domingo, 6 de abril de 2025

Existe relação entre a "educação especial" e a mais-valia relativa?

 

A educação especial é um sinal dos nossos tempos.
De repente descobriu-se uma série de transtornos e deficiências nos mais variados níveis entre as crianças e passou-se a levá-los em consideração.
Ninguém em sã consciência pode ser contra incluir alunos autistas, disléxicos, com TDAH, com síndrome de down, etc., nas salas de aula. Toda convivência humana é importante e, com mais razão ainda, se faz necessário tentar incluir alunos com transtornos e síndromes.
No entanto, a maneira como se tem feito isso é que gera transtornos na vida dos professores, dado que se chega com inúmeras demandas, exigências, protocolos formais e, muitas vezes, estúpidos, em sistemas educacionais saturados e repleto de problemas nunca enfrentados.
Eu, particularmente, considero importante incluir os alunos especiais em turmas regulares, porém, isso deve ser feito com sabedoria e sem pressão descabida.
Sinceramente, eu penso que o que podemos fazer em salas de aulas com 25 ou 30 alunos é observar o comportamento dos alunos especiais e a sua relação com a turma. Que todos os especialistas, psicólogos, supervisores, "gestores", prefeitos, governadores e presidentes assumam uma sexta ou sétima série por uma semana e tentem dar aula para ver se eu estou exagerando.
Caso passem nesse teste, aí terão autoridade para exigir com rispidez e autoritarismo.
A "grande solução" encontrada para enfrentar as demandas foi colocar monitores, que acompanham os alunos especiais. Sem dúvida é muito importante, mas ainda assim não resolve o problema, dado que muitas vezes estes também são tomados por outras tarefas, não podendo estar diariamente. Além do que, na maioria das vezes, com inúmeras turmas, exigências burocráticas, trabalhos e provas, é muito difícil e penoso realizar "atividades especiais".
Os nossos "gestores" da educação querem ganhar os seus "selos de qualidade" e "humanismo" às custas do aumento da nossa exploração e carga de trabalho. Eles levam a fama; nós o trabalho dobrado, que, na maioria das vezes, é formal, porque é humanamente impossível dar conta de uma turma e, ainda por cima, pensar com qualidade as atividades, mais a integração e a correção de cada avaliação.
Eis aí o paralelo entre a "educação inclusiva" e a mais-valia relativa: para Marx, a mais-valia relativa ocorre quando o capitalista aumenta a produtividade dos trabalhadores, geralmente por meio de inovações tecnológicas, sem elevar o salário. Isso permite que, em um mesmo período, o trabalhador produza mais, gerando mais valor que será apropriado pelo capitalista.
Certamente existem limitações para essa analogia, mas ainda assim é válida. Nem os professores produzem mais-valia, nem os alunos especiais são mercadorias.
Além do quê, não se trata prioritariamente de questão salarial, ainda que o mínimo seja pagar mais por cada inclusão, já que demanda mais trabalho. No entanto, mesmo que houvesse aumento salarial, a questão não se resolveria, dado que o sistema educacional brasileiro vive em crise permanente. Portanto, trata-se, sobretudo, das condições de trabalho.
Por que as editoras que ganham rios de dinheiro com livros didáticos que muitas vezes são superfaturados e, em outros casos, como na SMED do MDB de Sebastião Melo, são usados para caixa 2, não produzem materiais adaptados para todos os tipos de transtornos e deficiências?
Os monitores podiam ser instruídos a usá-los e nós apenas supervisionaríamos e mostraríamos os assuntos que abordaríamos. O MEC, as secretarias estaduais e municipais de educação, além dos "gestores" das escolas privadas, sabem muito bem quais são os conteúdos de todas as matérias em cada série, poderiam, portanto, facilitar e colaborar com o nosso trabalho.
Então, na realidade, o problema não seria falta de planejamento e vontade política de governos e "gestores"? Por acaso eles não sabem como estão difíceis as condições de ensino e aprendizado nas nossas escolas, achando que é — literalmente — só depositar mais alunos nas salas de aula?
Eles sabem...
E o problema não termina aí: não há reuniões pedagógicas regulares e suficientes que deem conta das demandas — o que seria uma exigência mínima. Tampouco há planejamento e preocupação real em resolver estes problemas. Sequer há reuniões pedagógicas produtivas e livres para as demandas das turmas regulares.
Os sindicatos dos magistérios também não falam nada a respeito, nem se preocupam com tais problemas que tem tomado cada vez mais o caráter de cobranças arbitrárias e autoritárias sobre os professores. Só sabem formar reivindicações em torno do salário, o que é muito importante, mas nitidamente insuficiente (e, quando torna-se um ramerrão, fica contraproducente). As condições de trabalho cada vez mais precárias pela falta de estrutura, calor, frio e cobranças baseadas no assédio moral também vão nos adoecendo e nos empobrecendo de diversas outras maneiras.
Assim, vivemos no dia a dia entre o estresse das pressões de governos e direções/supervisões, a omissão dos sindicatos nas questões diárias e as ficções a que muitas vezes somos obrigados a recorrer, por bem ou por mal...

Dos fingimentos e discursos vazios existentes no sistema educacional brasileiro

 

O amargo que me dá após uma aula no ensino fundamental da escola municipal onde trabalho — que talvez nem possamos chamar de "aula" — é me confrontar com as minhas limitações e a mentira de fingir que estamos ensinando e aprendendo — fingindo que somos uma escola — fingindo que estamos nos humanizando — fingindo que estamos desenvolvendo "pensamento crítico".
Fingindo! Isso mesmo.
Sabem o significado desse verbo?
Fingir!
Eu finjo.
Tu finges.
Nós fingimos.
Certamente o fingimento começa bem acima, mas desgraçadamente se estende até o chão da escola, onde é aceito. Fingem que investem na educação — na realidade querem creches; e muitos pais não se importam com esta "qualidade" — para isso bastam 4 paredes, um telhado — não importa se com goteiras, não interessa se derretemos no verão ou congelamos e adoecemos no inverno.
Fingem, portanto, em distintos níveis e de distintas maneiras.
Os discursos são vazios. Os professores ajudam a introjetar o método e a aceitação destes discursos — incluso sua prática e, infelizmente, nas suas greves. Os alunos aprendem que as palavras não valem nada, desde o governo, passando pela mídia, até a sala de aula.

***

Me preocupam outros debates e reivindicações que nem chegam perto do sindicato dos educadores, ensimesmados nas velhas querelas e egos dirigentes.
Há um problema dos alunos do Ensino Fundamental nas periferias: uma resistência em aprender. Quase sempre reclamam se lhes fazemos ler, escrever ou damos atividades de verdade.
Certamente a estrutura precária, os poucos recursos, o calor, o frio, as cadeiras desconfortáveis, as carências da vida pessoal e o descompromisso familiar pesam; porém, há uma resistência individual assimilada da sociedade do consumo (mesmo que eles quase nem consumam de fato) e do espetáculo (esse eles "consomem" bem mais).
Essa resistência se traduz em conversas, gritos, brincadeiras pesadas, recusa em aprender, não reconhecimento dos bons professores que querem realmente fazer algo (e, nesse caso, "fazer algo" é tentar lhes passar alguma coisa, fazê-los ler, escrever, entender, pensar neles e no seu desenvolvimento intelectual de alguma forma). Às vezes, a resistência que apresentam beiram a violência simbólica e até física.
Por suposto, existem explicações a essas violências, sendo elas, provavelmente, um reflexo das violências que eles sofrem cotidianamente, como morar numa vila, que traz embutido o abuso policial, o descaso dos serviços públicos do Estado, o esgoto a céu aberto, o tráfico de drogas; em suma, a própria encarnação da violência social. Porém, isso não deve nos cegar para o fato de que existe certa responsabilidade neles, das quais eles fogem.
A maioria se nega a sequer ouvir os professores dedicados — porém, não deixa de ouvir a TV, o pastor, o MC "ostentação", o ídolo medíocre do futebol que ganha bilhões (muitos são fãs do Elon Musk, que dispensa comentários). Para os bons professores fazem ouvidos moucos e mostram toda a sua má vontade — falo sobre os "bons professores", porque existem, sabemos, muitos professores que não estão nem aí pra eles, chegando ao cúmulo de se sentirem superiores por causa de um diploma.
Para tentar enfrentar essa situação era preciso uma ação unificada do corpo docente, tendo alvos pontuais em comum, para procurar constrangê-los. Por exemplo, as reuniões pedagógicas deveria ser mais produtivas e livres para justamente poderem enfrentar essa resistência, tentando levar em consideração a realidade de cada turma e de cada comunidade, bem como esse descaso que transforma as escolas públicas de Ensino Fundamental em nulidades que servem prioritariamente para adestrar os estudantes aos fins do sistema.
No entanto, não existe essa disposição nas "mantenedoras" e nos "gestores" (outro título oco), preocupados em nos ocupar com distintas tarefas burocráticas, medíocres e alheias às reais necessidades pedagógicas de cada comunidades escolar, fazendo da tal "autonomia pedagógica" das legislações mais uma letra morta. Além disso, muitos colegas são descompromissados, sendo orgulhosos ou delirando que essa má vontade dos alunos é, na verdade, uma "resistência ao sistema" dentro da favela, comprando o discurso identitário burguês e iludindo a si mesmo que a "favela venceu".
Assim segue um dia depois do outro.
E a educação pública torna-se uma máquina de adestrar, que ensina muito pouco, mas formata bem os pobres para pedir "para ir ao banheiro", "respeitar os de cima" e achar que não há saída em nada, restando apenas trabalhar, já que "o que que eu vou ganhar com todo esse conhecimento inútil?", esperando levar vantagem em tudo o que puder e, quem sabe, um dia, ter tanta fama, reconhecimento e dinheiro quanto o Neymar e o Elon Musk.
Infelizmente a voz solitária de um educador comprometido dizer-lhes que isso nunca acontecerá porque a saída é social e não individual, esbarra nos seus ouvidos moucos...

domingo, 16 de março de 2025

Quanto a ideologia do livre mercado deve a Von Mises?

 


Os homens parecem perto de descobrir que o egoísmo do indivíduo,
do grupo ou das massas foi, em todos os tempos, a alavanca do movimento histórico;
mas, ao mesmo tempo, ninguém se incomoda com esta descoberta,
mas decreta: o egoísmo deve ser nosso deus.
Com esta nova crença se está prestes a construir, com clara intenção,
a história futura do egoísmo; deve apenas ser um egoísmo prudente,
que se obriga a algumas restrições a fim de manter-se de forma duradoura,
que justamente por isso estuda a história, para tomar conhecimento
do egoísmo imprudente.
(Nietzsche)


A televisão, a grande mídia, as universidades e as escolas atuais nos ensinam que vivemos sob uma economia de “livre mercado”; que democracia é sinônimo de capitalismo e livre mercado é igual à liberdade individual.

         No entanto, o livre mercado deixou de existir com o surgimento do capitalismo imperialista, no final do século XIX. Ele gestou mega empresas transnacionais que detêm o controle de ramos inteiros do mercado, definindo preços e políticas econômicas. Hoje, portanto, o “livre mercado” não passa de uma ideologia que justifica e faz apologia deste atual estágio do capitalismo.

A ideologia do “livre mercado” foi forjando-se e atualizando-se ao longo do século XX e atingiu o seu ápice na década de 1990, com a queda do muro de Berlim, a restauração do capitalismo na ex-União Soviética e nos países do leste europeu (fato que a mídia Ocidental procura gravar na mente do povo como o “colapso do comunismo”), seguido pela aplicação do neoliberalismo por diversos governos ocidentais.

         Os idealizadores da política neoliberal foram os principais teóricos do upgrade nesta ideologia, lhes dando os atuais contornos estéticos; todos eles, como sabemos, formados pela Escola de Chicago (os chamados Chicago Boys). Um dos principais inspiradores desta Escola foi Ludwig Von Mises (1881-1973), um ferrenho adversário do socialismo.

 

Economia e ética

É inegável que ao longo do seu desenvolvimento histórico o capitalismo desenvolveu amplamente a técnica produtiva e incrementou diversas formas de criação de riqueza. Porém, seu objetivo final é sempre o enriquecimento individual. Ou seja, a acumulação privada! 

O mundo deste início de século XXI é marcado pelo fato, conhecido por todos, de que 1% de bilionários detém quase ⅔ de toda a riqueza produzida no mundo, enquanto mais de 2 bilhões de seres humanos vivem com menos de 1 dólar por dia. Estes dados são reconhecidos até mesmo pelo fórum de Davos, que reúne anualmente a nata da burguesia do planeta.

Este mecanismo de funcionamento econômico é o responsável por gerar esta disparidade tão grande entre ricos e pobres. Como as contradições são gigantes e não passam despercebidas sequer pelas crianças, é preciso acionar uma legião de escritores, professores, jornalistas, youtubers e economistas para mistificar e justificar a realidade que favorece exclusivamente os mais ricos, deixando todo o restante das pessoas como escravas assalariadas ou sem perspectivas.

         Todas as formas de tentar minimizar as imagens cotidianas de fome, miséria, prostituição e pobreza generalizada nas grandes cidades é, antes de tudo, uma questão ética. É um problema de reconhecimento da realidade social da maior parte dos países do mundo sob o regime capitalista. Como podemos julgar que “dá certo” um sistema que deixa mais da metade da população mundial pobre?

Negar um fato evidente no dia a dia é um problema de corrupção moral e ideológica.

         Para tentar esconder e maquiar estas contradições visíveis, o exército de ideólogos burgueses abre fogo com todo o tipo de ideologias: “livre mercado”, meritocracia, supremacismos, racismos, xenofobia anti imigrante, ódios sadomasoquistas e egotistas! E dentre estes, podemos destacar os economistas burgueses, que seriam merecedores não de um Prêmio Nobel, mas de um Oscar.

         O que escrevem, falam e veiculam todos os dias na grande mídia é um grande teatro de ficção, que conta com atuação de protagonistas e coadjuvantes que comovem e inspiram. Recorrem a todo tipo de estratagemas e se escondem atrás da “impessoalidade” do mercado, que seria algo tão natural, quanto o Sol, a Lua, a chuva ou “deus”. 

Toda ideologia necessita de alguns grãos de verdade, senão não seriam críveis. Por isso, o ideólogo burguês que vive na era imperialista que vai conseguir mais capitais investidos em suas análises é aquele que consegue se utilizar de muitos grãos de verdade para semear um campo de mentiras ou de distorções convincentes com mais sucesso. 

Dentre estes, cabe destacar o economista austríaco, mas que fez escola nos EUA, L. Von Mises. Ele escreveu diversos textos para refutar o socialismo. Na sua época, o socialismo estava em franca ascensão e expansão pelo mundo através da recém formada União Soviética, o que causava espanto e pavor em todos os grandes endinheirados e conservadores do mundo. Von Mises lutou no campo ideológico contra o socialismo da mesma forma que os empresários financiaram governos e golpes militares contra movimentos e países que julgavam “socialistas”.

Eles “confundem” ética com sucesso nos negócios; realidade com interesses pessoais; riqueza com propriedade privada.

 

O cálculo econômico em uma comunidade socialista

         Von Mises pensou ter refutado o socialismo quando centrou sua crítica sobre a impossibilidade de cálculo econômico em uma “comunidade” socialista.

         Muitas críticas de Von Mises eram pertinentes e poderiam ter sido aproveitadas pelos socialistas se houvesse capacidade de pensar de um ponto de vista mais equilibrado. Evidentemente que Von Mises pretende fazer terra arrasada do socialismo, afirmando se tratar de um sistema econômico que leva à abolição da racionalidade econômica e  que seria inviável sob todos os pontos de vista.

         Mais do que isso!

         Von Mises e seus seguidores afirmam, com a Bíblia na mão, que “o socialismo destrói a importância praxiológica do tempo e anula a singularíssima contribuição teleológica da humanidade para o universo”. Ou seja, em resumo, o socialismo extinguiria a humanidade, quando vemos diariamente que é o capitalismo (isto é, o “livre mercado”) que ameaça a continuidade da existência humana.

         A afirmação acima é o cúmulo daquilo que Marx e Engels zombavam dos capitalistas no século XIX, dizendo que estes entendiam o fim do capitalismo como o fim do mundo. E de fato é o fim do mundo de vida boa e de poder para eles!

         Von Mises, então, tenta demonstrar que não se pode economizar se não há cálculo econômico em uma sociedade que aboliu a propriedade privada. Para ele, qualquer medida que nos afaste da propriedade privada dos meios de produção e do uso do dinheiro, nos afasta também da racionalidade econômica. Ou seja, só há racionalidade se há uso de dinheiro e… propriedade privada!

         Mises ainda profetiza que “pela natureza” do socialismo, a administração terá de renunciar à valoração dos meios de produção, já que eles seriam de propriedade social. A noção da “natureza” do socialismo para Mises já está dada: não há dinheiro e, consequentemente, não há possibilidade de valorar e avaliar meios de produção. A administração não poderia transformar esse valor numa expressão comum de um preço monetário.

         Como se os meios de produção de propriedade social e estatal não pudessem ser valorados e avaliados de nenhuma outra forma, incluindo a matemática e a dos preços!

         Estas conclusões são muito esquisitas e pobres. Não seria reduzir a capacidade crítica humana a um mero joguete dos interesses egoístas dos grandes capitalistas, afirmando o fim de tudo o que existe quando na realidade com isso se ameaça apenas o fim dos multibilionários?

 

Von Mises entende socialismo como os planos quinquenais soviéticos

         Apesar de tudo, Von Mises não tira suas conclusões do nada. De fato havia a União Soviética, que funcionava a partir de planos quinquenais estabelecidos pelo supremo conselho econômico, no qual, em última análise, reinava Stalin, soberano; e os seus sucessores.

         Nesse ponto ele tem certa razão. Aí estão os “grãos de verdade” da sua ideologia.

         Homem algum pode dominar todas as possibilidades de produção econômica, inúmeras que são, de modo a estar em posição de fazer juízos de valor imediatamente evidentes, sem a ajuda da ação de compra e venda mais ou menos espontânea que ocorre no mercado. Ou seja, sem a atuação de dados econômicos objetivos que estão além de qualquer planejamento possível a não ser que aprendamos a prever o futuro em todos os seus detalhes subjetivos.

         Independentemente de quão bem informados estejam os administradores socialistas, suas propostas de planos econômicos, para as quais os planejadores centrais supostamente devem ajustar os parâmetros de preço do sistema, emergem de um conjunto arbitrário de diretrizes dos próprios planejadores e da própria economia real, e não da concorrência entre proprietários privados de meios de produção e do “mercado espontâneo”, que se encarna nas demandas e ofertas surgidas das pessoas com dinheiro e mercadorias ou seja, nas trocas que ocorrem cotidianamente.

         Esta crítica de Mises podia ter alguma validade para o caso da União Soviética e o seu planejamento burocrático, que desconsiderava o mercado russo, praticamente inexistente. Mesmo sua crítica à NEP russa do início dos anos 1920 é restrita e pobre, dado que não tirou nenhuma lição dela e simplesmente resume socialismo como a aplicação dos planos econômicos soviéticos.

         Porém, chegou a década de 1970 e Deng Xiaoping assumiu o poder na China, dando início a uma nova experiência econômica em larga escala. A experiência chinesa coloca outras questões acerca das possibilidades de transição ao socialismo.

         Isso não quer dizer que a China atual esteja a caminho do socialismo ou do comunismo não, o que vigora lá é uma espécie de capitalismo de Estado , mas esta experiência social e histórica abre brechas para preenchermos as lacunas da teoria socialista e, sobretudo, para respondermos às críticas de Von Mises.

 

Von Mises: o principal teórico do neoliberalismo

O capitalismo de Estado e o “livre mercado”

         O socialismo é um sistema econômico a ser construído, não sendo possível criá-lo através de uma receita de bolo. A sua ideologia é apenas o indicador do caminho, não uma verdade a ser levada ao pé da letra. 

Existem apontamentos de Marx e Engels que são importantes para chegarmos até ele, mas não são infalíveis. Lenin já alertava que eles não tinham resposta para tudo e que precisávamos avançar por conta própria. Todos os grandes teóricos marxistas afirmaram que o socialismo deveria incorporar os elementos positivos das formações econômicas históricas anteriores.

         Mais do que isso: o socialismo nasceria do próprio capitalismo!

         Não se trata da simples “reforma do mercado”, mantendo o restante da sociedade e sua estrutura política; trata-se de uma transformação revolucionária geral, embora conservando o que há de positivo em cada formação econômica anterior e dando passos seguros na construção de uma nova.

         É por isso que ignorar mecanismos econômicos desenvolvidos pelos modos de produção ao longo da história para a construção socialista, reduzindo-a ao planejamento supremo central, é o mesmo que inviabilizá-lo ou deixá-lo no campo da “utopia”. 

O planejamento estatal não pode fazer, nem prever tudo. Há certas tendências espontâneas nas relações econômicas que o mercado responde melhor e que são indispensáveis. Da mesma forma, o mercado desregulado e baseado na “mão invisível” gera o caos e o acúmulo absurdo de riquezas para poucos e miséria para a maioria. Assim, deve haver uma formação econômica mista, intermediária entre o capitalismo e o socialismo, que talvez seja o capitalismo de Estado (termo cunhado por Lenin durante os debates sobre a NEP).

Do contrário, seria o mesmo que tentar tirar uma sociedade socialista pronta da cartola. Desta forma desconsideraríamos totalmente os elementos positivos da formação econômica anterior, bem como a herança cultural e social do passado. Portanto, seria o mesmo que criar o socialismo “do nada”.

         Por tudo isso, o mercado capitalista não pode ser suprimido sem que as condições para que uma formação econômica socialista real seja criada. Dito de outra forma: o socialismo precisa incorporar os aspectos progressivos do capitalismo e os seus mecanismos econômicos, como o mercado, mas sem que este seja “livre” (no sentido que os neoliberais e a sua ideologia o entendem). Ele deve ser remodelado e regulamentado – o que pressupõe, inevitavelmente, a manutenção durante um período de transição, de determinados setores privados.

         A ideologia do livre mercado vem justamente para combater todo tipo de regulamentação econômica, acusando de ditatorial ou “socialista” qualquer movimentação nesse sentido. Tornou-se, assim, o absolutismo contemporâneo que grita contra as “ditaduras do Estado” para disfarçar o seu próprio poder autoritário. Para esta ideologia não importa em que sentido caminham os governos, mas basta que criem leis ou interfiram no mercado para regulamentá-lo que se abre a artilharia pesada de um exército de jornalistas, economistas, pastores, policiais e soldados contra as “ditaduras dos governos, do Estado e do comunismo”.

         Assim, os multimilionários podem dormir tranquilos.

 

A ideologia de livre mercado e o Estado como fiador do lucro privado

Enquanto o mercado mundial sob hegemonia norte-americana impõe uma subserviência política e econômica aos países semicoloniais, ao que, chamamos de neoliberalismo, o capitalismo asiático, que tem crescido bastante, mescla elementos de mercado com planejamento estatal, ao que, chamamos de capitalismo de Estado.

         Insistimos que o movimento socialista precisa utilizar-se do mercado para esta transição, dado que ele não é uma instituição exclusivamente capitalista, mas, antes de tudo, um mecanismo econômico. Depende da orientação que lhe é dada – isto é, depende da sua regulamentação pelos poderes públicos e sociais. O desenvolvimento dos países asiáticos – e mesmo dos europeus ou dos EUA – aponta para uma tendência mista de desenvolvimento, baseada nas forças do mercado e no planejamento estatal e governamental. Estes “agentes associados” constituem indiscutivelmente o vetor de definição das condições de desenvolvimento da indústria e da produção de forma geral neste início de século XXI.

         Assim, a crítica de Von Mises sobre a inexistência de cálculo econômico é refutada pela prática das experiências econômicas socialistas do século XX. A China e os demais países orientais vão jogar o jogo do mercado mundial, por isso dão uma orientação que não vai além do capitalismo de Estado, tanto internamente quanto externamente. 

Contudo, isso tem dado resultados: a economia de “livre mercado” dos EUA tem perdido cada vez mais competitividade para o capitalismo de Estado chinês. O dinamismo econômico se deslocou para a Ásia Oriental, fonte dos principais déficits estadunidenses. A China segue tendo enormes superávits comerciais mesmo com a Casa Branca movendo mundos e fundos para frear Pequim.

         Como se dará a transição do capitalismo de Estado para o socialismo é o que precisaremos descobrir a partir da regulamentação do mercado e o desenvolvimento futuro que se abrirá desta prática econômica. Certamente estes métodos precisarão ser complementados por outros, de cunho revolucionário, de regulamentação social e de psicologia de massas (“complementos” que não existem na China de hoje).

         Desta forma, fica respondida, na prática, a crítica de Von Mises de que a transição ao socialismo alteraria todos os dados econômicos de tal modo que um elo com o estado final em que se encontrava a “economia competitiva anterior”, isto é, o capitalismo, é algo impossível. O elo transicional é o próprio capitalismo de Estado, que deverá mudar globalmente a orientação da política econômica em comparação à ideologia neoliberal de livre mercado.

         Ao contrário do que é pregado pelos jornalistas e economistas mercenários, o neoliberalismo e o que ele entende por “livre mercado” não abrem mão nenhum centímetro do Estado. Pelo contrário: todo este discurso é para esconder o fato de que o Estado deve ser o fiador do lucro privado, de onde o empresariado tira as garantias para a sua produção às custas dos investimentos sociais e do desenvolvimento geral dos países.

         A riqueza gerada pela sociedade é drenada para os multimilionários e seus bancos que, evidentemente, vão cantar hinos e loas aos “benefícios incomparáveis” do “livre mercado”. E a ideologia do livre mercado termina por reduzir e condicionar todo o debate econômico e político àquilo que reproduz e sustenta sua riqueza.

         E segundo Mises e seus seguidores, terminar com esta forma de sociedade desigual e desumana seria o mesmo que anular a singularíssima contribuição teleológica da humanidade para o universo.

         Que pobreza de argumentos… e de espírito!

 

Livre mercado significa a defesa das liberdades individuais?

         A ideologia de livre mercado vende a ideia de que defender a liberdade individual é o mesmo que defender o livre mercado e a propriedade privada. Basta fazer uma observação social simples para perceber que não é assim

         Se por um lado deve haver liberdade para poder gastar o dinheiro que se ganha e a riqueza que se acumula, por outro, deve haver um limite ético perante uma sociedade que se torna absurdamente desigual.

         Reparem a vida de um desempregado. 

Ele está praticamente anulado pela sociedade, pois não pode consumir, ficando totalmente à mercê de conseguir qualquer fonte de renda ou mesmo de esmolas (com a sedução permanente do crime). Os trabalhadores pobres também não têm dinheiro suficiente para alugar a casa que quiserem ou comprarem o que lhes falta. Muitas vezes dependem de serviços públicos débeis e precários.

Todos os grandes programas de TV, coachs, as suas propagandas e loterias mexem e induzem os “sonhos” individuais, sem demonstrar que é pra poucos.

Mesmo o direito de ir e vir é inexistente para milhões de trabalhadores, seja para viajar para os países ricos visando tentar ganhar a vida, seja para fazer turismo, ou mesmo dentro do seu próprio país, com limitações para áreas turísticas, urbanas e bairros nobres, que são privilégio dos endinheirados.

O livre mercado, portanto, é para poucos. A grande esmagadora maioria apenas consome a ideologia da “liberdade”, que é cada vez mais reforçada pela grande mídia, youtubers e pela direita neofascista.

O liberalismo burguês clássico reconhece a importância das liberdades individuais (religiosa, sexual, artística, política e intelectual). Os “liberais” da direita neofascista brasileira atacam as liberdades individuais, pois interferem na religião e na opção sexual das pessoas, professando valores retrógrados e de violência, mesmo se dizendo santos praticantes do cristianismo. Misturam conceitos que para o liberalismo clássico seriam vistos como incompatíveis. Defender o liberalismo econômico deveria, teoricamente, estar em sintonia com a defesa das liberdades individuais.

No entanto, os defensores da ideologia do “livre mercado” usam o conservadorismo católico e religioso das pessoas para ocultar o debate econômico, como se fosse tudo a mesma coisa, ao mesmo tempo em que defendem veladamente a sua agenda econômica. E qualquer pessoa que se oponha a esta salada de frutas é acusada de ser “comunista” e, consequentemente, ser contra as “liberdades individuais”.

Eis como funciona a ideologia de “livre mercado” por entre as pessoas comuns no Brasil.

 

A “impessoalidade” do mercado

         Diferentemente dos governos e do Estado que, frente a uma crise respondem com nomes, partidos e instituições, o mercado é uma instituição impessoal, pela qual aparentemente ninguém responde – principalmente quando entra em crise e quebra. A partir daí funciona não só com a “mão invisível”, mas com o corpo inteiro.

         Quem aumenta o dólar? 

Quem perde ou ganha confiança? 

Qual banco paga pelos prejuízos causados a milhões de pessoas? 

O que acontece com as agências “classificadoras de risco” (leia-se: grandes bancos) quando erram em suas análises?

         “Ninguém” nos diz e tudo fica por isso mesmo.

         Aqui existe um parentesco das “vontades do mercado” com a “ira de deus”. Nenhuma pessoa sabe ao certo como elas se expressarão, mas qualquer evento ruim pode ser atribuído a estas “vontades caprichosas” e “fúrias incontroláveis” às quais, os meros mortais, devem só se submeter, preferencialmente sem questionar.

         Ou seja, os grandes empresários e oligopólios podem fazer o que bem entender escondidos atrás da impessoalidade do mercado. Eles podem ainda reclamar medidas de “auxílio” financeiro de governos e tesouros públicos quando quebram, mas quando essas instituições, empresas públicas e governos entram em crise, quebram ou caem por ações da “mão invisível” do mercado e das suas bolsas de valores, nenhum mercado os resgata, logo surgindo as “soluções” propostas pelo próprio mercado.

         A ideologia do “livre mercado”, impessoal e ardilosa, encontra-se consolidada na sociedade civil e é hegemônica perante os meios intelectuais e sociais. Ela se esconde atrás de argumentos, justificativas e “reportagens” técnicas e “imparciais”, as quais somos submetidos pela indústria cultural e midiática cerca de 24h por dia.

 

Arte de @joaogarin_

Para onde a ideologia de “livre mercado” nos leva? 

Um mercado desregulamentado nada tem a ver com liberdade. Ao contrário! Facilita a acumulação de capital para os multimilionários, de um lado, e de misérias e ilusões para os pobres, de outro. Além disso, procura mexer permanentemente com a ganância dos mais pobres, iludindo-os de que poderão se tornar ricos. Quanto mais riqueza acumulada para poucos, mais liberdade estes poucos terão às custas de pobreza e opressão para a esmagadora maioria.

Como não poderia deixar de ser, muita riqueza acumulada num pólo e a pobreza se proliferando por todos os outros pólos gera descontentamento e violência social, que precisam ser mascarados e justificados como algo que “nada tem a ver” com a estrutura social resultante do “livre mercado”. A resposta dada pelos meios de comunicação e demais instituições do capitalismo são sempre de índole individual.

A política conservadora não consegue fazer frente ao discurso e movimentos de “esquerda”, então apela para o radicalismo fanatizante, que desemboca no neofascismo atual. Os métodos de “debate” dos defensores da ideologia do “livre mercado” vão se tornando imorais, emocionais e paranoicos. Isto é, todos dispositivos psíquicos movidos por gatilhos infantis e emocionais.

Seus principais líderes políticos como o bolsonarismo, o MBL, Nicolas Ferreira, o Brasil Paralelo, etc., tornaram-se mestres na arte de manipular emoções infantis de “pessoas comuns” e ocultar os níveis de privilégios e exploração do “livre mercado” – na verdade, como vimos, do capitalismo imperialista. As contradições produzidas pelo neoliberalismo são muito grandes para não serem percebidas, por isso essa direita neofascista se especializou em métodos refinados de distorção da realidade, que misturam “auto-verdade”, pós-modernismo, sadomasoquismo e egotismo. A distorção e indigência teórica são supridas pela gritaria, pela distorção grosseira e pela manipulação paranoica de memórias e valores conservadores.

Além disso, esta ideologia liquida permanentemente qualquer finalidade social para a economia, tornando-a um instrumento nas mãos dos ricos e voltada somente para os ricos, deixando os pobres consumindo discursos e “boas intenções”.

Se a “esquerda” quiser ter um futuro, precisa aprender a trazer a público esta ideologia para desmascará-la perante os olhos da multidão em um trabalho de Sísifo permanente; precisa superar também o debate restrito a modelos abstratos de socialismo que remontam os anos 30 do século passado.

Se não formos capazes de fazer isso, não só não conseguiremos rebater as críticas de Von Mises, dos Chicago Boys e dos neofascistas, como deixaremos a ideologia do livre mercado operar livre, leve e solta, disfarçada e atuando das mais distintas maneiras.

 

> Este artigo usou como base o livro:

MISES, Ludwig Von. O cálculo econômico em uma comunidade socialista. LVM Editora, São Paulo, 2017.