O mais recente livro de Jessé Souza, “O pobre de direita: a vingança dos
bastardos”, provocou uma série de manifestações e de debates por entre a
esquerda e os meios intelectuais.
Concordemos ou não
com sua tese, devemos reconhecer que instigar o debate e a reflexão pública no
Brasil é um mérito.
Contudo, nem todo
mundo percebe assim. O PSTU, por exemplo, escreveu um longo artigo de polêmica
com o livro de Jessé, intitulado “quem mais alimenta a ultradireita: branco
pobre ou a esquerda capitalista?”, querendo refutar totalmente a sua tese,
embora esta crítica, escrita por Hertz Dias, também tenha seus méritos.
Outros artigos e
críticas apareceram para polemizar com o livro de Jessé ou com o termo “pobre
de direita”. No entanto, a grande questão é que o termo parece ofender
susceptibilidades; sobretudo, parte da militância de orientação marxista.
A abundância de análises e críticas, por mais opostas que pareçam, às
vezes cantam a mesma canção, só que em tons diferentes. Por isso, é preciso
atentar para a essência da questão.
“Ser ofendido não tem importância nenhuma, a não ser que continuemos a
nos lembrar disso” (Confúcio)
Comecemos pelo seguinte dilema: o problema é se o termo é ofensivo ou se
a categoria sociológica existe na realidade?
Trocando em miúdos: o “pobre de direita” existe na realidade brasileira
ou é uma invenção de sociólogos e militantes frustrados?
Tanto faz se o classificamos como “pobre de direita”, alienado, trabalhador
sem consciência de classe ou com consciência burguesa. A forma como o chamamos
não é o centro da questão. Certamente faltaria polidez da nossa parte ou,
talvez, paciência — para se dizer o mínimo —, se saíssemos xingando as pessoas
da classe trabalhadora como “pobre de direita”. Contudo, o problema segue
existindo e ainda precisa ser encarado, por mais doloroso e desesperador que
nos seja.
Uma grande parcela da militância atual — sobretudo a de orientação
petista — realmente tende a xingar e a humilhar os pobres que apoiam a direita
neofascista e não votam no PT. Este problema de impaciência e desequilíbrio não
deve impedir de encarar a questão: o pobre de direita (ou trabalhador sem
consciência de classe) existe ou não existe?
E mais: o seu apoio tem sido decisivo para o neofascismo ou não? Se a resposta for afirmativa, devemos perguntar: por quê?
Sim, o pobre de direita existe e sustenta o neofascismo!
Não deveria haver
dúvidas de que o problema existe e precisa ser encarado. Se o problema é o
receio de ofender um trabalhador na lida do dia a dia, isto é, no campo da
agitação e da propaganda, até podemos considerar uma preocupação justa. O que
não é justo é não reconhecer o problema sociológico real atrás do problema do
rótulo.
Que se busque os
melhores termos para um trabalho de base cotidiano, mas que não se deixe de ver
a realidade que nos salta aos olhos! Se a negamos por medo de ofender, então
não temos sequer como começar a enfrentar o problema.
Como se tratam as
concessões e contradições diárias explícitas e implícitas na situação de cada
um? Simplesmente se ignora?
Quem alimenta a direita neofascista: o branco pobre ou a esquerda
capitalista? Os dois!
No embate do PSTU com
Jessé Souza podemos ficar refém de uma velha forma de fazer polêmica na
esquerda: a dicotomização cega.
Os pontos trazidos
pelo PSTU são necessários: para Jessé a questão se resume ao não-voto nos
governos do PT e à narrativa da direita, que não tem contraponto e sai
vencedora. É uma simplificação do problema que vai no sentido da concepção da
“solução” proposta por Jessé, que é apoiar o petismo como única solução.
Para ele, os governos
petistas estavam tomando medidas importantes para fortalecer a soberania do
país, reduzindo a pobreza, enfrentando os bancos, etc., quando sabemos que isso
não é verdade. Todas essas medidas foram extremamente pontuais e limitadas
pelos arcos de alianças e o programa do petismo. Jessé não vê nisso problema
algum, embora esteja aí uma das principais causas que alimentam e dão armas à
direita neofascista.
O voto é um
termômetro importante, mas nem de longe toca nas questões essenciais do
problema sociológico da existência do pobre de direita, que deitam suas raízes
nos problemas da psicologia de massas. A experiência com os governos do PT vai
muito além do problema de narrativa. O petismo governou o país por mais de uma
década e também se tornou parte do sistema. A direita neofascista tirou todo o
partido disso e, como sempre, distorceu tudo a seu favor. Ela tem sempre
vantagem, já que na sua narrativa e agitação não é necessário ser coerente.
Estes fatos
importantíssimos da realidade recente do país são ignorados por Jessé e
lembrados corretamente pela crítica do PSTU.
Porém, o que Jessé e
PSTU não enxergam é que o pobre de direita aceita acriticamente tudo o que vem
da narrativa da direita, que é absolutamente incoerente — e esse “detalhe”
parece não importar em nada no atual contexto político brasileiro, já que
compra qualquer discurso baseado no ódio e no conservadorismo mais tacanho,
enquanto contesta tudo o que vem da “esquerda” e acredita em qualquer acusação
contra ela.
“É a manipulação da psicologia de massas, estúpido!”
Frente ao mecanicismo
da visão dos marxistas brasileiros, que atribuem tudo à economia e ao
objetivismo, relevando as questões subjetivas, como a ética pessoal, a
psicologia, as emoções e ilusões individuais, Jessé critica a famosa frase do
conselheiro político norte-americano James Carville tentando explicar a
essência da realidade ao então candidato à presidência dos EUA, Bill Clinton:
“é a economia, estúpido!”.
Em um trocadilho apresentado no seu livro, Jessé redireciona o sentido
desta frase para explicar o pobre de direita, invertendo-a completamente:
“nunca foi a economia, tolinho!”.
Jessé entende a economia como economia política — o que de fato é. Para
ele, quando você pensa em economia política, já está envolvendo moralidade,
ética, conduta, etc.
Isto é, as coisas não estão dissociadas e não podemos definir uma causa
estática que estaria hierárquica e eternamente acima das demais. Nesse sentido,
Jessé não deixa de ter elementos de razão confrontando a visão estática da
esquerda atual que resume e submete tudo à economia, ignorando os problemas
subjetivos, que muitas vezes se tornam determinantes. Porém, simplesmente
deslocar todo o problema da economia para a moral, mesmo que seja uma figura de
linguagem, não é muito inteligente, nem contribui para a solução do mistério
que investigamos. Cria, portanto, outra forma de desequilíbrio.
A grande questão não analisada para entendermos o fenômeno do pobre de
direita está na psicologia de massas do neofascismo, que tem diversos pilares
que estão e vão muito além da economia. Se não podemos explicar tudo através da
economia — e nesse sentido Jessé tem razão —, também não podemos excluí-la
totalmente, bem como as suas consequências objetivas e subjetivas.
Justamente neste ponto é preciso um caminho do meio, que não temos nem
na análise de Jessé, nem na crítica do PSTU.
Uma visão mais sóbria nos diria que, assim como a psicologia de massas é
influenciada e engendrada pela economia, da mesma forma, consegue influenciar e
distorcer a economia a partir da sua manipulação política, feita “de fora” —
por exemplo, a partir da manipulação do ódio sadomasoquista da massa e do seu
conservadorismo que lhe foi incutido desde a infância. Todas as ferramentas
para entender e explicar o fenômeno nos serão necessárias — principalmente para
evitar receitas decoradas que ignoram a vida viva e a realidade atual, nos
levando a becos sem saída.
Por isso, o trocadilho correto com a frase de Carville para explicar o
fenômeno do pobre de direita seria: “é a manipulação da psicologia de massas,
estúpido!”.
Onde os pólos da crítica de Jessé e do PSTU se encontram e tangenciam as
questões essenciais
A crítica do PSTU a
Jessé não se preocupa com a seguinte questão: por que a experiência com o
petismo levou as massas brasileiras à direita e não à esquerda?
Dito de outra forma:
após a experiência dos governos petistas, por que a grande massa não vota nulo
ou se recusa a acreditar em qualquer candidato, mas acredita e vota em embustes
que se dizem antissistema, como Trump, Bolsonaro e Marçal?
Ou seja, o grande problema para nos debruçarmos seria por que a massa da
classe trabalhadora prefere os “antissistema” de direita — uma contradição em
termos — do que os antissistema de esquerda. As nossas investigações
sociológicas deveriam nos responder por que eles crescem exponencialmente hoje,
enquanto a esquerda reformista se despedaça e a esquerda revolucionária cai no
gueto?
Seria apenas por causa de dinheiro, tempo de TV e cesta básica? Se a resposta
for positiva, então a revolução está irremediavelmente condenada. Se negamos a
existência do pobre de direita, então não temos nem sequer por que começar a
pensar sobre o assunto.
Em entrevista recente ao canal de Reinaldo de Azevedo, Jessé Souza
afirmou que “o pobre de direita é exatamente o cara que é manipulado na sua
vulnerabilidade social”.
Ora, se não há nenhuma margem de vontade individual no pobre de direita,
então a mudança eleitoral — no caso de Jessé — e a revolução — no caso do PSTU
— estão mais uma vez irremediavelmente condenadas.
Certamente há alienação por entre a classe trabalhadora e manipulação da
sua vulnerabilidade social por parte da burguesia, das suas mídias, igrejas,
etc., mas elas não são absolutas. Portanto, não estão desprovidas de um mínimo de
vontade e opção individual.
O culto da autoridade é a negação do entendimento. O desejo de não sofrer — plantado na mente de milhões de pessoas pela propaganda, pela tentativa de “se tornar rico”, pelos “líderes” e pelas religiões organizadas —, como se isso, no geral, fosse possível, assegura a aceitação da exploração de si mesmo. A porta para se auto-enganar é aberta pelo próprio pobre de direita.
Na mesma entrevista, Jessé conclui que “ninguém explicou pra ele quem o deixou pobre”. Ou seja, o problema da existência do pobre de direita, segundo Jessé, seria o fato de que não houve uma explicação sociológica convincente que lhe demonstrasse quem o explora. Ora, a esquerda revolucionária faz isso o tempo inteiro! — tudo bem que nem sempre o faz da maneira correta, pois muitas vezes é dogmática e tacanha, mas nem todos os trabalhos de base feitos por ela Brasil afora são desprezíveis. Há uma opção, metade consciente, metade inconsciente — seja por razões religiosas de influência evangélica, a teologia da prosperidade, ou por desejo individual de enriquecimento, reconhecimento, fama, etc. —, que faz o pobre de direita fechar os olhos a qualquer explicação sobre quem o deixa pobre.
Eles percebem e se indignam apenas contra a "corrupção da esquerda”, mas quase nunca contra a corrupção da direita, que foi, primeiro, disfarçada e, depois, normalizada e aceita. No fim o pobre de direita acha que todo mundo é corrupto e o que importa é tentar garantir o seu, num terrível “salve-se quem puder”, acreditando, de fato, em quem grita mais forte e alto em coisas que lhe são infantilmente familiares! — e, obviamente, endosse e espelhe as suas pequenas corrupções no dia a dia, com a família, os vizinhos, nas pequenas vantagens inúteis do cotidiano, como fila, trânsito, troco, relação com o outro, etc.
Como explicar a situação política para quem não quer entender? É este,
precisamente, o drama que enfrentamos atualmente. Aqui as paralelas das
críticas do PSTU à tese de Jessé se encontram. O problema todo, segundo Jessé,
estaria na narrativa petista, que não encontrou o eixo sociológico correto para
tocar a massa; ou, então, está, segundo o PSTU, exclusivamente nas “direções
traidoras” que lhes impedem de agir “corretamente” e de decidir quem lhes indica o
“caminho certo”.
Nada, ou quase nada,
cabe às responsabilidades dos pobres de direita, que podem reclamar livremente
sem responder pelos seus atos, por menor importância que isso tenha no jogo de
poder social como um todo.
Se é certo que não
podemos generalizar o pobre de direita, dado que nem todos os pobres são
conservadores e adeptos da direita neofascista, também não podemos fechar os
olhos para o seu crescimento exponencial e a sua coesão social, apesar das
profundas diferenças que existem entre si. Nem situar o problema exclusivamente
na narrativa ou na “esquerda capitalista”.
Parte importante da
compreensão e do enfrentamento ao problema do pobre de direita está no fato de não lhe debitarmos suas devidas responsabilidades sociais, que nunca lhe são
apresentadas.
Pobre de direita e a classe média de esquerda
Quando falamos do
“pobre de direita” como uma categoria sociológica, não podemos esquecer de
olhar para o fenômeno da “classe média de esquerda” como outra categoria
importante, em estreita relação com a primeira.
A “esquerda
capitalista” não existiria sem esta base social ampla e também difusa, mas que
não deixa de exercer influência sobre os movimentos sociais e, consequentemente,
de polarizar com os “pobres de direita”.
A militância petista
e a sua base de apoio político se estendem pelas inúmeras burocracias sindicais
espalhadas pelo país, pelo funcionalismo público e por uma classe média que se
sente representada pelas ações, políticas e o programa do PT, que não ameaçam a
atual estrutura social e na qual não veem maiores problemas. Sabemos que as
burocracias sindicais são ávidas por manter suas condições de vida,
reconhecidamente superiores às da classe trabalhadora. Quando contrariadas
politicamente ou derrotadas eleitoralmente, partem para o ataque. O que as
burocracias sindicais e a classe média entendem por “pobre de direita” diz mais
respeito à si mesma e à sua condição social privilegiada do que à uma análise sociológica
séria, que vise a uma mudança de postura.
Ironicamente
apelidada de “esquerda caviar”, grande parte desta militância, simpatizantes da
“esquerda” e a sua base social vivem nos bares e na boemia, muitas vezes
expressando um caráter identitário pelo viés do partido democrata
estadunidense, ignorando completamente uma política classista e socialista,
embora goste de vender uma imagem de progressistas. Não há escuta, mas busca
pela confirmação de suas posições políticas e indignação com contrariedade.
Sua prática é de culto às lideranças e políticas supostamente
progressistas — um verdadeiro culto de imagens que não tem, muitas vezes,
expressão prática concreta e nenhum vestígio de socialismo. Muitas destas
lideranças são acadêmicas, não tendo nenhuma relação direta com a vida dos
milhões de “pobres de direita”, nem com suas demandas reais.
Tal como os pobres de
direita fazem ao buscar no julgamento conservador e na religião evangélica
(dentre outras) a expiação moral da sua prática cotidiana para a própria
consciência em relação aos vizinhos e colegas, a classe média de esquerda
também visa a expiação de sua prática a partir de uma suposta consciência
“socialista” e de “esquerda”, sem nenhuma reverberação nas suas atitudes e
relações cotidianas. Nesse sentido, a crítica de Paulo Galo tem razão (“a
esquerda playboy é o problema, não o pobre de direita”), ainda que ele incorra
nos erros de PSTU e Jessé, já debatidos anteriormente.
O resultado é que a
classe média de esquerda gosta sim de xingar os pobres de direita sem entender
a sua gênese e, sobretudo, piorando a situação ao invés de ajudar a resolver o
problema. Se xingar mutuamente não pode resolver a questão, nem explicar a
realidade, mas obscurece-la.
Como vimos,
reconhecer o problema da existência do pobre de direita não significa,
necessariamente, xingá-lo; tampouco generalizá-lo entre a classe trabalhadora.
Independentemente de como chamamos essa categoria social, se não debatermos
francamente e não entendermos o problema da psicologia de massas e do egotismo
das sociedades capitalistas — fatos que são exploradas pela direita neofascista
na sua prática cotidiana de manipular e criar enormes contingentes de pobres de
direita —, as questões não respondidas, a despeito dos esforços sociológicos de
Jessé Souza e da crítica do PSTU, seguirão… bem como, o crescimento político da
própria direita neofascista!