terça-feira, 5 de novembro de 2024

O povo brasileiro não tem feito história, mas sofrido-a!

 

Os preguiçosos não fazem história
sofrem-na
(Kropotkin)

Quem tem coração de Zumbi
não aceita cortar cana
Cansou de sonhar com emprego
no prédio da Força Sindical
(O rei da montanha - Facção Central)

A história ensina, mas não tem alunos
(Antonio Gramsci)

 

A tônica da história do povo brasileiro — sobretudo neste início de século XXI — tem sido a da mais amarga indiferença às mudanças sociais da sua própria realidade. Se contenta com migalhas pessoais e familiares, de salários, títulos ocos e discursos eleitorais, ao invés de dar atenção às questões essenciais.

         Muitas vozes indignadas gritarão injúrias contra essa afirmação e invocarão “as inúmeras rebeliões do povo brasileiro ao longo da história”, além dos “diversos quilombos espalhados pelo território nacional”.

         Nada a objetar!

         Tudo isso é verdadeiro e muito importante. Porém, não pode esconder o fato de que temos sido irresponsáveis com a condução da nossa própria história. 

Parece que por aqui a inércia histórica tem sido a regra e a tendência a nos desresponsabilizar pelas medidas que são necessárias tomar para enfrentar o fato de sermos um país campeão em desigualdade social. Ninguém dos que mais precisam quer tomar a frente de nada e preferem esperar as chefias, as “lideranças” e os candidatos, sejam eles quem forem. 

O que pode nos obrigar a assumir nosso papel histórico se não nós mesmos?

Temos visto uma predisposição do povo e dos trabalhadores a colocar na frente das exigências políticas, sociais, sindicais, pedagógicas, etc., qualquer desculpa pessoal ou de impossibilidade de mudança, como se essas exigências não tivessem a menor importância e não interferissem diretamente sobre a nossa própria vida pessoal, gerando um círculo vicioso infernal. 

A nossa tendência tem sido a de evitar os confrontos, choques de ideias e tomada de posições visando preservar o emprego, a vida e os equilíbrios precários. Também fazemos vistas grossas a inúmeros problemas éticos e de conduta de muita gente por entre o povo.

 

         Lima Barreto, um exímio conhecedor da realidade e da mentalidade do povo brasileiro durante a República Velha (1889-1930), pintou com suas palavras, a mais de 100 anos atrás, o seguinte quadro: 

A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nos pareceres (Crônica “Elogio da morte”, publicada no jornal Marginália, em 19 de outubro de 1918).

Passados quase cem anos do fim da República Velha e, assustadoramente, esta descrição pouco se modificou.

 

O lucro tem sido predatório e, em sua maioria, sem nenhum escrúpulo. Uma reprodução — sob uma base capitalista — do que foi o período colonial do país. Tira-se vantagem em tudo; privatizam-se e entregam-se recursos estratégicos sem nenhum retorno pro povo e nem mesmo para a cadeia produtiva empresarial; não há preocupação social alguma. Tudo isso supostamente “assustaria o setor privado” e o que toda a mídia comercial e o setor empresarial ordenam é silenciar qualquer crítica ou exigência — ou as taxam de “anacrônicas” e atrasadas.

Por entre as classes exploradas não temos visto uma disposição de espírito muito melhor. Ao contrário: todos querem tirar vantagem à sua maneira.

Os funcionários públicos, em sua maioria, preocupam-se apenas ou prioritariamente com salários, posições, estabilidade e aposentadoria. No geral, se calam perante qualquer enfrentamento mais sério sempre que a realidade o exige — inclusive sobre o seu local de trabalho. O seu pensamento político não incomoda e, sobretudo, não arrisca, a não ser que seus interesses profissionais, salariais e de carreira sejam questionados — o que pode resultar se só nos mobilizamos pelos nossos próprios interesses mais imediatos?

Ora, resultará naquela poesia atribuída a Bertold Brecht, de que como eu não me importei com ninguém, ninguém se importará comigo.

A classe trabalhadora e os marginalizados sociais, chantageados e seduzidos pelo imediatismo e pela falta de quase tudo, tornam-se, muitas vezes, reacionários, conservadores — numa palavra: bolsonaristas (outros, mais “progressistas”, se tornam petistas, também esperando alguma benesse material por via eleitoral passiva). Pensam que vão conseguir alguma coisa por dentro da própria estrutura. Qualquer voz que destoe desta esperança é ouvida com má vontade ou mesmo com hostilidade.

Perceber a sua situação deplorável exige sensibilidade e mudança interior. Poucos estão dispostos a isso.

A truculência, a grosseria e a indiferença — além da picuinha contra vizinhos, colegas e desconhecidos — tem sido preferido ao enfrentamento e à mudança da postura ética cotidiana.

 

Lima prossegue na sua crítica:

Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma ideia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador como louco (Idem).

 

O herói brasileiro cultuado pela história oficial tem sido o militar sem realizações e façanhas reais, mas repleto de autoritarismos e títulos ocos. Já o povo, mais ou menos espontaneamente, prefere cultuar como herói o jogador de futebol sem caráter e o cantor de música com refrão vazio ou de baixo calão, da mesma forma sem caráter, mas que consegue colar na mente de quem o escuta pela mídia tradicional e redes sociais. É a fuga pelo prazer barato, do cotidiano mais imediatista, que se transforma em dor e sofrimento pavorosos, cujas origens são apagadas e esquecidas.

Quando se tenta apresentar o nome de um herói autêntico que morreu pela liberdade, seja numa aula de escola pública, num livro ou numa agitação de rua, o povo age com indiferença, má vontade para ouvir ou mesmo hostilidade.

 

Por fim, Lima Barreto conclui:

O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para a própria felicidade da espécie humana

Entretanto, no Brasil, não se quer isso. Procura-se abafar opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.

Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar, são fechados e não aceitam nada que os possa lesar (Idem).

 

Esta opinião de Lima, escrita há mais de 100 anos atrás, continua absolutamente vigente.

A esquerda não quer entender que aqui (e também em grande parte do mundo) a agitação de ideias, palavras de ordem, programas revolucionários não repercute na massa. O que encontra eco são gritos como “deus, pátria e família”, “em defesa da propriedade” (que a maioria não tem, nem nunca terá, mas almeja ter e acredita, quase como uma crença religiosa, que um dia terá) e a “defesa da fortuna dos bilionários”, que dão a ilusão de que um dia os pobres também poderão ter a sua própria fortuna.

Aqui impera a mentalidade dos eleitores malufistas, que afirmavam: “Não acho que Maluf seja nenhum santo, mas, pelo menos, quando chega lá, ele faz. Não é isso que a gente quer?”.

Por estas terras brasileiras não encontramos interesse em ética, em procurar encontrar o caminho justo para a política, para a educação pública, para a sociedade, a economia e as relações do cotidiano.

No seio do povo, desde a mais tenra idade, o que se quer é tirar vantagem (aqui a “lei de Gerson” repercute). Poderíamos se conformar com esta desgraceira e fazer o “elogio da morte”, como fez Lima. Ou, ainda, tentar encontrar um “caminho fácil” através de saídas eleitoreiras e oportunistas, como o petismo e grande parte da esquerda nos brinda, para dialogar com a massa nesses seus atrasos horripilantes.

A grande questão, contudo, é tentar encontrar um caminho que de alguma forma toque o coração da massa, que a consiga tirá-la dessa condição oportunista e utilitarista profunda, aprendida dos extratos sociais superiores, que prefere se colocar na condição de “seguidora de procissão” e espectadora passiva da realidade do país e do mundo — tipo torcida organizada.

Como impera entre nós a crença de que “tudo o que é bom vem de fora”, num terrível espírito de vira-lata, então, nos resta esperar que as principais mudanças venham de fora e sejam impostas ao país, cabendo uma expectativa de público que assiste a uma novela ou uma torcida que torce pelo bom desempenho do seu time.

Mesmo nas piores condições de vida, como as das periferias brasileiras, também se vê formação e disputas egóicas, que não levam a lugar algum, mas apenas dividem e dão tranquilidade e “fama” a poucos. Para muita gente pobre, de periferia, isso infelizmente basta.

Não se preocupar com isso, não querer ver e não dar atenção a este fato, torna o “trabalho de base” mais dedicado nas comunidades algo inócuo, porque pode reforçar o utilitarismo ao invés da construção de um novo ser humano.

 

De que servirá nos auto iludirmos ou sermos por demais complacentes com o povo?

Para encontrar uma “saída” para o impasse é preciso olhar a realidade de frente, sem medo de tirar as conclusões mais duras e preocupantes. Esse é o único caminho que pode ajudar a encontrarmos novas respostas e ações.

Um bom primeiro passo seria as organizações de esquerda começarem a se investigar a si mesmas, suas posturas, vaidades e desejos egocêntricos. Criando uma nova conduta exterior, partindo do interior, quem sabe comecemos a constranger realmente as condutas equivocadas do povo brasileiro?


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