segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Um sonho com consciência de classe

"O Homem é do tamanho do seu sonho" 
(Fernando Pessoa). 

Escreveu a professora no quadro. Em seguida, perguntou aos seus alunos: – Me relatem quais são os seus sonhos?

Ricardo, ligeiro e falador, disse que gostaria de ser jogador de futebol, ser famoso, rico e ter três carros; Maria Eduarda gostaria de ser veterinária, ter uma boa casa, casar, ter 3 filhos; Dudu, meio constrangido, falou que gostaria de ser astronauta, o que fez toda turma cair na gargalhada; Roberta falou que queria ser top model, viajar pelo mundo, aparecer nas capas de revistas e morar no exterior.

A professora, vendo que Guilherme se contraía na classe encolhendo os ombros, perguntou-lhe: – E o seu sonho, Guilherme? Este hesitou. Muito a contragosto, foi obrigado a falar: – Não sei, professora! 

– Como assim, não sabe? – indagou ela.

Guilherme, filho de um pedreiro e de uma costureira, cresceu no meio da pobreza, sem brinquedos, sem roupas novas, sem material escolar, sem saneamento básico, vendo seus pais suarem para trazer arroz e feijão para casa. De noite ouvia os pais conversando baixinho: queriam que o filho estudasse, que tivesse outra sorte na vida.

Aos 5 anos, Guilherme foi com o pai à primeira assembleia do sindicato dos trabalhadores da construção civil porque a mãe estava trabalhando e não tinha com quem deixá-lo. Ouviu muitos discursos inflamados e não entendia direito o que se passava. Aos 9 anos acompanhou o pai num piquete de greve, onde viu como os operários se tratavam: – Companheiro! – Camarada! E passavam a vianda fumegando entre si; compartilhavam a mesma comida e a mesma bebida; e o operário detrás apoiava o da frente quando a repressão policial caía sobre eles. Neste momento, Guilherme aprendeu um novo significado para a solidariedade humana, mais singelo e verdadeiro. Aos 11 viu um colega de trabalho de seu pai ser demitido por "justa" causa e perder todo o salário do final do mês e do ano. Aos 12 anos foi com a mãe à uma reunião de mulheres do sindicato das tecelãs e ouviu uma delas formulando propostas para um programa contra a opressão feminina, o que fez sua mãe aplaudi-la com entusiasmo. Sempre ouvira que lugar de mulher era na cozinha "pilotando fogão"; mas eis que via operárias discursando política tão bem quanto os homens.

Uma noite, quando já era rapaz feito, discutiu com o seu pai sobre desigualdade social. Foi nesta ocasião que ele ouviu, pela primeira vez, sobre "socialismo" – reflexo de uma série de discussões que o pai mantinha com um estudante que estava seguidamente panfleteando no seu canteiro de obras. Depois dessas discussões algo aconteceu dentro dele. Não se interessava pelas coisas tidas como “comuns”. Seu coração ardia de ódio diante das injustiças. Guilherme, então, entendeu que a felicidade individual não podia existir enquanto houvesse pessoas vegetando na miséria, mendigando, desempregadas, analfabetas, prostituindo-se. Lembrou daquele grande pensador, citado muitas vezes pelo estudante, amigo de seu pai: “O dinheiro não é apenas um dos objetos da paixão de enriquecer, mas é o próprio objeto dela. Essa paixão é essencialmente auri sacra fames (a maldita ganância do ouro), faz com que as pessoas vivam em torno de uma medíocre vida, ocasionada por necessidades impostas, gerando uma rotina alienada. A natureza do homem está estabelecida de tal modo que ele só pode alcançar o seu aperfeiçoamento se agir para a realização, para o bem dos seus contemporâneos. Se escolhermos uma profissão em que possamos trabalhar ao máximo pela humanidade, não nos poderemos dobrar sob o seu peso porque ele apenas será um sacrifício por todos; não fruiremos então, uma alegria pobre, limitada, egoísta, mas a nossa felicidade pertencerá a milhões”.

Três segundos passaram-se no relógio. Guilherme voltou a si. Todos os olhos da sala estavam sobre ele. Sua garganta estava seca. Respirou fundo! Um medo afligiu-lhe o corpo inteiro e o seu coração pareceu congelar. Em frações de segundo, a indignação fez a sua garganta desenlaçar-se. Tomou coragem e disse: – O meu sonho, professora, é uma sociedade socialista, sem desigualdades sociais e sem exploração!

Um burburinho começou na sala. Um flash na sua mente: "O Homem é do tamanho do seu sonho" – qual o meu sonho? Guilherme sentiu o peito arder! Suas têmporas latejavam. Guilherme era do tamanho do seu sonho. Guilherme era do tamanho do universo!

A professora, boquiaberta e fora de si, deu dois passos pra trás. O giz caiu dos seus dedos e despedaçou-se no chão.

Inferências
O sistema nos faz acreditar cegamente que somente é possível vencer na vida individualmente: subir à gerência de uma empresa; passar no vestibular; tornar-se jogador de futebol; ter dinheiro, casa, carros, roupa da moda, fama!

A TV passa inúmeros programas e reportagens daquelas pessoas muito humildes e pobres que hoje “subiram na vida”. Vejam o Silvio Santos, foi camelô! E o ex-vice-presidente da república, foi um tecelão! E o Gerdau? Filho de camponeses humildes de Hanôver!

É isto que o “repórter alienação” e o senso comum nos apresentam: o caso do mendigo que morava nas ruas e hoje tem um... lugar para morar! Vejam o grande exemplo do catador que virou empresário e hoje abriu o seu próprio negócio!

Mas o “repórter realidade”, que tem bem menos audiência e glamour, mostra todos os dias os inúmeros camelôs, mendigos e camponeses que não se metamorfosearam em “homem do baú”. A estes resta apenas a sombra do anonimato e da criminalização. Muitos morrem nesta condição e nunca conquistam o “seu lugar ao sol”, mesmo sendo honestos e trabalhando duro de janeiro a janeiro. É preciso exemplos?
Guilherme nos fala de um outro tipo de sonho. É preciso combater o sonho individualista, excludente; a alegria vil e mesquinha da propriedade do que quer que seja: um computador, um carro, uma casa, uma pessoa! Uma alegria verdadeira deve ser proveniente da realização dos sonhos que tenham como meta o bem comum, social.

Em um momento de profunda alienação política e ideológica, de consumismo desenfreado e depredador da natureza, de desorientação política e de crise de direção, onde muitas pessoas vivem de aparência e numa grande “solidão em massa”, é fundamental não se esquecer que todas as conquistas de nossa classe foram arrancadas coletivamente da burguesia e, da mesma forma, desfrutadas coletivamente. Estas conquistas não serviram para melhorar o nível de vida de uma única pessoa, mas de toda uma categoria, de toda uma classe, de toda uma sociedade! São elas: a jornada de trabalho de 8 horas, a licença maternidade, o direito às férias, o 13º salário, o plano de carreira do funcionalismo público, o direito ao voto, à organização sindical, à educação pública; dentre muitos outros!

O raciocínio de Guilherme é simples: – E se ao invés de um gerente a gente socializasse a fábrica, passando a geri-la coletivamente e organizadamente, desde as metas e prazos, até a política salarial? E se ao invés de passar no vestibular a gente abolisse o vestibular para que todos tenham acesso real a educação pública, uma vez que nós sabemos que existe muito dinheiro para isso?

Se todos sonhassem o sonho de Guilherme conseguiríamos ajudar a realização de muitos outros sonhos bem mais humildes: desfrutar de um leito em um hospital público, uma vaga em uma creche, escola, universidade, ou, muitas vezes, o singelo direito ao trabalho...

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