quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

2084

Capítulo 1
O sono letárgico

                Dormir. Em qualquer época, dormir é um dos principais tranquilizantes para as dores da vida. Alivia o estresse corporal e mental. O calor das cobertas: uma reprodução do útero! A negação da realidade, sempre perigosa! É a sedução de Thanatos, que mostra um caminho para o fim das dores, do sofrimento sem fim que é existir e se defrontar com a vida. A doce sensação do sossego absoluto!
Acorde Uílson, são 5h30min! O mal estar que percorre o corpo à mínima ideia de ter que despertar, sair dessa letargia gostosa, e caminhar para o purgatório do dia-a-dia, causa calafrios perturbadores. A falta de um norte, de não sabermos onde estamos; a sensação de um profundo desamparo.
Acorde Uílson, são 5h35min! A realidade que vivemos nos sonhos é muito atraente e convincente. Como pode haver outra realidade? Queremos o silêncio! Tudo está em paz; e quisera nós pudéssemos manter tudo sempre assim. Dorme Uílson, esquenta o teu coração! Este mundo cão não te merece!
Acorde Uílson, são 5h40min! Última chamada! Você vai se atrasar! Por que por um único dia não podemos ser donos dos nossos desejos? Por que sempre tão cedo? Durma! Mergulhe profundamente no oceano dos sonhos, onde a água é quente e relaxante! Lá não existem gerentes, supervisores, capatazes, competidores, dores...
Acorde Uílson, são 5h45min! Alerta vermelho! Você vai se atrasar! Um rasgo, um colapso, uma passagem truncada. Onde estou? Quem sou eu? O contraste do olhar encontra a tela da televisão com a mensagem do robô despertador dizendo: “Levante-se imediatamente, Uílson, você vai perder o transporte! Primeiro Air Bus saindo do terminal em 15 minutos!”.
       Uílson Silva esfregou os olhos. O céu matinal estava verde acinzentado e no horizonte desenhava-se um temporal. Ele levantou-se, retirou o cartucho de oxigênio do respirador eletrônico e colocou um novo. Dirigiu-se ao banheiro, escovou os dentes e depois vestiu-se vagarosamente. Da sala o robô alertou: – Cinco minutos restantes para não perder o Air Bus!
O robô despertador fazia parte do controlador doméstico, uma espécie de marcação sensorial de um instrumento organizador e auxiliar do seu trabalho, cronometrando horários, tempos de lazer, de idas ao banheiro; servia também como despertador. Recebera o controlador no ato do seu contrato de trabalho. Não questionava o porquê daquilo, mas no fundo sentia-se incomodado. Não havia como não se sentir! Todos os seus colegas também sentiam o mesmo, mas ninguém podia falar absolutamente nada.
                Ao sair de seu edifício, Uílson somou-se a uma multidão de homens e mulheres que se dirigiam ao trabalho antes do sol nascer para ganhar o “pão nosso de cada dia”. A maior parte, ainda sonolenta, andava como uma manada de gado dirigindo-se ao matadouro. Só que nesse caso a morte era em prestações, minguando dia a dia, hora a hora. Caminhavam automaticamente até o terminal de onde saíam as naves-transportadoras, conhecidas como Air Bus. No primeiro horário elas saíam pontualmente, mas sempre abarrotadas de gente.
Todos passavam suas digitais num micro computador de bordo e adentravam as últimas maravilhas da tecnologia: ônibus que flutuava! Uílson foi até o último banco e sentou-se ao lado de uma mulher de meia idade, de aparência triste. Mal se olharam. Em menos de 5 minutos o Air Bus estava totalmente lotado, mais parecendo uma lata de sardinha flutuante. A mulher se debruçou sobre Uílson em razão do peso que um passageiro de pé exercia sobre ela. Debruçado no vidro, com o olhar perdido dentre aquelas milhares de vidas perdidas, Uílson iniciou sua viagem de todos os dias.
Dentro do Air Bus ninguém se falava. Todos compenetrados nos seus microcomputadores de bordos acoplados aos seus celulares, que também faziam parte dos controladores domésticos cedidos pelas empresas, vendido pela mídia como o que havia de mais moderno em tecnologia. Neste mesmo Air Bus das 6h15min existia um sujeito que se rebelava sozinho e inconscientemente contra esta solidão em massa. Falava alto coisas disparatadas, gesticulava, cantava. Todos apenas se entreolhavam assustados, alguns com ares de horror, e depois voltavam a se fechar no seu mundo e o Air Bus seguia rasgando os céus da cidade, que já estava quase desperta.
Uílson olhou pela janela as primeiras gotas que começavam a cair do céu. O último temporal tinha sido uma grande enxurrada que se transformou em chuva ácida, destruindo e corroendo a moradia mais humilde de muitas pessoas, sobretudo nas slums cities. Será que essa pequena catástrofe natural se repetiria hoje? – pensou consigo mesmo. Ele não estava preparado. A sorte era que desembarcava próximo da empresa. Olhou para o lado como que querendo conversar, mas ninguém lhe correspondeu. Acionou o feed de notícias do seu celular. Várias mensagens, repetitivas, vazias, algumas patéticas! Propagandas de uma felicidade fictícia. Ele não precisava deste tipo de sublimações naquela hora da manhã. Guardou o celular no bolso e fechou os olhos.
***
Uílson Silva era um sujeito pacífico e neutro. Não se metia em brigas, não saía à noite, não discutia, nem tinha opção política; respeitava seus vizinhos e colegas, trabalhava de manhã até de noitinha e não seguia o seu coração, apenas a rotina: da casa para o trabalho, do trabalho para casa. Pensava ser feliz; uma felicidade morna que ele não sabia bem definir. Refletia o seu tempo: profundo vácuo existencial preenchido por necessidades artificiais, mas sem nenhum tipo de questionamento mais crítico. Encontrava um pouco de “humanidade” nas artes e na leitura de livros. “Tudo tem o seu tempo, e as coisas vão melhorar”, ele pensava sem muita confiança. Não era casado. Seu último relacionamento, que durou 2 anos e meio, havia lhe deixado profundas sequelas. Após alguns meses de agonia, foi se apagando aos poucos até descobrir que estava sendo traído. A partir daí se desencantou profundamente com o “amor”, caindo em uma terrível depressão que era um marco em sua vida. Ele costumava falar às pessoas próximas: “antes do fim do meu namoro; depois do fim do meu namoro”. Sentiu medo de envolver-se novamente para não vivenciar todo aquele sofrimento, pois julgava que as cicatrizes estavam fechadas, portanto, o assunto estava encerrado! Depois disso se envolveu com algumas outras mulheres, mas sem maiores expectativas. Foram relacionamentos tão descartáveis quanto uma garrafa de refrigerante. Satisfazia os seus desejos e depois se desinteressava. Talvez estivesse reproduzindo o que tinham feito com ele – refletia. Como resultado, levava uma típica vida de solteiro. Freqüentava chats e encontros virtuais, pela internet, e na vida real sentia um pouco de medo quando se aprofundava algum tipo de relação humana, seja ela sexual ou mesmo de amizade.
Uílson trabalha na mega-empresa multinacional Killer Instinct Technology, mais conhecida como KIT, onde é operador de call center, vendendo lotes de armamento de última tecnologia. Cumpre regularmente suas metas, muito embora não seja o melhor operador de sua unidade, beirando até mesmo as raias da mediocridade. Nunca questionou qual a finalidade de sua função social, apenas a executava para ganhar o seu salário, o auxílio habitação e os tubos de oxigênio. A KIT é, segundo a definição do seu portfólio publicitário, “uma gigantesca empresa produtora de armamentos pacificadores, utilizados para promover e manter a democracia nos quatro cantos do planeta”. Produz suas mercadorias através de robôs controlados por apenas um operário (substituído por turnos), que comanda todo o maquinário por meio de um computador central.
Este inovador progresso técnico é movido por um novo combustível, conhecido como Residual Fuel. Em um passado não muito distante, era popularmente chamado de “chorume”. Foi a fonte mais barata encontrada pelos engenheiros e economistas após o esgotamento dos poços de petróleo. Por ser de fácil obtenção, o Residual Fuel permite compensar a queda da taxa de lucro, que vinha ocasionando grandes “prejuízos” às empresas multinacionais. No que tange à obtenção de matérias primas, dos resíduos tóxicos e da poluição resultante deste novo maquinário, não vêm ao caso explanar no momento, basta dizer que a KIT, ainda segundo o seu portfólio, “foi premiada pela International Association of Green Peace por sua preocupação ambiental”, e também, “saudada pelo governo como uma grande colaboradora na redução dos gases de efeito estufa, trabalhando para concretizar a meta de diminuir a emissão de gases poluentes em 1.250% até os anos 3000”. A mídia, o governo e os acionistas da KIT estão otimistas! Por isso, já indicaram a empresa de antemão ao Prêmio Nobel Internacional da Preservação da Natureza em razão destes esforços ambientas, sem muitos resultados práticos, mas que “serve de exemplo” (para quem? Se perguntava Uílson). Esta nova fonte de combustível tem acelerado alguns impactos ambientais, que são ignorados pelo governo e por alguns cientistas, pagos pelas corporações oficiais, que afirmam ser natural o Planeta Terra viver um ciclo a cada 500 mil anos de chuvas ácidas, vendavais elétricos, grandes secas, deslizamentos de encostas e tsunamis sazonais. Os gases poluentes escassearam o ar respirável, obrigando a população a consumir tubos artificiais de oxigênio, fornecido apenas àqueles que estão empregados como uma parte dos benefícios “salariais” – o item dos contracheques, chamado também de auxílio-oxigênio, que dá direito a receber também os respiradores eletrônicos.
                É por tudo isso que Uílson, apesar dos pesares, sente-se tranquilizado por ter emprego. A situação nos demais estados do seu subpaís é calamitosa. Foram criadas as zonas de reabilitação nas periferias dos grandes centros urbanos para despejar hordas de seres-humanos sem trabalho e sem perspectiva de vida. A criminalidade nestes bairros chega a 800% e estão dominadas pelo tráfico de drogas, de armas, de comida, de remédios e de tubos de oxigênio. Estas zonas chegam a conformar países, como é o caso do departament of Bolivia, dentre outros, cujas fronteiras são demarcadas por muros gigantescos e intransponíveis, controlados por soldados e por radares ultra-sônicos. Estas regiões foram sorrateiramente excluídas dos livros didáticos escolares e do telejornal da mídia oficial. Uílson apenas viu alguma menção sobre elas na escola, nas aulas de geografia, mas sempre que saía do colégio – que odiava, pois se sentia como um prisioneiro – não pensava mais no assunto.
                O subpaís de Uílson Silva era agora chamado de State of Brazil e estava subordinado à Organization of American States, liderada pelos United States of America (EUA). Todo o presidente eleito no Brazil era um membro de voto consultivo no parlamento da OAS, que, por sua vez, enviava um representante para a instituição internacional que dirigia as sucursais continentais, conhecida como World’s Parliament of United Nations, cuja cúpula era controlada pelo World Bank e pelo Monetary International Fund – órgãos onde as decisões eram realmente tomadas (já haviam indícios de que outros países do mundo, como China e Rússia, estavam fundando um parlamento mundial paralelo, que disputava com o World’s Parliament of United Nations a hegemonia mundial). Mais da metade do que o subpaís arrecadava em tributos e impostos era destinado para o World Bank, não tendo nenhum retorno de investimento social além de tecnologia de segunda mão. Os serviços públicos não mais existiam depois que foram privatizados, um a um, desde o final do século 20 até o início da década de 2030. Excluindo os membros da grande burguesia, as “pessoas comuns”, para conseguirem estudar, serem atendidas em um hospital ou terem tratamento de saúde, precisavam estar empregadas ou possuir algum tipo de renda. Mesmo recebendo salário era impossível pagar de uma só vez por estes “serviços públicos”, por isso, muitos bancos davam créditos para “possibilitar acesso” a eles, gerando futuras dívidas impagáveis para a maioria das famílias brasileiras. Estas dívidas viravam verdadeiras bolas de neves.
Toda esta estrutura política e econômica era obscura para Uílson, que nunca procurou conhecê-la e estudá-la melhor. Aceitava-a como inquestionável, tal como as leis da natureza. Se submetia a ela como quem se submete a uma força divina: votava, de 4 em 4 anos, cumprindo suas “obrigações de cidadão livre”. Como todos brazilians citizens, Uílson sentia-se desconfortável com a política – sobretudo com a corrupção, que imaginava rolar solta nos bastidores, mas sem ter como provar –, atribuindo todos estes problemas à causas esotéricas, extraterrenas, cujo um reles indivíduo comum, como ele, jamais poderia interferir; que dirá solucioná-las!
                O atual Presidente do State of Brazil era ligado ao Workers Party (as siglas dos partidos – bem como de várias outras convenções – passaram do português para o inglês visando “facilitar” a comunicação nas instituições políticas internacionais). Era o 4º presidente operário e o 2º negro da história do subpaís. O WP controlava todo o movimento sindical através da maior central sindical, que estabelecia uma relação estreita com as empresas nacionais e multinacionais, inclusive com a KIT, sendo considerada a única oficial (ao total existiam 29 centrais sem nenhuma diferença substancial entre si). Este era o principal trunfo do WP frente a todos os demais partidos. Todas as 75 siglas político-partidárias eram outro mistério para Uílson, que não via absolutamente nenhuma diferença entre elas. Por essas e por outras é que Uílson não “se metia em política” e considerava que isso era um antídoto à toda a podridão daquele meio. Pensava que, desta forma, conservaria a sua pureza humana; afinal de contas, “não valia a pena perder tempo com isso”.
***
Após desembarcar do Air Bus, Uílson dirigiu-se a entrada da KIT, onde já se formava a tradicional fila de todas as manhãs. Uma seqüência de olheiras fundas em rostos entristecidos, banhados à remédios de tarja preta ou qualquer outro tipo de droga. Todos esperavam para passar pelas roletas eletrônicas, onde eram “reconhecidos” e revistados por um Raio X identificador. Logo após esta breve “identificação”, adentravam a um grande saguão, com um piso lustroso, espelhos pelas paredes e colunas de mármores que afunilavam o caminho até os elevadores panorâmicos. No prédio da KIT existiam 15 andares e cada um deles tinha uma sala de operações de call center: compra e venda, cobrança de faturas, crédito, armazenamento e retenção, suporte técnico, relações públicas, serviço de atendimento ao “cliente”, etc. Uílson trabalhava no 13º andar, o setor da cobrança e venda. Sempre que desembarcava dos elevadores ele ficava olhando perdidamente para o Rio Guaíba – que estava mais espumoso, marrom e “morto” do que nunca, lembrando um grande rio Tietê – através dos grandes vitrais de entrada da sua operação que lhe proporcionavam uma visão panorâmica, inclusive das espessas nuvens cinzas amareladas lançadas, provavelmente, pelo Pólo Petroquímico de Triunfo, lá ao longe, do outro lado do rio. Contudo, dentro da sua sala de operações, os postos de atendimentos (PAs) eram tão espaçados e longe das janelas que era impossível “perder tempo” olhando para a rua, sem falar na pressão constante dos supervisores e na webcam que cuidava da produtividade dos operadores em serviço.
Naquele dia a entrada dos funcionários estava transcorrendo sem nenhum sobressalto. Os gerentes e supervisores da KIT entendiam por “sobressalto” a aparição dos militantes sindicais de oposição, que ninguém sabia ao certo quem eram, pois panfleteavam mascarados e da forma mais rápida possível. A panfletagem sindical era rigorosamente proibida. Claro que não diziam isso abertamente; tanto as leis da empresa quanto as sociais previam “liberdade sindical”, contudo, qualquer operador que fosse descoberto exercendo esse tipo de “direito” era sumariamente demitido, perdendo salário, tubos de oxigênio e o direito à habitação, tendo que se deslocar inevitavelmente às Slums cities. Se quisesse fazer movimento sindical, que se incorporasse ao sindicato dos telefônicos (que era o sindicato oficial da KIT). Os próprios operadores que pegavam o panfleto eram mapeados e passíveis de demissão, só que com outras justificativas. Uílson não pegava nenhum panfleto porque naturalmente sentia medo. Com o tempo, foi ficando cada vez mais curioso, tentado a se arriscar para ver o que havia de tão proibido neles. A maioria dos trabalhadores da KIT, contudo, não gostava deste “tumulto”. Sempre que uma panfletagem relâmpago acontecia, os supervisores ficavam mais autoritários, agressivos e ameaçadores. Consequentemente, muitos operadores viam estes “agitadores mascarados” como inimigos. Alguns diziam: “se não fosse por estes baderneiros a gente teria tranqüilidade para trabalhar”. Muitos queriam agradar os supervisores entregando os panfletos para eles ou tentando descobrir a identidade dos “baderneiros”. Grande parte dos operadores eram jovens oriundos das universidades e, por não encontrar trabalho na sua área, eram absorvidos pelo setor de serviços, como os call centers. O peso deste setor era sentido pela empresa, que já havia aberto convênio com as diversas universidades de rápida conclusão, mesmo que o curso não tivesse nada a ver com a função que exerciam na KIT. O próprio Uílson era usuário deste convênio, cursando Filosofia na Universidade Evangélica (UE), onde fez um único amigo, com quem debatia questões transcendentais e, às vezes, políticas. Os familiares de Uílson – em especial os seus tios, que era com quem ele mais mantinha contato – consideravam um curso sem futuro e recomendavam estudar direito, administração de empresas, design ou engenharia. Ultimamente sentia-se desmotivado com os estudos em função do tempo, pois a esmagadora maioria das cadeiras era “à distância”, para não atrapalhar as horas de trabalho.
Após passar pelo Raio X identificador, Uílson dirigiu-se aos elevadores panorâmicos, sendo seguido pela massa de operadores do seu turno. Quando entraram na sala de operações, o turno da noite estava se preparando para sair. Esta manobra era sempre um grande evento; quase um realinhamento militar. Centenas de operadores saíam juntos, com olhar desesperado para se livrar daquele fardo, enquanto que os novos operadores assumiam seus lugares com aflição, colocavam o headset e um identificador de digitais abria o programa com as metas já exibidas em um canto da tela do computador.
Os operadores podiam ganhar comissão de acordo com as suas vendas. A venda por telefone ou pela internet de 1 caixa de armamento pesado era a responsável pela maior comissão. Porém, havia diversas outras “promoções”: metralhadoras, uzis, fuzis, bombas, cartuchos, granadas, balas de diversos calibres. Outro setor era responsável pela venda de aviões, tanques, jipes, radares, etc. O setor de Uílson era soft, vendendo apenas “armamentos leves”. Por conseguinte, a comissão do setor hard era muito maior, mas somente alguns operadores conseguiam ascender até aqueles postos de atendimento e venda. No porfólio da KIT se fala em competência, estudo e dedicação, no entanto, todos operadores sabiam que a verdadeira seleção era feita através de preferências sexuais dos supervisores, que seduziam e se aproveitavam das operadoras numa verdadeira rede informal de prostituição dentro da própria empresa. Ninguém ousava questionar alguma dessas decisões, e desde que o programa de satisfação do funcionário havia sido instalado nos computadores, gravando as falas informais dos operadores, os simples questionamentos que corriam soltos à boca pequena acabavam sendo punidos com a demissão.
O regime de trabalho era garantido por câmeras, controle do tempo e das idas ao banheiro. Quando um operador cansava e “fazia corpo mole” – para usar o jargão dos supervisores e dos grandes meios de comunicação da época – aparecia uma gravação em seu computador contando o tempo parado. Se mais de três gravações aparecessem num mesmo dia o salário era descontado impiedosamente. Cinco poderia resultar em demissão. Uílson sentia uma opressão engasgada na garganta, sobretudo quando dormia e seu sonho era infiltrado por diversos olhos e por aquela pavorosa sensação de estar sendo observado, além do medo permanente do desconto do salário e do desemprego. Porém, até certo ponto achava tudo isso normal, afinal, tinha um emprego e uma casa com oxigênio entubado – privilégio de poucos!
A manutenção do lucro da KIT era fruto da venda de armas, que ora eram vendidas para os setores do governo oficial e provinciais, ora para os setores “rebeldes” das regiões longínquas que estavam em guerra contra o governo oficial. Sendo assim, a empresa ganhava duplamente e sempre se apresentava como neutra, promotora do desenvolvimento tecnológico e econômico de “diversas regiões”. Uílson não procurava se inteirar mais da política da empresa em que trabalhava. Simplesmente cumpria a sua jornada de trabalho e corria para casa, para fugir do mundo, onde se escondia nas revistas eletrônicas ilustradas, nos jogos de computadores e nos livros de literatura. De todo o lucro da KIT, apenas 8% era destinado ao “pagamento” dos funcionários. Os 92% restantes eram enviados para os acionistas da indústria bélica que viviam muito longe – a maioria nos EUA e uma pequena parte em Israel.
No centro da sala de operações erguia-se, majestosa, uma sala de vidro, onde os supervisores faziam suas reuniões, ficavam observando os operadores trabalhar e, eventualmente, chamavam-nos para inquirições individuais. Ninguém ouvia o que falavam, mas podiam ver os seus lábios movendo-se, suas mãos gesticulando e as suas feições. Grande parte disso era apenas teatro; uma forma de intimidar os operadores para que trabalhassem mais. Pelo menos uma vez por dia as várias gradações de supervisores se reuniam na sala de vidro e ouviam a “ordem do dia” do supervisor-mor, o gestor, que era o subordinado direto da direção geral da KIT naquela sala de operações. Logo em seguida, saíam da reunião como cães de caça que farejaram uma presa encurralada. Recaía sobre a mente e os nervos dos operadores a cobrança das novas metas recém decretadas. Cada supervisor utilizava-se de suas armas para cobrar sua equipe: amigáveis ou ameaçadores; sorrindo ou com o semblante fechado; prometendo uma folga ou o corte salarial e a demissão.
***
Naquele dia, curiosamente não tinha havido nenhuma reunião até aquele momento. Todos trabalhavam mais leves, mas sempre receosos. Uílson reparou que os supervisores de algumas equipes chamaram individualmente alguns de seus operadores, cochichando-lhes ao pé do ouvido. Muitos se levantaram, colocaram seus headseats nas divisórias dos Postos de Atendimentos e entraram na sala de vidro. Uílson pensou que se tratava de mais uma daquelas reuniões que cobrariam mais produtividade e menos “corpo mole”. Ficou aliviado por perceber que não tinha sido incluído neste grupo. Baixou os olhos e centrou-se em seu computador. Ligou para três clientes e conseguiu fechar negócio com um.
De repente, um burburinho começou em um ponto da sala de operações. Uílson levantou seus olhos e viu que algo muito estranho acontecia na sala de vidro. Uma das operadoras que havia sido chamada para a sala gritava e gesticulava. Estava completamente vermelha e chorava. Os próprios colegas que estavam com ela tentaram acalmá-la, mas não conseguiram. Imediatamente dois seguranças entraram na sala de vidro e prontificaram-se, como que esperando por ordens. Toda a sala de operações tremeu. Um clima elétrico pairava no ar. Ninguém mais conseguia concentrar-se no que fazia. Todos ficaram com um olho no seu computador e o outro na sala de vidro. Os supervisores que estavam fora, sentindo o clima pesado, começaram a circular pela operação para intimidar os operadores, obrigando que prestassem atenção apenas no seu computador. Mas o clima dentro da sala de vidro parecia não ter solução e continuava a hipnotizar os demais operadores. Uílson suava frio! Sentia as suas mãos formigarem. Subitamente a porta da sala de vidro se abre e a operadora, que Uílson logo reconheceu como sendo Rotielle, uma amiga dos primeiros anos de operação, gritava aos prantos enquanto era arrastada pelos seguranças: “E agora? O que será de mim? Seus monstros! Seus monstros!”. E as lágrimas brotavam-lhe incessantemente; ela soluçava como uma criança. Os demais operadores que estavam juntos na sala saíram atrás dela em fila indiana, com uma cara não menos pior. Os seguranças acompanharam todos eles para fora da sala de operações. Enquanto passava aquele verdadeiro cortejo fúnebre, logo em seguida vieram os supervisores que passaram a encarar todos os operadores ameaçadoramente de cima. O clima opressivo tomou conta da sala de operações. Ninguém sabia ao certo o que havia ocorrido na sala de vidro, mas todos concluíram que só podia se tratar de uma nova demissão. Somente naquela semana já haviam sido 18 demissões sumárias, sem aviso prévio ou qualquer outra forma de advertência. Todos estes “entraves” legais foram extintos com a “reforma” trabalhista implantada algumas décadas antes através de uma constituinte; inclusive o seguro desemprego, que como alguns patrões alegaram nos debates do parlamento e dos tribunais, era uma forma injusta de sustentar gente improdutiva (um eufemismo para o que eles usualmente chamavam de “vadio”).
Na sua pausa de 10 minutos – que era rigorosamente cronometrada pelo computador –, Uílson saiu da sala de operações e desceu até o 8º andar, onde ficava o terraço, conhecido vulgarmente como “o fumódromo”, na esperança de conseguir alguma informação sobre sua amiga. Lá, os operadores fumavam, tomavam café e trocavam meias palavras sobre suas angústias e impressões do dia-a-dia; à exceção das vezes em que lá se encontravam alguns supervisores, que intimidavam e coagiam os assuntos, desviando-os para as conversas mais triviais. Também era em torno deste “fumódromo” que rondava como um espectro por todos os corredores da KIT a famosa lenda do operador que se suicidou atirando-se do parapeito do edifício. Ninguém sabia ao certo seu nome, seu setor, a data do fato. A empresa fez todo o esforço para abafar o caso até o ponto de parecer que tudo não passava de uma lenda. Quando entrou no “fumódromo”, um grupo de operadores estava em volta dos colegas demitidos. Rotielle estava bem ao centro e ainda soluçava, com os braços cruzados e a mão trêmula, tendo um cigarro entre os dedos. Ela dizia: “Não tenho dinheiro para chegar até o final do mês e os meus tubos de oxigênio praticamente se acabaram. Agora é só ar da rua! Como vou fazer com os meus filhos?” E desabou em um choro fininho e tortuoso.
Todos estavam horrorizados e tentavam consolá-la de alguma forma. Quando Rotielle encontrou seus olhos com os de Uílson, este pareceu congelar. Não sabia o que lhe dizer. Apenas sorriu timidamente, tentando-lhe demonstrar afeto de alguma maneira. Que tragédia! Que injustiça! Passou pela cabeça de Uílson, como um trovão, os panfletos dos “agitadores mascarados”, que certamente deveriam falar da situação da empresa e dos direitos trabalhistas, quase inexistentes. A sua curiosidade para conhecê-los aumentou. No instante que começava a sentir o sangue ferver, o bip do seu celular avisou que ele iria “queimar” a pausa de 10 minutos, e que isso significava mais corte salarial. Não esperou pelo elevador. Subiu correndo pelas escadas até a sala de operações. Até o final do expediente daquele dia trabalhou com um misto de ódio, impotência e medo.
***
Quando o relógio marcou 20h40min, Uílson desplugou-se do computador, passou o polegar pelo identificador digital e apressou-se para a porta. Uma massa de operadores saiu conjuntamente com ele, enquanto os trabalhadores do turno da noite preparavam-se para entrar novamente, com uma cara tão sofrida e acuada.
Do trajeto do terminal do Air Bus até a rua de seu edifício Uílson foi atormentado pela lembrança do episódio que vivenciara naquela tarde. Pelo menos uma vez por semana os operadores acompanhavam aquele tipo de cena. A tensão psicológica era constante; fazia parte da “política pedagógica” da empresa: o que veriam no dia de amanhã? Sentia-se exaurido, abatido, injustiçado! Como seria bom dormir; dormir profundamente, esquecer! O extremo cansaço que percorria o seu corpo quando deixou a KIT transformou-se numa agonia quando chegou em casa. Sentiu-se frenético e perdeu completamente o sono. Nem o banho quente demorado conseguiu aliviá-lo. Sempre tinha dificuldades para dormir, mas evitava dopar-se com remédios (tal como fazia a maioria dos seus colegas de serviço). Procurava ler e ver TV como forma de se acalmar, sem notar que a TV tinha sempre o efeito inverso. Geralmente lia e via TV ao mesmo tempo. Ora lia algumas páginas, ora olhava para a TV quando alguma luz saltava-lhe no rabo do olho. Finalmente abandonava completamente o livro ou o tablet e ficava vidrado, olhando para a TV. Seu ritmo corporal se acelerava e ele nem percebia. As horas voavam. Era exatamente o oposto do trabalho! O controlador doméstico avisava que já passava da meia noite e Uílson nem se dava conta e tampouco se importava. Era como se estivesse hipnotizado. Lutava inconscientemente contra o sono porque sabia que ao dormir baixaria a guarda e deixaria a “porta aberta” para saírem as más lembranças do dia, da semana, da vida!
Existiam apenas 14 canais de TV aberta e mais de 600 “fechados” na TV paga. Porém, os programas eram muito similares no essencial; ou seja, todos de baixo nível. Uílson não tinha condições financeiras para pagar por um pacote de “TV fechada”; aliás, nem tinha interesse. No passado já teve um pacote com alguns canais fechados e, de mais a mais, não sentia que os programas de TV lhe preenchessem o vazio da alma. Pelo contrário. Sentia que lhe intensificavam este vazio e a falta de perspectivas, sobretudo nos domingos que antecediam a volta ao trabalho.
                Mesmo assim decidiu continuar assistindo TV, já que era o único entretenimento disponível no seu curto horário de “lazer”. No primeiro canal que sintonizou se deparou com um programa religioso. Centenas de fiéis orando juntos com um pastor, que naquele momento procurava convencê-los insistentemente do poder divino contra as forças diabólicas que estava assombrando a sociedade. Suportou alguns minutos e trocou de canal. No outro, se deparou com o “Studio dos famosos” – um programa de fofocas e intriguinhas que envolvia o nome de pessoas “famosas” (atores, cantores, jogadores de futebol, lutadores) ligadas ao showbusiness da moda. A falsidade daquelas risadas, a desconexão total com qualquer vestígio do mundo real, bem como o caráter plástico e superficial dos assuntos lhe causou repulsa instantânea, mas mesmo assim suportou por alguns minutos. Sentiu alguns impulsos involuntários de curiosidade para saber mais detalhes da vida pessoal e da briga de um casal de atores, que foram flagrados se agredindo em público em uma praia famosa do Rio de Janeiro. Estava esperando os detalhes, mas as apresentadoras imediatamente começaram o anúncio publicitário de um novo cosmético que “iria revolucionar os cabelos e a pele das mulheres”. Então, trocou de canal.
                A outra emissora transmitia uma luta do campeonato de “vale-tudo” Gladiator Mortal Combat – 2084 Champions league. A luta já estava no 5º round e um dos lutadores estava no chão, agonizando, semi inconsciente, enquanto que o outro, de pé, lhe chutava a cabeça. Sangue espirrava por todo o octógono e a torcida, vidrada e em uma só voz, queria ver o espancamento até a morte. Uílson vidrou-se. Por um instante foi como se uma força magnética lançada pela TV lhe penetrasse na mente através dos olhos. Neste instante ele esqueceu de todos os seus problemas. Queria ver se o outro realmente iria chutá-lo até a morte. Mas não tardou muito para ser chamado de volta à realidade pela razão; e, então, conseguiu trocar o canal sentindo um terrível mal-estar pelo “edificante espetáculo” que acabara de olhar. Ao invés de ir relaxando para dormir, a cada troca de canal despertava mais. Era como se recebesse choques de adrenalina em um corpo amorfo.
                O outro canal – campeão de audiência – estava transmitindo o Meia Noite News. O comentarista econômico falava com o jornalista âncora: – Os índices econômicos estão melhorando. Nunca tivemos índices de desemprego tão baixos! Imediatamente Uílson pensou consigo mesmo: “O que explica então a demissão de toda uma equipe da KIT, os bolsões de misérias, as pessoas dormindo na rua, as slums cities?”.
A sua linha de raciocínio foi cortada pela fala do comentarista econômico: – Mas ainda não está bom! Temos muito o que avançar! Nossos custos de produção seguem muito altos se comparados com os do sudeste asiático. Não há como competir com os produtos daquela região se nós pagamos tantos privilégios aqui, como o auxílio-habitação e o auxílio-oxigênio. E isso só para citar alguns! É preciso desonerar o nosso empreendedor. Na China e no Kyrgyzstan, por exemplo, o auxílio-oxigênio foi abolido e substituído pela purificação de ar dentro do ambiente de trabalho, o que garantiu o aumento das receitas das grandes transnacionais e a satisfação dos seus empregados... Toda essa exposição era um tanto hermética para Uílson, que não era muito versado em economia. Agüentou enquanto pôde; então, trocou de canal.
Na outra emissora passava um filme de sexo explícito. No exato momento em que ele sintonizou o canal, o sexo chegava ao seu auge. Uílson sentiu-se extremamente excitado. Todos os seus impulsos mais animais entraram em convulsão. Foi neste instante que ouviu o controlador doméstico, ao sentir através de um sensor que Uílson ainda estava acordado, comunicar-lhe: “1h35min da madrugada! Tempo de sono restante: 4 horas e 25 minutos”. A profunda excitação sexual entrou em violento conflito com a consciência de culpa por ainda estar acordado e, sobretudo, por estar olhando um programa de TV tão rasteiro e animal como aquele.
Trocou de canal e viu um novo pastor de outra Igreja Neo Evangélica pregando. Mudou para outro canal e finalmente encontrou um programa interessante sobre ciência, que tratava das últimas descobertas sobre o universo. Aos poucos, os debatedores foram descambando da discussão científica para os raptos extraterrestres e aparição de discos voadores. E o programa guinou tanto que logo apareceram vítimas que comprovavam os seqüestros. Uílson logo se aborreceu e trocou de canal novamente. No outro canal estava um sujeito tomando banho em uma piscina de fezes, enquanto que os seus colegas de programa riam da sua situação como abobados. Sentiu náuseas! Até que lhe surgiu uma força interna súbita perante aquele show de degeneração humana. Juntou toda aquela energia e conseguiu desligar a TV. Ficou de olhos abertos, olhando para a escuridão do quarto, sentindo a pulsação do seu corpo e uma terrível sensação de desamparo pelo dia de amanhã.
Relances do dia de trabalho, da demissão dos colegas e dos olhares perscrutadores dos supervisores lhe cortaram a mente como um raio em céu sereno. Virou-se de bruços. Respirou fundo uma, duas, três vezes. Um profundo mal estar percorreu-lhe o corpo como se fossem nuvens cinzentas prenunciando um temporal. Finalmente apagou.
***
Dorme pobre amigo, dorme, enquanto te resta uma esperança. Dorme em paz, que os dias de desengano não tardarão a chegar. Mais cedo do que pensas, vais entender por que os capitalistas podem perfeitamente vender sua mercadoria com lucro, sem para isso precisar enganar a ninguém. Então, o teu sono não será mais tão tranqüilo assim. Verás, em tuas noites, o capital, como um pesadelo, que te oprime e ameaça sufocar-te. Com os olhos aterrorizados vais vê-lo crescer, como um monstro com cem dentes de vampiro penetrando nos poros do teu corpo, para chupar o teu sangue. Tomando proporções desmesuradas e gigantescas, de sombrio e terrível aspecto, com olhos e boca de fogo, vais vê-lo transformando suas garras em uma enorme tromba aspirante em que vão desaparecendo milhares de seres humanos: homens, mulheres, crianças. De tua fronte corre agora um suor de morte, porque o monstro está se aproximando, para agarrar a ti. Mas teu último gemido será abafado pelo riso apavorante do monstro, satisfeito em sua gula. Quanto mais próspero, mais desumano…[1]

Capítulo 2
O lento alvorecer

                Muitos dias como aquele se passaram na vida de Uílson Silva: da casa para o trabalho; do trabalho para casa. O veneno corrosivo da alienação e da rotina ia pouco a pouco lhe asfixiando. Uílson sentiu a necessidade de romper aquele elo; precisava de uma pitada de autonomia, de “ar puro”, de vida! Ao contrário de outros momentos de sua existência, desta vez a necessidade de mudança não lhe causou medo. Ele não quis fugir deste sentimento e resolveu encará-lo, ainda que neste momento não tivesse plena consciência disso.
Eis que mais um dia comum começava. Na fila de entrada da KIT, ainda sonolento, Uílson esperava para passar pelo Raio X identificador, quando subitamente escutou um burburinho vindo de trás. Virou-se imediatamente e viu um “agitador mascarado” distribuindo panfletos, operador por operador, com grande destreza e rapidez. A maioria dos operadores não pegou o panfleto. Os que pegaram por susto, imediatamente o atiraram para longe, jogaram no lixo, largaram ao léu como se fosse ferro em brasa, temendo represálias futuras. Sem saber que impulso o guiou naquele momento, Uílson agarrou um panfleto, dobrou-o rápida e discretamente, e o guardou nas suas roupas íntimas. Quando o “agitador mascarado” chegou próximo do primeiro da fila, dois seguranças saíram correndo do saguão de entrada para prendê-lo e ele, correndo, diluiu-se na multidão que caminhava como um formigueiro na avenida de fronte à entrada da empresa. Os seguranças alertaram todas as unidades, colocaram outros agentes de prontidão, chamaram a polícia; mas já era tarde.
A panfletagem teve repercussões violentas dentro da empresa não apenas por trazer denúncias contundentes, mas por desacatar a autoridade patronal de permitir panfletagens somente do sindicato oficial. Na sala de vidro os supervisores reuniram-se para debater o ocorrido e tomar algumas providências. Via-se o gestor rodeado de supervisores, vermelho de raiva, olhos faiscando, segurando um panfleto que era agitado para cima e para baixo, querendo que todos os operadores percebessem a sua indignação. Suando frio, controlando a curiosidade, Uílson suportou o papel dobrado nas suas cuecas durante todo o expediente, até de noite, quando estaria a salvo em casa.
“Hoje cabeças vão rolar!”, falou o operador ao lado de Uílson, que se virou e se deparou com a figura de Christian soltando a sua característica risadinha fina: “hi, hi, hi”. Instantaneamente Uílson sentiu profundas náuseas porque não suportava esse tipo de comentário e nem as intriguinhas que Christian, o fofoqueiro da operação, espalhava semanalmente. Era uma forma que ele encontrava para tentar contornar a mediocridade de sua vida e o vácuo existencial. Com gente assim, Uílson não era muito receptivo e nem dava muita conversa. Mas lá estava Christian, com os seus olhos cravados em Uílson, esperando uma resposta. “Já sabem quem é este baderneiro que veio aqui nos infernizar de manhãzinha”, ele continuou, “parece que é um operador da retenção, do décimo andar”. Christian não tinha a menor ideia do que falava, apenas tinha ouvido um comentário leviano no fumódramo e reproduzia inconseqüentemente para ter o que falar. “Como você sabe?”, perguntou Uílson. “É só o que falam na empresa. Parece que já estão organizando a papelada para a sua demissão, hi, hi, hi”. Uílson controlou-se; respirou fundo e olhou para o lado. O supervisor se aproximou e mandou que “parassem de fazer corpo mole, pois o tempo estava passando”. Christian caninamente centrou-se de corpo e alma no seu computador e esqueceu-se de Uílson, que se sentiu mais leve e voltou-se para a sua mesa de trabalho. Olhou para o relógio e pensou na hora de ir embora como um andarilho sedento que atravessa o deserto e só pensa em um copo d’água.
***
                Entrou no seu apartamento com um misto de euforia e aflição. Atirou sua mochila num canto e procurou o cômodo do apartamento mais distante da sala, onde ficava o controlador doméstico. Sabia-se, aberta ou sutilmente, que todos os principais meios de comunicação (TV, celulares, computadores, rádios transmissores, controladores domésticos) estavam grampeados. Nenhuma empresa de comunicação admitia, mas Uílson tinha visto diversas reportagens na grande mídia sobre este assunto, principalmente quando uma emissora queria desmoralizar a concorrente e, então, publicizava estes “segredinhos”. Seja legal ou ilegalmente, que diferença faz? Uílson não era bobo o suficiente para pagar pra ver.
                Entrou na área de serviço – a peça mais distante da sala –, sentou-se em um banquinho próximo a máquina de lavar roupas, desamassou o papel e começou a ler. O panfleto estava escrito em letras miúdas, com uma grande foto de uma mobilização popular e um pequeno gráfico que trazia informações sobre o lucro da empresa. Ele dizia mais ou menos o seguinte:

                Oposição Sindical – Boletim Nº 58 – junho de 2084

                Colegas operadores!
                Estamos sendo roubados diariamente. Enquanto a KIT lucra trilhões, nossos salários, auxílio-moradia e tubos de oxigênio são arrochados, dia a dia. Centenas de nossos irmãos são demitidos quase que diariamente, perdendo toda a perspectiva no futuro. A direção da empresa chora miséria, afirmando que não pode pagar mais, nem dar novos e melhores tubos de oxigênio para os seus trabalhadores. Tudo isso é mentira!
                Enquanto as empresas e os conjuntos residenciais das classes mais abastadas ficam com as melhores zonas da cidade – o centro e as zonas adjacentes –, vemos as slums cities se espalharem por todos os cantos. A alta tecnologia não chega à classe trabalhadora. Somos vítimas de uma lógica cruel: a riqueza que produzimos dentro das grandes empresas nos torna mais pobres e miseráveis, enquanto que a burguesia (a classe dominante) torna-se mais rica e ostentadora. A riqueza deles está alicerçada em nossa pobreza. Não temos direitos sindicais, políticos, sociais. Nosso único direito é trabalhar até morrer! A natureza está sendo destruída a ritmos assustadores: o oxigênio artificial, as chuvas ácidas, os maremotos e enchentes fazem parte do nosso cotidiano. Os mais pobres estão a mercê da destruição da natureza por parte das grandes empresas.
                É necessário retomarmos o caminho da luta independente. O Sindicato dos Operadores da KIT é um braço da empresa e do WP. Está controlado até a medula, servindo apenas aos interesses patronais, ao mesmo tempo em que faz um teatro ao fingir defender os operadores. Beneficiam-se dos seus cargos, da liberação do trabalho, dos seus salários fixos. Usam a máquina sindical e a sua autoridade para esfriar a indignação, para fazer assembleias onde quem realmente decide são os supervisores e gerentes da KIT. Resumidamente: adoçam os opressores diante dos oprimidos; sufocam o espírito de protesto e, consequentemente, condenam os interesses dos trabalhadores.
                A nossa sentença, como dizia a grande revolucionária alemã do século XX, Rosa Luxemburgo, continua sendo: “socialismo ou barbárie”. E a barbárie está nos vencendo, fruto das inúmeras traições dos partidos e sindicatos conciliadores, que abandonam a luta de classes em troca de algumas benesses materiais. Queremos retomar a luta sindical independente no sentido da revolução socialista. Precisamos colocar a ordem social capitalista abaixo. Hoje pode parecer impossível, mas não é! Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Enquanto existir capitalismo existirá proletariado, e enquanto existir proletariado, o socialismo será sempre uma necessidade imperiosa e latente! A revolução socialista é a nossa única esperança de futuro, de acabar com a destruição da natureza e da vida!
                - Contra a pressão das metas e do assédio moral!
                - Imediata readmissão dos demitidos: pelo direito ao trabalho!
                - Desmascarar as mentiras de que a KIT não tem dinheiro para dar reajuste decente aos trabalhadores e novos tubos de oxigênio: pela imediata abertura das contas da KIT pelos operadores!
                - Fora os controladores domésticos que apenas servem para cuidar a nossa vida!
                - Pela revolução socialista, única forma de acabar com as desigualdades sociais e garantir um futuro para a humanidade!

                Seguiam em anexo dois endereços de blogs: um da corrente sindical de oposição e o outro de uma organização política, chamada Justiça Proletária.
                Uílson ficou perplexo. De todo aquele texto conseguiu absorver apenas 50%, porque todas aquelas relações políticas lhe eram de difícil assimilação. Mas o essencial lhe calou fundo. Sentiu um turbilhão de coisas. Não sabia bem o que era “socialismo”. Ouvira de familiares, amigos e da mídia as piores referências. Quando essa palavra era pronunciada virava alvo de todo o tipo de bombardeio: ideológico, político, cultural; da má fé do senso comum, da raiva pessoal e, sobretudo, da ignorância. Chegava a sentir um pouco de medo pela ideia de “mudança social” que o socialismo defendia e representava. A grande “democracia” do norte permitia tudo: culto a qualquer religião, qualquer programa de TV, divulgação de qualquer material impresso. A única coisa expressamente proibida era falar em “socialismo”, pois a partir daí tudo estava sutilmente ameaçado: emprego e reputação social. Leu de novo todas aquelas palavras de ordens: seria possível concretizá-las? Não estariam eles realmente loucos? Por que se arriscavam tanto para entregar um material como este? O pior de tudo era que o panfleto não falava nada além do óbvio, da verdade que se procura embaçar com a máscara do cotidiano. E como era sincero! Em uma época de declínio profundo, de hipocrisia institucionalizada, de degeneração pessoal e moral, a sinceridade vale mais do que tudo!
                O panfleto foi um grande motivador para Uílson começar a estudar sobre “socialismo”. Ele procurou, ingenuamente, sobre o assunto na internet, nas livrarias do centro da cidade, na biblioteca da UE. Conseguiu um material precioso no blog da Justiça Proletária, que fora indicado no próprio panfleto. Lá encontrou uma sessão de “formação teórica”, que lhe tirou muitas dúvidas, porém, criou outras novas. Uílson não se intimidou com elas. Seguiu, dentro do seu tempo livre, estudando os textos dos teóricos clássicos do socialismo científico, bem como as análises atuais feitas na “sessão de conjuntura” do mesmo blog. Quando chegava do trabalho a noitinha, Uílson lia horas a fio tanto na internet, quanto nos livros que conseguiu achar, a conta gotas, perdidos nas livrarias e na biblioteca. Adentrava a madrugada e não assistia mais televisão, que ficou esquecida num canto do quarto. Semanas se passaram com este trabalho intelectual intenso. Durante este tempo algo novo nascia no peito de Uílson. Mesmo os resquícios da sua grande depressão emocional pareciam estar sendo definitivamente superados. Ele encontrou força para suportar a realidade e, sobretudo, a grande solidão em massa dos movimentados centros urbanos. Quem sabe não pudesse fazer alguma coisa para trabalhar no sentido inverso? Ser realmente útil? Quis retomar o contato com os colegas da faculdade, com outros amigos que o tempo afastara, até mesmo com colegas da KIT. O mundo pareceu pequeno para o que Uílson estava sentindo dentro do peito. A sua cabeça fervilhava em uma verdadeira tempestade de ideias ininterrupta. Uma “luz”, ele não sabia muito bem de onde, parecia estar sendo jogada sobre a realidade, trazendo à vista fatos e elementos até então imersos na mais profunda escuridão.
                Nesta euforia, a vigilância de Uílson sobre os grampos foi se abrandando, até esquecer-se dela. Passava mais horas na internet pesquisando sobre “socialismo” do que nas redes sociais, jogando, ou fazendo qualquer outra trivialidade online. Deu-se conta da sua displicência e passou a acessar a internet através de lan houses, mas já era tarde. De lá, criou um e-mail falso e enviou uma mensagem para os blogs da oposição sindical da KIT e da Justiça Proletária solicitando um encontro.
***
                Dias mais tarde o sindicato dos telefônicos apareceu na KIT para fazer uma “contra panfletagem”, provavelmente convocado pela própria empresa. Fazia um calor insuportável. O céu estava nublado em um tom cinza amarelado e uma densa nuvem de poeira pairava sobre a cabeça dos transeuntes, dificultando a visão. Parecia que um novo temporal se avizinhava. Uma parte dos operadores estava se preparando pra voltar do intervalo do almoço e, quando chegaram a porta de entrada da KIT, se depararam com os dirigentes do sindicato panfleteando livre e tranquilamente, com a supervisão compassiva dos seguranças.
                Uílson pegou uma cópia do panfleto e se encaminhava para voltar ao trabalho, quando ouviu: “Este é o material do sindicato”, falou um dos sindicalistas, que era alto, encorpado e de cabelos grisalhos. “Não dêem ouvidos aos baderneiros que aparecem por aqui falando mal do sindicato e da empresa. Se vocês souberem quem eles são, denunciem! O nosso sindicato defende o trabalhador”. Uílson reparou que quase todos os operadores pegavam o panfleto, sem medo de represálias, muito embora poucos lessem e os que liam não entendiam suas verdadeiras intenções. Na fila do elevador, Uílson começou a ler o panfleto, que dizia mais ou menos o seguinte:

                Sindicato dos telefônicos – Sinttel – Boletim Nº388 – junho de 2084.

                Recentemente o grupo de baderneiros, intitulado “oposição sindical”, atacou novamente, caluniando o nosso sindicato e menosprezando todos os avanços que tivemos junto à empresa. Não acredite em baderneiro! Trabalhador acredita no seu sindicato!
                Compareça à Assembleia amanhã, 7h30min, para discutir o nosso plano de Participação nos Lucros e Resultados (PLR) da empresa (os operadores que comparecerem receberão atestado de presença que poderá ser apresentado posteriormente aos seus superiores).

                Seguia no texto o local da realização da assembleia. Uílson achou aquele panfleto profundamente diferente do panfleto da “oposição sindical”. Era menos polido. Tinha um veneno subjacente. Apesar de não entender exatamente aonde queriam chegar, Uílson suspeitou que havia uma tentativa de “mostrar serviço” para que a oposição não ganhasse espaço. Foi a primeira vez, em 2 anos de KIT, que percebeu esta diferença. Quis sentir o clima dentro da empresa para decidir se participaria ou não da assembleia.
***
                Abriu a porta do fumódromo e sentiu um vento de chuva no rosto. O tempo estava virando. No extremo canto do parapeito encontrou Christian conversando trivialidades com alguns colegas. Ele exibia o cabelo com o último corte da moda, uma jaqueta de couro fashion e um cigarro entre os dedos. Falava e gesticulava com desenvoltura e fazia de tudo para ser o centro das atenções. Quando Uílson se aproximou segurando propositalmente o panfleto do sindicato, Christian desviou o olhar para ele e abriu um sorrisinho: “Ah, o panfleto do sindicato. Uílson sempre querendo falar de coisas chatas”, e soltou sua risadinha fina “hi, hi, hi”. “Vamos ir na assembleia amanhã?”, indagou Uílson, fixando o olhar nos colegas que estavam com Christian. Helen, uma operadora da Retenção, prontamente afirmou: “Eu não me meto nessas coisas. As últimas demissões foram feitas em razão da participação no sindicato”. Uílson reparou que esta afirmação não tinha nada a ver com a realidade. Muito provavelmente ela tenha sido induzida a pensar isso por alguma fofoca sem fundamento de Christian. Os últimos operadores demitidos foram mandados embora em razão do tradicional “corte de gastos”. A sua fala, se apegando a uma mentira, expressava, consciente ou inconscientemente, uma desculpa para esquivar-se da responsabilidade de participar da assembleia. “Eu também não vou ir” – disse Christian, quase em êxtase por ouvir o que dissera Helen – “isso é tudo perda de tempo. Vou ficar trabalhando por que não quero ser demitido” – ficou olhando Uílson com a boca aberta e um leve sorrisinho nos cantos. “E você, Uílson, o que vai fazer?” – perguntou Christian, que de repente se demonstrou muito interessado. “Eu não sei ainda, estou me decidindo” – tergiversou Uílson por medo de que Christian pudesse sair por aí espalhando a notícia, mas já sabendo intimamente que estava decidido a participar. “Nossa! Queimei minha pausa!” – falou de chofre Helen, levantando-se e tocando fora o seu cigarro. Os outros a seguiram.
                Naquele dia, o clima na operação estava tranqüilo. Na sala de vidro os supervisores estavam reunidos, mas debatendo calmamente, sem nenhum tipo de exaltação. Uílson e Christian sentaram-se e plugaram-se. Não voltaram mais a se falar até o final daquele dia.
***
De noite, antes de chegar em casa, Uílson decidiu passar em uma lan house para ver se havia recebido resposta. Sentou-se em um computador e acessou sua conta falsa. Lá estava o seguinte e-mail:

Caro colega,
Recebemos a sua mensagem e gostaríamos de marcar um encontro. Por questões de segurança pedimos que compareça a assembleia sindical de amanhã e sente em uma das extremidades do auditório, vestindo uma camiseta amarela ou portando um lenço branco. Caso a sua participação na assembleia seja inviável, aguarde novo contato.
Nossas saudações revolucionárias.

Uílson saiu da lan house com muitas dúvidas e inquietações. Pensava no que poderia acontecer, pois nunca tinha participado de um evento sindical, mas resolveu encarar para ver no que ia dar, até porque a panfletagem acontecia normalmente com o total consentimento da empresa. Quando pisou na calçada sentiu os primeiros pingos grossos de chuva que prenunciavam um temporal. Ainda tinha que andar duas quadras. Ao cruzar a rua que dividia as duas quadras um trovão fez as janelas dos edifícios ao seu redor estremecerem. As ruas esvaziaram-se em um piscar de olhos. Parecia que o céu ia desabar sobre a cidade, com gotas pesadas que viraram granizo. O vento fazia a chuva lhe chicotear as pernas, os braços, a cabeça.
Entrou em casa encharcado. Tirou a roupa molhada, abriu o armário e puxou do fundo da gaveta uma camisa amarela e a colocou cuidadosamente sobre uma estante para não esquecê-la no dia seguinte. Tomou um banho rápido e enfurnou-se embaixo das cobertas, enquanto ouvia o forte chicotear da chuva na janela. Um relâmpago clareou o quarto. O medo, o frio, o cansaço, a expectativa, todos misturados, exauriram Uílson e fizeram-no adormecer em alguns segundos.
***
                O despertador robô do controlador doméstico o chamou apenas uma vez. Levantou no primeiro aviso, vestiu a camisa amarela (e por via das dúvidas colocou um lenço branco na mochila), se arrumou, tomou café requentado e foi para a rua. Ao sair do seu edifício sentiu que a chuva da noite anterior não tinha amenizado o calor, mas o intensificara. O mormaço dificultava a respiração ao máximo, mesmo às 6h da manhã. Ainda era noite, mas Uílson percebeu que o céu continuava nublado. Caminhou apressadamente para o terminal e reparou um rastro de destruição: postes, placas, sinaleiras, janelas, paredes, todos danificados, meio corroídos. Ouviu alguns gemidos vindos de um beco, próximo de onde estava passando. Percebeu três moradores de rua com algumas queimaduras na pele, resultado da chuva da madrugada, que provavelmente tornara-se chuva ácida. Não pôde fazer nada por eles, como a maior parte das pessoas que passavam apressadamente e fingiam não vê-los. Tomou o Air Bus em direção à KIT. A assembleia seria realizada em um edifício próximo a empresa, como era de costume do sindicato.
                Desembarcou na estação rodoviária, conjuntamente a muitas outras pessoas que se espremeram para passar pela porta de saída do Air Bus. Cruzou a passarela rolante e, logo em seguida, passou pela frente de um grande templo da Igreja Evangélica, que se erguia majestoso com os seus vitrais de neon com detalhes em ouro, retratando cenas bíblicas. Uílson se flagrou contemplando todos estes vitrais e a gigantesca estrutura arquitetônica da Igreja. Na porta de entrada do templo viu fiéis, de terno e gravata, entregando o Jornal da Igreja, que é recheado de notícias políticas, nada religiosas, convocando os transeuntes – inclusive o próprio Uílson, que passava exatamente naquele instante – a entrar um pouco para conhecer a “doutrina”. Mais adiante viu pessoas tomando passes e sendo “exorcizadas”. Lembrou-se involuntariamente de sua tia evangélica fervorosa, que não perdia um único culto dominical e reproduzia todos os discursos dos pastores. O relógio ainda não tinha batido 7h da manhã e aqueles indivíduos já estavam ali: catequizando ou militando? Dava para distinguir esse tipo de Igreja de um partido político se ela dispunha de jornal para divulgar sua “doutrina” e visão de mundo, reuniões periódicas de “formação”, militância e disputa ideológica? Somente um crente cego ou um ingênuo incorrigível poderia pensar o contrário.
Perdido nessas reflexões, Uílson caminhou mais alguns metros e ficou de frente para a porta de entrada do edifício onde ocorreria a assembleia. Era um prédio muito grande, espelhado e futurista. Ficava do outro lado da mesma avenida da KIT, quase em sua frente. Hesitou em entrar. Sentiu um calafrio por todo o corpo. Respirou fundo; tomou coragem e subiu o primeiro degrau de entrada. De repente um terrível medo apossou-se do seu corpo e uma “força invisível” lhe puxou para fora do prédio. Foi incontrolável! Deu meia volta e saiu. No mesmo instante, quando ia cruzando a porta de saída, sentiu-se ridículo, covarde, fujão. Neste conflito consigo mesmo saltou-lhe à vista todo o seu drama. Agora era tarde! Imerso em um mar de pensamentos tempestuosos, andava de um lado para o outro, para frente e para trás, como uma barata tonta. Deu-se conta do seu ridículo: o que poderiam pensar? Parou. Disfarçou um pouco olhando para o quadro pendurado em cima do balcão do porteiro, que lia jornal em seu celular e tomava café, parecendo alheio a todo o seu sofrimento. Uílson olhava para o quadro, mas não via nem lia nada. O medo lhe cegava, lhe ensurdecia, lhe tirava qualquer possibilidade racional. Lembrou-se do seu antigo gato, em cima da estante, olhando sua mãe lhe mandar para o colégio: “vai para aula, sem choro! Você já é quase um rapaz. Chuva não é desculpa!”. Vozes entraram em seu devaneio e Uílson percebeu que estavam atrás dele. Sentiu um cutuco no braço: “Uílson, você por aqui?”. Virou-se e deparou-se com o seu supervisor, que lhe olhava com um sorrisinho. Suas pernas amolecerem. Reparou com o canto do olho que havia mais 4 supervisores com ele. Mecanicamente lançou um sorriso amarelo, procurando desesperadamente disfarçar o seu estado interno, o grande duelo que suas forças emocionais estavam travando. “E-eu vim ver o que ia se passar por aqui!”, sussurrou Uílson desviando o olhar para o chão. “Que grande bobagem acabei de falar”, pensou instantaneamente. “Está certo!”, respondeu o supervisor, “aproveite bem!”. Deu um tapinha nas costas de Uílson e virou-se em direção aos elevadores.
                “Aproveite bem” – Uílson ficou profundamente encasquetado com este “conselho”. Esperou os supervisores entrarem no elevador para escapar do constrangimento de subir com eles. Reparou em alguns outros operadores que entraram no saguão do edifício, também em direção aos elevadores. Reconheceu alguns rostos das pausas no fumódromo, mas não os conhecia bem. Engoliu seco, respirou fundo e dirigiu-se aos elevadores: agora já era definitivamente tarde pra desistir. Depois de toda esta crise solitária, Uílson sentiu-se estranhamente mais forte.
                Desembarcou no 12º andar, da onde tinha uma esplêndida vista do Rio Guaíba e de um mórbido céu nublado. O calor atenuara-se um pouco, mas ainda estava abafado. Entrou no auditório e refrescou-se com o ar condicionado, que deixava o ambiente até um pouco frio. Sentiu sua respiração melhorar. Olhou para o chão e reparou no lustrado do piso o seu reflexo quase como se fosse um espelho; as cadeiras estavam matematicamente organizadas e no alto do palco erguia-se uma mesa com 6 cadeiras estofadas, aonde estavam um aglomerado de pessoas, umas de pé, outras sentadas, todas conversando entre si em pequenos grupos e com semblante taciturno. Provavelmente eram os dirigentes do sindicato. Reparou que o auditório não estava lotado. Deveriam ter, no máximo, umas 30 pessoas. Para uma empresa como a KIT, que possuía mais de 5 mil funcionários, achou bastante esvaziado. Logo a frente da mesa estavam sentados alguns supervisores, dentre os quais, o seu. Esparsamente, via um operador aqui, outro acolá. Conforme lhe haviam solicitado por e-mail, procurou uma extremidade e sentou-se lá, com sua camisa amarela e o seu lenço branco ao ombro: os dois “sinais” juntos, para não haver dúvidas! Enquanto se acomodava percebeu a entrada de mais alguns operadores. Reconheceu no meio de um grupo de operadores Rotielle, a antiga colega que havia sido demitida alguns meses atrás. Logo depois deste grupo de operadores entrou um verdadeiro exército de supervisores que foram se juntando aos que já estavam nas primeiras filas. Uílson gelou!
                “Mas esta assembleia não era de trabalhadores? O que faz este batalhão de supervisores por aqui?”. Uílson ficou pensando abismado e, ao mesmo tempo, estático, como se ficar absolutamente imóvel nesta “selva” lhe garantisse a sobrevivência perante os seus predadores. Uma microfonia ecoou fundo por todo o auditório causando desconforto aos ouvidos dos presentes. “Vamos dando início a nossa assembleia” – falou um homem grisalho, que estava sentado ao centro da mesa. Todos os operadores e supervisores que ainda estava de pé ou conversando procuraram assento e silenciaram. A assembleia começava com quase 45 minutos de atraso.
                A atual direção do Sinttel era ligada ao WP e à sua central sindical, porém, nunca tocavam neste assunto; era quase uma filiação clandestina. Se elegia como chapa única há pelo menos 30 anos. Em todas as suas antigas gestões foram fazendo alterações estatutárias em assembleias como a que ocorria naquele momento que era praticamente impossível qualquer operador de base organizar uma chapa para disputar o sindicato. Em cada assembleia, a diretoria sindical fazia um verdadeiro ritual, com muitas frases pomposas e combativas que, para um desavisado, poderiam soar como verdadeiras. Uílson estava alerta sobre a trajetória daqueles sindicalistas. Tinha lido quase todo o blog da oposição sindical e, por isso mesmo, tinha uma visão um pouco mais criteriosa. O homem grisalho que estava falando naquele momento era conhecido como Marconny. No alto de seus 40 anos, tinha uma cara alongada, um corpo atlético e vestia uma camiseta do sindicato que dizia: Sinttel – 143 anos de luta – filiado à UCW. Seu linguajar era arcaico, doutrinário, beirando as raias da grossura. Falava em “trabalhador” e “contra a patronal” a cada 5 minutos, como um disco quebrado. O seu linguajar era estranho não apenas aos operadores presentes, mas para toda a sua base de representação. Estava ali cumprindo um formalismo e, como tal, necessitava de palavras adequadas para a ocasião. Seu discurso soava estranho e sem vida aos ouvidos de Uílson.
Do lado direito de Marconny estava sentado Juan Santiago, um argentino que residia no Brazil há muitos anos, mas sem perder o forte sotaque castelhano. Enquanto Marconny falava, ele fingia mexer em um lap top e a cada cinco minutos mexia a cabeça afirmativamente, como se estivesse assentindo a tudo o que dizia seu colega. Santiago gozava de grande prestígio dentro das esferas da burocracia sindical e partidária do WP. Havia quem dissesse que ele era a cabeça pensante do sindicato, enquanto que Marconny e os demais eram só os executores. Do lado esquerdo deles, estava sentado um “novo membro”, cooptado recentemente do setor de suporte técnico da KIT. Era mais jovem que os outros dois e a principal finalidade de sua cooptação era justamente aparentar que havia renovação dentro dos quadros do sindicato, mostrando que gente nova assumia os antigos postos, geralmente ocupado por senhores de idade. Talvez uma forma de responder as críticas da oposição sindical? Ele olhava quase que hipnotizado para o que dizia o seu chefe. Imerso nestas reflexões que toda aquela situação lhe despertara, Uílson foi chamado de volta à assembleia quando ouviu o ponto principal da pauta: o reajuste salarial de 2084.
                “Como todos sabem – dizia Marconny – a KIT andou enfrentando problemas econômicos que impedem que nós, trabalhadores, exigíssemos mais da patronal. E nós temos que ser espertos! Temos que saber a hora de avançar e a hora de recuar! A proposta não é nenhuma maravilha, mas é o que se tem para agora! A KIT ofereceu 0,01% de PLR em 4 parcelas até novembro de 2086 e nós achamos que devemos aceitar, porque o nosso sindicato fez um grande esforço para chegar até este índice”. Todo o plenário ouvia em absoluto silêncio, em parte atônitos, em parte alheios, sem poder ou com medo de influir sobre tudo aquilo. Uílson começou a suar! Sentiu suas têmporas latejando e um fio de suor escorrendo pelas costas. Mais 15 minutos de justificativas foram costuradas perante o plenário, que aprofundava o seu estado atônito. Não houve abertura para fala dos presentes e ninguém reivindicou tal direito.
Chegou o momento da votação. Marconny se levantou e ficou de pé na frente da mesa, visivelmente nervoso e consternado. Perguntou, com uma voz rachada que refletia sua aflição oculta: “Quem vota a favor da proposta?”. A maioria dos supervisores levantou a mão favoravelmente, junto com alguns operadores isolados. Só aquele número já dava a vitória à aceitação da “proposta”. Mesmo assim, ele continuou: “Contrários?”. Ninguém teve a ousadia de levantar a mão, nem mesmo Uílson. “Abstenções”, perguntou por último Marconny. Algumas mãos tímidas ergueram-se, mas Uílson continuou imóvel, sem ter votado em nenhuma das 3 propostas. O “medo da represália” foi a explicação que ele deu para si mesmo, como um alento para a sua consciência de culpa.
                Marconny retomou a palavra: “Bem pessoal, a proposta foi aprovada por maioria”. Soltou um suspiro, afastando o microfone da boca, enxugou o suor da testa e sentou-se novamente. “Agradecemos a presença de todos”, dizia ele quando subitamente parou, pois um dos membros da direção se aproximou e cochichou algo ao pé do seu ouvido. O cenho de Marconny franziu-se. Eles entraram em uma breve discussão, longe do microfone. Por fim, com um rosto contrariado, Marconny voltou-se ao público: “Estão me falando aqui que aconteceu um probleminha há algum tempo atrás, he, he, he. Uma colega, que está aqui presente, foi demitida e ela quer falar alguma coisa”. Marconny a procurou nas cadeiras do plenário e ela submergiu do meio de um grupinho. Era Rotielle, que levantou-se aflita, segurando alguns papéis que foram levantados enquanto ela falava, mas ninguém, à exceção do grupo que a rodeava e da própria mesa, conseguia ouvi-la porque não tinha microfone. “Não temos mais tempo, companheira”, respondeu ligeiramente Marconny. Rotielle começou a gesticular e a levantar mais alto a sua papelada. A direção do sindicato começou a se levantar querendo induzir ao fim da assembleia, mas Rotielle não se deu por vencida e se aproximou correndo da mesa. O que ela gritava ficou um pouco mais audível: “Eu fui demitida injustamente! O que o sindicato pode fazer por mim? Preciso de ajuda!”. Marconny e Santiago se precipitaram sobre ela: “Se acalme, companheira! Não podemos discutir sobre isso, o nosso tempo acabou!”. Falavam isso enquanto a seguravam pelos braços. “Como acabou?”, Rotielle perguntou desesperada, já começando a chorar e a se debater. Santiago pressionou o dedo contra o ouvido, como se falasse com uma escuta, e disse algo que era inaudível para Uílson. Imediatamente entraram seguranças do edifício que a pegaram pelos braços e a retiraram do plenário. Marconny, visivelmente constrangido, falou no microfone: “Er... desculpe por este pequeno incidente, pessoal! He, he, he! Fiquem vocês sabendo que a assessoria jurídica do nosso sindicato trabalhará incansavelmente para resolver o problema da colega de vocês”. Deram por encerrada a assembleia. Os trabalhadores começaram a se levantar e a se dirigir à porta de saída. Uílson começava a se levantar quando sentiu uma trombada que o levou de volta para sua cadeira. “Ei, você!”, disse sem pensar. Não conseguiu olhar para o rosto de quem havia trombado com ele, quando reparou que havia um pequeno envelope dobrado no seu colo, onde se lia letras escritas à lápis: “leia em casa”. Uílson rapidamente colocou o envelope em sua mochila e se dirigiu para a saída do auditório o mais rápido possível. Não esperou os elevadores; desceu de escada, de dois em dois degraus.
                Sentiu um bafo quente no rosto quando saiu pra rua: o calor havia voltado com força e dificultava muito a respiração. A assembleia tinha durado 1h, mas a sensação era de que havia se passado 5h. Mal tinha começado o dia e Uílson já se sentia cansado. Uma espécie de ressaca lhe percorreu todo o corpo ao perceber que teria que trabalhar até as 20h40min – e eram recém 9h44min! Caminhou com passos bovinos para a KIT, procurando aproveitar ao máximo esse pequeno “tempo livre”.
***
                Abriu a porta de entrada do apartamento e as luzes se acenderam automaticamente. O controlador eletrônico disparou: “Boa noite, Uílson! Você tem uma mensagem da KIT”. Seu coração disparou e a imagem da assembleia da manhã lhe invadiu os pensamentos. Acionou na tela do controlador as mensagens de voz: “Uílson, queremos falar com você na sala do gestor, amanhã de manhã, antes do expediente, sem falta!”. Puxou uma almofada e sentou-se, desconsolado, no meio da sala. Ali ficou, pensativo e aflito, como que paralisado pela angústia. E agora? Se fosse demitido como Rotielle? E se perdesse todos os “benefícios” e tivesse que se mudar para uma slum city? Ou pior ainda: vagar pelas ruas como um indigente, pois Uílson era muito orgulhoso para pedir ajuda para os seus parentes. Conteve o ímpeto de chorar. Respirou fundo e procurou pensar em outras coisas. Tentou consolar-se lembrando que “quem morre de vésperas é peru” – velha máxima lida nos gibis franceses da infância. Um surdo sentimento de desespero espalhou-se pelo seu corpo: uma vontade louca de se humilhar perante os chefes, pedir-lhes desculpas; uma vontade insuportável de desistir de tudo! É loucura! Lembrou-se do envelope recebido de manhã, na assembleia geral. Pensou em queimá-lo, sem lê-lo, mas subitamente mudou de ideia. Correu até a sua mochila e o tirou de lá. Desdobrou-o cuidadosamente e tirou um papel de dentro, que dizia o seguinte:

                Caro colega,

                Nos encontramos no restaurante Pallace, do outro lado da Avenida, duas quadras adiante da KIT, no intervalo do almoço, na última mesa à esquerda, antes do banheiro masculino. Um colega estará sentado lá lendo um livro e usando uma camisa xadrez vermelha. Caso não possa comparecer, esperamos o seu comunicado via e-mail até amanhã pela manhã.
Saudações revolucionárias!

Após ler, Uílson amassou os papéis e os queimou. Ficou pensativo. Se envolver com estes revolucionários seria cavar a própria cova. Mas já era quase meia noite. Não poderia avisar por e-mail que “não poderia ir”, conforme lhe foi solicitado. Se ele não fosse, não honraria a sua palavra, ainda mais depois de uma comunicação clandestina tão dispendiosa para ambos os lados. Além do que, já se considerava na “lista negra” da KIT por ter participado da assembleia. Estou perdido mesmo! Que a KIT vá para o inferno! Falava tudo isso como se houvessem dois Uílsons. Um, o de sempre: medroso, cansado, acomodado; o outro: querendo sempre dar um passo à frente! Este último era realmente desconhecido para ele, pois na maior parte do tempo de sua vida esteve soterrado pelos anseios do primeiro. Estava o descobrindo dia após dia, ficando espantado a cada um desses passos novos rumos ao desconhecido.
Passou a noite toda com uma angústia profunda; numa luta contra si mesmo. “Vou perder meu emprego e a minha vida vai piorar” – uma voz interna lhe dizia. Outra respondia: “Perder o quê, seu merda?”.  “Seu merda? Tenho, sim, muito medo de perder meu emprego, minha casa, meu salário, meus tubos de oxigênios! E se eu for obrigado a ir pra uma slum city”. “Você já perdeu a sua vida em um emprego que não gosta, com gente que não gosta, sendo humilhado diariamente. Você já vive em uma slum city moral, pessoal, diária! A diferença, no fundo, será a possibilidade de você viver de verdade! Na realidade você já é um cadáver ambulante, que ri socialmente, que vive socialmente uma vida de mentiras da qual quer livrar-se, seu projeto de gente! Chora para si mesmo, vive de depressão em depressão, morrendo em prestações. Não seja um cagão: se você não tem pelo que viver, então encontre pelo que morrer”. Raiva, ódio, medo, aflição, angústia! Uílson nadava para chegar a superfície deste mar emocional. Sentia os olhos pesados e dor nas pálpebras, nos ombros, nas costas. Então, às 3h10min da madrugada, exausto de tanto nadar e após vário avisos do controlador eletrônico, não resistiu mais ao cansaço psicológico e apagou-se.
***
                Ao abrir a grande porta de entrada da sala de operações, Uílson estranhou vê-la às escuras, com os computadores apagados e as cadeiras quase vazias. A única luz que iluminava o ambiente era a das grandes janelas ao fundo da sala, que começavam a irradiar para dentro do prédio os primeiros raios avermelhados de sol e de alguns postos de atendimentos do turno inverso, que ainda trabalhavam. Reparou que a sala de vidro estava iluminada por uma tímida luz e percebeu alguns vultos em seu interior. Aproximou-se, pé ante pé, e bateu na porta. Ouviu uma voz abafada lá de dentro: “Pode entrar, Uílson”. Adentrou o ambiente e visualizou o gestor do seu andar sentado atrás da mesa, repleta de papéis, canetas e um lap top no lado esquerdo. Viu, também, dois supervisores, dentre os quais o da sua equipe, de pé, ao lado do gestor. Engoliu seco. Foi aproximando-se da mesa. “Sente-se”, o gestor ordenou apontando a cadeira em sua frente.
                Wesley Giovanni havia se tornado gestor há mais ou menos 3 anos, nomeado diretamente pela alta cúpula da KIT. Gozava de grande prestígio perante os acionistas da empresa, que tinham o escritório na Avenida Paulista – uma das poucas regiões habitáveis de São Paulo após a grande seca –, mas acompanhavam os negócios diariamente através da internet. Giovanni era quase calvo, tinha os olhos azuis em formato asiático, grandes pomos no rosto e estava um pouco acima do peso. Usava uma camisa com o símbolo da KIT e tomava café. Quase nenhum operador tinha acesso a ele. Somente o viam entrando e saindo da sala de vidro e tendo os seus acessos de raiva contra os panfletos da oposição sindical ou a baixa produtividade da operação. Era comum ouvir pela boca pequena – sobretudo de Christian – que ele saía com muitas meninas da operação, prometendo fazê-las “crescer dentro da empresa”. Certa vez, Uílson ouviu uma colega de equipe afirmar que saía com o gestor e que iam começar a namorar em breve. Semanas depois, ele a viu chorando no fumódromo e soube, através de Christian, que o gestor estava flertando com uma operadora de outro andar.
Naquela manhã, Giovanni recebeu Uílson com um sorrisinho cínico. Perguntou-lhe à queima roupa: “Então você esteve na assembleia do sindicato ontem pela manhã, não é mesmo?”. Um gelo percorreu a espinha dorsal de Uílson. “S-sim!” – disse ele com voz sumida e sentindo uma opressão por todo o corpo. “Reparamos que você não votou a favor da proposta da empresa”, continuou o gestor, “e por isso chamamos você aqui. Queremos saber se você é contra o esforço da empresa e do sindicato para chegar a um acordo?”. Os olhares inquisidores dos três pairavam ameaçadoramente sobre sua cabeça. Uílson não conseguia raciocinar, só sentia medo. Disparou sem refletir: “N-não!”. Giovanni levantou a sobrancelha esquerda e coçou o queixo: “Hmm! Isso significa então que o seu voto é favorável e lá, durante a assembleia, você... digamos, esqueceu de votar?”. “E-eu não entendi muito bem na hora. F-foi por isso!”. “Aham! Muito bem!”, disse o gestor puxando um papel da gaveta, “então pedimos que você assine aqui para comprovar que é favorável ao acordo coletivo com o sindicato” e apontou para uma folha impressa, com um texto extenso e de letras miúdas, contendo uma linha em branco com o nome de Uílson e a sua matrícula de trabalho. Uílson sentiu-se sufocado! Queria sair correndo dali. Os olhos dos seus supervisores continuavam cravados nele. Ouviu algumas vozes ao fundo e reparou que os operadores começavam a chegar para trabalhar. Algumas luzes se acendiam. “Eu não quero fazer isto” uma voz interna gritava em sua mente, mas sem ousar sair de sua boca. Refém de toda aquela situação, não teve opção. Pegou a caneta com a mão trêmula e assinou como se fosse uma navalha rasgando sua própria carne. “Agradecemos a presença! Agora pode ir”, falou Giovanni olhando fixamente para Uílson, que levantou-se do seu lugar como que por um impulso e foi em direção a porta. O gestor e os supervisores sorriam. Uílson saiu da sala de vidro com a sensação de levar um piano nas costas. Imediatamente reparou vários olhares curiosos lhe fuzilando. Dirigiu-se ao seu posto de atendimento, colocou o headseat na cabeça, plugou-se no sistema e começou a trabalhar.
***
As 11h55min o seu celular despertou. Era o lembrete eletrônico que Uílson tinha programado para não se esquecer do encontro com o militante da oposição sindical, no restaurante Pallace. Acionou o controlador eletrônico do seu computador e selecionou a pausa almoço, que era de 20 minutos. Foi em direção à porta de saída.
Ao sair para a rua sentiu um calor sufocante. O céu estava nublando e provavelmente iria desabar um novo temporal. Um ventinho de chuva cortava o ar. Caminhou apressadamente para o Pallace; não tinha tempo a perder! A porta de vidro automática se abriu e adentrou o recinto, que fervilhava como um formigueiro. Mulheres e homens sentados no balcão, ao longo das mesas, conversando calorosamente e propagando um barulho ensurdecedor. Pessoas se chocavam ao passar pelo corredor, estreito em razão da quantidade de gente que ia de um lado para o outro, segurando pratos, copos, talheres. O restaurante Pallace era freqüentado majoritariamente pelos operadores da KIT, embora fosse popular para outros trabalhadores do centro da cidade também. Uílson achou estranho ter combinado um encontro “clandestino” justamente ali. Olhou para um lado e para o outro discretamente. Ao longe avistou o “contato”: lá estava ele, com a sua camisa xadrez vermelha, lendo um livro e sentado antes do banheiro masculino. Uílson reparou que era um rapaz, talvez um pouco mais novo do que ele, de vasta cabeleira, barba por fazer e rosto alongado. Usava óculos de aros pretos e lia compenetradamente uma... Bíblia? Será que é ele mesmo? Aproximou-se e perguntou: “Posso me sentar?”. O rapaz levantou os olhos para ele e sorriu: “Mas é claro! Já estava pensando que você tinha desistido!”. “Não sou tão covarde quanto aparento!”, brincou Uílson, puxando a cadeira.
“Eu me chamo Eduardo, e você?”, disse ele estendo a mão para Uílson. “Eu me chamo Uílson, Uílson Silva!”, disse apertando a mão de Eduardo, “eu trabalho no setor de cobrança e vendas da KIT”, se repreendeu em pensamentos por ter falado tanta coisa em tão pouco tempo. Por isso contra atacou: “E você, trabalha na KIT também?”. “Não! Eu trabalho numa outra empresa de call center. Vim especialmente para falar com você por que fui designado pela nossa organização”, disse Eduardo sorrindo e tomando um gole de suco que estava na mesa. “Achei estranho você estar lendo a Bíblia”, comentou Uílson. Eduardo riu: “É um livro insuspeito, guardião da moral e dos bons costumes. Poderia me passar como um ‘bom evangélico’, não é mesmo?”. Ajeitou-se na cadeira, pigarreou e retomou a palavra: “Então Uílson, diga-me, por que nos procurou?”.
Uílson não tinha se preparado para o encontro. Não sabia ao certo o porquê tinha entrado em contato com uma organização revolucionária clandestina. Passou-lhe pela cabeça toda a crise da noite anterior e dos últimos meses. “Eu estava muito cansado!”, disse Uílson sem refletir sobre o que dizia, como que hipnotizado pelo zumzumzum do restaurante. “Cansado?”, surpreendeu-se Eduardo. “Digo... estava cansado de uma vida sem sentido! Comecei a reparar nas pequenas coisas do dia a dia e percebi que algo está muito errado, mas não sei muito bem o quê. Sei lá! Frente a tudo isso parece que os panfletos que vocês lançavam na porta da KIT começou a fazer algum sentido pra mim, ao mesmo tempo que me pareceram loucura também!”. Eduardo riu, mexeu com o canudo o seu suco e disse: “Nesta sociedade, fazer alguma coisa sensata sempre parece loucura! Vivemos imersos numa rotina que nos aliena e nos tritura, pouco a pouco. Não sentimos prazer em trabalhar e as relações humanas transformaram-se em relações comerciais, de consumo, enfim, de compensação sentimental, de hipocrisia. Infelizmente não apenas entre os colegas de trabalho, os familiares e vizinhos, mas no sindicato também, onde esse tipo de relação deveria ser abominado. A propósito, o que achou da assembleia sindical de ontem?”. Uílson refletiu um pouco, pediu um suco pelo computador de bordo da mesa e falou: “Achei um tanto estranha, truncada. Me senti constrangido pela grande presença de supervisores e a baixa participação de operadores, que algumas vezes reclamam, mas não fazem nada, não participam das atividades do sindicato!”. “Além da alienação política, social e da extenuante jornada de trabalho”, analisou Eduardo, “talvez muitos deles não vejam razão nisto; se sintam pouco motivados a participar em uma assembleia ‘estranha e truncada’, não é mesmo?”. “Sim”, assentiu Uílson. “Nós lamentamos essa atitude também, mas ainda é preciso percorrer um longo caminho para se retomar as mobilizações que já aconteceram no passado”, completou Eduardo. “Hoje pela manhã fui chamado pela supervisão da empresa e fui obrigado a assinar um termo de apoio à proposta da empresa”, desabafou Uílson. “É mesmo?!”, surpreendeu-se Eduardo, “bando de canalhas!”.
O controlador eletrônico de Uílson disparou: faltam 3 minutos para o fim da “pausa almoço”! Uílson olhou com olhos aflitos para Eduardo, que compreendeu que precisavam encaminhar algo. “Muito bem, Uílson! Você se disporia a participar de uma reunião mais ampla de apresentação política e teórica de nossa oposição sindical e de nossa organização revolucionária?”, questionou-lhe Eduardo, olhando fixamente em seus olhos e mantendo um ar sério. “S-sim”, disse Uílson, “mas não posso me comprometer agora, eu tenho contas e os tubos de oxigênio...”. “Se acalme!”, o tranquilizou Eduardo, “trata-se apenas de uma discussão de formação política, teórica e sindical”. “Tudo bem”, falou Uílson um pouco mais firme e convencido, “eu preciso realmente sair da rotina, senão vou enlouquecer!”. “Ok”, disse Eduardo, “então nos encontramos sábado, às 8h da manhã nas paradas dos Air Bus que vão para Restinga, ali no terminal da Borges, certo?”. “Mas... mas lá é uma slum city!” observou Uílson, aflito. “Não tenha medo do novo, amigo”, falou Eduardo em tom confiante, “fique tranqüilo! Temos companheiros que moram lá”. “Tudo bem”, assentiu Uílson oferecendo a mão para Eduardo, “nos encontramos sábado, às 8h”. “Combinado!”, disse Eduardo apertando a mão de Uílson. “Ah”, exclamou Eduardo: “deixe o celular e o controlador eletrônico em casa, conectados a algum canal de TV”. Levantaram-se e despediram-se.

Capítulo 3
Pílula azul ou vermelha?

                O sábado amanheceu com um ar fresco. Uma brisa soprada do Guaíba subia a Borges de Medeiros junto com Uílson, muito embora o dia estivesse nublado e quente. Pairava sobre o céu do centro da cidade uma espessa camada de nuvens em tom amarelado. Apesar de lhe desagradar ter que acordar cedo no sábado, Uílson gostava de caminhar no centro quase deserto. Podia reparar na arquitetura dos prédios, novos e antigos, nas pessoas caminhando mais calmamente, numa paz interna por não ter que ir ao inferno da KIT. Naquela manhã do primeiro sábado de setembro, apenas algumas lojas e bancas de revistas funcionavam, com poucos transeuntes que caminhavam pelas calçadas e observavam os poucos Airbuses que chegavam, descarregavam passageiros e logo levantavam vôo, seguindo seus cursos.
                Uílson olhava distraído uma banca de jornal, que além das últimas edições dos principais jornais do Brazil e do mundo, comercializava produtos eletrônicos. Em diversas prateleiras se espalhavam revistas, propaganda de aplicativos para celular, pen drives de revistas semanais de fofoca, de musculação e saúde, de histórias em quadrinhos, até os jornais do país, que estampavam as suas manchetes sensacionalistas: “A economia cresceu 0,1% e saiu da recessão técnica”; “Desemprego é o menor em 10 anos e a pobreza recua – especialistas dizem que o país nunca teve tantas oportunidades”; “Polícia prende o criminoso que aterrorizava a slum city de Alvorada”. Mais ao fundo da banca havia a sessão de pornografia, que preenchia uma prateleira inteira. Uílson pegou um livro de literatura e folheou-lhe algumas páginas. “Ainda prefiro ler assim”, pensou ele consigo mesmo. Foi testando um pen drive com as obras completas da “literatura brasileira do século 19 e 20” que Uílson percebeu a chegada de Eduardo, que vinha subindo a Borges. Se encontraram casualmente, fora do local combinado, a parada do Air Bus-Restinga, pois ainda faltavam 10 minutos para as 8h. “Vendo as manchetes do dia?”, perguntou Eduardo, sorrindo. “Não, estava olhando alguns livros para celular”. Cumprimentaram-se e caminharam para a parada do Air Bus. Durante a subida, Uílson, censurando-se por ter falado muito mais do que Eduardo no primeiro encontro, perguntou: “No Pallace você não me disse o seu sobrenome. É Eduardo do quê?”. “É Eduardo Cambará!”, disse ele, sorrindo. “Esse nome não me é estranho. É sonoro e familiar!”, disse Uílson olhando para frente. “Sim, é da literatura. De O Tempo e o Vento, do Erico Veríssimo”. Uílson empolgou-se: “Então seus pais gostam deste livro?”. Eduardo riu e disse que se tratava apenas de um codinome, por questões de segurança. Não disse mais nada sobre isso; nem Uílson perguntou.
Após uma longa espera na parada, partiram rumo à Restinga, uma das slum cities mais perigosas e abandonadas da região metropolitana. Entre uma e outra parada, a viagem durou cerca de 20 minutos. Antes de chegarem ao terminal central da Restinga, Uílson reparou em uma propaganda do governo federal, que dava início às “comemorações do 7 de setembro”: “Brasil: 262 anos de um país cada vez mais independente!”. “Se somos realmente independente, por que precisam afirmar isso?”, indagou Eduardo, voltando-se para Uílson, que estava tão acostumado àquele tipo de propaganda que ficou pensando nessa pergunta até o final do dia. “Toda a sociedade capitalista assimilou o método nazista, de Goebbels.”, disse Eduardo. “Eles precisam reafirmar uma mentira diversas vezes e por todos os meios, numa espécie de lavagem cerebral social, feita com alta tecnologia aliada à adaptação ao senso comum, muitas vezes apelando para o lado emocional da população. O Brazil continua tão dependente quanto era em 1500, 1822 ou 1930. A elite brasileira especializou-se em evitar rupturas. Apenas aprendeu a modificar a forma de dominação, usando o método de catarse social e apoiando-se em um movimento dos trabalhadores domesticado pela ‘esquerda’ dita ‘socialista’, que compactua com a burguesia e trai a luta sindical”. Uílson lembrou-se da assembleia sindical. Talvez fosse disso que Eduardo estivesse falando.
Enquanto discutiam o passado colonial brasileiro, ainda não superado, o Airbus pousou suavemente no terminal da Restinga. Lá transitavam centenas de pessoas: umas pedindo esmola ou simplesmente paradas, olhando o movimento; outras vendendo café, sucos, salgados, balas, amendoins. Caras e bocas sofridas, suadas, sem dentes; pés com chinelos, sandálias, sapatos furados, ou mesmo sem sapatos. Cachorros sarnentos e com as costelas salientes corriam atrás de meninos que brincavam aos bandos, de pés descalços e narizes escorrendo. Ao desembarcar do Airbus Uílson sentiu o bafo quente que vinha da rua. Em menos de uma hora o calor já tinha dissipado o ar fresco da manhã. Uílson reparou nas cabines das empresas dos Airbuses que ficavam no fundo do terminal. Viu seus técnicos e mecânicos trabalhando dentro de uma sala equipada com computadores, confortáveis cadeiras estofadas e ar condicionado e oxigenado. No fundo, havia uma estação policial que vigiava não apenas o terminal, mas toda a slum city através de câmeras revestidas por um aço especial espalhadas por toda a Avenida Central da Restinga; dispunha de muitos computadores e comunicadores; viaturas flutuantes de última geração e o temível “caveirão” – um verdadeiro tanque de guerra terrestre ou aéreo, que adentrava as ruelas da Restinga e podia atirar e até mesmo bombardear qualquer casa ou região daquela slum city – que, naquela manhã, encontravam-se ameaçadoramente estacionados ao lado dos Airbuses. Dois policiais em roupas especiais conversavam na entrada da estação. Do outro lado, carroças puxadas por cavalos esqueléticos e carrinhos de tração humana, usados para levar papelão, latinhas, garrafas e plástico, andavam embaixo do tráfego incessante de Airbuses. Que contraste! Aquela visão valia mais do que compêndios inteiros de sociologia e explicava muito mais eloquentemente a “lei do desenvolvimento desigual e combinado”! Em pleno século 21, com toda a tecnologia disponível, a maior parte da população ainda vivia na pré-história.
“O segredo para sobreviver aqui é não olhar ninguém nos olhos, fingir que não é com você e seguir sempre a trilha da avenida principal”, orientou Eduardo. Um policial mirou os dois com um olhar inquisidor. “Somos alunos da UE, chefe! Vamos fazer trabalho social”, disse Eduardo apressando o passo.
O asfalto e as lajotas do terminal logo foram cedendo terreno para o chão batido. Casinhas de madeira empoleiravam-se uma sobre as outras, entrecortadas por casas de tijolo à vista, completadas com compensado e telhados de zinco desemparelhados. Entre um casa e outra erguia-se um templo evangélico, de material um pouco mais elaborado, de onde ouvia-se cantos gospel e sermões inflamados. Uílson contou 3, desde o terminal até o final da segunda quadra. Em um beco sem saída ouvia-se gritos de tortura (talvez estupro?) e cachorros brigando por restos de um cadáver, que jazia semi-nu numa isolada calçada de concreto. “É o saldo do último tiroteio”, avisou Eduardo. Uílson apavorou-se. Teve ímpetos de voltar correndo, mas conteve-se. Passaram por um boteco de madeira que exalava um cheiro de gordura com sarro de cigarro. Duas prostitutas insinuaram-se aos rapazes, que ignoraram e continuaram a sua marcha (“pelo mundo de Hades” – iria refletir Uílson em sua casa, dias mais tarde). Aproximaram-se de uma ponte sobre um esgoto, que exalava um cheiro de carniça misturada com fezes. Dejetos boiavam junto a pneus, latas, garrafas plásticas. Um menininho negro, de pés descalços e barriga de vermes que escapava para fora da camisa, coçando a cabeça, olhou para Uílson enquanto eles cruzavam a ponte. No seu olhar encontrava-se condensado a inocente injustiça de um povo inteiro, reprimido por séculos. Uílson engoliu seco. Ao longe ouviu-se um tiroteio, que fez o seu coração disparar; Eduardo parecia mais acostumado. A sua segurança deu um pouco mais de segurança para Uílson. Pararam por alguns instantes atrás de uma parede de concreto, “talvez por medo de uma bala perdida?”, pensou Uílson. Vozes se misturaram ao seu pensamento. Reparou na sua esquerda, de fronte a um barraco de madeira, um pastor evangélico benzendo um amontoado de corpos humanos ensangüentados. Ao seu lado uma mulher chorava convulsivamente e gritava: “Jesus salva! Jesus salva! Tende piedade de nós!”. “Que mundo é esse? Quanto tempo vivi enclausurado num mundinho fácil de ilusões!”, pensava Uílson, desconsolado.
Finalmente os dois dobraram a esquina e entraram em uma ruela repleta de casebres por todos os lados. Algumas com muros cinzentos, outras com portas que davam diretamente na terra do chão batido. Crianças e cachorros corriam; mulheres subiam segurando sacolas e pacotes. Era a rua onde morava o companheiro da Justiça Proletária. A sua casa funcionava como uma espécie de sede informal. Pararam em frente a uma casa verde escura, de concreto escurecido e de dois andares; já se encontrava meio corroída em razão das chuvas. Nela, moravam duas famílias, uma em cada andar. A escada que conduzia ao segundo andar desembocava em um portãozinho na rua. A debaixo era separada da rua por um murinho de cimento e uma grade de ferro caída. Uílson percebeu que iriam adentrar na casa de baixo. Eduardo bateu palmas.
Um homem encorpado, de meia idade, nem muito alto, nem muito baixo, abriu a porta. Ao ver Eduardo e Uílson ali, parados, sorriu. Saiu na direção deles falando em um português com forte sotaque castelhano: “Como estão, compañeros?”.
Era José Battle y Ordoñez, um velho militante dos movimentos sociais que veio do State of Uruguay fugindo da perseguição da polícia e do governo. Já morava no Brazil há cerca de 20 anos, mas o seu sotaque carregado fizeram os vizinhos lhe apelidar de “Castelhano”. Nascido em Treinta y três, cidade do interior do sub país vizinho ao sul do Brazil, mudou-se para Montevidéu com 14 anos, onde trabalhou como engraxate, feirante, estivador e, por vim, operário numa fábrica de casacos, onde envolveu-se com o movimento sindical. Contrariando todas as leis de “segurança nacional”, José Battle ajudou a organizar uma greve contra a demissão de 50 operários e por melhores condições de trabalho. Como não se enquadrou às orientações da central sindical uruguaya de acabar com a greve, foi denunciada por ela à patronal e à polícia. Caindo fora do “sindicalismo legal”, acabou submetido a uma perseguição cruel, escondeu-se por meses em casas de companheiros nos subúrbios de Montevidéu, mas em razão da intransigência da polícia e do governo, foi obrigado a voltar para o interior, onde continuou sendo procurado. Morou escondido por 6 meses no cemitério de Mercedes, sobrevivendo graças a solidariedade dos colegas de trabalho, que lhe enviavam mantimentos e algum dinheiro, e dos coveiros, que lhe cederam a casinha onde guardavam os instrumentos do ofício. Não podendo suportar mais esta situação, emigrou para o Brazil escondido na caçamba de um caminhão antigo. Quando desembarcou em território brasileiro, morou na rua por 2 meses, até ser levado pela polícia para uma slum city, se mudando posteriormente para outras três slum cities. Conseguiu, a muito custo, emprego como mecânico, pedreiro, costureiro e terminou como repositor de estoques em uma grande rede de supermercados. Foi nesse emprego que conheceu Rosa, a mãe de seus dois filhos brasileiros, Alejandro e Juanito, que cresceram brincando e correndo por debaixo das mesas e se entrelaçados às pernas dos militantes, que discutiam calorosas polêmicas semanalmente nas reuniões de sua casa.
José Battle gozava de grande prestígio por entre os seus vizinhos, pois explicava a eles a conjuntura política, dizendo o que estava por trás das frases e declarações dos governos – sobretudo em épocas eleitorais –, e ajudava-os dando-lhes conselhos sindicais, políticos e pessoais. Muitas vezes dividiu pão, leite, café e livros com os demais moradores, que não tinham nada para dar aos seus filhos. Sempre irônico, José Battle gostava de pregar peça em todos que conviviam ao seu redor. Era a sua maneira peculiar de aprofundar os laços de amizade e, até mesmo, políticos (com os militantes proletários, é claro, pois estes ele não considerava apenas como amigos, mas como parte de sua família). Pelo fato de sediar as reuniões da organização revolucionária em sua casa, às vezes misturava as questões políticas e familiares, o que desagradava um pouco Eduardo. Quando exaltado, em razão das acaloradas discussão, José Battle apresentava algumas confusões teóricas – campo no qual era muito limitado. Mas, apesar disso, a sua honestidade e ardor revolucionário contra as injustiças – muitas das quais ele sentia dolorosamente na própria pele – eram inquestionáveis; ele compreendia o essencial da teoria marxista, à sua maneira, como o reflexo da sua vida cotidiana.
“Pensei que não vinham mais”, disse ele, fechando o portão de ferro após os dois companheiros passarem. “Rosa, traz o chimarrão”, gritou José Battle da rua para a esposa. O jeito espalhafatoso lhe era peculiar; muito embora ele nunca faltasse com respeito a ninguém. Rosa esperava a entrada dos companheiros com a cuia na mão, sob olhar atento dos dois filhos. “Sejam bem vindos, camaradas”, disse ela, passando a cuia para Eduardo. “Catarina está esperando por vocês lá nos fundos”, completou ela apontando para a porta da cozinha, que dava para um pátio de cimento onde se acumulavam diversos tipos de entulho. José Battle, Eduardo e Uílson seguiram em fila indiana para a salinha improvisada dos fundos, o local onde ocorriam as reuniões.
Lá estava sentada, folheando livros e papéis, Catarina Santos, que ao perceber a entrada deles, levantou os olhos e sorriu. “Bom dia, camaradas!”, saudou ela. Catarina era uma mulher no alto dos seus 40 anos, mãe de três filhos; já havia militado em muitas organizações políticas e sindicais, inclusive no partido do governo, o WP, de onde foi expulsa informalmente, através de métodos burocráticos de bastidores. Assim como os demais, sofria a marginalização da sociedade e compreendia a imperiosa necessidade de se “fazer alguma coisa”. Aderira à oposição sindical e, posteriormente, à Justiça Proletária, há mais ou menos 1 ano atrás. Reuniram-se os 4 em torno de uma mesa improvisada, repleta de livros e papéis, e rodeada por várias caixas, roupas, varais, madeiras, bem perto do fundo da salinha, onde jazia uma churrasqueira entulhada de mais papéis, cadernos, polígrafos e livros.
“Fico muy feliz que la reunião em mi casa tenha atraído las personas más distintas!”, disse  em seu mal português, José Battle, sorrindo e olhando para os companheiros presentes. Eduardo não perdeu tempo: “Bueno, companheiros! Convocamos essa reunião com alguns membros da nossa organização para discutirmos tópicos da teoria marxista e ver se Uílson, que nos mandou um e-mail faz algum tempo, tem acordo com o programa político e com a ideia geral de nossa oposição. Pra começarmos, seria interessante que todos nós nos apresentássemos para ele, e ele para nós”. Uílson assentiu com a cabeça. “Comece por você, Catarina”, indicou Eduardo.
Catarina contou resumidamente a história da sua vida, destacando detalhes que impressionaram e causaram uma espécie de constrangimento em Uílson. Nascida no interior do Estado, Catarina foi molestada pelo tio desde os 4 anos de idade. Os seus pais desconfiavam, vendo marcas em seu corpo e reparando no seu desespero para inventar qualquer tipo de desculpas para não ir para casa da avó (pois ela morava num sobradinho em um terreno junto ao tio), mas nada faziam. O tio gozava de grande prestígio social, sobretudo na família, pois era um grande fazendeiro. Ele chantageava Catarina, dizendo que se ela contasse para os pais iria espalhar “coisas terríveis a seu respeito”, ou simplesmente ameaçava bater nela. Vivendo num verdadeiro inferno desde esta época, suportou calada tal situação, sofrendo até os 13 anos, quando certo dia, ao sair do banheiro e sentir a presença imunda de seu tio, que chegava próximo dela empurrando-a de volta para dentro do box e já levantando sua blusa, subitamente explodiu em ira, ameaçando gritar para “todo o mundo ouvir se ele encostasse aquelas mãos sujas nela novamente!”. Desde aquele dia ele nunca mais ousou lhe tocar, mas fez todo o possível para complicar a sua vida: mandou jagunços espancarem seus pretendentes; quando Catarina conseguia emprego, ele subornava os chefes para lhe demitirem; preparou, junto ao reitor da Universidade do Interior, sua expulsão da faculdade de enfermagem. Nunca deixou prova alguma de tais sabotagens, nem nunca ninguém da família desconfiou que tudo era obra do tio, mas Catarina tinha a mais profunda convicção de que se tratava dele. Seu pai dizia que “Catarina não prestava para nada! Era uma menina-macho, que só se enfiava em confusão”. Cansada daquela vida, sem ter mais forças para conseguir suportar, veio para a capital, onde trabalhou como operária tecelã, comerciária e, finalmente, como operadora de call center na empresa concorrente da KIT. Todo este “currículo” aproximou Catarina das lutas sindicais e, principalmente, da luta feminista. Estudou todos os clássicos marxistas sobre o tema e se desiludiu profundamente com o feminismo pequeno-burguês que imperava nas outras organizações políticas, além do WP. Após romper com todos estes entraves, passando por mil crises existenciais, tendo pensado em se suicidar diversas vezes; lá estava ela, sentada de frente para eles, militando pela revolução socialista! Foi apenas aí que conseguiu encontrar sentido neste “mundo cão”, que mais parece um “calvário”, segundo a sua expressão.
Eduardo acompanhava o cenho franzido de Uílson, provavelmente muito chocado com o relato que lhe desnudava uma realidade escondida debaixo do tapete oficial da hipocrisia. Pediu que José Battle y Ordoñez se apresentasse para Uílson. Ele contou brevemente a sua história, desde a emigração do Uruguay até a sua adesão à Justiça Proletária. Ao finalizar, Uílson lhe perguntou: “Seu nome também é um codinome da literatura?”. “No, compañero! Este é mi nombre verdadero, inspirado em lo más grande presidente da história del Uruguay”, disse ele com os olhos lacrimejantes.
Eduardo Cambará foi sucinto, pois não gostava muito de falar sobre si. Revelou seu verdadeiro nome: Thomas Wallace; muito embora todos os militantes já estivessem acostumados a lhe chamar pelo codinome. Filho de uma família de classe média, Eduardo rebelou-se ainda jovem contra a desigualdade social, que sempre lhe causou profunda consternação. Ainda na faculdade, aderiu a uma corrente de “esquerda” do WP, a ala conhecida como Socialist Workers Party (SWP), onde entrou em contato com a literatura revolucionária e desenvolveu sua própria visão de mundo dentro dela. Na conferência regional de 2080 foi eleito para a direção estadual da corrente e, não tardou muito, entrou em atritos com os principais dirigentes do SWP e WP, respectivamente. Escreveu textos e artigos de análise sobre a realidade nacional e estadual para o jornal do partido que despertaram a atenção em seu talento precoce. Logo, a conduta reformista e etapista da direção do SWP e do WP foi duramente criticada por ele, gerando um grande mal estar na direção do SWP. Todos os principais “teóricos” destas organizações foram escalados para combater o jovem Thomas, que naquela época tinha apenas 25 anos de idade. Ainda confessou que foi muito difícil lutar contra aqueles teóricos, que sempre foram referência para ele; mas afirmou que “os discípulos não seriam dignos de seus mestres se não ousassem contrariá-los quando julgassem que eles não tinham razão”. Sabendo do seu peso na direção do partido, eles abusavam justamente desta autoridade para enquadrar e domesticar os militantes mais rebeldes dentro da estrutura oficial. Eduardo não fugiu do enfrentamento. No início de 2081 foi expulso do SWP e do WP com um discurso capcioso de “afastamento”, mesma época em que havia entrado na empresa de call center concorrente da KIT para desenvolver um trabalho político. Junto com outros 60 companheiros, dentre os quais José Battle, fundou a Justiça Proletária no início de 2082 e a oposição sindical telefônica no final do mesmo ano.
Quando chegou a sua vez, Uílson não falou muito, pois não tinha desenvoltura para “discursar em público”, tal como os outros haviam demonstrado. Sentiu-se tímido, mas contou do seu desencantamento com a sociedade, da sua percepção de que “algo está muito errado” e concluiu relatando como e quando decidiu entrar em contato com a oposição sindical.
Após as apresentações, iniciaram a discussão teórica e política. Uílson ouviu atentamente durante cerca de 30 minutos sobre a exploração dos trabalhadores, a luta de classes – que todas as teorias “modernas” daquela época juravam não mais existir –, a função social do Estado e a produção de mais-valia. Neste ponto, discorreram sobre a tendência da queda permanente da taxa de lucros dos grandes conglomerados capitalistas e da miséria crescente dos trabalhadores, o que obriga o Estado a cobrir esta queda tendencial drenando o dinheiro público para o setor privado, isto é, para os grandes empresários, banqueiros e agiotas, às custas da vida do povo. Uílson ouvia tudo atentamente, sem perguntar nada. Eles prosseguiram.
Uma vez que de um lado se acumulam riquezas incontáveis e a tecnologia mais avançada, que são sustentadas com a opressão cada vez maior do povo, é preciso maquiar esta contradição da realidade. O melhor método é a distorção institucionalizada para embaçar a visão, a reflexão e o juízo. É aí que entram os grandes meios de comunicação, os ideólogos e acadêmicos que passam a justificar o injustificável, tentando sustentar as desigualdades sociais afirmando que elas são inevitáveis efeitos colaterais do “progresso”; ou que as pessoas não querem trabalhar, não tem qualificação ou são simplesmente preguiçosas; ou que preferem o crime porque são “más por natureza”. Centenas de milhares de seres-humanos vegetam na miséria, na indigência, na ignorância e são ensinadas apenas a obedecer, a aceitar, a temer. Poderia o capitalismo sobreviver sem esta renovação permanente de mão-de-obra barata, ignorante, esfomeada, disponível para ser explorada em qualquer serviço? A burguesia e a sua sociedade oficial escondem este tipo de debate atrás de uma lavagem cerebral em massa feita pela grande mídia, pelos seus slogans vazios de “direitos humanos”, “democracia” e de “liberdades individuais”. Os governos também utilizam-se deste método publicitário burguês sem compromisso com a realidade. Eles afirmam: “Brazil: um país de todos!”, enquanto que mais de 50% da população vive na pobreza; ou ainda: “um país cada vez mais independente”, enquanto que sua economia e política encontram-se totalmente subordinadas aos ditames do imperialismo. Frente a este estado de coisas, o socialismo é uma necessidade histórica, pois é o sistema econômico que se propõe a enfrentar este impasse. Somente em uma sociedade socialista poderemos “humanizar” as relações de produção, taxar as grandes fortunas, acabar com a especulação financeira, a má distribuição de renda – conforme se escuta por aí da boca dos “socialistas dos dias de festa” – e, consequentemente, com a miséria e a barbárie, que vemos crescer todos os dias diante de nossos olhos. Para vê-la basta olhar pela janela da casa de José Battle, caminhar por uma slum city ou mesmo quebrar o gelo hipócrita da invisibilidade social criada contra os moradores de rua nos centros das grandes capitais. Os meios de comunicação, as igrejas e as universidades atuais demonizam o socialismo porque ele representa a única saída para esta barbárie, porque vai direto ao ponto e termina com os seus privilégios e monopólios: a propriedade privada, as bases econômicas da sociedade, o poder político e ideológico. Uma vez no poder, os trabalhadores avançados deverão, através da sua ditadura, reorganizar a economia, socializando os principais meios de produção capitalista (grandes fábricas, empresas, terras, bancos, meios de comunicação e transporte) e incentivar a participação do proletariado através dos conselhos populares, que geralmente surgem no calor da luta revolucionária. Sabemos, disse Eduardo, que tudo isso é um processo muito contraditório, porque a burguesia não aceita perder o poder político e econômico sem resistência e uma luta reacionária encarniçada. É por isso que se faz necessário a garantia do poder socialista pela força de um Estado proletário, pelo menos até a elevação cultural, material e do nível político dos trabalhadores mais atrasados.
Após ouvir tudo em silêncio e ter concordado instintivamente com a maior parte delas, Uílson, apossado por uma força inconsciente cínica, tomou a palavra: “Eu realmente concordo que a nossa sociedade está doente... na verdade está podre, decadente! Isso me faz sentir medo do futuro, uma grande falta de perspectiva! Acho, sinceramente, que a humanidade está condenada! Vejam só os nossos colegas de trabalho! Eles parecem estar sedados com morfina, não se incomodam com a exploração, a opressão, com uma vida de faz de conta! Acho muito difícil superar essa sociedade hipócrita em que vivemos com uma proposta socialista, que exige transformações radicais e profundas. Tudo isso me soa muito bem, mas me parece um sonho!”.
Eduardo respirou fundo, coçou o queixo e olhou para José Battle e Catarina, que lhe retribuíram o olhar. Ele ia ensaiando uma resposta, quando Catarina tomou a palavra: “Camarada, sabemos que a tarefa que estamos propondo é imensa, ainda mais para as pequenas organizações revolucionárias como a nossa, e que pode lhe assustar um pouco, mas não se pode condenar a humanidade de antemão. Os desafios colocados à ela vêm desde a pré-história, da construção dos alicerces da sociedade, que geraram todo o tipo de conflito, com avanços e retrocessos, crises, destruições e superações. Cá estamos nós! A humanidade, apesar dos pesares, já superou cataclismos, pestes, guerras, crises e revoluções. Somos, precisamente, o resultado de tudo isso e, para citar Rosa Luxemburgo, venceremos desde que não tenhamos desaprendido a aprender. Nem todas as pessoas ficam congeladas em suas insatisfações; pelo contrário, existe gente que produz meios de articulação para promover mudanças, elevar o nível de consciência da população, existe gente que de fato se importa e trabalha para concretizar ‘projetos’ idealizados sobre as mudanças que precisam ocorrer para que possamos começar a falar em uma sociedade saudável econômica e biopsicossocialmente. É nestas pessoas que devemos nos inspirar, não nas que estão ‘paradas’, acomodadas! Por mais que sejamos muito pequenos, não estamos sozinhos. A humanidade não se coloca tarefas que não é capaz de resolver. As bases para o socialismo já estão dadas há, pelo menos, 2 séculos. Falta coragem, dedicação e tenacidade da vanguarda para a construí-lo. Esta vanguarda é o elo fundamental com as massas, com a concretização das tarefas concretas que precisam ser resolvidas. Se esta vanguarda vira as costas à estas tarefas, seja motivada pelo oportunismo, medo ou covardia, então a sociedade capitalista ganha um novo fôlego, se rearma e vai se perpetuando. A construção do socialismo é a nossa tarefa mais urgente. Sabemos que isso demanda tempo, é uma construção a longo prazo, pois as suas condições ainda precisam ser criadas: organização, conscientização e luta revolucionária dos trabalhadores. Em primeiro lugar, é preciso construir um partido revolucionário proletário, completamente independente dos partidos burgueses ou reformistas. Se não tivermos esta perspectiva, ficaremos correndo em círculos e chafurdando na barbárie; procurando a culpa de tudo isso nos lugares errados: nas forças sobrenaturais, em ‘deus’, nos signos, nas seitas secretas, na suposta má índole e no egoísmo ‘congênitos’ e ‘imodificáveis’ do ser humano, nos familiares, nos colegas de trabalho. Nisso tudo, a burguesia e o seu roubo social saem de ‘lombo liso’, para usar uma expressão do interior; isto é, saem ilesas. Então, tudo se perpetua, pois o essencial não é nunca questionado! Não podemos atribuir o nosso medo e receio aos nossos colegas. Queremos construir uma organização de vanguarda justamente para puxarmos estes colegas ‘sedados com a morfina do niilismo’, para que comecem a olhar a realidade sem estarem dopados e para que andem com as próprias pernas; os colegas incorrigíveis, que não querem ver e nem andar, deixaremos soltos à própria sorte: a vida se encarregará deles ou serão levados pelo vácuo do turbilhão das forças em luta, seja a dos trabalhadores ou a da burguesia. Não podemos nos pautar por eles; muito menos nos paralisar por causa deles. Se queremos que o socialismo, de possibilidade histórica, passe a ser uma realidade rompendo com o ‘mundo dos sonhos’, então temos que trabalhar concretamente neste sentido, desde o campo teórico, até a militância prática; desde a elevação do nível teórico dos trabalhadores, até a luta contra o oportunismo político das organizações de ‘esquerda’ e da burocracia sindical. Para isso, é preciso formação teórica, dedicação, leitura, estudo, militância nos movimentos sociais e nos sindicatos, para lutar contra esta acomodação, que leva ao espontaneísmo e à manipulação por parte das direções traidoras. Os nossos colegas de trabalho provavelmente não tenham esta disposição no momento; muitos talvez não a tenham por toda a vida. O que queremos saber é se você tem esta disposição”.
“Com um sindicato como o dos telefônicos isso é impossível”, interrompeu de repente Uílson, um pouco desnorteado por ter ouvido todo aquele discurso.
“Não há dúvida de que é”, continuou Catarina, “por isso propomos a expulsão da burocracia sindical dos sindicatos, que é composta por aqueles ‘trabalhadores’” – Catarina frisou as aspas com os dedos da mão – “‘mais bem remunerados’ e que não representam mais os interesses independentes dos trabalhadores de base, mas os seus próprios, enquanto casta, e os da direção da empresa e do governo. Não casualmente, toda a direção do sindicato dos telefônicos é filiada ao WP, o partido do governo, que tem estreitas relações com as multinacionais. Porém, para expulsá-los do sindicato, também é necessário organização, consciência e militância”.
José Battle, após ouvir as colocações de Catarina segurando-se, tomou a palavra: “Esta forma de colocar a questão é bastante pequeño-burguesa, compañero! O que tenemos a perder com una proposta revolucionária como esta? Solamente nostras cadeas. Ya um pequeño-burguês tem miedo, tem sus negócios y una máscara de aparências para mantener. Nosotros no! Jogaremos al ar las corrientes, la hambre, la miséria, la opressión. No tenga miedo, Uílson! Mios colegas estan prostrados tambiém. Lo más importante é no desanimar. Se aprende a luchar, luchando! Pero, existem ‘colegas’ que rompem com a alienación y aderem a organizaciones ‘socialistas’ reformistas y traidoras. A estos seria mucho mejor que no fizessem nada y seguissem sedados, porque mucho ajuda aquele que no atrapalha”.
Eduardo, julgando ver a discussão descambar, disse: “Companheiros, vejo essa questão levantada pelo Uílson como muito subjetiva. Tudo o que foi falado aqui tem um viés objetivo, parte da realidade econômica e da sociedade atual, tal como ela é. As conclusões também partem destas premissas. Quero tentar fazer uma síntese delas! Por apresentarmos os problemas dessa maneira, Uílson, não significa que estejamos desconsiderando as questões subjetivas. Vamos julgar cada coisa ao seu tempo. Primeiro fazemos a análise geral, dos fatos e da realidade objetiva. Se o socialismo estivesse condenado do ponto de vista objetivo, então realmente não haveria nada a fazer. Simplesmente deveríamos nos esconder em um porão e esperar a morte chegar pela degeneração completa. Por mais trágico e desesperador que pareça ser o nosso futuro quando olhamos para o presente, podemos modificá-lo se começarmos a lutar por ele agora. Se não temos condições reais e concretas para fazer uma revolução neste momento, devemos criar estas condições: retomar os sindicatos das burocracias sindicais, elevar o nível político dos trabalhadores, conscientizá-los e organizá-los, fortalecer e construir um partido revolucionário com esta finalidade. Hoje somos pequenos e apenas um embrião disso tudo, mas podemos e devemos dar passos concretos na unificação de várias outras organizações políticas, que estão espalhadas não apenas pelo Brazil, mas pelo mundo também”. Eduardo serviu um chimarrão com a cuia que estava parada em cima da mesa e calou-se, chupando a bomba.
Uílson concordou com a maioria das colocações. Sentiu-se ofendido muitas vezes, pois foi realmente alvejado de todos os lados. Mas não é do tipo fácil, que se entrega por qualquer desentendimento. Sentiu-se à vontade para falar: “Durante esta minha crise existencial, quando mandei o e-mail para a oposição, li muito sobre socialismo. Vi algumas posições, conversei com amigos e familiares. No essencial elas convergem para a mesma conclusão: ‘socialismo não deu certo em lugar nenhum e sempre vira ditadura’, me falaram sobre os países ‘socialistas’ do século passado e me mandaram ler livros como ‘A insustentável leveza do ser’, ‘A Revolução dos Bichos’, ‘1984’ e ‘O Zero e o Infinito’. Citaram alguns outros mais atuais que agora eu não me lembro, mas que seguem a mesma linha. Não tive tempo e nem vontade de ler todos, mas alguns eu baixei da biblioteca virtual da faculdade e li. Eles corroboram com a ideia dos meus tios, por exemplo, que se arrepiam só em ouvir falar de socialismo. Eu não concordo com isso. Penso sim que precisamos fazer alguma coisa, tanto é que estou aqui. Gostaria de saber o que vocês pensam a respeito”.
O chimarrão roncou. Eduardo o colocou em cima da mesa, ajeitou-se na cadeira e respondeu o seguinte: “Não acho que estes livros sejam uma boa referência para saber o que foi a União Soviética e as demais ‘experiências socialistas’. São por demais tendenciosos. Muitos destes autores foram diretamente financiados pela CIA, a agência secreta do imperialismo norte-americano. Para começar o debate, gostaria de dizer que o socialismo não é um produto, uma mercadoria, ou um eletrodoméstico, que se pega na prateleira de um supermercado, testa sua ‘eficiência’ e se não sai como o esperado, se liga ao PROCON para reclamar, dizendo que ‘não funcionou’ conforme o manual de instruções. Não! O socialismo é um sistema econômico alternativo ao capitalismo. Ele não cai do céu, pronto e acabado, mas precisa ser construído a partir de uma revolução que supere a sociedade capitalista. Isto é, trocando em miúdos, significa dizer que ele nascerá do próprio capitalismo, com todas as suas contradições, ideologias, hábitos, mentalidades, cultura, etc. Para que tudo isso seja realmente superado é necessário medir os acontecimentos não como um consumidor que liga ao PROCON para saber porquê a sua mercadoria ‘não funciona’, mas como a evolução de um processo histórico. É preciso olhar a ‘experiência socialista’ pela ótica do proletariado e não da burguesia. O capitalismo necessitou de anos para superar o feudalismo. O povo francês passou fome logo após a Revolução Francesa de 1789; depois do cansaço da explosão popular, ajudou indiretamente a levar ao poder Napoleão; foi um processo social longo, contraditório e traumático, que deixou inevitáveis cicatrizes, mas criou as bases do desenvolvimento social futuro, ainda que não tenha resolvido (e nem poderiam) os problemas essenciais da fome e da miséria, que seguem pendentes. Os grandes capitalistas sabotaram as experiências socialistas para ‘que não dessem certo’, tal como a nobreza feudal sabotava as possibilidades do ‘capitalismo dar certo’, até que a burguesia, utilizando-se da força do povo, fez revoluções que foram destruindo definitivamente as bases do feudalismo que sustentava o poder da nobreza, utilizando-se para isso de diversas formas de ditaduras, abertas ou disfarçadas. Uma das principais diferenças com a revolução proletária é que a burguesia sempre esteve orbitando as esferas dominantes da sociedade, juntos ao poder político; já o proletariado é uma classe acostumada a servir e a dizer ‘amém’, sem nenhuma experiência de comando. Por isso, é preciso insuflar-lhe coragem através da organização e da conscientização, e não fazê-lo dócil e submisso, tal como o faz a burocracia sindical e as suas correntes políticas oportunistas. Ao invés de lhe receitar aqueles livros de literatura, para serem honestos, os seus amigos e familiares deveriam ter lhe indicado os livros de Trotsky, que fazem uma análise científica minuciosa sobre o que foi a URSS. Eles próprios deveriam ler as obras de Trotsky e não apenas aqueles livros tendenciosos. Acontece que ainda hoje, passados mais de 100 anos da Revolução Russa de 1917 e dos seus escritos, Trotsky ainda segue censurado, sendo muito difícil ter acesso à sua obra. Veja se alguma das grandes editoras do país publica suas obras nas bibliotecas virtuais e nas livrarias. Somente os sebos e as livrarias alternativas disponibilizam estes livros; e ainda assim, com grandes dificuldades. Na análise trotskista podemos ver os reais motivos da degeneração da URSS, a ascensão de Stálin e, o mais importante, a conjuntura internacional, que selou não apenas o destino da URSS, mas de todo o mundo. A burocracia de Stálin pavimentou o caminho para a restauração capitalista, ocorrida ainda no século passado, mais ou menos em 1989, e ainda hoje estamos pagando o preço das suas traições, tanto dentro da URSS, quanto fora dela”.
Eduardo calou-se por um instante, respirou fundo e como ninguém se manifestou, continuou: “As guerras mundiais do século passado fizeram soar o esgotamento do capitalismo e a sua transformação em imperialismo. Todas as suas contradições insolucionáveis e a luta pela hegemonia mundial entre os países imperialistas levaram a humanidade à estas guerras que mataram milhões de pessoas; mas levaram também à Revolução Russa de 1917, que imediatamente apavorou a burguesia mundial. A luta entre o imperialismo europeu teve como resultado a elevação do imperialismo norte-americano ao status de imperialismo hegemônico – hegemonia esta que começou a entrar em declínio a partir da crise de 2008. Inglaterra, França e Alemanha estavam esgotadas e eram possíveis cenários para uma revolução proletária. Durante todo o século 20 e início do 21, o imperialismo norte-americano foi o responsável por conter a onda revolucionária que se espalhava pelo mundo a partir da URSS. Ele salvou o capitalismo, assim como outrora, no século 19, a Rússia czarista salvou a nobreza monárquica ‘feudal’ na Europa. Logo após a Segunda Guerra Mundial, quando o capitalismo foi reestruturado através desta hegemonia norte-americana, isto anulou momentaneamente as disputas inter imperialistas – pois de uma forma ou de outra todos foram obrigados a se subordinar à nova hegemonia mundial – e permitiu a atuação conjunta do capitalismo contra a URSS, que foi isolada do mercado mundial e das relações comerciais e diplomáticas. A muito custo, a URSS conseguiu criar uma base industrial autônoma, capaz de permitir-lhe uma certa independência de ação e de fornecer recursos econômicos e militares limitados à outros países – sobretudo aos africanos, que em meados do século 20 se enfrentavam com o imperialismo. A URSS procurou se apoiar economicamente, sempre de forma burocrática e instável, em alguns outros países recém tornados independentes na África e na Ásia, mas todas essas tentativas eram violentamente atacadas pelo imperialismo ianque. Basta olhar para as guerras da Coréia e do Vietnã, sem falar em guerras desencadeadas por parceiros regionais do imperialismo, tais como aconteciam no Oriente Médio. Todas elas foram financiadas e apoiadas pelo imperialismo norte-americano, que com a vitória sobre os outros imperialismos nas guerras mundiais, havia se transformado em explorador do mundo todo e, como tal, necessitava também ser uma grande força contra-revolucionária e repressiva em escala global. Usou-se de todo o tipo de chantagem: econômica, política, militar; financiou e sabotou regimes ditatoriais e ‘democráticos’; instigou ou desencadeou abertamente guerras; ameaçou com armas atômicas e químicas. Pior do que isso! Usou efetivamente armas químicas e nucleares contra outros povos, alguns ainda agrários! Os EUA superaram todas as suas crises econômicas a partir da exploração brutal de suas semi-colônias espalhadas por todos os continentes; em especial a América Latina. Pressionada e sabotada pelo imperialismo a nível internacional e dirigida por uma política catastrófica da camarilha de Stálin internamente (com reflexos não menos catastróficos externamente), a URSS só poderia caminhar no sentido da restauração capitalista. Eis aí os principais motivos que explicam o porquê que o ‘socialismo não deu certo’. Agora diga-me, Uílson, você já viu esta explicação em algum lugar: TV, universidades, escolas, jornais, revistas?”
“N-não”, disse Uílson mais para concordar do que refletidamente.
“Seguramente, não!”, prosseguiu Eduardo, “a ótica trotskista sofre uma censura (nem tão) disfarçada da ditadura da sociedade burguesa. Ela é sumariamente excluída”.
“Mas, então, por que os EUA venceram a URSS na chamada ‘Guerra Fria’? Isso não seria uma demonstração da superioridade do capitalismo sobre o socialismo?”, indagou timidamente Uílson.
“Em primeiro lugar é preciso levar em consideração que os EUA não eram apenas o primeiro dos imperialismos, mas o coração de um sistema econômico de âmbito mundial, enquanto que a URSS era o centro de uma economia isolada e majoritariamente regionalizada. Em segundo lugar, não devemos nunca esquecer que o sistema mundial que controlava o mercado internacional continuou sendo sempre capitalista, operando segundo as suas premissas e controlando os principais países neocoloniais, fonte das principais matérias primas. Ou seja, a primeira geração histórica de países ‘socialistas’ foi um elemento minoritário, isolado e cercado por um conjunto de nações capitalistas hostis, que trabalhavam no sentido de isolar e destruir os países ditos socialistas. Os EUA se valiam de centenas de nações, do mercado mundial e das suas matérias primas, enquanto que a URSS precisava fazer brotar leite de pedra. Estavam numa posição infinitamente privilegiada em relação à URSS. Sem falar na política levada a cabo pela burocracia stalinista, que serviu para enfraquecer a expansão da revolução socialista pelo mundo e intensificou o isolamento da URSS. Foi o resultado da política nefasta da burocracia stalinista, que defendia a possibilidade de existir ‘socialismo em um só país’, o que Trotsky e os fatos históricos demonstraram ser uma falácia”.
“Eu ouvi dizer que em uma possível sociedade socialista o avanço tecnológico seria paralisado”, afirmou Uílson sem muita convicção, mais por “inércia intelectual” do que por qualquer outro motivo.
“Na verdade”, seguiu Eduardo, “o socialismo, mesmo com a sua distorção stalinista, desenvolveu grandes tecnologias, como os satélites, radiotransmissores e outros meios de comunicação, além de contribuir para o avanço científico de diversas outras áreas, como a medicina, a psicologia, a pedagogia, astronomia, etc. Aliás, a socialização do conhecimento é um pré requisito para que a ciência e a tecnologia continuem avançando. Se existiram problemas na experiência soviética, isso deveu-se aos problemas relativos à burocratização stalinista e ao isolamento imposto pelos imperialismos capitalistas, pois uma vez que a industrialização e as formas coletivas de propriedade progrediam, maiores eram as tendências ao estancamento em razão do domínio da burocracia stalinista, que se mostrou absolutamente incompatível com as formas mais desenvolvidas de economia. Retomar a democracia dos conselhos operários, os sovietes, passou a ser uma necessidade vital do ponto de vista da planificação econômica socialista. A planificação burocrática representava um crescente emperramento da economia e do avanço tecnológico. Mas isso não pode ser debitado na conta abstrata do ‘socialismo’ ou do ‘comunismo’, como sempre fazem os intelectuais burgueses e a grande mídia. Outra questão, não menos importante, é que o avanço tecnológico capitalista representa uma destruição sem precedentes da natureza. Ele fala em ‘sustentabilidade ambiental’, mas tudo isso é uma farsa quando vemos a poluição proveniente das fábricas, das suas máquinas; o desmatamento de florestas inteiras. Veja só o caso escandaloso da Amazônia. Os grileiros a desmatam desde meados do século 20. Intensificaram este desmatamento assustadoramente no início do século 21 a tal ponto que agora, em fins do século, já desmataram 50% de toda a floresta e também do Pantanal. O consumismo desenfreado leva não só ao desmatamento, mas ao aumento exponencial do chamado lixo eletrônico, dos lixões a céu aberto, dentre outras formas artificiais de manutenção do consumo. De que vale um ‘avanço tecnológico’ cujo principal resultado é a destruição do planeta? Qualquer avanço tecnológico, para ser real, deve ser verdadeiramente sustentável para a natureza (onde os seres-humanos estão indissociavelmente incluídos). Somente um sistema econômico que não esteja baseado no lucro, mas sim nas necessidades sociais daqueles que trabalham e no respeito aos ciclos da natureza, pode representar um futuro para a humanidade. Além disso, a tecnologia capitalista cresce como força destrutiva: olhe a indústria bélica, que domina 40% do orçamento mundial e é responsável por genocídios e carnificinas em guerras pelo mundo, em especial no continente africano, mas aqui nas slums cities latino-americanas também, onde o narcotráfico, em conluio com os políticos e as grandes empresas domina regiões inteiras. Esta questão da indústria bélica você pode reparar pelo lucro da própria empresa onde você trabalha, Uílson”.
Catarina aproveitou as colocações de Eduardo e completou: “A tecnologia também é controlada por poucos e é feita para poucos. Ela não é usada para libertar o homem das longas, aborrecedoras e alienantes jornadas de trabalho, para que os trabalhadores possam se humanizar nas artes e na cultura, mas é usada para aumentar a margem de lucro desempregando trabalhadores, para desenvolver novas formas de exploração e de controle social, ao mesmo tempo em que destrói arrasadoramente o meio ambiente, bem como disse o Eduardo. As chamadas ‘casas inteligentes’, que estão na moda para os biliardários, são acessíveis a menos de 1% da população brasileira e mundial. No meio dos bolsões de miséria dos grandes centros urbanos surgem os magníficos condomínios de luxo, que são verdadeiras ‘cidades proibidas’ da China imperial. Vi em uma reportagem recente que a grande burguesia, pressentindo as catástrofes ambientais – algumas, talvez, irreversíveis – já está se mudando gradativamente para as estações espaciais na órbita da Terra, onde a pressão atmosférica é menor e grandes turbinas de oxigênio purificado garantem o ar muito mais puro do que aqui, no chão. Os ‘avanços científicos na área da astronomia’ levaram à especulação imobiliária na órbita da Terra e na Lua, que está a todo vapor, bem como em outros planetas da Via Láctea, mesmo que não haja tecnologia para se chegar lá. Enquanto isso, a população trabalhadora e subempregada vegeta numa miséria pré-histórica, morre de fome, de doenças que já tem cura há séculos; em sua maioria são analfabetas, andam em Airbuses lotados, não tem acesso real à cultura e à própria tecnologia. Antigamente as favelas eram uma vergonha nacional. Depois de uma grande campanha midiática, que encontrou respaldo nas universidades e nas escolas, foram sendo naturalizadas e transformadas em ‘respeitáveis’ slums cities e nas ‘regiões em desenvolvimento’. Passaram a atribuir conceitos para classificar os índices ‘toleráveis’ ou ‘não toleráveis’ de pobreza, de desenvolvimento humano, natalidade e mortalidade, até que as slums cities passaram a ser absolutamente normais e até aceitáveis. Muitos são os programas de TV, rádio e de internet que exaltam a ‘cultura da periferia’, cultuando a pobreza e a miséria, sem nenhum tipo de escrúpulos. Idiotizam os pobres no seu próprio ambiente, tentando fazê-los aceitar tudo aquilo como natural e belo. Ainda acrescentaria o seguinte: não existe um único tipo de socialismo, baseado em uma receita de bolo. As experiências do século 20 desenvolveram-se em países extremamente atrasados de base agrária, o que dificultou enormemente a evolução tecnológica, sem falar na ascensão da burocracia stalinista e no isolamento internacional. A História nunca nos brindou com uma revolução em um país imperialista, de grande industrialização e com as forças produtivas mais desenvolvidas. Certamente as perspectivas seriam outras, bem como hoje o seria uma nova revolução nos antigos países ditos ‘socialistas’, como Rússia e China, que se encontram sobre outras bases materiais. Mesmo no Brazil, que é um subpaís neocolonial, se pode ver muito mais recursos que serviriam de suporte a um desenvolvimento socialista do que no início do século 20”.
“Houveram perseguições, execuções e casos terríveis na URSS”, disse Uílson, “hoje, pelo menos, podemos falar o que pensamos e vivemos em uma democracia, ainda que limitada. Não seria o caso de tentarmos radicalizar esta democracia e irmos construindo gradativamente as mudanças que precisamos?”.
“Será mesmo que vivemos em uma democracia limitada?”, disse Catarina, se antecipando a Eduardo. “No trabalho, no dia a dia, não podemos falar o que realmente pensamos e sentimos. Vivemos a ditadura do emprego, da ameaça permanente de ‘ir pra rua’, de vermos nossos filhos morrendo de fome ou na falta de perspectiva. Somos obrigados a aceitar tudo o que nos é imposto o tempo inteiro. Não podemos opinar seriamente sobre a política econômica. Este regime pode ser mais ‘brando’ do que foi o stalinismo (ou o que eles gostam de chamar de ‘socialismo real’), mas não menos desprezível e nefasto. Tudo isso não aparece tão claramente. Está ocultado por trás do discurso permanente da grande mídia de que vivemos em uma democracia, que é diferente da ‘ditadura comunista’, que não ‘respeita os direitos humanos’ e a ‘liberdade individual’, etc. O fato é que a burguesia permite uma certa liberdade enquanto não sinta uma ameaça real, enquanto veja o movimento sindical totalmente subordinado e controlado, isto é, absolutamente estéril. Porém, a coisa muda de figura quando os trabalhadores se organizam e se conscientizam; aí sobrevêm as ditaduras militares, como as várias que já vivemos ao longo da História da América Latina e do mundo. A repressão hoje é feita disfarçadamente: dentro das empresas, atrás do assédio moral, da ameaça de desemprego, da pressão oculta; e fora das empresas, na demissão e perseguição dos sindicalistas e militantes combativos, nas periferias, nas slums cities, feita de forma seletiva pela polícia e pelo Exército. Veja os belos nomes que nos brindam: “polícia pacificadora”! É a que mais mata e tortura jovens pobres e negros nas periferias. Temos visto tanto no Brazil quanto no resto do mundo o funcionamento pleno de um Estado terrorista que se utiliza de métodos legais e ilegais – nos quais o narcotráfico é apenas mais um ‘sócio’ – com igual naturalidade para reprimir qualquer voz questionadora do povo organizado e utilizado para semear o medo na população desorganizada, para que saibam dos riscos de questionar o modelo econômico e político vigente no nosso subpaís e no mundo. Este terrorismo impera, sobretudo, nas ‘terras de ninguém’; ou seja, aqui nas slum cities, onde jovens, principalmente negros, são sumariamente torturados e executados, sem que ninguém saiba dos seus paradeiros. Enquanto isso, a mídia aliena todos os demais setores, principalmente a pequena-burguesia, de que está ‘tudo bem’, a ‘economia cresce’, vivemos em ‘Estado democrático de direito’ e de ‘bem estar social’. Sendo assim, este pessimismo no futuro provavelmente esteja baseado em alguma ‘esperança tática oportunista’, isto é, em alguma ilusão, como talvez a espera por uma mudança ‘lenta e gradual’, sem sofrimentos ou contradições, como a eleição de algum candidato ‘messias’, que resolverá nossos problemas sem precisarmos nos chocar com a realidade; enfim, baseada em alguma esperança que não precise olhar a realidade de frente para enfrentá-la. Não Uílson. A burguesia imperialista ultrapassa em brutalidade, em cinismo e infâmia todas as suas antecessoras, uma vez que defende com unhas e dentes a barbárie criada por ela própria, pois disso depende o seu lucro e o privilégio da exploração. Somente a revolução proletária pode libertar a humanidade deste círculo vicioso e decadente”.
                “Eu acrescentaria ainda”, disse Eduardo levantando um dedo para pedir um “a parte” na intervenção de Catarina, “a questão psicológica e a condição humana dentro do sistema capitalista. Os nossos colegas e os trabalhadores em geral, além de estarem cegos pela alienação cotidiana da mídia e das relações de produção, estão condicionados por uma luta voraz pela sobrevivência, entrando em concorrência com outros ‘colegas’, para escapar do desemprego, da miséria e, por fim, da fome. Tudo isso os obriga, em sua maioria inconscientemente, a se submeterem à hipocrisia oficial, a se sujeitar à ela e à qualquer coisa que lhe garanta as condições de vida. Existe maior tirania do que essa, que nos consome aos poucos, sem percebermos, mentindo cotidianamente que vivemos em uma democracia? Esta submissão à hipocrisia social cotidiana, vai familiarizando os trabalhadores com ela até o ponto de torná-la um hábito pernicioso”.
                Uílson ouvia tudo em silêncio, digerindo cada uma dessas palavras com uma sensação de medo e impaciência crescentes. Como é difícil olhar a realidade de frente, enfrentá-la, querer sinceramente modificá-la! Como o sono letárgico, em casa, debaixo das cobertas, é sempre melhor! Porém, tudo na vida tem um preço: esta conduta, além de nos alienar e idiotizar, também nos desumaniza. Enquanto ouvia Eduardo finalizar a sua fala, Uílson refletia sobre tudo isso.
                O relógio na parede da salinha anunciava que já passava do meio dia e o calor aumentara assustadoramente, dificultando a respiração. A casa de José Battle não dispunha de respiradores eletrônicos e oxigênio entubado. Para o povo pobre das slum cities reservavam as máscaras hospitalares descartáveis, contudo, justamente naquele dia, José Battle não tinha mais para oferecer aos convidados sem prejudicar a própria família. Combinaram, então, que dentro de uma semana fariam uma nova reunião na casa de Catarina, em um bairro da capital que não era uma slum city, mas situava-se perto de uma.
***
                No terminal da Restinga, enquanto esperavam o Air Bus que os levaria de volta até o centro histórico, Eduardo e Uílson conversavam olhando o movimento de carroças, carrinhos e pessoas, de um lado para o outro, como um verdadeiro formigueiro.
“E, então, companheiro, o que achou da discussão?”, perguntou Eduardo, curioso. “Gostei muito! Tudo o que vocês fazem é realmente importante; imprescindível, eu diria!”, respondeu Uílson. “Agora está em suas mãos!”, falou Eduardo, sorrindo. Uílson surpreendeu-se: “Em minhas mãos?”.
                “Sim, camarada! É como acontece naquele filme antigo: o personagem principal toma consciência da máquina absurda que lhes esmaga, engana e oprime; a partir daí tem duas opções: se tomasse a pílula azul ia pra casa, entraria em um ‘sono profundo’ e estaria tudo acabado; se tomasse a pílula vermelha iria acordar para a ‘vida real’ e perceber que era apenas o começo. Qual delas você tomaria?”.
                O Air Bus que esperavam chegou bem neste momento, dispersando a discussão. Em questão de alguns segundos lotou. Eduardo e Uílson sentaram-se em assentos diferentes, separado por uma muralha de indivíduos que se esmagavam de pé. Voltaram a se falar somente muito tempo depois.

Capítulo 4
O que não avança, retrocede!

                Afundado no lamaçal da rotina, da mesmice, da luta surda pela vida cotidiana, Uílson sentiu uma ressaca pós-reunião que trazia de contrabando um medo inconsciente pelas tarefas que foram discutidas naquela ocasião, sem falar na visão da slum city, que tinha ficado gravado em sua memória como ferro em brasa. O medo resultante levou Uílson a fugir dos militantes: desligou o celular, não respondeu e-mails e ligações, evitava olhar qualquer coisa sobre o assunto na internet. Quanto peso aqueles militantes carregavam nas costas! A vergonha de não acompanhá-los na mesma jornada para dividir tamanho fardo o fazia pensar em mil desculpas (consciente e inconscientemente) para fugir daquele compromisso. Estranhamente, o “tiro” de todo aquele debate parecia ter saído pela culatra. Uílson, relutando e sabotando inconscientemente de todas as formas a nova consciência que tinha adquirido, caia cada vez mais numa vida pequeno-burguesa. Parecia querer virar as costas para as tarefas práticas que a “nova consciência” lhe exigia, mesmo que não tivesse total clareza delas. Ia trabalhar todos os dias de “nariz tapado”, fingindo não ver ou relativizando as injustiças. Dizia a si mesmo que “afinal de contas nem tudo estava tão errado assim”. Naturalmente não conseguia se convencer porque ainda havia honestidade em algum lugar perdido de sua consciência. Começou, então, a sair pelos barzinhos da Cidade Baixa procurando embriagar-se para tentar tornar a vida mais aceitável. Misturava-se com toda aquela gente fútil, que não tinha outro compromisso a não ser com a satisfação da sua própria mediocridade, com a criação das condições para a sua fuga da realidade como uma espécie de anestesia mental para vidas vazias que ocorriam religiosamente todos os finais de semana. Como era duro olhar a realidade sem a embriaguez da alienação! Como é difícil suportar o peso de tudo isso nos próprios ombros!
Uílson ainda não compreendia a necessidade de reunir com um grupo político consciente, como a oposição sindical, por exemplo, para dividir estas tensões e, ao mesmo tempo, procurar uma visão comum de tudo isso para superar este estado de coisas. Mais ainda: não entendia que esse era o único remédio para combater a dureza de olhar uma sociedade fundamentada na exploração e na hipocrisia.
                Não fossem os relatos de outros membros da oposição sindical que trabalhavam na KIT de que Uílson era realmente um operador, que ia trabalhar todos os dias, Eduardo, Catarina e José Battle teriam dado como certo que haviam sofrido uma infiltração policial. Uma vez que esta hipótese foi descartada, restou a dúvida, que encontrou a explicação parcial no medo e no trauma pós-primeira reunião. Os militantes da oposição sindical e da Justiça Proletária, até certo ponto, já estavam acostumados com estes sumiços. Uílson não havia sido o primeiro e muito provavelmente não seria o último. Sabiam que era realmente muito difícil suportar o isolamento e a pressão da luta de classes, principalmente a hipocrisia e o peso da ditadura de classe, disfarçada sob rótulos de “democracia”, de “felicidade”, de “única saída possível”. Sabiam, também, que estas palavras floreadas ajudavam a confundir a mente de muitas pessoas. A repressão e a ilusão ideológica fazem parte da dominação de classe da burguesia e se constituem em duas faces de uma mesma moeda. De certa forma, quando acontecia este tipo de reação de cada “candidato” à militante, isto servia como uma espécie de peneira que selecionava os elementos mais firmes, capazes de suportar a luta de classes. Eduardo repetia seguidamente que “construir um partido revolucionário é a tarefa mais difícil que um ser humano já se propôs cumprir”. José Battle, por sua vez, sempre via nestas vacilações iniciais “os elementos da consciência e da vida pequeno burguesa”; e acrescentava: “lo que no avança, retrocede!”. Tirando um pouco do seu típico exagero e impaciência – compreensíveis, dadas as suas condições de vida –, ele estava certo. Em uma sociedade dividida em classes, não se podia ficar em cima do muro, querendo estar de acordo com um e com o outro ponto de vista ao mesmo tempo. Eles sabiam que Uílson não tardaria a estar de frente a esta velha disjuntiva novamente e, a depender da sua atitude frente a ela, avançaria ou retrocederia para sempre.
                A metáfora das pílulas de Eduardo tinha calado fundo na consciência de Uílson, que continuou por semanas tentando atenuá-la. “Pílula azul ou vermelha?”. Num arroubo de impaciência em sua fuga, se envolveu com uma colega de faculdade, chamada Renata Stuart, que encontrou em uma de suas incursões pela vida noturna. Ao contrário de Uílson, ela não trabalhava, mas também tentava esquecer a sua falta de personalidade e de perspectiva de vida no fundo de um copo de cerveja. A diferença é que, no caso de Renata, tudo isso se processava de forma inconsciente. Juntos mergulharam por semanas em diversas marcas de cerveja e chope; eventualmente em uma piscina de uísque ou vodka. De noite se amavam com tamanha fúria que esqueciam momentaneamente os dias seguintes, suas responsabilidades, relações familiares e de trabalho. Uílson não deixava de ir ao trabalho por que sofria de uma doença chamada “responsabilidade aguda”, herança da criação paterna, mas o seu estado emocional e alcoólico o levou a se atrasar diversas vezes, o que teve consequências nefastas sobre o seu salário. Era desta “responsabilidade aguda” que provinha toda a sua crise de consciência, da qual Uílson tentava se ver livre. Durante 1 mês o sexo sustentou o relacionamento como um refúgio para ambos. Uílson tentou construir com Renata algum tipo de objetivo comum de vida, por menor que fosse. Foi depositando, gradativamente, todas as suas esperanças de felicidade nela. Não uma esperança verdadeira, mas aquela esperança descartável e falsa que vemos nas propagandas de TV. Seja como for, Uílson ia levando a vida desse jeito.
***
                Numa manhã de outubro, ao entrar na sala de operações, Uílson ficou sabendo que Christian tinha sido promovido a supervisor no último processo seletivo interno. Lá estava ele, ostentando a sua nova variação de corte de cabelo da moda, usando uma jaqueta moderna que cobria a camisa social azul com o símbolo da KIT. Gesticulava dando orientação aos seus subordinados. Em cada um de seus gestos se via o grande prazer que tinha em ordenar, em desfrutar cada momento de sua “autoridade” sobre os outros. “Como isso é possível?”, se perguntava Uílson enojado. Não que desejasse a vaga que Christian acabara de ocupar; definitivamente não tinha esse tipo de ambição. Mas por que uma pessoa tão vazia ocuparia um cargo de supervisão e gerência sobre outros operadores? Justamente uma pessoa cuja única preocupação tinha sido fofocar incansavelmente e comemorar qualquer desgraça alheia, seja de colegas, de amigos, de familiares de ambos, enfim, de todo e qualquer um que pudesse lhe proporcionar alguma excitação que lhe desviasse o foco de sua vida vazia. Certa vez espalhou um boato em toda a operação de que muitos setores iriam fechar e todos perderiam o emprego porque um novo aplicativo de inteligência artificial assumiria o atendimento geral da operação. Tal fofoca causou profunda comoção em todos os operadores. Christian acreditava, até certo ponto, que isso poderia ser verdade, mas nunca fez questão de averiguar a veracidade dos fatos e a real probabilidade de isso acontecer. Preferiu espalhar o boato para “alertar os colegas”. No fundo, se divertia cumprindo esse papel. Muitas vezes fazia isso inconscientemente, tamanho era o prazer que sentia. De certa forma ele acabava reproduzindo o que faz a grande mídia através do seu jornalismo comercial. Em conversas quando eram colegas de operação, Christian confessara a Uílson que a sua grande alegria era “ver os outros se darem mal”. Ele comemorava qualquer tipo de desentendimento, briga de casal, bate-boca público; em suma: tudo o que causasse cizânia para quebrar a normalidade da rotina e contribuir para apagar a consciência da nulidade do seu ser. Uílson desprezava esse tipo de pessoa que encontrava na fofoca e nas intriguinhas a forma de fugir da mediocridade da sua própria vida. Naquele dia, não conseguiu pensar em outra coisa; e cada vez que lembrava disso sentia um arrepio de náusea e indignação. Como aquele tipo de gente conseguia chegar a um posto de comando? Não estaria algo profundamente errado? Só podia ser esta a conclusão, pois haveria melhor forma de controle e comando do que de uma pessoa que tem como objetivo de vida fofocar e produzir intriguinhas? Certamente a direção da empresa conhecia a personalidade de Christian, afinal de contas, não tinha como não conhecê-la, uma vez que sua fama se estendia por todos os andares da KIT.
                Esta “mudança” dentro da empresa prenunciava para Uílson maus augúrios. Christian lhe disse sorrindo e com a mão em seu ombro: “Uílsinho, você está escalado para trabalhar no próximo domingo!”. O contrato de trabalho de Uílson previa jornada de trabalho em apenas dois sábados por mês, e não no domingo. Uma “breve modificação” contratual, como muitas que aconteciam dentro da empresa com o total consentimento da Justiça do Trabalho e do governo, alterara o regime de trabalho de Uílson, que tentou argumentar dizendo que não trabalhava aos domingos. Christian apresentou inúmeros argumentos judiciais, documentos, cláusulas, normas regulamentadoras e decretos governamentais que davam a possibilidade de proceder desta forma. Uílson não teve outra opção senão cumprir a nova imposição. E muitas outras “inovações judiciais” como esta foram sendo introduzidas na KIT: Uílson foi convocado a trabalhar em todos os feriados até o carnaval de 2085, além de revezar um domingo sim e um domingo não com colegas da sua equipe. Como se tudo isso não bastasse, ainda teve as suas metas triplicadas sob risco de desconto salarial. Durante toda aquela semana ia embora da KIT como se tivesse um piano nas costas. O seu único consolo era deleitar-se com a presença de Renata quase todas as noites em sua casa.
                Por influência dela, Uílson deu mais atenção à faculdade, aos seus polígrafos e livros. Decidiu se matricular em cadeiras presenciais para freqüentar as aulas da UE mais seguidamente e, principalmente, para acompanhar e controlar Renata. Sentia muito sono por só poder freqüentá-la à noite, mas mesmo assim resistia firme. Pensou ser no campo acadêmico que poderia dar mais contribuições à humanidade, uma vez que a sua vida profissional estava perdida. Apesar de toda a sua fuga de si mesmo, Uílson ainda queria ser útil de alguma forma. Porém, na universidade tomou um banho de água fria! Deparou-se com filosofias cosméticas, padronizadas, até mesmo de auto ajuda; sistemas filosóficos, expressos através da publicação de montanhas de livros, que não chegavam nem perto do campo de batalha da realidade. Sentiu o profundo abismo entre elas e o marxismo. Para a universidade as classes não existiam mais, muito menos luta de classes! O que dirá então falar em “ditadura do proletariado”? Sentiu o grande contraste entre o que se discutia ali e uma única reunião na casa de José Battle. Os professores diziam que a sociedade estava vivendo a época do capitalismo gasoso, onde tudo é fugaz e nenhum conceito pode ser defendido. Segundo eles, a mudança ocorre ininterruptamente e, por isso mesmo, invalidaria qualquer conceito.
“Descobriram a América!” – pensava ironicamente Uílson. Segundo o polígrafo da cadeira que Uílson cursava, se podia ler que “a teoria do capitalismo gasoso é centrada na análise dialógica da subjetividade ultra-moderna atemporal e amaterial”. “Que língua é esta?”, pensava ele enquanto mostrava para Renata, que parecia não se importar muito com tudo aquilo, lendo e escrevendo seus trabalhos e resumos com tal convicção que parecia realmente ter entendido tudo. Seria fingimento? Se questionava ele, ao mesmo tempo em que se repreendia. Uílson, por sua vez, sentia-se desarmado e desorientado no meio desta enxurrada de abstrações, defendidas com tal afinco que qualquer contestação que fizesse a elas era imediatamente acusado de “dogmático” ou de “viver no século 19”. Ele pensava que a universidade não tinha produzido nenhuma análise realmente séria da realidade social, nenhuma frase nova, nenhuma contribuição consistente, apenas um grande imbróglio hermético destinado a doutrinar na abstração os estudantes universitários ingênuos. A partir daí, muitos alunos universitários que gostariam de fazer carreira, conseguir uma bolsa ou simplesmente se formar, acabavam dançando conforme a música. Outros deixavam-se inflamar pela vaidade, assim como diversos professores, que sustentavam uma fama e um status sem conteúdo, vestindo um disfarce de teorias e ideias modernas, mas que, na verdade, só demonstrava a Uílson a situação diletante em que se encontrava o mundo acadêmico.
Uílson reencontrou o seu velho amigo, Daniel Hermann, com o qual discutiu temas muito caros à esquerda, como socialismo e revolução. No início da sua faculdade, Daniel simpatizava com alguns agrupamentos políticos mais à esquerda dentro do WP, mas agora, havia se convertido totalmente ao “anarquismo”. Não o anarquismo clássico de Bakunin e Proudhon, mas um anarquismo moderno, pastoso, mais próximo de uma base de sustentação do governo, que, utilizando-se das nomenclaturas e termos anarquistas, não queria nenhum tipo de compromisso com a luta sindical ou estudantil consciente. Uílson falou a Daniel que tinha discutido com uma organização revolucionária chamada Justiça Proletária. Ao ouvir tal declaração, Daniel exclamou: “Esse nome me causa espanto, Uílson! Me remete ao século 19!”. “Logo você falando isso, Dani! Lembro-me que era um grande entusiasta de uma das alas de esquerda do WP. O que houve?”. “Uílson, é preciso se atualizar! As classes não existem mais! Esse negócio de partido e de ditadura do proletariado não vinga, nem nunca vingou! É por isso que tornei-me um libertário! Nenhum tipo de controle é bom! Temos que mudar a nossa forma de ativismo: precisamos ir até as comunidades carentes, temos que fazer trabalho voluntário, aprender a falar a sua língua, dialogar com eles com as suas músicas e com a sua própria cultura! O povo unido funciona sem partido”. Involuntariamente o lado honesto de Uílson, que ainda possuía algum escrúpulo, pensou: dialogar com este linguajar acadêmico? E se ele não quer nenhum tipo de dominação e partido, então por que votou no partido do governo nas últimas eleições e fez campanha para ele no facebook? Algo não fecha em tudo isso! Daniel Hermann estava no último semestre do curso de filosofia, ao contrário de Uílson, que fazia suas cadeiras à conta-gotas por causa do trabalho. Logo, Daniel começou a falar com grande entusiasmo de um novo autor que estavam estudando em aula e que defendia a tese do “capitalismo gasoso”. Como estavam se comunicando em línguas diferentes, logo o assunto acabou e ficaram se olhando, um pouco sem graça. Despediram-se. Ambos estavam caminhando em sentidos tão opostos que não voltaram a se falar nunca mais.
                As universidades se banalizaram a tal ponto que eram jocosamente chamadas pelos estudantes mais conscientes do movimento estudantil de “uniesquina”, brotando como cogumelos depois da chuva nos grandes centros urbanos, graças às generosas isenções de impostos e incentivos fiscais do governo. As universidades públicas não mais existiam. Foram totalmente privatizadas na década de 60, na chamada “reforma universitária modernizante”, que também foi denunciada pelo movimento estudantil independente de “grande onda privatizadora”. E quanto mais estas universidades defendiam teorias ultra-modernas, pós-modernas, descoladas da realidade dos trabalhadores e do povo pobre, mais “estrelas” e reconhecimentos recebiam do Ministério da Educação Superior. A propaganda favorável da grande mídia e dos índices governamentais era proporcional à quantidade de abstrações e subjetividades defendidas pela universidade. Uílson se aborreceu profundamente com esta situação. Ao comentar estes pensamentos com Renata acabaram brigando feio.

Capítulo 5
As ilusões perdidas

                O celular de Renata Stuart não atendia nenhuma chamada há dias. Todas as ligações caiam na caixa de mensagens. Uílson digitava freneticamente o seu número na tela do celular; ligava uma, duas, dez vezes! E todas as ligações não recebiam retorno.
Foi numa quinta feira cinzenta de outubro que o mundo de Uílson caiu totalmente. Acessou seu e-mail e lá estava o que emocionalmente para ele equivalia a uma bomba para um soldado:

                Foi bom enquanto durou! Não me procure mais!
                R.

                Uílson teve rompantes psicóticos. Quis sair correndo de casa e ir atrás dela. Pensou em ligar pra xingá-la, humilhá-la, gritar-lhe todos os impropérios que conhecia. Mas não fez nada disso. Caiu numa depressão profunda. Chorou e bebeu durante uma semana. Faltou 3 dias seguidos ao trabalho e teve o desconto salarial correspondente. Ficou eufórico quando recebeu uma mensagem do controlador eletrônico pensando que era Renata lhe pedindo para voltar, mas tratava-se apenas da direção da empresa lhe intimando a comparecer ao trabalho no dia seguinte, caso contrário, perderia o emprego. Apesar destes dias de depressão, Uílson era um funcionário que não dava maiores prejuízos à empresa; pelo contrário, podia ser preservado por ela, pois era dócil, prestativo, e, além do mais, a KIT tinha investido alguns dólares reais na sua formação profissional para ensiná-lo a operar o seu sistema tecnológico. Em todo o seu longo tempo de KIT – recordista se comparada aos outros operadores, que suportavam, no máximo, 6 meses –, era a primeira vez que Uílson havia faltado.
                Os acionistas da KIT tinham desenvolvido um novo método de proceder frente às ausências por enfermidades: cansados de investigar atestados médicos, planos de saúde e listas de hospitais, a direção da empresa, seguindo a onda de outras grandes multinacionais, abriu uma enfermaria interna e começou a medicar os seus próprios funcionários. No início apenas receitava remédios de tarja preta a preços acessíveis. Somado à ameaça do corte salarial e da demissão, isso inevitavelmente aterrorizava moralmente os funcionários a ponto de fazê-los voltar ao trabalho no dia seguinte da primeira falta. Além disso, a enfermaria cumpria o papel de clínica psiquiátrica, dando laudos médicos e psicológicos, no mínimo, duvidosos.
O lado mais obscuro de tudo isso, contudo, se encontrava no fato da enfermaria receitar um remédio próprio, desenvolvido pela KIT em parceria com outras empresas multinacionais, visando garantir a produtividade e assiduidade dos seus trabalhadores. Os operadores da KIT, chamavam-no popularmente de “droga da sonolência”. Bastava uma pílula para perder completamente as dores, os sentimentos, as angústias e tornar-se como que um sonâmbulo semi-consciente. Ficava-se em estado de choque permanente, seguindo a orientação de qualquer pessoa (principalmente dos supervisores), como se a pessoa estivesse absolutamente hipnotizada. Ao ver a situação de um colega que havia sido submetido à “droga da sonolência”, todos evitavam desesperadamente ficar doentes – como se isso fosse possível! –, colocar atestados médicos ou ficar muito tempo afastado do serviço. Era uma “sinuca de bico”, não havia saída! O Ministério da Saúde não apenas legalizava tal procedimento das “enfermarias autônomas” de cada “grande empresa”, como também apoiava e orientava os médicos dos hospitais e das pequenas clínicas a serem extremamente rígidos com qualquer funcionário de multinacional que estivesse querendo “fazer corpo mole”. Os salários ou impostos para estes “médicos” eram distribuídos de acordo com estas “mãos invisíveis” que operam nestes bastidores políticos e econômicos.
                Sendo assim, Uílson foi obrigado por todas as circunstâncias a voltar ao trabalho, mas carregando junto consigo todo o peso da sua depressão, do desprezo pelo mundo e, em particular, pelas pessoas que o rodeavam. Ainda chorava o seu desprezo amoroso: como é possível que as relações sejam assim tão descartáveis? Tamanha era a angústia de Uílson que passou por sua cabeça tomar a “droga da sonolência” para livrar-se do fardo, da dor e do desespero que gritava mentalmente a uma multidão incapaz de perceber tal sofrimento, por já possuir outros tantos sofrimentos em demasia. Até quando aquele apartheid social iria durar? “Morfina! Morfina para viver!”, esse era um dos gritos interiores de Uílson, que por viver submetido a um regime de opressão e recalcamento desde a infância, não conseguia sair pela sua garganta. Só sentimos opressão! E mais opressão! E mais opressão! Uílson não sabia o porquê de não conseguir externar este sentimento que o matava a cada minuto que passava.
A luz de “escuta” acendeu-se no computador de Uílson. Isso significava que os supervisores estavam ouvindo as suas ligações e monitorando o seu trabalho. Teve que acelerar os procedimentos para aumentar os pontos da produtividade e o número de clientes contatados. Neste momento, quando algo nos falta, conseguimos perceber pequenos detalhes que nos passam despercebidos quando estamos “bem”. Foi o caso do estalo mental que aquela ligação lhe causou: Uílson, no mesmo dia, comunicou-se com duas alas de uma mesma guerra civil em Moçambique, na África. Vendeu um carregamento de metralhadoras para o governo, ao mesmo tempo em que conseguiu vender uma grande carga de munição para os “rebeldes” de oposição. A KIT estava, sem nenhum escrúpulo, lucrando duas vezes com uma mesma carnificina humana. Percebeu dois absurdos ao mesmo tempo: 1º) havia toda uma política extra-oficial dos países imperialistas voltada para a manutenção do comércio e dos lucros da indústria bélica; sendo assim, era evidente que as guerras nunca teriam fim no capitalismo; 2º) ele estava contribuindo conscientemente com tudo aquilo!
Porém, Uílson se perguntava: como jogar “tudo aquilo” para o alto se é daí que provém a minha única fonte de sustento? E concluía: a que situação miserável estou submetido! Ou melhor: que situação o capitalismo me submeteu! Que grande tragédia! “Mas este não é só o meu drama!”, disse Uílson em voz alta, batendo na sua mesa de trabalho e chamando a atenção de alguns colegas ao lado, que não entenderam nada e rapidamente voltaram ao trabalho sob o olhar autoritário dos supervisores. Decidiu, por fim, se matar! E seria naquela noite mesmo: ao chegar em casa tomaria uma overdose de remédios, pílulas, ácido e uísque. Para que continuar vivendo desse jeito? Estava decidido: a morte é a única saída para este mundo miserável! Cada segundo era uma eternidade e o relógio não marcava nunca 20h40min. Mesmo com essa decisão sombria em mente ele não parava de trabalhar. E entrava outra ligação; e outra; e mais outra. “Por que ajo dessa forma se decidi me matar? Se nada mais importa?”, ele pensou olhando para longe. “Por que não paro tudo agora e simplesmente me jogo do oitavo andar, como aquele operador?”. Quando novamente a luz da “escuta” piscou. Não sabia o porquê, mas ia mantendo as aparências. Apesar de não ter tomado nenhuma “droga da sonolência”, Uílson estava dopado pela vida e seduzido pela morte. Foi entrelaçado nessas reflexões que ele suportou disciplinada e obedientemente até a hora da saída.
***
                Finalmente o relógio apontou 20h40min! Uílson tirou o headset e o pendurou na divisória com a outra mesa. Pegou a sua mochila e junto com dezenas de outros operadores dirigiu-se para a fila do elevador. Com o alívio da saída, o sentimento suicida havia diminuído consideravelmente. Como estava atordoado pela vida, não conseguia pensar muito bem, apenas seguia a manada, que descia no elevador lotado rumo ao saguão que dava para a porta da saída. Lembrou-se do fim do namoro com Renata! Uma chaga fincou o seu coração e o partiu de cima até embaixo! Engoliu o choro e ficou olhando para cima para que as lágrimas contidas não caíssem e não chamassem a atenção de nenhum colega. A sensação de desamparo o consumiu, fazendo com que a descida se assemelhasse a um pequeno pedaço da eternidade.
                As portas abriram-se. O edifício da KIT ia cuspindo operadores incessantemente para três lados diferentes. Uílson tomou seu rumo na expectativa de chegar em casa o quanto antes. Triturado sentimentalmente, estava exausto, abatido, desmoralizado. A sua sensação mais imediata era que pra recuperar as energias deveria dormir uma semana inteira. Mas que nada! Aquele comichão emocional não lhe abandonava. Lembrava-se do seu desencanto amoroso e novamente tudo começava. Então abriu a gaveta do criado mudo e pegou alguns comprimidos. Antes que tivesse coragem de abri-los, desmanchou-se em lágrimas. Como um rio em fúria descendo a encosta de uma montanha, Uílson chorou o seu amor perdido, a sua vida sem perspectivas, a sua solidão, o seu desamparo. Chorou tanto em cima de sua cama, todas as lágrimas que tinha e as que não tinha, que, por fim, acabou adormecendo de bruços, da mesma forma que tinha se jogado.
***
                Por toda aquela semana Uílson sentiu-se daquele jeito. Não apenas não se matou, como continuou indo trabalhar toda a droga de dia. De tanto chorar chegou a um estado de exaustão que parecia ter liberado em seu organismo uma espécie de morfina natural. Tudo lhe era indiferente! O fundo do fundo do poço parecia ter mais um buraco para ir mais fundo ainda. E Uílson ia... Pensava em se matar novamente; e outra vez adiava o suicídio sem saber o porquê.
                A sua ausência nos encontros familiares mensais, o silêncio nos e-mails e nas redes sociais, despertou a atenção dos seus tios, que lhe ligavam e também não recebiam retorno. Preocupados com tal situação, lhe fizeram uma visita breve durante a noite de uma quarta feira qualquer e repararam na bagunça de sua casa, em suas olheiras profundas, nas duas garrafas de Johnny Walker e Jack Daniels vazias ao pé da cama. Viram também algumas fotos de Renata na sua estante virtual, o que lhes deram a chave para entender metade do drama. Combinaram um almoço no próximo domingo, quando Uílson estava fora da escala de trabalho. Meio sonolento, mais para se livrar da presença incômoda dos tios do que por vontade própria, Uílson consentiu. Na saída seu tio viu alguns livros de Trotsky sobre a estante e franziu o cenho. Lhe recomendou que se livrasse “daquele lixo” o quanto antes. Disse ainda que “na época das ditaduras, por muito menos pessoas eram presas e torturadas”. Bateram a porta e se foram. Uílson ficou só consigo mesmo novamente. Ouvia apenas o tic-tac do relógio e a voz metálica do controlador doméstico, que dizia que já passava da hora de dormir.
***
                Tardiamente instigado pelas memórias da reunião na casa de José Battle, Uílson resolveu seguir os conselhos de Eduardo e leu algumas obras de Trotsky que conseguiu com grande dificuldade em um sebo na Rua da Ladeira. Teve acesso a mais um ou outro artigo esparso pela internet, baixando e imprimindo em lan houses. A vida de Trotsky lhe causou um grande abalo interior. De repente sentiu-se envergonhado por fugir da luta ao se deparar com a história do velho revolucionário, perseguido e caluniado por todo um aparato estatal degenerado. A forma como Trotsky escrevia lhe era absolutamente clara; explicava muitos fatos obscurecidos pela mídia, pela universidade e pelos amigos e familiares reacionários. Entendeu porque ele era sutilmente ignorado e censurado, bem como o marxismo duramente atacado e distorcido nas universidades e na mídia. Começou a compreender que somente o verdadeiro marxismo era virulentamente atacado. Existiam “outros”, mais híbridos e desfigurados, que eram levantados nas universidades e por outras organizações de “esquerda” que Uílson passou a conhecer quando debateu com os militantes da Justiça Proletária e após fazer uma nova pesquisa na biblioteca da UE.
                Aquele estudo lhe abriu a mente e lançou luz sobre o seu futuro. Era como se um novo caminho se abrisse para ele por entre o mar de dor e sofrimentos causados pelo seu recente abandono e falta de perspectiva. Pensou instantaneamente em retomar o contato com os companheiros que conhecera na casa de José Battle, mas não fez nada para que isso acontecesse. A vida seguiu adiante.

Capítulo 6
Os arautos da reação

                O domingo amanheceu chuvoso, cinzento e até um pouco frio. Uílson enxugou os pés no tapete de entrada do apartamento dos seus tios, em um dos belos edifícios da zona leste da capital. Seu tio ligava-se a Uílson pelo lado materno da família. Ajudou de longe na sua criação após a separação dos seus pais, que não tiveram outro filho. Quando tinha 6 anos, Uílson foi morar com a avó, mãe de sua mãe, uma vez que os pais entraram em profundo atrito pelos poucos bens acumulados durante os anos de casados e esqueceram-se de cuidar dele, que cresceu largado, fechado em seu próprio mundo, povoado pelos brinquedos, desenhos e livros. A justiça deu a guarda para avó, que a reivindicou, comovida com a situação de relativo abandono em que se encontrava o menino. O pai de Uílson morreu quando ele completou 10 anos de idade, em um acidente de AirBus no Rio de Janeiro. Apesar de ter convivido pouco com o filho, deixou nele muitas marcas sentimentais e de personalidade. A mãe, abalada com a solidão e com o fardo de criar sozinha o filho, morreu de câncer. Dois dias depois do funeral Uílson completou 23 anos. Logo em seguida, já próximo da casa dos 30, foi a vez da avó lhe deixar (os avôs ele nunca chegou a conhecer). Talvez esta tenha sido a perda mais sentida por ele pelo tempo de convivência. Os tios acompanharam toda esta agonia familiar com grande pesar e dando algum tipo de suporte financeiro e emocional. Exerciam, de alguma forma, influência sobre o modo de pensar e de ser de Uílson. Por terem apenas um filho, que não lhes dava muita atenção em razão das brigas não superadas da adolescência, os tios compensavam os sentimentos paternos em Uílson.
                Quem abriu a porta de entrada foi a sua tia Odete, que se espantou ao ver a roupa molhada de Uílson: “Meu deus do céu! Você está todo encharcado, meu filho! Vá até o banheiro se enxugar”. Odete tinha um zelo exagerado pela casa, pela sua limpeza e conservação. Foi cuidando o carpete para que não molhasse com os poucos pingos que caíam de Uílson. Evangélica fervorosa, Odete era freqüentadora assídua dos cultos dominicais e de todos os outros que conseguia ir. Naquele domingo, para grande desespero do Pastor João Ezequiel, não compareceu ao templo em razão do almoço com o sobrinho.
“Tome aqui uma camiseta do seu tio”, disse ela abrindo a porta do lavabo e lhe entregando a camiseta, junto com uma toalha. Uílson sentiu o cheiro de sabonete invadir suas narinas quando entrou no banheiro impecavelmente limpo, lustroso e bem moldado. Tirou a camiseta molhada, se enxugou e se olhou no espelho. Reparou nas suas olheiras profundas em contraste com sua pele excessivamente branca, que lhe davam um aspecto vampiresco. Sentiu-se feio, cansado. Uma sensação de peixe fora d’água percorreu o seu corpo.
                Ao sair do banheiro, Uílson se deparou com o tio, que lhe dava as boas vindas. Roberto Ferrer, ou simplesmente Tio Beto, era um promissor representante comercial de uma grande empresa do centro do país. Acostumado a trabalhar pouco (ou quase nada) e a ganhar muito, Tio Beto esbanjava uma vida muito boa para os padrões do subpaís: apartamento espaçoso e confortável em uma zona nobre da cidade; carros particulares; viagens regulares para a Europa e os EUA, 3 empregados domésticos e 1 assessor profissional e jurídico, que lhe fazia todos os procedimentos legais (ou melhor, ilegais) para a sua vida funcional: imposto de renda, trâmites judiciais, marcava e desmarcava compromissos, lhe dava conselhos empresariais e fazia pesquisas jurídicas. No campo político, as suas opiniões beiravam a insanidade reacionária, relembrando muitos “intelectuais” burgueses antigos, tais como Olavo de Carvalho e Percival Puggina, dentre outras pérolas “jornalísticas” do tipo. Não era casual que bem em cima da estante de entrada estivesse um smart phone com a última edição da Revista Veja aberta. Uílson, quando adolescente, não entendia as posições do Tio, no entanto, agora, mais velho e um pouco mais experiente, muitas coisas passaram a fazer sentido. Tio Beto sempre discordou das tímidas posições esquerdistas de sua irmã, a mãe de Uílson, reproduzindo uma das formas clássicas do machismo ortodoxo: “mulher não tem posição política, só tem que lavar roupa e cuidar de casa”, dizia ele sério, mas quando algum olhar – geralmente feminino – ousava se arregalar, ele desconversava e relativizava em tom de brincadeira. Todavia, para qualquer “entendedor” mediano, percebia-se que ele falava muito seriamente.
                Tio Beto e Tia Odete tinham preparado um esplêndido banquete para Uílson. Em cima da mesa central fumegava uma panela de arroz, acompanhada de salada de batata, cebola e vagem. Na churrasqueira, um pouco mais à esquerda da sala, já se sentia o cheiro do bom churrasco: picanha, vazio, salsichão e um grande pedaço de costela. Tudo regado à cerveja da melhor qualidade. “Sente-se aqui”, disse tia Odete apontando para a ponta da mesa.
                “Chamamos você pra almoçar com a gente por que ficamos preocupados”, falou o Tio sentando-se na mesa junto com a esposa. “Você nunca passou uma semana sem nos responder um e-mail. Qual é o problema, filho?”. “Estou passando por uma crise existencial, tio, é só isso!”, disse Uílson baixando os olhos e levando um garfo cheio de arroz à boca. “Por acaso tem alguma coisa a ver com aquela moça que vimos nas fotos...”, disse a Tia com uma curiosidade mordaz. “Não, Odete, não!”, repreendeu-a Tio Beto, “Não constranja o rapaz”. Uílson ruborizou, mais pela censura do tio do que pela pergunta, e bebeu um gole de cerveja gelada para disfarçar.
                “N-na verdade”, disse Uílson pisando em ovos, “ela é apenas uma parte desta crise existencial. Não tenho encontrado mais razão em viver”. Os tios pasmaram-se, pararam de comer e vidraram os olhos no sobrinho. “O meu trabalho é enfadonho e infame; não tenho amigos verdadeiros e os meus relacionamentos não duram. Que razão posso ter para viver?”. Uílson imediatamente sentiu a face se afoguear e repreendeu-se por ter falado tanto. “Mas isso não está certo”, disse o tio batendo na mesa. “Vou falar já com o Giordanni para ver se ele ainda tem aquela vaguinha na empresa de automóveis. Bom salário, 4 tubos de oxigênio por mês, promoção por merecimento, folgas no domingo!”, Tio Beto ia listando nos dedos todas as qualidades daquele emprego. “N-não tio”, disse baixinho Uílson, “o meu problema é mais profundo do que isso”. “Ai meu deus do céu! Jesus olhe por tua alma! Esse menino vai se matar como aquele rapaz do Cidade Urgente!”, disse tia Odete fazendo o sinal da cruz. “Cala-te, Odete! Vê se para quieta!”, repreendeu-a novamente Tio Beto. “Vocês não estão entendendo”, disse Uílson, “vamos mudar de assunto!”. “Não, de forma alguma. Precisamos resolver este problema”, disse Tio Beto, “o que será do seu futuro?”.
Uílson prostrou-se no canto da mesa, claramente descontente com tudo aquilo. “Caí numa grande armadilha!”, ele pensava. Sem ter para onde correr e cansado de não dizer o que realmente pensava, Uílson resolveu encarar a situação e falar tudo o que sentia, mesmo que não compreendesse profundamente as suas causas. Foi levado a isso por uma daquelas suas vozes internas.
                “T-tio, eu discuti com a oposição sindical da minha empresa e tudo o que eles me falaram faz muito sentido”, disse timidamente. “Co-como assim ‘oposição sindical’?”, indagou consternado Tio Beto, “você, por acaso, está falando de um sindicato, de socialismo?”. “S-sim”, disse Uílson baixando mais ainda a voz e já arrependido por ter começado a falar sobre o assunto. “Você endoideceu! Perdeu completamente o juízo, rapaz! Onde está com a sua cabeça?”, gritou Tio Beto, virando bicho, como se algo lhe tivesse ofendido pessoalmente. “Socialismo!” disse a tia, “são todos ateístas, deus me livre!”, disse isso fazendo uma sequência de sinais da cruz como que querendo se proteger de uma peste. “Quando vi aqueles livros na sua casa logo vi que não era boa coisa”, falou Tio Beto olhando para o chão, com um ar de quem estava entendendo todo o problema.
“Olhe rapaz, eu bem sabia que crescer com a influência da sua mãe não ia lhe fazer bem, ela nunca bateu bem da cabeça, desde menina!”, Tio Beto dizia isso com uma chama ardente no olhar. Uílson sentiu-se extremamente culpado, mas não sabia exatamente pelo quê. Percebeu que a análise de Tio Beto sobre a influência materna não tinha absolutamente nenhuma procedência. Quando muito suas posições iam a um tímido reformismo. Ele simplesmente havia começado a enxergar o mundo com os seus próprios olhos e os tios não queriam entender, muito menos aceitar, pois fazer isso seria como um golpe fatal no seu estilo de vida esbanjador. Uílson imediatamente entrou na defensiva, queria mudar de assunto a qualquer preço, porém, Tio Beto lhe alvejava de todos os lados, como se convencê-lo a mudar de ideia dependesse sua própria sorte. Não apenas não queria que Uílson entrasse em nenhuma oposição sindical ou organização revolucionária, mas que rompesse com qualquer tipo de diálogo ou vínculo com elas. “Nem jornal; nem sequer um único panfleto!”, dizia ele visivelmente transtornado.
“Onde você viu o socialismo dar certo, Uílson, me diga: onde?”, e gesticulava as mãos com um ódio incompreensível ao sobrinho. “Se não dá certo”, perguntava-se Uílson em pensamentos, “por que então eles têm tanto medo do socialismo? Não era pra estar tudo resolvido? Por que tanto ódio e tanta consternação ao se tocar nesse assunto?”. As perguntas já continham um germe de resposta. E Tio Beto continuava: “Na teoria isso é tudo muito bonito, mas quando vai para a prática as coisas não são bem assim”, e dava um sorrisinho irônico, como se tivesse desmascarado os melhores argumentos do sobrinho. “Os comunistas são todos ateístas, negam deus e os valores da família! Querem ditadura gay! Imaginem um país sem deus, que absurdo?”, falou Tia Odete, horrorizada. Uílson olhou para a janela e pensou ironicamente: “Querem me ajudar ou me enterrar?”.
Tio Beto agora já tinha as veias do pescoço saltadas. Foi fundo no baú da memória! Explanou tudo o que sabia das quatro últimas edições da Veja, muniu-se da melhor artilharia dos tradicionais livros que leu em um passado distante e os que só leu o título: “A insustentável leveza do ser”, 1984”, “Revolução dos bichos”, “O zero e o infinito”, “O livro negro do comunismo”, “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, dentre outras pérolas. Uílson reparou no farfalhar da copa de uma árvore que aparecia no canto da janela da sala. A chuva havia cessado. Desejou estar numa praia deserta, sentindo o cheiro de maresia. No fundo do seu devaneio, o tantra reacionário continuava: “Em nenhum país do mundo isso deu certo! Sempre virou ditadura! Veja a Albânia e a Coréia do Norte”, e falava com o indicador para cima! “Se acalme, Roberto”, falou Tia Odete, percebendo a alteração anormal do marido.
Tio Beto se acalmou um pouco. Neste momento um instinto provocador emergiu no interior de Uílson: “E por acaso não vivemos em uma ditadura disfarçada? No meu trabalho eu mal posso olhar para o lado sem ser repreendido; nem posso ir ao banheiro sem ser vigiado. Se chego atrasado ou fico doente meu salário é impiedosamente descontado e se chego a ter ousadia de defender uma posição política contrária dentro da empresa sou sumariamente demitido! É a ditadura do desemprego! A única diferença é que fazem tudo isso se escondendo atrás das leis e dos grandes meios de comunicação, que afirmam 24h que vivemos em uma democracia e que essa é a melhor sociedade que a humanidade pode construir! E tudo isso para quê? Para sustentar o lucro descomunal da empresa que me trata como um escravo. Quanto mais trabalho, mais pobre e dependente fico; e eles mais ricos às minhas custas e às custas das inúmeras vidas sacrificadas nas guerras que a KIT patrocina e sustenta pelo mundo! O único e verdadeiro deus nesta história é o dinheiro! In god we trust!”. O rosto da Tia embranqueceu de pavor. Tio Beto ficou vermelho, como se estivesse com algo preso na garganta. Falou aos gritos: “Então você quer viver numa ditadura como foi a Rússia?”. “Em primeiro lugar”, disse Uílson também gritando, “aquela revolução foi traída pela burocracia stalinista e isolada pelo imperialismo mundial; em segundo lugar, o socialismo não será igual em todos os países. Aquela foi uma experiência! E como tal deve ser encarada! O 14 bis de Santos Dummont foi muito imperfeito comparado com as aeronaves atuais. É preciso olhar as experiências sociais com uma escala que lhe seja adequada e não de acordo com uma receita de bolo ou com as nossas conveniências mesquinhas. E você Tio Beto, quer viver para sempre em um país colonial, submisso, exportador de produtos primários, dependente dos centros financeiros internacionais? Me diga você também, aonde o capitalismo deu certo para o povo? Para os trabalhadores? Aonde ele não foi um grande negócio apenas para uma pequena elite parasitária e para as suas rêmoras?”.
Tio Beto começou a tossir. Levantou-se e ficou inquieto, andando de um lado para o outro. “Acalme-se Roberto”, dizia Tia Odete, indo atrás do marido. “E digo mais”, continuou Uílson, “cansei da vida de fingimento, de segregação, de luta pela sobrevivência, de alienação. Não quero mais a sopa gosmenta da televisão, dos jornais, da internet. Eu quero um futuro! Quero construir uma nação de verdade! Eu não consigo mais suportar a visão de dezenas de indigentes pelas ruas, das slum cities! Pra mim chega!”. Tio Beto percebeu que tudo estava perdido. Como bom cínico, voltou para a mesa e apostou na tática do cansaço. Imediatamente mudou de assunto, mesmo percebendo que Uílson queria desabafar e o pior: tinha razão! Começaram pelos assuntos familiares e depois, com a contribuição de Tia Odete, descambaram para as trivialidades mais mundanas. Uílson suportou aquela hipocrisia por mais algumas horas e depois conseguiu ir embora. Foi a partir deste domingo que a freqüência com que os tios o procuravam foi diminuindo até tornarem-se encontros esporádicos e casuais.
***
                A que ponto de indiferença social chega um ser humano? Como é possível que uma doutrina religiosa que prega a igualdade, a divisão de bens e a bondade para com o próximo sirva como carapuça para o egoísmo? Como se sustenta esta segregação social entre ricos, meio ricos e miseráveis? Para esboçarmos um princípio de resposta é preciso entender que existe uma hipocrisia institucionalizada, banalizada! Tão comum que ninguém perceba que ela está encarnada no modo de agir, de ser, de pensar, de falar da grande maioria das pessoas! O discurso é definitivamente divorciado da prática. O reconhecimento do direito de “igualdade” fica limitado ao papel. As instituições políticas e econômicas, que dizem ser “democráticas” e promotoras desta “igualdade”, sustentam as práticas que mantém a desigualdade social, justamente porque a sua finalidade é defender o status quo, desigual por natureza. Todavia, como não podem reconhecer isso abertamente, apelam para os discursos demagógicos, que obscurecem a real contradição social. Imaginem que confusão isso causa na mente dos incautos! Como não poderia deixar de ser, esta prática se espalha como um vírus para todos os outros setores sociais: educação, mídia, moral, relações sociais e familiares. Gerações e gerações de seres humanos são educadas na mentira, na hipocrisia e no descaso para com o próximo, enquanto buscam a benção do padre, pastor ou guru espiritual para conquistar o seu lugar no paraíso post mortem. A maior parte destes indivíduos não tem plena consciência disso. Simplesmente ouviram desde crianças: “pessoas moram na rua porque querem, pois emprego tem! Eles não querem trabalhar!”. Omitem desta análise toda a estrutura social, o desemprego crônico, a luta pela sobrevivência, os bolsões de miséria mantidos artificialmente por sucessivos governos; tudo, evidentemente, feito sob medida para sustentar o edifício social que garante o lucro da grande burguesia.
                Pior do que isso! Não satisfeitos com a sociedade decadente, a exploração, a opressão, a prostituição, eles querem mais: agem como gafanhotos famintos que atacam uma lavoura! Ninguém os freia porque não há consciência e nem organização para isso. Jogam trabalhador contra trabalhador; difamam as ideologias proletárias; atiram tudo na mesma vala comum da sujeira e podridão da moral capitalista. “Não existe sistema bom! Capitalismo e socialismo são bons ou ruins igualmente, porque o ser humano é ruim”, diz uma voz lá de cima, e um escravo reproduz para o outro, que passa adiante... Que brilhante sistema de auto escravização!
                Toda história do século 20 comprova aquela máxima: “nenhuma classe dominante abandona a cena histórica sem uma encarniçada resistência”. Ou seja, ela vai sendo empurrada para a lata do lixo da história, mas tenta levar consigo o máximo que puder. A burguesia fala em direitos humanos para melhor violá-los em diversos países do mundo, inclusive nos países ditos avançados; grita contra as ditaduras “comunistas” e pela “democracia”, mas sustenta diversas ditaduras pelo mundo; choca-se com os genocídios e guerras dos ditadores “comunistas”, mas promove guerras pelo mundo sem nenhum tipo de constrangimento, inclusive sendo abençoada pelos padres; defende a “liberdade de imprensa”, mas desenvolve vários tipos de censura à imprensa operária e de esquerda, seja de forma aberta ou dissimulada; sustenta que vivemos em um mundo globalizado e dos “Estados democráticos de direito”, mas os trabalhadores continuam morrendo de fome pelo desemprego, pela miséria, pelas doenças banais, pela indiferença – tudo para sustentar o sacrossanto lucro e propriedade privada da burguesia. Quando é questionada por tudo isso, responde cinicamente: “é o meu direito democrático defender estas posições!”. Quais posições? A que condena centena de milhares de pessoas ao desemprego, à fome, à miséria, a morrer definhando em razão das doenças e das guerras? E esta mesma burguesia que se diz tão cheia de virtudes, frente a um processo revolucionário, quando os trabalhadores se sublevam, não se furta a sabotá-lo, infiltrando agentes provocadores, a incentivar assaltos, pequenos crimes que parecem obra do acaso, até o financiamento direto de exércitos contra-revolucionários.
Durante todo o século 21, após a restauração capitalista nos ex-Estados operários e através da defesa de que o neoliberalismo seria a única solução para todos os problemas, foram drenando gradativamente todo o dinheiro público para o setor privado: bancos, mega empresas nacionais e multinacionais. Primeiro privatizaram as empresas estatais a preço de banana, com um discurso sedutor para enganar o povo; depois, os serviços públicos; posteriormente, acabaram com os direitos sociais – leis trabalhistas, qualquer resquício de estabilidade, CIPAs, representatividade sindical, etc. – e com qualquer tipo de assistência social, excetuando os casos de interesse publicitário governamental ou para colocar panos quentes sobre o latente descontentamento social. Tudo isso, é claro, acompanhado por uma grande campanha publicitária e ideológica que não deixou pedra sobre pedra. Por fim, privatizaram tudo o que cheirasse a “público” com um discurso de progresso, de melhorar o nível de vida da população. Como não poderia deixar de ser, tudo isso resultou no aumento colossal da miséria e do distanciamento entre ricos e pobres, isto é, em um contra senso, pois exclui qualquer participação popular nas principais decisões, privatizando os lucros e a administração de todas empresas e serviços sociais. Em poucas palavras: todas as privatizações estão na contramão dos interesses sociais. E por que são vendidas como necessárias; como a única saída possível? Por acaso isso não seria o mesmo que querer apagar fogo com gasolina? Não, dizem as organizações reformistas, as burocracias sindicais, os intelectuais a soldo do grande capital, ou seja, todos aqueles que induzem os escravos a apagar o fogo com gasolina, que acaba se alastrando em suas próprias roupas enquanto se convencem que estão construindo uma sociedade democrática e melhor.
Tio Beto era entusiasta defensor das privatizações e do neoliberalismo, que levava a mais brutal especulação financeira e a lucros inimagináveis até mesmo para Jordan Belfort, o primeiro lobo de Wall Street. O que ele ganhava com isso? Nada, apenas o aumento da miséria ao seu redor, que levava seu edifício a se cercar com grades elétricas, câmeras e seguranças. Terminava, portanto, no lamentável papel de cúmplice semi-consciente da espoliação do seu próprio subpaís, sendo não apenas egoísta, mas sádico e perverso, porque de alguma forma sentia prazer com o sofrimento do povo e regozijo com a sua própria “salvação”. Quando era indagado sobre como ficou rico ou como os milionários fazem fortuna, Tio Beto sempre respondia mais que depressa: “com muito trabalho!”. Ele queria esconder e naturalizar tanto a exploração dos trabalhadores, quanto o roubo que fazem dos cofres públicos por meio de fraudes em licitações, contratos superfaturados, empréstimos bancários com juros subsidiados (enquanto o povo pobre sofre com os juros extorsivos) e até mesmo “milagrosas” ajudas e incentivos do Estado para comprar novas empresas ou salvá-las da bancarrota. Tal é o “trabalho” dos grandes e pequenos capitalistas!
                Uílson era indulgente com o Tio, sem ver que isto era um erro, pois ele representava uma camada social que se beneficiava da desigualdade social (ainda que pagasse um preço que não compreendia direito) e, apesar de tudo, sentia que as coisas estavam boas para si próprio e para a sua família, então, “para que mudar? O resto que se danasse!”. Esse devia ser um dos seus pensamentos íntimos que somente em ocasiões propícias eram revelados. E Tio Beto ia mais longe quando afirmava: “bastaria que os vagabundos deixassem de ser vagabundos e começassem a trabalhar!”. Porém, havia um pequeno detalhe: e se não existe emprego para os “vagabundos”, justamente porque interessa ao capitalismo manter esses grandes contingentes de miseráveis, párias sociais e desempregados, que aceitam qualquer valor para fazer os trabalhos mais desgastantes e humilhantes? Tio Beto não responderia e novamente desconversaria, usando novos dados e outros livros filosóficos e literários para continuar justificando o injustificável. No fim, concluiria: “sempre foi assim e continuará sendo assim!”. E tudo estaria resolvido! Ele só não acrescentaria o que realmente pensa: “para mim está bom, atingi o meu lugar ao sol e o resto é que se dane!”. Para piorar, esta podridão muitas vezes se alastra aos setores do próprio proletariado, que reproduz uma posição reacionária sem o saber (ou, às vezes, sabendo, por influência de outros reacionários, da mídia, etc.). Uílson já tinha se deparado com muitos colegas da KIT que agiam da mesma forma que o Tio e sentia uma profunda decepção com isso, como se um peso insuportável fosse colocado em suas costas e um forte desamparo para seguir na luta.
                Poderia o capitalismo se manter sem esses arautos informais, na maioria das vezes inconscientes, que se travestem com as cores de gente próxima, familiar, que muitas vezes fala a nossa língua? A grande burguesia não precisa gastar um único tostão furado para tentar convencer do contrário Uílson e muitos outros sujeitos que despertam para a vida social e política, pois contam com infiltrados na sua própria família ou nos círculos de amigos.
Surge outra questão não menos pertinente: estaria tudo isso dissociado do egocentrismo e da vaidade? Evidentemente que não, muito embora nem sempre ele seja o motor principal! Uílson sentia nojo deste sentimento mesquinho, mas a ideologia capitalista, sobretudo a neoliberal, enquadrava-se bem na lógica do “salve-se quem puder!” e do “eu sempre em primeiro lugar!”. Entretanto, é preciso olhar todo o quadro. O capitalismo lança os indivíduos numa luta de todos contra todos, no desespero pelo emprego, por um salário, pelo pão nosso de cada dia e depois justifica tudo isso através da sua famosa ideologia que diz que todos são egoístas e mesquinhos e que querem se salvar primeiro do que os demais. Mas quem deu o ponta pé inicial? Seria bastante razoável pensar que dentro dessa selvageria social não é muito comum surgirem seres humanos com ideais éticos muito elevados.
                Na nossa época, o indivíduo tornou-se mais consciente do que nunca da sua dependência da sociedade (alguns mais, outros menos). No entanto, ele não sente esta dependência como positiva, como um laço orgânico, como uma força protetora, mas como uma ameaça aos seus direitos naturais, ou ainda, à sua existência. Ele sente muito mais o laço mordaz do chicote do que os escassos momentos de paz, sossego e prosperidade. Não compreende as forças em jogo. Sua consciência é invadida por todo o tipo de esoterismos, misticismos, ilusões; é esvaziada pela televisão, pela letargia política, pela esperança de um “messias”, uma espécie de pai ou de mãe que fará tudo por ele. Além disso, a sociedade capitalista acentua monstruosamente seus impulsos egocêntricos, ao mesmo tempo em que deteriora progressivamente os impulsos sociais. É uma política consciente e deliberada de governos, justiça, grande mídia. Qualquer elemento que fuja desta lógica é taxado de “louco”, “autoritário”, “subversivo” e outras preciosidades do gênero. Todos os seres humanos, independentemente da sua posição na sociedade, sofrem este processo de deterioração. Inconscientemente prisioneiros do seu próprio egocentrismo, sentem-se inseguros, sós. O ser humano pode encontrar sentido na vida, curta e perigosa como é, apenas dedicando-se à sociedade.
Esta foi a grande conclusão que Uílson tirou de toda a experiência que vinha acumulando nos últimos meses. Conclusão esta que inevitavelmente criava um abismo entre ele e os tios. Por melhores condições de vida que eles tivessem, que papel poderiam desempenhar a não ser o de rêmoras dos grandes tubarões capitalistas? Frente ao lobo de Wall Street, Tio Beto seria uma hiena ou um rato? O fato, contudo, é que os ratos de Wall Street sempre servem de esteio para os lobos.

Capítulo 7
Dez passos atrás, um à frente!

                Foi assim que o velho Uílson Silva morreu e deu lugar a um novo, com uma consciência social e política qualitativamente diferente, mais avançada e pulsante. Para conseguir ressurgir das cinzas teve que superar e romper com um verdadeiro exército de jornalistas mercenários, professores universitários, apresentadores e comentaristas de TV, chefes, supervisores e capatazes, sindicalistas burocratas vendidos, além de enfrentar o posto militar avançado da reação familiar, insuspeita de qualquer influência. Segundo o que ele anotaria em um velho caderno, que passou a usar como uma espécie de diário, o ano de 2084 seria o marco para essa mudança profunda de consciência e de vida.
                De repente Uílson se deu conta que o mais alto nível moral da espécie humana estava representado pelos militantes revolucionários da Justiça Proletária que conhecera naquela reunião na casa de José Battle; e muitos outros anônimos, que estavam espelhados pelo Brazil e pelo mundo. Não ganhavam nenhum tostão por tudo o que faziam; pelo contrário: tinham muitas despesas e podiam ser demitidos e perseguidos politicamente a qualquer momento (como geralmente ocorria) com todo o apoio da sociedade “democrática oficial”. Muitos poderiam ser mortos e acabar completamente esquecidos. Eles nem sequer se importavam com tais honrarias. Simplesmente queriam acordar e conscientizar os trabalhadores. Talvez isso não fosse um “sentido para a vida”, mas dentro da sociedade atual poderia haver outro mais alto, profundo e verdadeiro do que este?
                Após vencer todas estas barreiras políticas (medo da represália da empresa), econômicas (medo da demissão) e morais (entraves familiares), Uílson ingressou primeiro na oposição sindical e, posteriormente, na Justiça Proletária. Fez panfletagem mascarado tanto na porta da KIT como em outras empresas; participou de mobilizações estudantis e de outras categorias de trabalhadores. Enfim sua consciência de classe aflorou e ele, pouco a pouco, foi encontrando a si mesmo.
***
                “Naqueles dias pensamos que usted no más regressaria, Uílson”, disse José Battle aos companheiros enquanto colocava uma pilha de jornais Justiça Proletária recém impressos em cima da mesa. Estavam conversando informalmente antes que a reunião nos fundos da casa de José Battle começasse. Sob um calor escaldante, lá estavam os 4 reunidos novamente para traçar uma política de intervenção nas suas respectivas empresas. “Durante aquela semana eu vivi uma profunda crise existencial”, disse Uílson olhando para Catarina, que havia lhe confessado naquele primeiro encontro as suas. “Isso é natural”, disse ela, sorrindo. “Senti um pouco do peso que vocês suportavam”, falou Uílson novamente, agora olhando para Eduardo, “porém, a realidade foi se impondo aos poucos e, então, resolvi não mais esconder o meu rosto”. “Bravo!”, bradou Eduardo.
                “Li muitos livros do Trotsky, que me foram de grande valia”, prosseguiu Uílson, “mas algumas dúvidas pessoais ainda persistem”. José Battle franziu o cenho. “Não se preocupem! Elas são pontuais!”, acrescentou Uílson, mais que ligeiro. “Vamos a elas, então”, disse Catarina, sorrindo.
                “Concordo com todas as prerrogativas do socialismo. Acho que realmente não temos saída dentro da sociedade capitalista atual, e que dela só podemos esperar mais e mais barbáries, além da intensificação da exploração, da miséria e da segregação social. As guerras estão aí, sejam entre países, incentivadas pelos imperialismos, ou entre civis. Porém, ainda acho que o capitalismo impulsiona a iniciativa individual de alguma forma. No socialismo, com uma produção totalmente estatizada, não haveria um congelamento desta iniciativa?”. José Battle bufou.
                “Camarada”, disse Eduardo solicitamente, “não há dúvida de que o capitalismo teve um grande papel na evolução da sociedade. Este papel foi amplamente explicado por Marx e Engels, no Manifesto Comunista, há mais de 200 anos atrás. O burguês ou o pequeno burguês, impelidos por fazer seu negócio crescer, sem dúvida alguma preocupa-se em ter algumas iniciativas que fazem a economia andar e as coisas acontecerem. Contudo, já passamos da fase dos albores do capitalismo. Vivemos a época da sua degradação, da sua transformação em imperialismo, que cria os cartéis e monopólios de preço e de matérias-primas, o que leva à completa assimilação dos capitais menores pelos maiores e a sua anulação, na prática. As iniciativas reais atualmente pertencem aos grandes grupos econômicos. Aos pequenos capitalistas resta trilhar um caminho tolerado pelo grande capital imperialista, ou seja, a sua iniciativa está condicionada pelos interesses deles. E indo mais além: que iniciativa pessoal resta aos trabalhadores nas empresas a não ser tornar-se massa de manobra, um rebanho de gado, sendo obrigado a aceitar inúmeros desmandos e burrices cegas das chefias? Muitos trabalhadores tentam sugerir pequenas modificações no processo de produção e de trabalho, mas são sumariamente ignorados ou suas sugestões são assimiladas para intensificar a sua própria exploração, uma vez que está completamente preso pela camisa de força das estruturas sociais capitalistas”.
                “Isso não significa”, complementou Catarina, “que no socialismo as iniciativas individuais serão completamente eclipsadas ou abolidas. Tivemos alguns exemplos de trabalho voluntário e espontâneo na Rússia e em Cuba, sem nenhum tipo de coação por parte do Estado. Foram os chamados ‘Sábados Comunistas’ ou ‘Voluntários’ na Rússia, profundamente analisados por Lenin em um artigo específico, onde os operários tomaram a rédea de manutenção e reparo nas locomotivas e estradas de ferro sem que houvesse a necessidade de uma única ameaça de desconto salarial ou coação por parte de supervisores ou capatazes. Eles próprios viram a importância de começar a tomar em suas mãos as rédeas da administração e da economia. A produtividade do trabalho cresceu a partir desta iniciativa. Evidentemente que todo esse protagonismo foi cortado pela raiz quando a burocracia stalinista tomou o poder. É por isso que é imprescindível a democracia proletária expressa através de conselhos operários, amplamente disseminados por todas as regiões e com poder legislativo, executivo e judiciário. Conselhos que sejam espaços para o debate de todas as tarefas sociais, criando a verdadeira e única cidadania; e que também sirvam para o crescimento teórico, político e de solidariedade humana. Onde os trabalhadores sintam que são ouvidos e valorizados e não tenham suas iniciativas censuradas, seja por um regime burocrático do tipo stalinista, ou por uma empresa privada, que tem um regime interno não menos autoritário e cruel. Existe uma outra grande questão para este debate sobre as ‘iniciativas individuais’: devemos incentivar a produtividade e as iniciativas através de retornos materiais (meramente salariais) ou através do exemplo, de uma nova moral social que instigue uma outra conduta social? É evidente que os ritmos individuais são diferentes e que nem todos estarão na vanguarda das iniciativas numa sociedade socialista futura, assim como hoje nos encontramos praticamente sozinhos na tarefa de conscientizar e organizar os trabalhadores; também será preciso um longo processo de reeducação social e política de todo o povo através da escola pública, totalmente repensada e reformada segundo esses valores, bem como através da grande mídia, que deverá ter outra função, completamente diferente da de hoje, que é apenas utilizada no sentido de idiotizar, domesticar e incentivar o consumismo até os limites da exaustão. Pode-se pensar em iniciativa política e econômica sem essas premissas? Podemos falar em iniciativa política, econômica e social sem levar em consideração os impactos ambientais, sociais e em relação aos trabalhadores mais pobres?”.
                “É claro que não”, disse Uílson, muito contente com todo o debate que tinha desencadeado e ciente de que não ouviria um diálogo como aquele em nenhum outro lugar.
                “Resumidamente”, disse José Battle, “dentro del capitalismo no poderemos esperar nenhum tipo de iniciativa social que no sea esmagada por la burguesia; apenas iniciativas que andem no sentido de acumulação privada de riquezas, isto é, de exploración do hombre pelo hombre, utilizada geralmente para tirar alguma vantagem individual”.
                Uílson coçou a cabeça e disse: “Mas isso não significa que não existam boas práticas do capitalismo que não devam ser aproveitadas pelos trabalhadores em uma sociedade socialista futura!”.
                “Exatamente”, disse Eduardo, “alguns princípios de trocas comerciais e aquecimento da economia poderão ser aprendidos da atual sociedade, mesmo com toda a sua decadência, afinal de contas, a sociedade socialista não surgirá do nada, mas das entranhas da sociedade capitalista. Haverá um longo período de transição entre economias, conflitos entre práticas econômicas e laborais, bem como de hábitos, de costumes, de mentalidades, de culturas absolutamente distintas”.
                “Usted poderia me demonstrar onde estan as ‘boas práticas’ del capitalismo hoy”, ironizou José Battle.
                Ignorando a zombaria do companheiro, Eduardo falou: “É importante diferenciar uma questão de método: as ‘boas práticas’ capitalistas precisam trabalhar no sentido de ajudar a libertação do trabalhador, ou seja, aumentar a produtividade socialista e incrementar a sua economia; e nunca ser usada como forma de intensificar a sua exploração e opressão disfarçados por slogans pseudo modernizantes, tal como faz o governo atualmente, que se utiliza de um discurso ‘socialista’ para aumentar a exploração capitalista”.
Uílson fez um sinal de assentimento com a cabeça e disse: “Outra dúvida que tenho e que me martelou a cabeça durante estes últimos dias é: por que nos encontramos tão mal, tão isolados, somos tão pequenos? Por que chegamos a este nível de degradação e de segregação social não apenas entre os trabalhadores, mas entre as organizações de esquerda?”.
                “Não temos a resposta para todas as perguntas”, começou respondendo Catarina, “mas podemos arriscar algumas conclusões. Em primeiro lugar, acho que a burguesia compreendeu a dialética da História do movimento operário muito mais do que as organizações proletárias de vanguarda, que sucumbem a todos os cantos de sereia lançados pela burguesia; muitos deles completamente repetidos, que poderiam ser facilmente evitados se não houvesse tanta ignorância sobre a história do movimento operário, bem como um oportunismo latente nos seus dirigentes. A burguesia infiltrou seus agentes informais nos sindicatos, os comprando direta ou indiretamente. Sua pressão social avassaladora, feita através das mídias, das igrejas, das escolas e universidades, do seu poder econômico e estatal, muda constantemente a orientação teórica e política da suposta ‘vanguarda’ dos trabalhadores, infiltrando ervas daninhas no seu programa de ação. Lhes apresenta a luta reformista e legalista em lugar da luta revolucionária e semi-clandestina (ainda que possamos e devamos usar os espaços legais); a ascensão unicamente através do caminho eleitoral ao invés da conscientização e organização feitas no método de ‘trabalho formiguinha’, em sindicatos e movimentos sociais. Muitos ‘trabalhadores’ sucumbem a este ‘caminho mais fácil’ e, a partir daí, passam a convencer os outros. Tornam-se agentes informais da burguesia no seio do movimento proletário. O reformismo leva à acomodação, à rotina, ao ‘caminho mais fácil’, à paralisia do movimento proletário e, por fim, à adaptação completa às bandeiras do inimigo. Graças à esta orientação oportunista infiltrada no movimento operário, a revolução socialista perdeu tantas oportunidades ao longo da História que, ao lançar o proletariado à condições de derrotas cada vez mais sufocantes, foi intensificando gradativamente a degeneração de toda a sociedade. Quanto mais a burguesia via o desencadear de novos movimentos proletários e os estudava, mais ia se tornando consciente de seu papel histórico reacionário e o assumia de bom grado. Lançava revistas, jornais, programas de TV e rádio, bem como novas ideologias nas escolas e universidades, que envenenavam a sociedade com a sua hipocrisia letárgica. Esta hipocrisia burguesa ia se incrustando nas organizações políticas do proletariado proporcionalmente à degeneração da sociedade”.
                “Essa é a razão para o WP ser o que ele é hoje? Um agente completamente desavergonhado da burguesia, utilizando-se de uma retórica eventualmente socialista?”, indagou Uílson.
                “Exatamente, compañero!”, empolgou-se José Battle, dando um soco no ar, “é disto que devemos hablar ahora!”.
                “Há pouco tempo atrás”, começou Eduardo, pegando o gancho da conclusão de Uílson, “existiam, pelo menos, 4 organizações socialistas legalizadas e reconhecidas pelo Estado. Elas reuniam uma considerável parcela da vanguarda dos trabalhadores, dirigiam muitos sindicatos, participavam das eleições e tinham todos os privilégios que a legalidade institucional dá ao WP, por exemplo. Porém, vieram as ‘reformas políticas’ propostas pela ‘assembleia constituinte’ e retiraram todos estes ‘salvo condutos’ legais. E por que isso aconteceu?, sendo que esta assembleia constituinte foi amplamente defendida por estas mesmas organizações de ‘esquerda’ que gozavam destes privilégios legais? Porque não havia correlação de forças favoráveis aos trabalhadores e, consequentemente, a estes ‘partidos’. Aliás, a ‘esquerda’ reformista até hoje não se preocupa com a correlação de forças para a luta proletária, chegando a desconsiderá-la totalmente. Pensam apenas em dividendos políticos e eleitorais, querendo, no fundo, apenas aparecer, serem ‘cavaleiros por uma hora’! Com este tipo de conduta, servem perfeitamente de agentes da burguesia e prestam-lhe os melhores serviços. Poderia um exército ter melhor amigo do que um general oponente que lança periodicamente o seu exército à batalhas desfavoráveis? A burguesia, entendendo este papel, incentiva certas posições e debates políticos através da sua mídia e do seu poder político estatal. Não podemos desconsiderar a infiltração direta de agentes nestas organizações, dada a facilidade com que se adaptam a legalidade burguesa. Por tudo isso, são presas fáceis e um estorvo para o proletariado. Para resumir a tragédia: qual foi o resultado desta ‘reforma política’ sem correlação de forças e, portanto, desfavorável aos trabalhadores? Para continuar existindo legalmente, estas 4 organizações socialistas foram obrigadas a entrar no WP, pois a ‘assembleia constituinte’ reconheceu a similaridade de ideologias entre elas, obrigando a fusão de todas e a sua transformação em correntes políticas internas do partido governista”.
                “E elas aceitaram?”, perguntou ingenuamente Uílson.
         “Evidentemente que sim!”, respondeu Catarina, “E lá estão elas até hoje, cumprindo um papel de capachos do que quer o governo do WP, utilizando-se, evidentemente, da retórica socialista e anti-capitalista, mas sendo seu ‘abre alas’ no movimento sindical. Pelo que se lê em seus jornais, panfletos, sites, blogs e, sobretudo, por sua atuação prática nos sindicatos e movimentos sociais, apenas dão um atestado de ‘esquerda’ para o governo melhor enganar a população em geral e os trabalhadores organizados nos sindicatos, em particular. Sem isso o sistema não se sustentaria. Em contrapartida, a mesma ‘assembleia constituinte’, dominada pelas forças burguesas, legalizou a existência de diversos outros partidos políticos que tem um caráter e um programa burguês, fingindo que, com isso, estaria preservando o ‘regime democrático’ e a sua ‘pluralidade’, muito embora permita a apenas duas destas legendas disputarem o segundo turno eleitoral e, consequentemente, chegarem ao poder”.
                Uílson sentia seus olhos se abrirem a cada reunião como aquela. Intercalando leituras, reuniões e a intervenção no movimento operário, foi desenvolvendo a sua própria personalidade e capacidade intelectual. Este desenvolvimento desabrochou como o resultado da entrega pessoal honesta de Uílson à construção da revolução socialista. Pouco a pouco foi conhecendo outros militantes e se entrosando com eles; além de ganhar confiança nas suas intervenções. Ao contrário de todas aquelas leituras reacionárias indicadas pela mídia, pelas universidades e pelo Tio, havia sim uma saída, apesar de todas as dificuldades. Neste processo ele aprendeu a ler as entrelinhas, percebendo os meandros obscuros que aquela literatura queria jogar o proletariado. Enquanto houvesse capitalismo, haveria luta de classes e, havendo luta de classes, a vitória do proletariado estaria sempre no horizonte. Não havia dúvidas de que o socialismo tinha sofrido um grave revés, mas teria outra possibilidade de futuro fora dele? Uílson compreendeu que era necessário construir o edifício da revolução, pedra por pedra. Havendo um partido revolucionário que se entrelaçasse aos trabalhadores avançados, combatesse o oportunismo presente na vanguarda de “esquerda”, a vitória do socialismo seria sempre uma possibilidade histórica. Uílson compreendeu que os camaradas da Justiça Proletária se colocavam como um embrião deste partido (não os únicos, mas os que estavam mais próximos dele).
                “Tenemos que dizer lo que siegue”, discorreu José Battle y Ordoñez à guisa de conclusão daquela discussão, “enquanto usted, proletário, está alienado, reclamando da vida, de la malvadeza del ser humano, existe vida inteligente tentando organizar la fuerza independente del proletariado. Enquanto houver sociedade de classe estes sujeitos existirão y estarão trabajando em prol da libertación incondicional de toda la humanidad. Seria muy interessante procurar-los e somar fuerzas com ellos. E para aqueles cujo peso da inércia, del individualismo y del miedo são desproporcionais, seria mucho más importante que, pelo menos, não los atrapalhassem com tais inconvenientes”.

Capítulo 8
Enquanto houver Sol

         O ano de 2085 começou com uma conjuntura política favorável para as mobilizações dos trabalhadores. Os escândalos de corrupção do governo, o arrocho salarial, o aumento da miséria e a explosão de grandes atos de rua que tinham como eixo a denúncia do aumento da carestia de vida, cujo estopim havia sido o aumento da passagem do transporte público, inflamaram o ânimo dos trabalhadores em todo o subpaís. A burguesia bateu cabeça, ainda que não a tivesse perdido completamente. O WP e a sua central sindical paralisaram-se parcialmente. Novas possibilidades de luta e de agitação foram se abrindo.
    A indignação contra a inoperância e as traições do sindicato dos telefônicos, denunciadas uma a uma pela oposição sindical, transformou-se num princípio de movimento de base independente, dirigido clandestinamente pela Justiça Proletária. Uílson envolveu-se corajosamente e de corpo e alma em todas as tarefas que lhe foram dadas pela oposição. A empresa e o sindicato tiveram que dar muitas “respostas” e, inclusive, abrandar o regime interno de exploração e opressão. “Vocês irão ganhar três finais de semana seguidos de folga e ainda poderemos discutir melhor as metas na próxima reunião”, disse Christian sorrindo aos seus operadores. “Nunca vi isso nos meus 9 anos de KIT”, falou uma operadora que já estava chegando aos 75 anos e que, pulando de emprego em emprego, contava o tempo de contribuição para poder se aposentar. Uílson se deu conta de que isso era apenas uma forma para melhor acalmar os ânimos dos operadores, que estavam bem tensos e propícios a “loucuras”, segundo as palavras dos dirigentes do sindicato. Um clima elétrico pairava no ar. Uma fagulha desencadearia uma explosão. E ela não tardou a acontecer: dois grupos de 10 operadores foram demitidos com centenas de desculpas “legais”, mas a verdade era que eles simplesmente haviam se filiado ao sindicato e começavam a pegar os panfletos da oposição sindical na entrada da empresa.
Uma greve foi desencadeada no início de 2086 liderada informalmente pela oposição. A repressão interna não surtiu o efeito desejado porque a conjuntura nacional ajudava a sustentar o clima psicológico e a disposição para o movimento grevista. Contudo, a pressão avassaladora do aparato do governo, das centrais sindicais e do sindicato dos telefônicos acabou por isolar o movimento, que heroicamente resistiu por um mês através de um misto de luta política e jurídica, denunciando não apenas as más condições de trabalho, a exploração, o arrocho salarial, a opressão interna e o assédio moral, mas também os acordos bélicos da KIT e a carnificina que ela patrocinava em outros países. Neste mês, muitos operadores avançaram a consciência mais do que em toda vida. Era “impressionante, extraordinário!”, dizia Uílson para os companheiros da Justiça Proletária.
***
                Quantas atrocidades humanas o Sol acompanhou? Quantas mudanças, ascensos e quedas de impérios ele já iluminou? Por quantas guerras, crises e revoluções já passou? E quando tudo parecia perdido e sem saída diante da escuridão aterradora, lá vinha ele novamente no dia seguinte. E antes de qualquer trabalho humano ou do antropocentrismo arrogante, nós só estamos aqui graças a ele. Que ironia do universo!
A vida do nosso Sol é estimada em cerca de 14 bilhões de anos. Já fusionou hidrogênio em hélio há pelo menos 4 bilhões de anos. Neste processo, a cada segundo, mais de 4 milhões de toneladas de matéria são transformadas em energia dentro do núcleo solar, o que equivale a converter aproximadamente 100 massas terrestres em energia; e tudo isso em um segundo, desde a sua formação até a nossa era. O Sol ainda trabalhará ininterruptamente por mais 10 bilhões de anos, pelo menos, quando se transformará em uma gigante vermelha e, finalmente, em uma anã branca, quando o ciclo do Sistema Solar e nele, o da Terra, chegará ao fim em uma agonia de 100 milhões de anos. E tudo para quê? Perguntarão os céticos niilistas! Para terminar desse jeito? Não vale a pena!, dirão certamente. Mas a vida vale a pena, apesar de tudo; e lutar por ela, pelo direito de viver e de ser, é o que a faz tão bela.
Que tipo de força move o Sol neste trabalho de Sísifo ininterrupto? A ciência ainda não consegue explicar, todavia, Uílson arriscava uma resposta: provavelmente seja a mesma força que arde no peito dos seres humanos e que impulsiona a humanidade para frente, apesar de todas as ininterruptas tentativas reacionárias de fazê-la estagnar ou retroceder. A energia que impulsiona a luta pela vida e pela liberdade dos céticos é oposta a dos revolucionários, concluiu Uílson enquanto olhava para a estrela Sirius, da janela de seu apartamento. A duração da energia de um cético é como o tempo de vida de uma cigarra, que dura 24h e morre antes do anoitecer; a dos revolucionários é como a do Sol, que dura bilhões de anos e sobrevive à escuridão das suscetibilidades, desesperos e frustrações.
Os revolucionários russos do início do século 20 diziam romanticamente na sua literatura que iriam acender um novo Sol. E realmente acenderam! Se ele durou pouco ou se apagou parcial ou totalmente, faz parte da dialética do universo, dos avanços e retrocessos, do qual a História, como um mar, é repleta. Uílson e os companheiros da Justiça Proletária queriam acender um novo Sol. Se conseguiriam ou não é a disjuntiva que se colocam todos aqueles que se apequenam antes de tentar, que desistem antes de descer ao campo de batalha, que morrem de véspera, que estão satisfeitos com a mediocridade do “possível”, que na verdade é apenas o aceitável. A energia liberada na tentativa de mudar, de revolucionar uma sociedade injusta, por menor que seja, já é suficiente para acender um novo Sol. Tal qual as estrelas, que brilham a anos luzes e só chegam aqui depois de anos viajando pelo espaço, talvez a luz deste novo Sol só chegaria aos outros seres humanos após muitos anos, quiçá séculos? Pouco importava. Em épocas de reação e declínio o exemplo do que é certo vale mais do que tudo e serve para iluminar, como um Sol, a barbárie e incendiar de vergonha a indiferença, a negligência e a conivência! O amanhã pode se tornar o hoje; a História pode ser desesperadoramente lenta, mas ela também se precipita. Desde que escrupulosamente planejados e sonhados, os sonhos mais distantes e aparentemente impossíveis podem se tornar realidade. A única condição para isso é que ele não seja individual, mas social! Os céticos nunca entenderão! Eles serão sempre a matéria prima para os exploradores e opressores puxarem o cordel do fio histórico, aproveitando-se do seu queixume sem fim.
***
                No dia seguinte após o fim da greve, Uílson e mais oito colegas que se envolveram com os piquetes grevistas foram chamados na sala de vidro. Pela primeira vez Uílson não olhou para ela com medo, mas com a cabeça erguida, já esperando corajosamente por sua sentença de morte. Sentado atrás da mesa estava Wesley Giovanni, acompanhado de dois supervisores com semblantes preocupados. Sem delongas, ele puxou da gaveta a carta de demissão de Uílson e dos demais colegas que lhe acompanhavam. Agora Uílson não era mais visto como dócil e submisso, mas uma ameaça que não valia mais nenhum investimento inicial de formação. “E por que uma ameaça?”, ele pensou enquanto olhava Wesley Giovanni cumprir os rituais burocráticos de preenchimento de formulários. Simplesmente por pensar? Por falar? Por sentir?
                Possuído por uma indignação indescritível, Uílson levantou-se da cadeira onde estava sentado e discursou de dedo em riste, para toda a operação escutar. “Que democracia é essa onde nós não podemos decidir nada e somente trabalhar feito burros de carga? Onde fingem não ver as pessoas morrendo de fome ao nosso redor? Onde consumir é mais importante do que viver, dividir, compartilhar? Onde temos que agüentar calados o assédio moral diário para nos fazer trabalhar cada vez mais e ganhar cada vez menos! Onde a legislação só existe para nos escravizar e é cumprida contra nós; enquanto que eles”, Uílson apontava para a sala de vidro, “vivem segundo a sua própria lei. Passamos todo o ano fazendo um trabalho do qual não gostamos, que nos é imposto e não podemos sequer opinar sobre ele! E vocês?”, disse Uílson com os olhos vermelhos de raiva e apontando para todos os operadores que lhe olhavam, vidrados; “suportam quietos esta agressão moral dos patrões, dos supervisores, dos gerentes e dos gestores, se submetendo a esta ditadura disfarçada por medo de perder o emprego! Que vida nós teremos assim, companheiros?”. Wesley Giovanni olhava estarrecido para o agitador incontrolável enquanto apertava insistentemente o botão de alarme dos seguranças.
“Você acabou de vender um carregamento de munição para uma nova guerra no Sudão, não é mesmo?”, gritou Uílson para um operador que estava sentando em um posto de atendimento junto à entrada da sala de vidro. “E você?”, virou-se para o do outro lado do corredor, “acabou de vender um combo de armamentos pesados para um traficante do Rio de Janeiro ou para o exército afegão?”. Muitos operadores já estavam de pé, completamente surpresos; alguns sorrindo e gostando de ouvir tudo aquilo, outros tremendamente assustados. “Lembrem-se”, concluiu Uílson, “enquanto vocês vendem tudo isso em troca de um salário medíocre, eles lucram bilhões e bilhões através do nosso suor e sofrimento. E tudo isso para que? Para desencadear uma nova guerra de rapina em algum lugar do mundo para lucrar ainda mais”.
Dez seguranças entraram pelas duas portas da operação e agarraram rapidamente Uílson e renderam os demais operadores demitidos. Porém, Uílson seguia gritando e esperneando, com o dedo em riste: “Não se esqueçam do que eu falei! O único caminho é a organização e a luta! Exijam a imediata abertura das contas dessa empresa! Os patrões não entendem a linguagem do ‘diálogo’. Ela é invocada somente para nos acalmar e nos adoçar perante a opressão, a humilhação e a exploração”, gritou Uílson quase sem voz, engasgado pelo enforcamento somado a uma chave de braço que um dos seguranças lhe aplicava, “eles só atenderão nossas reivindicações e o nosso direito de viver com luta, paralisação e greve! E com uma revolução!”, berrou ele no seu último esforço contra o estrangulamento do segurança, que se aproximava da porta de saída da sala de operação. Antes de sair, um dos operadores levantou e bateu palmas, seguindo por focos isolados nos cantos da sala. Irromperam ao fundo gritos de apoio: “Uílson, estamos com você!”, até estalar uma explosão de vozes que gritavam o seu nome sem parar. Christian e os demais supervisores mandavam-nos calar a boca, mas era inútil. Naquele dia o setor de Uílson paralisou-se completamente, como se a greve se estendesse por mais um dia. Somente com o apoio de todo o corpo de seguranças do edifício e da polícia, que foi chamada as pressas, os supervisores conseguiram acalmar os ânimos. Wesley Giovanni e seus dois comparsas assistiram tudo, trancados na sala de vidro até o final do dia, como se estivessem recebendo o troco por todos os anos de opressão e humilhação a que submeteram os operadores.
Uílson foi levado até o Palácio da Polícia, onde foi fichado, fotografado, interrogado e, finalmente, após o apoio jurídico de um dos advogados simpatizantes da Justiça Proletária, foi liberado.
***
                Após vencer todas as crises existenciais e políticas, fruto da propaganda anti-socialista do imperialismo feita através de diversos meios, Uílson entendeu que realmente havia um big brother que tudo via, controlava e sabia. Ele estava por todos os lados e se conectava por mil tentáculos: desde os supervisores e gestores a mando da patronal, que cuidam da produtividade, das idas ao banheiro, do sono, do despertar, das horas de lazer, do que assistimos ou acessamos na internet; passando pelos grandes meios de comunicação, que grampeiam os caríssimos e “modernos aparelhos tecnológicos”, que sabem por onde andamos ou deixamos de andar, com quem falamos ou deixamos de falar; até o World Bank, o Monetary International Fund (FMI) e o grande capital, que decidem o que é bom ou não para o nosso e os demais subpaíses do mundo.
***
                No dia seguinte ao da sua demissão, Uílson panfleteou um material que denunciava a arbitrariedade de todas aquelas demissões, a farsa democrática e a sociedade capitalista, que só reservaria mais e mais cenas como aquela aos trabalhadores. Ao contrário das outras vezes, Uílson distribui o material sem máscaras, o que causou grande comoção entre os operadores que aguardavam na fila de entrada naquela manhã cinzenta.
                Dessa vez poucos operadores deixaram de pegar o panfleto, apenas os temerosos incorrigíveis o rejeitaram. Ao ver que todos os operadores estavam não apenas pegando o panfleto, mas manifestando apoio aos demitidos, a direção da KIT mandou imediatamente seguranças desmontarem aquela agitação. Uílson foi novamente preso e deportado pelos seguranças, mas antes de ir conseguiu distribuir todos os panfletos, graças a ajuda dos operadores que os pegaram e os distribuíram clandestinamente entre si.
                Com a demissão da vanguarda agitadora a paz dos cemitérios retornou para a KIT. A mão de ferro do aparato repressivo e ideológico da empresa entrou em ação. Muitos operadores foram demitidos para servir de exemplo. A direção não mais toleraria um movimento como aquele novamente. As metas e a opressão aumentaram; o assédio moral e o desconto salarial se intensificaram.
“De que serviu todo aquele movimento?”, perguntava Christian para dois operadores que o ouviam no fumódromo. “Todos os principais envolvidos foram demitidos e tudo terminou como antes, hi, hi, hi!”. Um operador que ouviu a conversa de longe se intrometeu: “Muita coisa mudou de lá para cá! Os operadores levantaram a cabeça, apesar de tudo! Nós não aceitaremos mais qualquer desmando como natural e a direção da empresa em diversos assuntos pisa em ovos”. “Você está louco!”, gritou Christian inconformado por ser contrariado na frente de sua platéia de ocasião, “provavelmente queira ser demitido, não é mesmo? Eu que ajudo minha família preciso muito desse emprego e zelo por ele, ao contrário de você!”. Christian falava tudo aquilo sem nem saber quem era o seu oponente. A discussão durou mais alguns minutos, com tréplicas e réplicas, mas não foi muito além, dado o nível intelectual e moral de um dos interlocutores. No final daquela semana Christian foi chamado na sala de vidro e Wesley Giovanni apresentou seus papéis de demissão. “Agradecemos os seus serviços, mas a direção está entrando num momento de contenção de gastos! Contamos com a sua compreensão de supervisor”, falou o gestor para um Christian de olhos marejados.
***
                Ao contrário do que José Battle pensava, Uílson não se abalou com a demissão, a perda de alguns escassos benefícios e do apartamento em um bairro razoável da capital. Durante alguns meses Uílson morou como convidado na casa dos companheiros da Justiça Proletária até conseguir um novo emprego de repositor de estoques em uma grande rede de supermercados. “A solidariedade de classe e as moções de apoio que recebi dos meus camaradas foram fundamentais! Me mantiveram de pé e com a cabeça erguida!”, dizia Uílson aos militantes mais novos cada vez que lhe perguntavam sobre sua história. O salário do novo emprego, como já se esperava, era miserável, mas conseguia lhe sustentar e lhe garantir uma nova residência em um bairro próximo ao de Catarina, com quem começou a namorar e a desenvolver uma vida em conjunto. Desta vez algo lhe dizia que tudo seria diferente, afinal de contas, o relacionamento estava baseando-se em outros alicerces e objetivos de vida.
                O ciclo reiniciou-se. José Battle e Eduardo panfleteavam mascarados no supermercado de Uílson; e Uílson e outros companheiros de organização panfleteavam no supermercado onde trabalhava José Battle. A passos lentos o núcleo foi crescendo e incorporando trabalhadores de outras categorias.
                Numa fria manhã de julho de 2087, Uílson abriu o e-mail da Justiça Proletária e leu o que segue:

                Olá, peguei um panfleto de vocês nesta semana e me identifico com o conteúdo. Gostaria de conhecê-los melhor. Aguardo contato.

                Uílson conhecia o sujeito. Era um colega de trabalho, do setor de reposição de mercadorias. Respondeu solicitamente o e-mail e combinou um encontro para o final daquela semana, num bar próximo do supermercado onde trabalhavam. Levantou-se da cadeira, espreguiçou-se e foi até a janela. Parou por um instante olhando a rua. Sorriu. Soprava um ventinho fresco e os raios de Sol acariciaram-lhe o rosto.





[1] Adaptado de “O Capital”, de Karl Marx.