A tônica da história do povo brasileiro — sobretudo neste início de
século XXI — tem sido a da mais amarga indiferença às mudanças sociais da sua
própria realidade. Se contenta com migalhas pessoais e familiares, de salários,
títulos ocos e discursos eleitorais, ao invés de dar atenção às questões
essenciais.
Muitas vozes
indignadas gritarão injúrias contra essa afirmação e invocarão “as inúmeras
rebeliões do povo brasileiro ao longo da história”, além dos “diversos
quilombos espalhados pelo território nacional”.
Nada a objetar!
Tudo isso é
verdadeiro e muito importante. Porém, não pode esconder o fato de que temos
sido irresponsáveis com a condução da nossa própria história.
Parece que por aqui a inércia histórica tem sido a regra e a tendência a
nos desresponsabilizar pelas medidas que são necessárias tomar para enfrentar o
fato de sermos um país campeão em desigualdade social. Ninguém dos que mais
precisam quer tomar a frente de nada e preferem esperar as chefias, as
“lideranças” e os candidatos, sejam eles quem forem.
O que pode nos obrigar a assumir nosso papel histórico se não nós
mesmos?
Temos visto uma predisposição do povo e dos trabalhadores a colocar na
frente das exigências políticas, sociais, sindicais, pedagógicas, etc.,
qualquer desculpa pessoal ou de impossibilidade de mudança, como se essas
exigências não tivessem a menor importância e não interferissem diretamente
sobre a nossa própria vida pessoal, gerando um círculo vicioso infernal.
A nossa tendência tem sido a de evitar os confrontos, choques de ideias
e tomada de posições visando preservar o emprego, a vida e os equilíbrios
precários. Também fazemos vistas grossas a inúmeros problemas éticos e de
conduta de muita gente por entre o povo.
Lima Barreto, um
exímio conhecedor da realidade e da mentalidade do povo brasileiro durante a
República Velha (1889-1930), pintou com suas palavras, a mais de 100 anos
atrás, o seguinte quadro:
A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos de
independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou
salários nos pareceres (Crônica “Elogio da morte”, publicada no jornal
Marginália, em 19 de outubro de 1918).
Passados quase cem anos do fim da República Velha e, assustadoramente, esta descrição pouco se modificou.
O lucro tem sido predatório e, em sua maioria, sem nenhum escrúpulo. Uma
reprodução — sob uma base capitalista — do que foi o período colonial do país.
Tira-se vantagem em tudo; privatizam-se e entregam-se recursos estratégicos sem
nenhum retorno pro povo e nem mesmo para a cadeia produtiva empresarial; não há
preocupação social alguma. Tudo isso supostamente “assustaria o setor privado”
e o que toda a mídia comercial e o setor empresarial ordenam é silenciar
qualquer crítica ou exigência — ou as taxam de “anacrônicas” e atrasadas.
Por entre as classes exploradas não temos visto uma disposição de
espírito muito melhor. Ao contrário: todos querem tirar vantagem à sua maneira.
Os funcionários públicos, em sua maioria, preocupam-se apenas ou
prioritariamente com salários, posições, estabilidade e aposentadoria. No
geral, se calam perante qualquer enfrentamento mais sério sempre que a
realidade o exige — inclusive sobre o seu local de trabalho. O seu pensamento
político não incomoda e, sobretudo, não arrisca, a não ser que seus interesses
profissionais, salariais e de carreira sejam questionados — o que pode resultar
se só nos mobilizamos pelos nossos próprios interesses mais imediatos?
Ora, resultará naquela poesia atribuída a Bertold Brecht, de que como eu
não me importei com ninguém, ninguém se importará comigo.
A classe trabalhadora e os marginalizados sociais, chantageados e
seduzidos pelo imediatismo e pela falta de quase tudo, tornam-se, muitas vezes,
reacionários, conservadores — numa palavra: bolsonaristas (outros, mais
“progressistas”, se tornam petistas, também esperando alguma benesse material
por via eleitoral passiva). Pensam que vão conseguir alguma coisa por dentro da
própria estrutura. Qualquer voz que destoe desta esperança é ouvida com má
vontade ou mesmo com hostilidade.
Perceber a sua situação deplorável exige sensibilidade e mudança
interior. Poucos estão dispostos a isso.
A truculência, a grosseria e a indiferença — além da picuinha contra
vizinhos, colegas e desconhecidos — tem sido preferido ao enfrentamento e à
mudança da postura ética cotidiana.
Lima prossegue na sua crítica:
Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e
inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma
ideia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma
pessoa poderosa, trata o agitador como louco (Idem).
O herói brasileiro cultuado pela história oficial tem sido o militar sem
realizações e façanhas reais, mas repleto de autoritarismos e títulos ocos. Já
o povo, mais ou menos espontaneamente, prefere cultuar como herói o jogador de
futebol sem caráter e o cantor de música com refrão vazio ou de baixo calão, da
mesma forma sem caráter, mas que consegue colar na mente de quem o escuta pela
mídia tradicional e redes sociais. É a fuga pelo prazer barato, do cotidiano
mais imediatista, que se transforma em dor e sofrimento pavorosos, cujas origens
são apagadas e esquecidas.
Quando se tenta apresentar o nome de um herói autêntico que morreu pela
liberdade, seja numa aula de escola pública, num livro ou numa agitação de rua,
o povo age com indiferença, má vontade para ouvir ou mesmo hostilidade.
Por fim, Lima Barreto conclui:
O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião de
qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para a
própria felicidade da espécie humana
Entretanto, no Brasil, não se quer isso. Procura-se abafar opiniões,
para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.
Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar, são fechados e
não aceitam nada que os possa lesar (Idem).
Esta opinião de Lima, escrita há mais de 100 anos atrás, continua
absolutamente vigente.
A esquerda não quer entender que aqui (e também em grande parte do
mundo) a agitação de ideias, palavras de ordem, programas revolucionários não
repercute na massa. O que encontra eco são gritos como “deus, pátria e
família”, “em defesa da propriedade” (que a maioria não tem, nem nunca terá,
mas almeja ter e acredita, quase como uma crença religiosa, que um dia terá) e
a “defesa da fortuna dos bilionários”, que dão a ilusão de que um dia os pobres
também poderão ter a sua própria fortuna.
Aqui impera a mentalidade dos eleitores malufistas, que afirmavam: “Não
acho que Maluf seja nenhum santo, mas, pelo menos, quando chega lá, ele faz.
Não é isso que a gente quer?”.
Por estas terras brasileiras não encontramos interesse em ética, em
procurar encontrar o caminho justo para a política, para a educação pública,
para a sociedade, a economia e as relações do cotidiano.
No seio do povo, desde a mais tenra idade, o que se quer é tirar
vantagem (aqui a “lei de Gerson” repercute). Poderíamos se conformar com esta
desgraceira e fazer o “elogio da morte”, como fez Lima. Ou, ainda, tentar
encontrar um “caminho fácil” através de saídas eleitoreiras e oportunistas,
como o petismo e grande parte da esquerda nos brinda, para dialogar com a massa
nesses seus atrasos horripilantes.
A grande questão, contudo, é tentar encontrar um caminho que de alguma
forma toque o coração da massa, que a consiga tirá-la dessa condição
oportunista e utilitarista profunda, aprendida dos extratos sociais superiores,
que prefere se colocar na condição de “seguidora de procissão” e espectadora
passiva da realidade do país e do mundo — tipo torcida organizada.
Como impera entre nós a crença de que “tudo o que é bom vem de fora”,
num terrível espírito de vira-lata, então, nos resta esperar que as principais
mudanças venham de fora e sejam impostas ao país, cabendo uma expectativa de
público que assiste a uma novela ou uma torcida que torce pelo bom desempenho
do seu time.
Mesmo nas piores condições de vida, como as das periferias brasileiras,
também se vê formação e disputas egóicas, que não levam a lugar algum, mas
apenas dividem e dão tranquilidade e “fama” a poucos. Para muita gente pobre,
de periferia, isso infelizmente basta.
Não se preocupar com isso, não querer ver e não dar atenção a este fato,
torna o “trabalho de base” mais dedicado nas comunidades algo inócuo, porque
pode reforçar o utilitarismo ao invés da construção de um novo ser humano.
De que servirá nos auto iludirmos ou sermos por demais complacentes com o povo?
Para encontrar uma “saída” para o impasse é preciso olhar a realidade de
frente, sem medo de tirar as conclusões mais duras e preocupantes. Esse é o
único caminho que pode ajudar a encontrarmos novas respostas e ações.
Um bom primeiro passo seria as organizações de esquerda começarem a se investigar a si mesmas, suas posturas, vaidades e desejos egocêntricos. Criando uma nova conduta exterior, partindo do interior, quem sabe comecemos a constranger realmente as condutas equivocadas do povo brasileiro?
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