somado à ameaça do corte salarial e da demissão, isso inevitavelmente
aterrorizava moralmente os funcionários a ponto de fazê-los voltar ao trabalho no
dia seguinte da primeira falta. Além disso, a enfermaria cumpria o papel de
clínica psiquiátrica, dando laudos médicos e psicológicos, no mínimo,
duvidosos.
O lado mais obscuro de tudo isso, contudo, se
encontrava no fato da enfermaria receitar um remédio próprio, desenvolvido pela
KIT em parceria com outras empresas multinacionais, visando garantir a produtividade
e assiduidade dos seus trabalhadores. Os operadores da KIT, chamavam-no
popularmente de “droga da sonolência”. Bastava uma pílula para perder
completamente as dores, os sentimentos, as angústias e tornar-se como que um
sonâmbulo semi-consciente. Ficava-se em estado de choque permanente, seguindo a
orientação de qualquer pessoa (principalmente dos supervisores), como se a
pessoa estivesse absolutamente hipnotizada. Ao ver a situação de um colega que
havia sido submetido à “droga da sonolência”, todos evitavam desesperadamente
ficar doentes – como se isso fosse possível! –, colocar atestados médicos ou
ficar muito tempo afastado do serviço. Era uma “sinuca de bico”, não havia
saída! O Ministério da Saúde não apenas legalizava tal procedimento das
“enfermarias autônomas” de cada “grande empresa”, como também apoiava e orientava
os médicos dos hospitais e das pequenas clínicas a serem extremamente rígidos
com qualquer funcionário de multinacional que estivesse querendo “fazer corpo
mole”. Os salários ou impostos para estes “médicos” eram distribuídos de acordo
com estas “mãos invisíveis” que operam nestes bastidores políticos e
econômicos.
Sendo assim, Uílson foi obrigado
por todas as circunstâncias a voltar ao trabalho, mas carregando junto consigo
todo o peso da sua depressão, do desprezo pelo mundo e, em particular, pelas
pessoas que o rodeavam. Ainda chorava o seu desprezo amoroso: como é possível
que as relações sejam assim tão descartáveis? Tamanha era a angústia de Uílson
que passou por sua cabeça tomar a “droga da sonolência” para livrar-se do
fardo, da dor e do desespero que gritava mentalmente a uma multidão incapaz de
perceber tal sofrimento, por já possuir outros tantos sofrimentos em demasia. Até quando
aquele apartheid social iria durar? “Morfina!
Morfina para viver!”, esse era um dos gritos interiores de Uílson, que por
viver submetido a um regime de opressão e recalcamento desde a infância, não
conseguia sair pela sua garganta. Só sentimos opressão! E mais opressão! E mais
opressão! Uílson não sabia o porquê de não conseguir externar este sentimento
que o matava a cada minuto que passava.
A luz de “escuta” acendeu-se no computador de Uílson.
Isso significava que os supervisores estavam ouvindo as suas ligações e
monitorando o seu trabalho. Teve que acelerar os procedimentos para aumentar os
pontos da produtividade e o número de clientes contatados. Neste momento,
quando algo nos falta, conseguimos perceber pequenos detalhes que nos passam
despercebidos quando estamos “bem”. Foi o caso do estalo mental que aquela
ligação lhe causou: Uílson, no mesmo dia, comunicou-se com duas alas de uma mesma
guerra civil em Moçambique, na África. Vendeu um carregamento de metralhadoras
para o governo, ao mesmo tempo em que conseguiu vender uma grande carga de
munição para os “rebeldes” de oposição. A KIT estava, sem nenhum escrúpulo,
lucrando duas vezes com uma mesma carnificina humana. Percebeu dois absurdos ao
mesmo tempo: 1º) havia toda uma política extra-oficial dos países imperialistas
voltada para a manutenção do comércio e dos lucros da indústria bélica; sendo
assim, era evidente que as guerras nunca teriam fim no capitalismo; 2º) ele
estava contribuindo conscientemente com tudo aquilo!
Porém, Uílson se perguntava: como jogar “tudo aquilo”
para o alto se é daí que provém a minha única fonte de sustento? E concluía: a
que situação miserável estou submetido! Ou melhor: que situação o capitalismo me
submeteu! Que grande tragédia! “Mas este não é só o meu drama!”, disse Uílson
em voz alta, batendo na sua mesa de trabalho e chamando a atenção de alguns
colegas ao lado, que não entenderam nada e rapidamente voltaram ao trabalho sob
o olhar autoritário dos supervisores. Decidiu, por fim, se matar! E seria
naquela noite mesmo: ao chegar em casa tomaria uma overdose de remédios, pílulas,
ácido e uísque. Para que continuar vivendo desse jeito? Estava decidido: a
morte é a única saída para este mundo miserável! Cada segundo era uma
eternidade e o relógio não marcava nunca 20h40min. Mesmo com essa decisão
sombria em mente ele não parava de trabalhar. E entrava outra ligação; e outra;
e mais outra. “Por que ajo dessa forma se decidi me matar? Se nada mais
importa?”, ele pensou olhando para longe. “Por que não paro tudo agora e simplesmente
me jogo do oitavo andar, como aquele operador?”. Quando novamente a luz da
“escuta” piscou. Não sabia o porquê, mas ia mantendo as aparências. Apesar de
não ter tomado nenhuma “droga da sonolência”, Uílson estava dopado pela vida e
seduzido pela morte. Foi entrelaçado nessas reflexões que ele suportou disciplinada
e obedientemente até a hora da saída.
***
Finalmente o relógio apontou
20h40min! Uílson tirou o headset e o pendurou
na divisória com a outra mesa. Pegou a sua mochila e junto com dezenas de
outros operadores dirigiu-se para a fila do elevador. Com o alívio da saída, o
sentimento suicida havia diminuído consideravelmente. Como estava atordoado
pela vida, não conseguia pensar muito bem, apenas seguia a manada, que descia no
elevador lotado rumo ao saguão que dava para a porta da saída. Lembrou-se do
fim do namoro com Renata! Uma chaga fincou o seu coração e o partiu de cima até
embaixo! Engoliu o choro e ficou olhando para cima para que as lágrimas
contidas não caíssem e não chamassem a atenção de nenhum colega. A sensação de
desamparo o consumiu, fazendo com que a descida se assemelhasse a um pequeno
pedaço da eternidade.
As portas abriram-se. O edifício
da KIT ia cuspindo operadores incessantemente para três lados diferentes.
Uílson tomou seu rumo na expectativa de chegar em casa o quanto antes.
Triturado sentimentalmente, estava exausto, abatido, desmoralizado. A sua sensação
mais imediata era que pra recuperar as energias deveria dormir uma semana inteira.
Mas que nada! Aquele comichão emocional não lhe abandonava. Lembrava-se do seu
desencanto amoroso e novamente tudo começava. Então abriu a gaveta do criado
mudo e pegou alguns comprimidos. Antes que tivesse coragem de abri-los,
desmanchou-se em
lágrimas. Como um rio em fúria descendo a encosta de uma montanha,
Uílson chorou o seu amor perdido, a sua vida sem perspectivas, a sua solidão, o
seu desamparo. Chorou tanto em cima de sua cama, todas as lágrimas que tinha e as
que não tinha, que, por fim, acabou adormecendo de bruços, da mesma forma que
tinha se jogado.
***
Por toda aquela semana Uílson
sentiu-se daquele jeito. Não apenas não se matou, como continuou indo trabalhar
toda a droga de dia. De tanto chorar chegou a um estado de exaustão que parecia
ter liberado em seu organismo uma espécie de morfina natural. Tudo lhe era
indiferente! O fundo do fundo do poço parecia ter mais um buraco para ir mais
fundo ainda. E Uílson ia... Pensava em se matar novamente; e outra vez adiava o
suicídio sem saber o porquê.
A sua ausência nos encontros
familiares mensais, o silêncio nos e-mails e nas redes sociais, despertou a atenção
dos seus tios, que lhe ligavam e também não recebiam retorno. Preocupados com
tal situação, lhe fizeram uma visita breve durante a noite de uma quarta feira
qualquer e repararam na bagunça de sua casa, em suas olheiras profundas, nas
duas garrafas de Johnny Walker e Jack Daniels vazias ao pé da cama. Viram
também algumas fotos de Renata na sua estante virtual, o que lhes deram a chave
para entender metade do drama. Combinaram um almoço no próximo domingo, quando
Uílson estava fora da escala de trabalho. Meio sonolento, mais para se livrar
da presença incômoda dos tios do que por vontade própria, Uílson consentiu. Na
saída seu tio viu alguns livros de Trotsky sobre a estante e franziu o cenho.
Lhe recomendou que se livrasse “daquele lixo” o quanto antes. Disse ainda que
“na época das ditaduras, por muito menos pessoas eram presas e torturadas”.
Bateram a porta e se foram. Uílson ficou só consigo mesmo novamente. Ouvia
apenas o tic-tac do relógio e a voz metálica do controlador doméstico, que dizia
que já passava da hora de dormir.
***
Tardiamente instigado pelas
memórias da reunião na casa de José Battle, Uílson resolveu seguir os conselhos
de Eduardo e leu algumas obras de Trotsky que conseguiu com grande dificuldade
em um sebo na Rua da Ladeira. Teve acesso a mais um ou outro artigo esparso
pela internet, baixando e imprimindo em
lan houses. A vida de Trotsky lhe causou um grande abalo interior. De
repente sentiu-se envergonhado por fugir da luta ao se deparar com a história
do velho revolucionário, perseguido e caluniado por todo um aparato estatal
degenerado. A forma como Trotsky escrevia lhe era absolutamente clara;
explicava muitos fatos obscurecidos pela mídia, pela universidade e pelos
amigos e familiares reacionários. Entendeu porque ele era sutilmente ignorado e
censurado, bem como o marxismo duramente atacado e distorcido nas universidades
e na mídia. Começou a compreender que somente o verdadeiro marxismo era
virulentamente atacado. Existiam “outros”, mais híbridos e desfigurados, que
eram levantados nas universidades e por outras organizações de “esquerda” que
Uílson passou a conhecer quando debateu com os militantes da Justiça Proletária e após fazer uma nova
pesquisa na biblioteca da UE.
Aquele estudo lhe abriu a mente
e lançou luz sobre o seu futuro. Era como se um novo caminho se abrisse para
ele por entre o mar de dor e sofrimentos causados pelo seu recente abandono e
falta de perspectiva. Pensou instantaneamente em retomar o contato com os companheiros
que conhecera na casa de José Battle, mas não fez nada para que isso
acontecesse. A vida seguiu adiante.
Capítulo 6
Os arautos da reação
O domingo amanheceu chuvoso, cinzento
e até um pouco frio. Uílson enxugou os pés no tapete de entrada do apartamento
dos seus tios, em um dos belos edifícios da zona leste da capital. Seu tio ligava-se
a Uílson pelo lado materno da família. Ajudou de longe na sua criação após a
separação dos seus pais, que não tiveram outro filho. Quando tinha 6 anos,
Uílson foi morar com a avó, mãe de sua mãe, uma vez que os pais entraram em
profundo atrito pelos poucos bens acumulados durante os anos de casados e
esqueceram-se de cuidar dele, que cresceu largado, fechado em seu próprio
mundo, povoado pelos brinquedos, desenhos e livros. A justiça deu a guarda para
avó, que a reivindicou, comovida com a situação de relativo abandono em que se
encontrava o menino. O pai de Uílson morreu quando ele completou 10 anos de
idade, em um acidente de AirBus no
Rio de Janeiro. Apesar de ter convivido pouco com o filho, deixou nele muitas
marcas sentimentais e de personalidade. A mãe, abalada com a solidão e com o
fardo de criar sozinha o filho, morreu de câncer. Dois dias depois do funeral Uílson
completou 23 anos. Logo em seguida, já próximo da casa dos 30, foi a vez da avó
lhe deixar (os avôs ele nunca chegou a conhecer). Talvez esta tenha sido a
perda mais sentida por ele pelo tempo de convivência. Os tios acompanharam toda
esta agonia familiar com grande pesar e dando algum tipo de suporte financeiro
e emocional. Exerciam, de alguma forma, influência sobre o modo de pensar e de
ser de Uílson. Por terem apenas um filho, que não lhes dava muita atenção em
razão das brigas não superadas da adolescência, os tios compensavam os sentimentos
paternos em Uílson.
Quem abriu a porta de entrada
foi a sua tia Odete, que se espantou ao ver a roupa molhada de Uílson: “Meu
deus do céu! Você está todo encharcado, meu filho! Vá até o banheiro se
enxugar”. Odete tinha um zelo exagerado pela casa, pela sua limpeza e
conservação. Foi cuidando o carpete para que não molhasse com os poucos pingos
que caíam de Uílson. Evangélica fervorosa, Odete era freqüentadora assídua dos
cultos dominicais e de todos os outros que conseguia ir. Naquele domingo, para
grande desespero do Pastor João Ezequiel, não compareceu ao templo em razão do
almoço com o sobrinho.
“Tome aqui uma camiseta do seu tio”, disse ela abrindo
a porta do lavabo e lhe entregando a camiseta, junto com uma toalha. Uílson
sentiu o cheiro de sabonete invadir suas narinas quando entrou no banheiro
impecavelmente limpo, lustroso e bem moldado. Tirou a camiseta molhada, se
enxugou e se olhou no espelho. Reparou nas suas olheiras profundas em contraste
com sua pele excessivamente branca, que lhe davam um aspecto vampiresco. Sentiu-se
feio, cansado. Uma sensação de peixe fora d’água percorreu o seu corpo.
Ao sair do banheiro, Uílson se
deparou com o tio, que lhe dava as boas vindas. Roberto Ferrer, ou simplesmente
Tio Beto, era um promissor representante comercial de uma grande empresa do
centro do país. Acostumado a trabalhar pouco (ou quase nada) e a ganhar muito,
Tio Beto esbanjava uma vida muito boa para os padrões do subpaís: apartamento
espaçoso e confortável em uma zona nobre da cidade; carros particulares;
viagens regulares para a Europa e os EUA, 3 empregados domésticos e 1 assessor
profissional e jurídico, que lhe fazia todos os procedimentos legais (ou
melhor, ilegais) para a sua vida funcional: imposto de renda, trâmites
judiciais, marcava e desmarcava compromissos, lhe dava conselhos empresariais e
fazia pesquisas jurídicas. No campo político, as suas opiniões beiravam a insanidade
reacionária, relembrando muitos “intelectuais” burgueses antigos, tais como
Olavo de Carvalho e Percival Puggina, dentre outras pérolas “jornalísticas” do
tipo. Não era casual que bem em cima da estante de entrada estivesse um smart phone com a última edição da
Revista Veja aberta. Uílson, quando adolescente, não entendia as posições do Tio,
no entanto, agora, mais velho e um pouco mais experiente, muitas coisas
passaram a fazer sentido. Tio Beto sempre discordou das tímidas posições
esquerdistas de sua irmã, a mãe de Uílson, reproduzindo uma das formas
clássicas do machismo ortodoxo: “mulher não tem posição política, só tem que
lavar roupa e cuidar de casa”, dizia ele sério, mas quando algum olhar –
geralmente feminino – ousava se arregalar, ele desconversava e relativizava em
tom de brincadeira. Todavia, para qualquer “entendedor” mediano, percebia-se
que ele falava muito seriamente.
Tio Beto e Tia Odete tinham
preparado um esplêndido banquete para Uílson. Em cima da mesa central fumegava
uma panela de arroz, acompanhada de salada de batata, cebola e vagem. Na
churrasqueira, um pouco mais à esquerda da sala, já se sentia o cheiro do bom
churrasco: picanha, vazio, salsichão e um grande pedaço de costela. Tudo regado
à cerveja da melhor qualidade. “Sente-se aqui”, disse tia Odete apontando para
a ponta da mesa.
“Chamamos você pra almoçar com a
gente por que ficamos preocupados”, falou o Tio sentando-se na mesa junto com a
esposa. “Você nunca passou uma semana sem nos responder um e-mail. Qual é o
problema, filho?”. “Estou passando por uma crise existencial, tio, é só isso!”,
disse Uílson baixando os olhos e levando um garfo cheio de arroz à boca. “Por
acaso tem alguma coisa a ver com aquela moça que vimos nas fotos...”, disse a Tia
com uma curiosidade mordaz. “Não, Odete, não!”, repreendeu-a Tio Beto, “Não
constranja o rapaz”. Uílson ruborizou, mais pela censura do tio do que pela
pergunta, e bebeu um gole de cerveja gelada para disfarçar.
“N-na verdade”, disse Uílson
pisando em ovos, “ela é apenas uma parte desta crise existencial. Não tenho
encontrado mais razão em viver”. Os tios pasmaram-se, pararam de comer e
vidraram os olhos no sobrinho. “O meu trabalho é enfadonho e infame; não tenho
amigos verdadeiros e os meus relacionamentos não duram. Que razão posso ter
para viver?”. Uílson imediatamente sentiu a face se afoguear e repreendeu-se por
ter falado tanto. “Mas isso não está certo”, disse o tio batendo na mesa. “Vou
falar já com o Giordanni para ver se ele ainda tem aquela vaguinha na empresa
de automóveis. Bom salário, 4 tubos de oxigênio por mês, promoção por
merecimento, folgas no domingo!”, Tio Beto ia listando nos dedos todas as
qualidades daquele emprego. “N-não tio”, disse baixinho Uílson, “o meu problema
é mais profundo do que isso”. “Ai meu deus do céu! Jesus olhe por tua alma!
Esse menino vai se matar como aquele rapaz do Cidade Urgente!”, disse tia Odete fazendo o sinal da cruz. “Cala-te,
Odete! Vê se para quieta!”, repreendeu-a novamente Tio Beto. “Vocês não estão
entendendo”, disse Uílson, “vamos mudar de assunto!”. “Não, de forma alguma.
Precisamos resolver este problema”, disse Tio Beto, “o que será do seu futuro?”.
Uílson prostrou-se no canto da mesa, claramente
descontente com tudo aquilo. “Caí numa grande armadilha!”, ele pensava. Sem ter
para onde correr e cansado de não dizer o que realmente pensava, Uílson
resolveu encarar a situação e falar tudo o que sentia, mesmo que não compreendesse
profundamente as suas causas. Foi levado a isso por uma daquelas suas vozes
internas.
“T-tio, eu discuti com a
oposição sindical da minha empresa e tudo o que eles me falaram faz muito sentido”,
disse timidamente. “Co-como assim ‘oposição sindical’?”, indagou consternado
Tio Beto, “você, por acaso, está falando de um sindicato, de socialismo?”.
“S-sim”, disse Uílson baixando mais ainda a voz e já arrependido por ter
começado a falar sobre o assunto. “Você endoideceu! Perdeu completamente o
juízo, rapaz! Onde está com a sua cabeça?”, gritou Tio Beto, virando bicho,
como se algo lhe tivesse ofendido pessoalmente. “Socialismo!” disse a tia, “são
todos ateístas, deus me livre!”, disse isso fazendo uma sequência de sinais da
cruz como que querendo se proteger de uma peste. “Quando vi aqueles livros na
sua casa logo vi que não era boa coisa”, falou Tio Beto olhando para o chão,
com um ar de quem estava entendendo todo o problema.
“Olhe rapaz, eu bem sabia que crescer com a influência
da sua mãe não ia lhe fazer bem, ela nunca bateu bem da cabeça, desde menina!”,
Tio Beto dizia isso com uma chama ardente no olhar. Uílson sentiu-se extremamente
culpado, mas não sabia exatamente pelo quê. Percebeu que a análise de Tio Beto sobre
a influência materna não tinha absolutamente nenhuma procedência. Quando muito
suas posições iam a um tímido reformismo. Ele simplesmente havia começado a
enxergar o mundo com os seus próprios olhos e os tios não queriam entender,
muito menos aceitar, pois fazer isso seria como um golpe fatal no seu estilo de
vida esbanjador. Uílson imediatamente entrou na defensiva, queria mudar de
assunto a qualquer preço, porém, Tio Beto lhe alvejava de todos os lados, como
se convencê-lo a mudar de ideia dependesse sua própria sorte. Não apenas não
queria que Uílson entrasse em nenhuma oposição sindical ou organização
revolucionária, mas que rompesse com qualquer tipo de diálogo ou vínculo com
elas. “Nem jornal; nem sequer um único panfleto!”, dizia ele visivelmente transtornado.
“Onde você viu o socialismo dar certo, Uílson, me
diga: onde?”, e gesticulava as mãos com um ódio incompreensível ao sobrinho.
“Se não dá certo”, perguntava-se Uílson em pensamentos, “por que então eles têm
tanto medo do socialismo? Não era pra estar tudo resolvido? Por que tanto ódio
e tanta consternação ao se tocar nesse assunto?”. As perguntas já continham um
germe de resposta. E Tio Beto continuava: “Na teoria isso é tudo muito bonito,
mas quando vai para a prática as coisas não são bem assim”, e dava um
sorrisinho irônico, como se tivesse desmascarado os melhores argumentos do
sobrinho. “Os comunistas são todos ateístas, negam deus e os valores da
família! Querem ditadura gay! Imaginem um país sem deus, que absurdo?”, falou
Tia Odete, horrorizada. Uílson olhou para a janela e pensou ironicamente:
“Querem me ajudar ou me enterrar?”.
Tio Beto agora já tinha as veias do pescoço saltadas.
Foi fundo no baú da memória! Explanou tudo o que sabia das quatro últimas
edições da Veja, muniu-se da melhor
artilharia dos tradicionais livros que leu em um passado distante e os que só
leu o título: “A insustentável leveza do
ser”, “1984” , “Revolução dos bichos”, “O zero e o infinito”, “O livro negro do comunismo”, “O mínimo que você precisa saber para não
ser um idiota”, dentre outras pérolas. Uílson reparou no farfalhar da copa
de uma árvore que aparecia no canto da janela da sala. A chuva havia cessado.
Desejou estar numa praia deserta, sentindo o cheiro de maresia. No fundo do seu
devaneio, o tantra reacionário continuava: “Em nenhum país do mundo isso deu
certo! Sempre virou ditadura! Veja a Albânia e a Coréia do Norte”, e falava com
o indicador para cima! “Se acalme, Roberto”, falou Tia Odete, percebendo a
alteração anormal do marido.
Tio Beto se acalmou um pouco. Neste momento um instinto
provocador emergiu no interior de Uílson: “E por acaso não vivemos em uma
ditadura disfarçada? No meu trabalho eu mal posso olhar para o lado sem ser
repreendido; nem posso ir ao banheiro sem ser vigiado. Se chego atrasado ou
fico doente meu salário é impiedosamente descontado e se chego a ter ousadia de
defender uma posição política contrária dentro da empresa sou sumariamente
demitido! É a ditadura do desemprego! A única diferença é que fazem tudo isso
se escondendo atrás das leis e dos grandes meios de comunicação, que afirmam
24h que vivemos em uma democracia e que essa é a melhor sociedade que a
humanidade pode construir! E tudo isso para quê? Para sustentar o lucro
descomunal da empresa que me trata como um escravo. Quanto mais trabalho, mais
pobre e dependente fico; e eles mais ricos às minhas custas e às custas das
inúmeras vidas sacrificadas nas guerras que a KIT patrocina e sustenta pelo
mundo! O único e verdadeiro deus nesta história é o dinheiro! In god we trust!”. O rosto da Tia embranqueceu
de pavor. Tio Beto ficou vermelho, como se estivesse com algo preso na
garganta. Falou aos gritos: “Então você quer viver numa ditadura como foi a
Rússia?”. “Em primeiro lugar”, disse Uílson também gritando, “aquela revolução
foi traída pela burocracia stalinista e isolada pelo imperialismo mundial; em
segundo lugar, o socialismo não será igual em todos os países. Aquela foi uma
experiência! E como tal deve ser encarada! O 14 bis de Santos Dummont foi muito
imperfeito comparado com as aeronaves atuais. É preciso olhar as experiências
sociais com uma escala que lhe seja adequada e não de acordo com uma receita de
bolo ou com as nossas conveniências mesquinhas. E você Tio Beto, quer viver
para sempre em um país colonial, submisso, exportador de produtos primários,
dependente dos centros financeiros internacionais? Me diga você também, aonde o
capitalismo deu certo para o povo? Para os trabalhadores? Aonde ele não foi um
grande negócio apenas para uma pequena elite parasitária e para as suas
rêmoras?”.
Tio Beto começou a tossir. Levantou-se e ficou
inquieto, andando de um lado para o outro. “Acalme-se Roberto”, dizia Tia
Odete, indo atrás do marido. “E digo mais”, continuou Uílson, “cansei da vida
de fingimento, de segregação, de luta pela sobrevivência, de alienação. Não
quero mais a sopa gosmenta da televisão, dos jornais, da internet. Eu quero um
futuro! Quero construir uma nação de verdade! Eu não consigo mais suportar a
visão de dezenas de indigentes pelas ruas, das slum cities! Pra mim chega!”. Tio Beto percebeu que tudo estava
perdido. Como bom cínico, voltou para a mesa e apostou na tática do cansaço. Imediatamente
mudou de assunto, mesmo percebendo que Uílson queria desabafar e o pior: tinha
razão! Começaram pelos assuntos familiares e depois, com a contribuição de Tia
Odete, descambaram para as trivialidades mais mundanas. Uílson suportou aquela
hipocrisia por mais algumas horas e depois conseguiu ir embora. Foi a partir
deste domingo que a freqüência com que os tios o procuravam foi diminuindo até
tornarem-se encontros esporádicos e casuais.
***
A que ponto de indiferença
social chega um ser humano? Como é possível que uma doutrina religiosa que
prega a igualdade, a divisão de bens e a bondade para com o próximo sirva como
carapuça para o egoísmo? Como se sustenta esta segregação social entre ricos,
meio ricos e miseráveis? Para esboçarmos um princípio de resposta é preciso
entender que existe uma hipocrisia institucionalizada, banalizada! Tão comum
que ninguém perceba que ela está encarnada no modo de agir, de ser, de pensar, de
falar da grande maioria das pessoas! O discurso é definitivamente divorciado da
prática. O reconhecimento do direito de “igualdade” fica limitado ao papel. As
instituições políticas e econômicas, que dizem ser “democráticas” e promotoras
desta “igualdade”, sustentam as práticas que mantém a desigualdade social, justamente
porque a sua finalidade é defender o status
quo, desigual por natureza. Todavia, como não podem reconhecer isso
abertamente, apelam para os discursos demagógicos, que obscurecem a real
contradição social. Imaginem que confusão isso causa na mente dos incautos!
Como não poderia deixar de ser, esta prática se espalha como um vírus para
todos os outros setores sociais: educação, mídia, moral, relações sociais e
familiares. Gerações e gerações de seres humanos são educadas na mentira, na
hipocrisia e no descaso para com o próximo, enquanto buscam a benção do padre,
pastor ou guru espiritual para conquistar o seu lugar no paraíso post mortem. A maior parte destes
indivíduos não tem plena consciência disso. Simplesmente ouviram desde
crianças: “pessoas moram na rua porque querem, pois emprego tem! Eles não
querem trabalhar!”. Omitem desta análise toda a estrutura social, o desemprego
crônico, a luta pela sobrevivência, os bolsões de miséria mantidos
artificialmente por sucessivos governos; tudo, evidentemente, feito sob medida
para sustentar o edifício social que garante o lucro da grande burguesia.
Pior do que isso! Não
satisfeitos com a sociedade decadente, a exploração, a opressão, a
prostituição, eles querem mais: agem como gafanhotos famintos que atacam uma
lavoura! Ninguém os freia porque não há consciência e nem organização para isso.
Jogam trabalhador contra trabalhador; difamam as ideologias proletárias; atiram
tudo na mesma vala comum da sujeira e podridão da moral capitalista. “Não
existe sistema bom! Capitalismo e socialismo são bons ou ruins igualmente,
porque o ser humano é ruim”, diz uma voz lá de cima, e um escravo reproduz para
o outro, que passa adiante... Que brilhante sistema de auto escravização!
Toda história do século 20
comprova aquela máxima: “nenhuma classe dominante abandona a cena histórica sem
uma encarniçada resistência”. Ou seja, ela vai sendo empurrada para a lata do
lixo da história, mas tenta levar consigo o máximo que puder. A burguesia fala
em direitos humanos para melhor violá-los em diversos países do mundo,
inclusive nos países ditos avançados; grita contra as ditaduras “comunistas” e
pela “democracia”, mas sustenta diversas ditaduras pelo mundo; choca-se com os
genocídios e guerras dos ditadores “comunistas”, mas promove guerras pelo mundo
sem nenhum tipo de constrangimento, inclusive sendo abençoada pelos padres; defende
a “liberdade de imprensa”, mas desenvolve vários tipos de censura à imprensa
operária e de esquerda, seja de forma aberta ou dissimulada; sustenta que
vivemos em um mundo globalizado e dos “Estados democráticos de direito”, mas os
trabalhadores continuam morrendo de fome pelo desemprego, pela miséria, pelas
doenças banais, pela indiferença – tudo para sustentar o sacrossanto lucro e propriedade
privada da burguesia. Quando é questionada por tudo isso, responde cinicamente:
“é o meu direito democrático defender estas posições!”. Quais posições? A que
condena centena de milhares de pessoas ao desemprego, à fome, à miséria, a
morrer definhando em razão das doenças e das guerras? E esta mesma burguesia
que se diz tão cheia de virtudes, frente a um processo revolucionário, quando
os trabalhadores se sublevam, não se furta a sabotá-lo, infiltrando agentes
provocadores, a incentivar assaltos, pequenos crimes que parecem obra do acaso,
até o financiamento direto de exércitos contra-revolucionários.
Durante todo o século 21, após a restauração
capitalista nos ex-Estados operários e através da defesa de que o
neoliberalismo seria a única solução para todos os problemas, foram drenando
gradativamente todo o dinheiro público para o setor privado: bancos, mega empresas
nacionais e multinacionais. Primeiro privatizaram as empresas estatais a preço
de banana, com um discurso sedutor para enganar o povo; depois, os serviços
públicos; posteriormente, acabaram com os direitos sociais – leis trabalhistas,
qualquer resquício de estabilidade, CIPAs, representatividade sindical, etc. –
e com qualquer tipo de assistência social, excetuando os casos de interesse
publicitário governamental ou para colocar panos quentes sobre o latente
descontentamento social. Tudo isso, é claro, acompanhado por uma grande
campanha publicitária e ideológica que não deixou pedra sobre pedra. Por fim,
privatizaram tudo o que cheirasse a “público” com um discurso de progresso, de
melhorar o nível de vida da população. Como não poderia deixar de ser, tudo isso
resultou no aumento colossal da miséria e do distanciamento entre ricos e
pobres, isto é, em um contra senso, pois exclui qualquer participação popular nas
principais decisões, privatizando os lucros e a administração de todas empresas
e serviços sociais. Em poucas palavras: todas as privatizações estão na contramão
dos interesses sociais. E por que são vendidas como necessárias; como a única
saída possível? Por acaso isso não seria o mesmo que querer apagar fogo com
gasolina? Não, dizem as organizações reformistas, as burocracias sindicais, os
intelectuais a soldo do grande capital, ou seja, todos aqueles que induzem os
escravos a apagar o fogo com gasolina, que acaba se alastrando em suas próprias
roupas enquanto se convencem que estão construindo uma sociedade democrática e
melhor.
Tio Beto era entusiasta defensor das privatizações e
do neoliberalismo, que levava a mais brutal especulação financeira e a lucros
inimagináveis até mesmo para Jordan Belfort, o primeiro lobo de Wall Street. O que ele ganhava com isso?
Nada, apenas o aumento da miséria ao seu redor, que levava seu edifício a se
cercar com grades elétricas, câmeras e seguranças. Terminava, portanto, no
lamentável papel de cúmplice semi-consciente da espoliação do seu próprio subpaís,
sendo não apenas egoísta, mas sádico e perverso, porque de alguma forma sentia
prazer com o sofrimento do povo e regozijo com a sua própria “salvação”. Quando
era indagado sobre como ficou rico ou como os milionários fazem fortuna, Tio Beto
sempre respondia mais que depressa: “com muito trabalho!”. Ele queria esconder
e naturalizar tanto a exploração dos trabalhadores, quanto o roubo que fazem
dos cofres públicos por meio de fraudes em licitações, contratos
superfaturados, empréstimos bancários com juros subsidiados (enquanto o povo
pobre sofre com os juros extorsivos) e até mesmo “milagrosas” ajudas e
incentivos do Estado para comprar novas empresas ou salvá-las da bancarrota.
Tal é o “trabalho” dos grandes e pequenos capitalistas!
Uílson era indulgente com o Tio,
sem ver que isto era um erro, pois ele representava uma camada social que se
beneficiava da desigualdade social (ainda que pagasse um preço que não
compreendia direito) e, apesar de tudo, sentia que as coisas estavam boas para si
próprio e para a sua família, então, “para que mudar? O resto que se danasse!”.
Esse devia ser um dos seus pensamentos íntimos que somente em ocasiões
propícias eram revelados. E Tio Beto ia mais longe quando afirmava: “bastaria
que os vagabundos deixassem de ser vagabundos e começassem a trabalhar!”.
Porém, havia um pequeno detalhe: e se não existe emprego para os “vagabundos”,
justamente porque interessa ao capitalismo manter esses grandes contingentes de
miseráveis, párias sociais e desempregados, que aceitam qualquer valor para
fazer os trabalhos mais desgastantes e humilhantes? Tio Beto não responderia e
novamente desconversaria, usando novos dados e outros livros filosóficos e
literários para continuar justificando o injustificável. No fim, concluiria:
“sempre foi assim e continuará sendo assim!”. E tudo estaria resolvido! Ele só
não acrescentaria o que realmente pensa: “para mim está bom, atingi o meu lugar
ao sol e o resto é que se dane!”. Para piorar, esta podridão muitas vezes se alastra
aos setores do próprio proletariado, que reproduz uma posição reacionária sem o
saber (ou, às vezes, sabendo, por influência de outros reacionários, da mídia,
etc.). Uílson já tinha se deparado com muitos colegas da KIT que agiam da mesma
forma que o Tio e sentia uma profunda decepção com isso, como se um peso
insuportável fosse colocado em suas costas e um forte desamparo para seguir na
luta.
Poderia o capitalismo se manter
sem esses arautos informais, na maioria das vezes inconscientes, que se
travestem com as cores de gente próxima, familiar, que muitas vezes fala a
nossa língua? A grande burguesia não precisa gastar um único tostão furado para
tentar convencer do contrário Uílson e muitos outros sujeitos que despertam
para a vida social e política, pois contam com infiltrados na sua própria
família ou nos círculos de amigos.
Surge outra questão não menos pertinente: estaria tudo
isso dissociado do egocentrismo e da vaidade? Evidentemente que não, muito
embora nem sempre ele seja o motor principal! Uílson sentia nojo deste
sentimento mesquinho, mas a ideologia capitalista, sobretudo a neoliberal,
enquadrava-se bem na lógica do “salve-se quem puder!” e do “eu sempre em
primeiro lugar!”. Entretanto, é preciso olhar todo o quadro. O capitalismo
lança os indivíduos numa luta de todos contra todos, no desespero pelo emprego,
por um salário, pelo pão nosso de cada dia e depois justifica tudo isso através
da sua famosa ideologia que diz que todos são egoístas e mesquinhos e que querem
se salvar primeiro do que os demais. Mas quem deu o ponta pé inicial? Seria
bastante razoável pensar que dentro dessa selvageria social não é muito comum
surgirem seres humanos com ideais éticos muito elevados.
Na nossa época, o indivíduo
tornou-se mais consciente do que nunca da sua dependência da sociedade (alguns
mais, outros menos). No entanto, ele não sente esta dependência como positiva,
como um laço orgânico, como uma força protetora, mas como uma ameaça aos seus
direitos naturais, ou ainda, à sua existência. Ele sente muito mais o laço
mordaz do chicote do que os escassos momentos de paz, sossego e prosperidade. Não
compreende as forças em
jogo. Sua consciência é invadida por todo o tipo de
esoterismos, misticismos, ilusões; é esvaziada pela televisão, pela letargia
política, pela esperança de um “messias”, uma espécie de pai ou de mãe que fará
tudo por ele. Além disso, a sociedade capitalista acentua monstruosamente seus
impulsos egocêntricos, ao mesmo tempo em que deteriora progressivamente os
impulsos sociais. É uma política consciente e deliberada de governos, justiça,
grande mídia. Qualquer elemento que fuja desta lógica é taxado de “louco”,
“autoritário”, “subversivo” e outras preciosidades do gênero. Todos os seres
humanos, independentemente da sua posição na sociedade, sofrem este processo de
deterioração. Inconscientemente prisioneiros do seu próprio egocentrismo,
sentem-se inseguros, sós. O ser humano pode encontrar sentido na vida, curta e
perigosa como é, apenas dedicando-se à sociedade.
Esta foi a grande conclusão que Uílson tirou de toda a
experiência que vinha acumulando nos últimos meses. Conclusão esta que inevitavelmente
criava um abismo entre ele e os tios. Por melhores condições de vida que eles tivessem,
que papel poderiam desempenhar a não ser o de rêmoras dos grandes tubarões
capitalistas? Frente ao lobo de Wall
Street, Tio Beto seria uma hiena ou um rato? O fato, contudo, é que os
ratos de Wall Street sempre servem de
esteio para os lobos.
Capítulo 7
Dez passos atrás, um à frente!
Foi assim que o velho Uílson
Silva morreu e deu lugar a um novo, com uma consciência social e política
qualitativamente diferente, mais avançada e pulsante. Para conseguir ressurgir
das cinzas teve que superar e romper com um verdadeiro exército de jornalistas
mercenários, professores universitários, apresentadores e comentaristas de TV,
chefes, supervisores e capatazes, sindicalistas burocratas vendidos, além de
enfrentar o posto militar avançado da reação familiar, insuspeita de qualquer influência.
Segundo o que ele anotaria em um velho caderno, que passou a usar como uma
espécie de diário, o ano de 2084 seria o marco para essa mudança profunda de
consciência e de vida.
De repente Uílson se deu conta
que o mais alto nível moral da espécie humana estava representado pelos
militantes revolucionários da Justiça
Proletária que conhecera naquela reunião na casa de José Battle; e muitos
outros anônimos, que estavam espelhados pelo Brazil e pelo mundo. Não ganhavam nenhum tostão por tudo o que
faziam; pelo contrário: tinham muitas despesas e podiam ser demitidos e
perseguidos politicamente a qualquer momento (como geralmente ocorria) com todo
o apoio da sociedade “democrática oficial”. Muitos poderiam ser mortos e acabar
completamente esquecidos. Eles nem sequer se importavam com tais honrarias. Simplesmente
queriam acordar e conscientizar os trabalhadores. Talvez isso não fosse um
“sentido para a vida”, mas dentro da sociedade atual poderia haver outro mais
alto, profundo e verdadeiro do que este?
Após vencer todas estas barreiras
políticas (medo da represália da empresa), econômicas (medo da demissão) e
morais (entraves familiares), Uílson ingressou primeiro na oposição sindical e,
posteriormente, na Justiça Proletária.
Fez panfletagem mascarado tanto na porta da KIT como em outras empresas;
participou de mobilizações estudantis e de outras categorias de trabalhadores. Enfim
sua consciência de classe aflorou e ele, pouco a pouco, foi encontrando a si
mesmo.
***
“Naqueles dias pensamos que
usted no más regressaria, Uílson”, disse José Battle aos companheiros enquanto
colocava uma pilha de jornais Justiça
Proletária recém impressos em cima da mesa. Estavam conversando informalmente
antes que a reunião nos fundos da casa de José Battle começasse. Sob um calor
escaldante, lá estavam os 4 reunidos novamente para traçar uma política de
intervenção nas suas respectivas empresas. “Durante aquela semana eu vivi uma
profunda crise existencial”, disse Uílson olhando para Catarina, que havia lhe confessado
naquele primeiro encontro as suas. “Isso é natural”, disse ela, sorrindo.
“Senti um pouco do peso que vocês suportavam”, falou Uílson novamente, agora
olhando para Eduardo, “porém, a realidade foi se impondo aos poucos e, então,
resolvi não mais esconder o meu rosto”. “Bravo!”, bradou Eduardo.
“Li muitos livros do Trotsky,
que me foram de grande valia”, prosseguiu Uílson, “mas algumas dúvidas pessoais
ainda persistem”. José Battle franziu o cenho. “Não se preocupem! Elas são
pontuais!”, acrescentou Uílson, mais que ligeiro. “Vamos a elas, então”, disse
Catarina, sorrindo.
“Concordo com todas as
prerrogativas do socialismo. Acho que realmente não temos saída dentro da sociedade
capitalista atual, e que dela só podemos esperar mais e mais barbáries, além da
intensificação da exploração, da miséria e da segregação social. As guerras
estão aí, sejam entre países, incentivadas pelos imperialismos, ou entre civis.
Porém, ainda acho que o capitalismo impulsiona a iniciativa individual de
alguma forma. No socialismo, com uma produção totalmente estatizada, não
haveria um congelamento desta iniciativa?”. José Battle bufou.
“Camarada”, disse Eduardo
solicitamente, “não há dúvida de que o capitalismo teve um grande papel na
evolução da sociedade. Este papel foi amplamente explicado por Marx e Engels,
no Manifesto Comunista, há mais de 200 anos atrás. O burguês ou o pequeno
burguês, impelidos por fazer seu negócio crescer, sem dúvida alguma preocupa-se
em ter algumas iniciativas que fazem a economia andar e as coisas acontecerem.
Contudo, já passamos da fase dos albores do capitalismo. Vivemos a época da sua
degradação, da sua transformação em imperialismo, que cria os cartéis e
monopólios de preço e de matérias-primas, o que leva à completa assimilação dos
capitais menores pelos maiores e a sua anulação, na prática. As iniciativas
reais atualmente pertencem aos grandes grupos econômicos. Aos pequenos
capitalistas resta trilhar um caminho tolerado pelo grande capital
imperialista, ou seja, a sua iniciativa está condicionada pelos interesses
deles. E indo mais além: que iniciativa pessoal resta aos trabalhadores nas
empresas a não ser tornar-se massa de manobra, um rebanho de gado, sendo
obrigado a aceitar inúmeros desmandos e burrices cegas das chefias? Muitos
trabalhadores tentam sugerir pequenas modificações no processo de produção e de
trabalho, mas são sumariamente ignorados ou suas sugestões são assimiladas para
intensificar a sua própria exploração, uma vez que está completamente preso
pela camisa de força das estruturas sociais capitalistas”.
“Isso não significa”,
complementou Catarina, “que no socialismo as iniciativas individuais serão
completamente eclipsadas ou abolidas. Tivemos alguns exemplos de trabalho
voluntário e espontâneo na Rússia e em Cuba, sem nenhum tipo de coação por
parte do Estado. Foram os chamados ‘Sábados Comunistas’ ou ‘Voluntários’ na
Rússia, profundamente analisados por Lenin em um artigo específico, onde os
operários tomaram a rédea de manutenção e reparo nas locomotivas e estradas de
ferro sem que houvesse a necessidade de uma única ameaça de desconto salarial
ou coação por parte de supervisores ou capatazes. Eles próprios viram a importância
de começar a tomar em suas mãos as rédeas da administração e da economia. A
produtividade do trabalho cresceu a partir desta iniciativa. Evidentemente que
todo esse protagonismo foi cortado pela raiz quando a burocracia stalinista
tomou o poder. É por isso que é imprescindível a democracia proletária expressa
através de conselhos operários, amplamente disseminados por todas as regiões e
com poder legislativo, executivo e judiciário. Conselhos que sejam espaços para
o debate de todas as tarefas sociais, criando a verdadeira e única cidadania; e
que também sirvam para o crescimento teórico, político e de solidariedade
humana. Onde os trabalhadores sintam que são ouvidos e valorizados e não tenham
suas iniciativas censuradas, seja por um regime burocrático do tipo stalinista,
ou por uma empresa privada, que tem um regime interno não menos autoritário e
cruel. Existe uma outra grande questão para este debate sobre as ‘iniciativas
individuais’: devemos incentivar a produtividade e as iniciativas através de
retornos materiais (meramente salariais) ou através do exemplo, de uma nova
moral social que instigue uma outra conduta social? É evidente que os ritmos
individuais são diferentes e que nem todos estarão na vanguarda das iniciativas
numa sociedade socialista futura, assim como hoje nos encontramos praticamente
sozinhos na tarefa de conscientizar e organizar os trabalhadores; também será
preciso um longo processo de reeducação social e política de todo o povo
através da escola pública, totalmente repensada e reformada segundo esses
valores, bem como através da grande mídia, que deverá ter outra função,
completamente diferente da de hoje, que é apenas utilizada no sentido de idiotizar,
domesticar e incentivar o consumismo até os limites da exaustão. Pode-se pensar
em iniciativa política e econômica sem essas premissas? Podemos falar em
iniciativa política, econômica e social sem levar em consideração os impactos
ambientais, sociais e em relação aos trabalhadores mais pobres?”.
“É claro que não”, disse Uílson,
muito contente com todo o debate que tinha desencadeado e ciente de que não
ouviria um diálogo como aquele em nenhum outro lugar.
“Resumidamente”, disse José
Battle, “dentro del capitalismo no poderemos esperar nenhum tipo de iniciativa
social que no sea esmagada por la burguesia; apenas iniciativas que andem no
sentido de acumulação privada de riquezas, isto é, de exploración do hombre
pelo hombre, utilizada geralmente para tirar alguma vantagem individual”.
Uílson coçou a cabeça e disse:
“Mas isso não significa que não existam boas práticas do capitalismo que não
devam ser aproveitadas pelos trabalhadores em uma sociedade socialista
futura!”.
“Exatamente”, disse Eduardo,
“alguns princípios de trocas comerciais e aquecimento da economia poderão ser aprendidos
da atual sociedade, mesmo com toda a sua decadência, afinal de contas, a
sociedade socialista não surgirá do nada, mas das entranhas da sociedade
capitalista. Haverá um longo período de transição entre economias, conflitos
entre práticas econômicas e laborais, bem como de hábitos, de costumes, de
mentalidades, de culturas absolutamente distintas”.
“Usted poderia me demonstrar
onde estan as ‘boas práticas’ del capitalismo hoy”, ironizou José Battle.
Ignorando a zombaria do
companheiro, Eduardo falou: “É importante diferenciar uma questão de método: as
‘boas práticas’ capitalistas precisam trabalhar no sentido de ajudar a
libertação do trabalhador, ou seja, aumentar a produtividade socialista e
incrementar a sua economia; e nunca ser usada como forma de intensificar a sua
exploração e opressão disfarçados por slogans pseudo modernizantes, tal como
faz o governo atualmente, que se utiliza de um discurso ‘socialista’ para
aumentar a exploração capitalista”.
Uílson fez um sinal de assentimento com a cabeça e disse:
“Outra dúvida que tenho e que me martelou a cabeça durante estes últimos dias
é: por que nos encontramos tão mal, tão isolados, somos tão pequenos? Por que
chegamos a este nível de degradação e de segregação social não apenas entre os
trabalhadores, mas entre as organizações de esquerda?”.
“Não temos a resposta para todas
as perguntas”, começou respondendo Catarina, “mas podemos arriscar algumas
conclusões. Em primeiro lugar, acho que a burguesia compreendeu a dialética da
História do movimento operário muito mais do que as organizações proletárias de
vanguarda, que sucumbem a todos os cantos de sereia lançados pela burguesia;
muitos deles completamente repetidos, que poderiam ser facilmente evitados se
não houvesse tanta ignorância sobre a história do movimento operário, bem como
um oportunismo latente nos seus dirigentes. A burguesia infiltrou seus agentes
informais nos sindicatos, os comprando direta ou indiretamente. Sua pressão
social avassaladora, feita através das mídias, das igrejas, das escolas e
universidades, do seu poder econômico e estatal, muda constantemente a
orientação teórica e política da suposta ‘vanguarda’ dos trabalhadores,
infiltrando ervas daninhas no seu programa de ação. Lhes apresenta a luta
reformista e legalista em lugar da luta revolucionária e semi-clandestina
(ainda que possamos e devamos usar os espaços legais); a ascensão unicamente
através do caminho eleitoral ao invés da conscientização e organização feitas
no método de ‘trabalho formiguinha’, em sindicatos e movimentos sociais. Muitos
‘trabalhadores’ sucumbem a este ‘caminho mais fácil’ e, a partir daí, passam a
convencer os outros. Tornam-se agentes informais da burguesia no seio do
movimento proletário. O reformismo leva à acomodação, à rotina, ao ‘caminho mais
fácil’, à paralisia do movimento proletário e, por fim, à adaptação completa às
bandeiras do inimigo. Graças à esta orientação oportunista infiltrada no
movimento operário, a revolução socialista perdeu tantas oportunidades ao longo
da História que, ao lançar o proletariado à condições de derrotas cada vez mais
sufocantes, foi intensificando gradativamente a degeneração de toda a
sociedade. Quanto mais a burguesia via o desencadear de novos movimentos
proletários e os estudava, mais ia se tornando consciente de seu papel histórico
reacionário e o assumia de bom grado. Lançava revistas, jornais, programas de
TV e rádio, bem como novas ideologias nas escolas e universidades, que
envenenavam a sociedade com a sua hipocrisia letárgica. Esta hipocrisia burguesa
ia se incrustando nas organizações políticas do proletariado proporcionalmente
à degeneração da sociedade”.
“Essa é a razão para o WP ser o que ele é hoje? Um agente
completamente desavergonhado da burguesia, utilizando-se de uma retórica
eventualmente socialista?”, indagou Uílson.
“Exatamente, compañero!”,
empolgou-se José Battle, dando um soco no ar, “é disto que devemos hablar
ahora!”.
“Há pouco tempo atrás”, começou
Eduardo, pegando o gancho da conclusão de Uílson, “existiam, pelo menos, 4
organizações socialistas legalizadas e reconhecidas pelo Estado. Elas reuniam
uma considerável parcela da vanguarda dos trabalhadores, dirigiam muitos
sindicatos, participavam das eleições e tinham todos os privilégios que a
legalidade institucional dá ao WP,
por exemplo. Porém, vieram as ‘reformas políticas’ propostas pela ‘assembleia
constituinte’ e retiraram todos estes ‘salvo condutos’ legais. E por que isso
aconteceu?, sendo que esta assembleia constituinte foi amplamente defendida por
estas mesmas organizações de ‘esquerda’ que gozavam destes privilégios legais?
Porque não havia correlação de forças favoráveis aos trabalhadores e,
consequentemente, a estes ‘partidos’. Aliás, a ‘esquerda’ reformista até hoje
não se preocupa com a correlação de forças para a luta proletária, chegando a
desconsiderá-la totalmente. Pensam apenas em dividendos políticos e eleitorais,
querendo, no fundo, apenas aparecer, serem ‘cavaleiros por uma hora’! Com este
tipo de conduta, servem perfeitamente de agentes da burguesia e prestam-lhe os
melhores serviços. Poderia um exército ter melhor amigo do que um general
oponente que lança periodicamente o seu exército à batalhas desfavoráveis? A
burguesia, entendendo este papel, incentiva certas posições e debates políticos
através da sua mídia e do seu poder político estatal. Não podemos desconsiderar
a infiltração direta de agentes nestas organizações, dada a facilidade com que
se adaptam a legalidade burguesa. Por tudo isso, são presas fáceis e um estorvo
para o proletariado. Para resumir a tragédia: qual foi o resultado desta
‘reforma política’ sem correlação de forças e, portanto, desfavorável aos
trabalhadores? Para continuar existindo legalmente, estas 4 organizações
socialistas foram obrigadas a entrar no WP,
pois a ‘assembleia constituinte’ reconheceu a similaridade de ideologias entre
elas, obrigando a fusão de todas e a sua transformação em correntes políticas
internas do partido governista”.
“E elas aceitaram?”, perguntou
ingenuamente Uílson.
“Evidentemente que sim!”,
respondeu Catarina, “E lá estão elas até hoje, cumprindo um papel de capachos
do que quer o governo do WP,
utilizando-se, evidentemente, da retórica socialista e anti-capitalista, mas
sendo seu ‘abre alas’ no movimento sindical. Pelo que se lê em seus jornais,
panfletos, sites, blogs e, sobretudo, por sua atuação prática nos sindicatos e
movimentos sociais, apenas dão um atestado de ‘esquerda’ para o governo melhor
enganar a população em geral e os trabalhadores organizados nos sindicatos, em particular. Sem
isso o sistema não se sustentaria. Em contrapartida, a mesma ‘assembleia
constituinte’, dominada pelas forças burguesas, legalizou a existência de
diversos outros partidos políticos que tem um caráter e um programa burguês,
fingindo que, com isso, estaria preservando o ‘regime democrático’ e a sua
‘pluralidade’, muito embora permita a apenas duas destas legendas disputarem o
segundo turno eleitoral e, consequentemente, chegarem ao poder”.
Uílson sentia seus olhos se
abrirem a cada reunião como aquela. Intercalando leituras, reuniões e a intervenção
no movimento operário, foi desenvolvendo a sua própria personalidade e
capacidade intelectual. Este desenvolvimento desabrochou como o resultado da
entrega pessoal honesta de Uílson à construção da revolução socialista. Pouco a
pouco foi conhecendo outros militantes e se entrosando com eles; além de ganhar
confiança nas suas intervenções. Ao contrário de todas aquelas leituras
reacionárias indicadas pela mídia, pelas universidades e pelo Tio, havia sim
uma saída, apesar de todas as dificuldades. Neste processo ele aprendeu a ler
as entrelinhas, percebendo os meandros obscuros que aquela literatura queria
jogar o proletariado. Enquanto houvesse capitalismo, haveria luta de classes e,
havendo luta de classes, a vitória do proletariado estaria sempre no horizonte.
Não havia dúvidas de que o socialismo tinha sofrido um grave revés, mas teria
outra possibilidade de futuro fora dele? Uílson compreendeu que era necessário
construir o edifício da revolução, pedra por pedra. Havendo um partido
revolucionário que se entrelaçasse aos trabalhadores avançados, combatesse o
oportunismo presente na vanguarda de “esquerda”, a vitória do socialismo seria
sempre uma possibilidade histórica. Uílson compreendeu que os camaradas da Justiça Proletária se colocavam como um
embrião deste partido (não os únicos, mas os que estavam mais próximos dele).
“Tenemos que dizer lo que
siegue”, discorreu José Battle y Ordoñez à guisa de conclusão daquela
discussão, “enquanto usted, proletário, está alienado, reclamando da vida, de
la malvadeza del ser humano, existe vida inteligente tentando organizar la
fuerza independente del proletariado. Enquanto houver sociedade de classe estes
sujeitos existirão y estarão trabajando em prol da libertación incondicional de
toda la humanidad. Seria muy interessante procurar-los e somar fuerzas com
ellos. E para aqueles cujo peso da inércia, del individualismo y del miedo são
desproporcionais, seria mucho más importante que, pelo menos, não los
atrapalhassem com tais inconvenientes”.
Capítulo 8
Enquanto houver Sol
O ano de 2085 começou com uma
conjuntura política favorável para as mobilizações dos trabalhadores. Os
escândalos de corrupção do governo, o arrocho salarial, o aumento da miséria e
a explosão de grandes atos de rua que tinham como eixo a denúncia do aumento da
carestia de vida, cujo estopim havia sido o aumento da passagem do transporte
público, inflamaram o ânimo dos trabalhadores em todo o subpaís. A burguesia
bateu cabeça, ainda que não a tivesse perdido completamente. O WP e a sua central sindical
paralisaram-se parcialmente. Novas possibilidades de luta e de agitação foram
se abrindo.
A indignação contra a
inoperância e as traições do sindicato dos telefônicos, denunciadas uma a uma
pela oposição sindical, transformou-se num princípio de movimento de base
independente, dirigido clandestinamente pela Justiça Proletária. Uílson envolveu-se corajosamente e de corpo e
alma em todas as tarefas que lhe foram dadas pela oposição. A empresa e o
sindicato tiveram que dar muitas “respostas” e, inclusive, abrandar o regime
interno de exploração e opressão. “Vocês irão ganhar três finais de semana
seguidos de folga e ainda poderemos discutir melhor as metas na próxima reunião”,
disse Christian sorrindo aos seus operadores. “Nunca vi isso nos meus 9 anos de
KIT”, falou uma operadora que já estava chegando aos 75 anos e que, pulando de
emprego em emprego, contava o tempo de contribuição para poder se aposentar. Uílson
se deu conta de que isso era apenas uma forma para melhor acalmar os ânimos dos
operadores, que estavam bem tensos e propícios a “loucuras”, segundo as
palavras dos dirigentes do sindicato. Um clima elétrico pairava no ar. Uma
fagulha desencadearia uma explosão. E ela não tardou a acontecer: dois grupos
de 10 operadores foram demitidos com centenas de desculpas “legais”, mas a
verdade era que eles simplesmente haviam se filiado ao sindicato e começavam a
pegar os panfletos da oposição sindical na entrada da empresa.
Uma greve foi desencadeada no início de 2086 liderada
informalmente pela oposição. A repressão interna não surtiu o efeito desejado
porque a conjuntura nacional ajudava a sustentar o clima psicológico e a
disposição para o movimento grevista. Contudo, a pressão avassaladora do
aparato do governo, das centrais sindicais e do sindicato dos telefônicos
acabou por isolar o movimento, que heroicamente resistiu por um mês através de
um misto de luta política e jurídica, denunciando não apenas as más condições
de trabalho, a exploração, o arrocho salarial, a opressão interna e o assédio
moral, mas também os acordos bélicos da KIT e a carnificina que ela patrocinava
em outros países. Neste mês, muitos operadores avançaram a consciência mais do
que em toda vida. Era “impressionante, extraordinário!”, dizia Uílson para os
companheiros da Justiça Proletária.
***
Quantas atrocidades humanas o
Sol acompanhou? Quantas mudanças, ascensos e quedas de impérios ele já
iluminou? Por quantas guerras, crises e revoluções já passou? E quando tudo
parecia perdido e sem saída diante da escuridão aterradora, lá vinha ele
novamente no dia seguinte. E antes de qualquer trabalho humano ou do antropocentrismo
arrogante, nós só estamos aqui graças a ele. Que ironia do universo!
A vida do nosso Sol é estimada em cerca de 14 bilhões
de anos. Já fusionou hidrogênio em hélio há pelo menos 4 bilhões de anos. Neste
processo, a cada segundo, mais de 4 milhões de toneladas de matéria são transformadas
em energia dentro do núcleo solar, o que equivale a converter aproximadamente
100 massas terrestres em energia; e tudo isso em um segundo, desde a sua
formação até a nossa era. O Sol ainda trabalhará ininterruptamente por mais 10
bilhões de anos, pelo menos, quando se transformará em uma gigante vermelha e,
finalmente, em uma anã branca, quando o ciclo do Sistema Solar e nele, o da
Terra, chegará ao fim em uma agonia de 100 milhões de anos. E tudo para quê?
Perguntarão os céticos niilistas! Para terminar desse jeito? Não vale a pena!,
dirão certamente. Mas a vida vale a pena, apesar de tudo; e lutar por ela, pelo
direito de viver e de ser, é o que a faz tão bela.
Que tipo de força move o Sol neste trabalho de Sísifo
ininterrupto? A ciência ainda não consegue explicar, todavia, Uílson arriscava
uma resposta: provavelmente seja a mesma força que arde no peito dos seres
humanos e que impulsiona a humanidade para frente, apesar de todas as ininterruptas
tentativas reacionárias de fazê-la estagnar ou retroceder. A energia que
impulsiona a luta pela vida e pela liberdade dos céticos é oposta a dos
revolucionários, concluiu Uílson enquanto olhava para a estrela Sirius, da
janela de seu apartamento. A duração da energia de um cético é como o tempo de
vida de uma cigarra, que dura 24h e morre antes do anoitecer; a dos
revolucionários é como a do Sol, que dura bilhões de anos e sobrevive à
escuridão das suscetibilidades, desesperos e frustrações.
Os revolucionários russos do início do século 20
diziam romanticamente na sua literatura que iriam acender um novo Sol. E realmente
acenderam! Se ele durou pouco ou se apagou parcial ou totalmente, faz parte da
dialética do universo, dos avanços e retrocessos, do qual a História, como um
mar, é repleta. Uílson e os companheiros da Justiça
Proletária queriam acender um novo Sol. Se conseguiriam ou não é a
disjuntiva que se colocam todos aqueles que se apequenam antes de tentar, que
desistem antes de descer ao campo de batalha, que morrem de véspera, que estão
satisfeitos com a mediocridade do “possível”, que na verdade é apenas o
aceitável. A energia liberada na tentativa de mudar, de revolucionar uma
sociedade injusta, por menor que seja, já é suficiente para acender um novo
Sol. Tal qual as estrelas, que brilham a anos luzes e só chegam aqui depois de
anos viajando pelo espaço, talvez a luz deste novo Sol só chegaria aos outros
seres humanos após muitos anos, quiçá séculos? Pouco importava. Em épocas de
reação e declínio o exemplo do que é certo vale mais do que tudo e serve para
iluminar, como um Sol, a barbárie e incendiar de vergonha a indiferença, a
negligência e a conivência! O amanhã pode se tornar o hoje; a História pode ser
desesperadoramente lenta, mas ela também se precipita. Desde que escrupulosamente
planejados e sonhados, os sonhos mais distantes e aparentemente impossíveis
podem se tornar realidade. A única condição para isso é que ele não seja
individual, mas social! Os céticos nunca entenderão! Eles serão sempre a
matéria prima para os exploradores e opressores puxarem o cordel do fio
histórico, aproveitando-se do seu queixume sem fim.
***
No dia seguinte após o fim da
greve, Uílson e mais oito colegas que se envolveram com os piquetes grevistas
foram chamados na sala de vidro. Pela primeira vez Uílson não olhou para ela
com medo, mas com a cabeça erguida, já esperando corajosamente por sua sentença
de morte. Sentado atrás da mesa estava Wesley Giovanni, acompanhado de dois
supervisores com semblantes preocupados. Sem delongas, ele puxou da gaveta a
carta de demissão de Uílson e dos demais colegas que lhe acompanhavam. Agora
Uílson não era mais visto como dócil e submisso, mas uma ameaça que não valia mais
nenhum investimento inicial de formação. “E por que uma ameaça?”, ele pensou
enquanto olhava Wesley Giovanni cumprir os rituais burocráticos de
preenchimento de formulários. Simplesmente por pensar? Por falar? Por sentir?
Possuído por uma indignação
indescritível, Uílson levantou-se da cadeira onde estava sentado e discursou de
dedo em riste, para toda a operação escutar. “Que democracia é essa onde nós
não podemos decidir nada e somente trabalhar feito burros de carga? Onde fingem
não ver as pessoas morrendo de fome ao nosso redor? Onde consumir é mais
importante do que viver, dividir, compartilhar? Onde temos que agüentar calados
o assédio moral diário para nos fazer trabalhar cada vez mais e ganhar cada vez
menos! Onde a legislação só existe para nos escravizar e é cumprida contra nós;
enquanto que eles”, Uílson apontava para a sala de vidro, “vivem segundo a sua
própria lei. Passamos todo o ano fazendo um trabalho do qual não gostamos, que
nos é imposto e não podemos sequer opinar sobre ele! E vocês?”, disse Uílson
com os olhos vermelhos de raiva e apontando para todos os operadores que lhe
olhavam, vidrados; “suportam quietos esta agressão moral dos patrões, dos
supervisores, dos gerentes e dos gestores, se submetendo a esta ditadura
disfarçada por medo de perder o emprego! Que vida nós teremos assim,
companheiros?”. Wesley Giovanni olhava estarrecido para o agitador
incontrolável enquanto apertava insistentemente o botão de alarme dos
seguranças.
“Você acabou de vender um carregamento de munição para
uma nova guerra no Sudão, não é mesmo?”, gritou Uílson para um operador que
estava sentando em um posto de atendimento junto à entrada da sala de vidro. “E
você?”, virou-se para o do outro lado do corredor, “acabou de vender um combo
de armamentos pesados para um traficante do Rio de Janeiro ou para o exército
afegão?”. Muitos operadores já estavam de pé, completamente surpresos; alguns
sorrindo e gostando de ouvir tudo aquilo, outros tremendamente assustados. “Lembrem-se”,
concluiu Uílson, “enquanto vocês vendem tudo isso em troca de um salário
medíocre, eles lucram bilhões e bilhões através do nosso suor e sofrimento. E
tudo isso para que? Para desencadear uma nova guerra de rapina em algum lugar
do mundo para lucrar ainda mais”.
Dez seguranças entraram pelas duas portas da operação
e agarraram rapidamente Uílson e renderam os demais operadores demitidos.
Porém, Uílson seguia gritando e esperneando, com o dedo em riste: “Não se
esqueçam do que eu falei! O único caminho é a organização e a luta! Exijam a
imediata abertura das contas dessa empresa! Os patrões não entendem a linguagem
do ‘diálogo’. Ela é invocada somente para nos acalmar e nos adoçar perante a
opressão, a humilhação e a exploração”, gritou Uílson quase sem voz, engasgado
pelo enforcamento somado a uma chave de braço que um dos seguranças lhe
aplicava, “eles só atenderão nossas reivindicações e o nosso direito de viver
com luta, paralisação e greve! E com uma revolução!”, berrou ele no seu último
esforço contra o estrangulamento do segurança, que se aproximava da porta de
saída da sala de operação. Antes de sair, um dos operadores levantou e bateu
palmas, seguindo por focos isolados nos cantos da sala. Irromperam ao fundo
gritos de apoio: “Uílson, estamos com você!”, até estalar uma explosão de vozes
que gritavam o seu nome sem parar. Christian e os demais supervisores
mandavam-nos calar a boca, mas era inútil. Naquele dia o setor de Uílson
paralisou-se completamente, como se a greve se estendesse por mais um dia.
Somente com o apoio de todo o corpo de seguranças do edifício e da polícia, que
foi chamada as pressas, os supervisores conseguiram acalmar os ânimos. Wesley
Giovanni e seus dois comparsas assistiram tudo, trancados na sala de vidro até
o final do dia, como se estivessem recebendo o troco por todos os anos de
opressão e humilhação a que submeteram os operadores.
Uílson foi levado até o Palácio da Polícia, onde foi
fichado, fotografado, interrogado e, finalmente, após o apoio jurídico de um
dos advogados simpatizantes da Justiça
Proletária, foi liberado.
***
Após vencer todas as crises
existenciais e políticas, fruto da propaganda anti-socialista do imperialismo
feita através de diversos meios, Uílson entendeu que realmente havia um big brother que tudo via, controlava e
sabia. Ele estava por todos os lados e se conectava por mil tentáculos: desde
os supervisores e gestores a mando da patronal, que cuidam da produtividade,
das idas ao banheiro, do sono, do despertar, das horas de lazer, do que assistimos
ou acessamos na internet; passando pelos grandes meios de comunicação, que
grampeiam os caríssimos e “modernos aparelhos tecnológicos”, que sabem por onde
andamos ou deixamos de andar, com quem falamos ou deixamos de falar; até o World Bank, o Monetary International Fund (FMI) e o grande capital, que decidem o
que é bom ou não para o nosso e os demais subpaíses do mundo.
***
No dia seguinte ao da sua
demissão, Uílson panfleteou um material que denunciava a arbitrariedade de
todas aquelas demissões, a farsa democrática e a sociedade capitalista, que só
reservaria mais e mais cenas como aquela aos trabalhadores. Ao contrário das
outras vezes, Uílson distribui o material sem máscaras, o que causou grande
comoção entre os operadores que aguardavam na fila de entrada naquela manhã
cinzenta.
Dessa vez poucos operadores deixaram
de pegar o panfleto, apenas os temerosos incorrigíveis o rejeitaram. Ao ver que
todos os operadores estavam não apenas pegando o panfleto, mas manifestando
apoio aos demitidos, a direção da KIT mandou imediatamente seguranças desmontarem
aquela agitação. Uílson foi novamente preso e deportado pelos seguranças, mas
antes de ir conseguiu distribuir todos os panfletos, graças a ajuda dos
operadores que os pegaram e os distribuíram clandestinamente entre si.
Com a demissão da vanguarda
agitadora a paz dos cemitérios retornou para a KIT. A mão de ferro do aparato
repressivo e ideológico da empresa entrou em ação. Muitos
operadores foram demitidos para servir de exemplo. A direção não mais toleraria
um movimento como aquele novamente. As metas e a opressão aumentaram; o assédio
moral e o desconto salarial se intensificaram.
“De que serviu todo aquele movimento?”, perguntava
Christian para dois operadores que o ouviam no fumódromo. “Todos os principais
envolvidos foram demitidos e tudo terminou como antes, hi, hi, hi!”. Um
operador que ouviu a conversa de longe se intrometeu: “Muita coisa mudou de lá
para cá! Os operadores levantaram a cabeça, apesar de tudo! Nós não aceitaremos
mais qualquer desmando como natural e a direção da empresa em diversos assuntos
pisa em ovos”. “Você está louco!”, gritou Christian inconformado por ser contrariado
na frente de sua platéia de ocasião, “provavelmente queira ser demitido, não é
mesmo? Eu que ajudo minha família preciso muito desse emprego e zelo por ele,
ao contrário de você!”. Christian falava tudo aquilo sem nem saber quem era o
seu oponente. A discussão durou mais alguns minutos, com tréplicas e réplicas,
mas não foi muito além, dado o nível intelectual e moral de um dos
interlocutores. No final daquela semana Christian foi chamado na sala de vidro
e Wesley Giovanni apresentou seus papéis de demissão. “Agradecemos os seus
serviços, mas a direção está entrando num momento de contenção de gastos!
Contamos com a sua compreensão de supervisor”, falou o gestor para um Christian
de olhos marejados.
***
Ao contrário do que José Battle
pensava, Uílson não se abalou com a demissão, a perda de alguns escassos
benefícios e do apartamento em um bairro razoável da capital. Durante alguns
meses Uílson morou como convidado na casa dos companheiros da Justiça Proletária até conseguir um novo
emprego de repositor de estoques em uma grande rede de supermercados. “A
solidariedade de classe e as moções de apoio que recebi dos meus camaradas foram
fundamentais! Me mantiveram de pé e com a cabeça erguida!”, dizia Uílson aos
militantes mais novos cada vez que lhe perguntavam sobre sua história. O
salário do novo emprego, como já se esperava, era miserável, mas conseguia lhe
sustentar e lhe garantir uma nova residência em um bairro próximo ao de
Catarina, com quem começou a namorar e a desenvolver uma vida em conjunto. Desta
vez algo lhe dizia que tudo seria diferente, afinal de contas, o relacionamento
estava baseando-se em outros alicerces e objetivos de vida.
O ciclo reiniciou-se. José
Battle e Eduardo panfleteavam mascarados no supermercado de Uílson; e Uílson e
outros companheiros de organização panfleteavam no supermercado onde trabalhava
José Battle. A passos lentos o núcleo foi crescendo e incorporando trabalhadores
de outras categorias.
Numa fria manhã de julho de
2087, Uílson abriu o e-mail da Justiça
Proletária e leu o que segue:
Olá, peguei um panfleto de vocês nesta semana e me identifico com o
conteúdo. Gostaria de conhecê-los melhor. Aguardo contato.
Uílson conhecia o sujeito. Era
um colega de trabalho, do setor de reposição de mercadorias. Respondeu solicitamente
o e-mail e combinou um encontro para o final daquela semana, num bar próximo do
supermercado onde trabalhavam. Levantou-se da cadeira, espreguiçou-se e foi até
a janela. Parou por um instante olhando a rua. Sorriu. Soprava um ventinho
fresco e os raios de Sol acariciaram-lhe o rosto.