quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O absolutismo contemporâneo

 

Arte por @joaoggarin_

O mundo moderno e o capitalismo contemporâneo surgiram da luta contra o absolutismo monárquico.

Se constatou que um único homem não poderia ter o poder total sobre a sociedade e, por esta razão, pensou-se em diversos mecanismos de contenção e controle, como a exigência de uma constituição e de 3 poderes para governar.

 

De lá para cá, praticamente todos os países do mundo promulgaram suas constituições e dividiram os poderes, procurando estar de acordo com a nova visão de mundo surgida a partir do iluminismo e da revolução francesa de 1789.

O grande problema é que este controle sobre o poder é parcial e se restringe apenas à política. 

A economia segue amplamente desregulamentada e controlada por poucos. Como o “livre” mercado sabota a regulamentação e não possui controle de espécie alguma sobre os bilionários, o seu poderio econômico fica livre para burlar constituições e leis; comprar jornalistas, mídias, legisladores e juízes nas mais diferentes instâncias.

Por se tratar de um poder econômico, disfarça-se de neutro perante o senso comum, que atribui poder, corrupção e ilegalidade exclusivamente à política.

Quem controla um bilionário? Obrigá-los a respeitar limites seria um crime contra a “liberdade” ou uma necessidade social?

O poder econômico dos bilionários é uma reedição do absolutismo sob novas bases. Ainda precisamos debater e elaborar a guilhotina e a constituição que poderão lhe colocar limites.

 

Vejamos o caso de Elon Musk.

Ele representa bem o estágio de degeneração em que o capitalismo mundial se encontra: regulamentação draconiana sobre os pequenos empresários e produtores — que erroneamente só reconhecem problemas na política e no Estado —; enquanto permite liberdade irrestrita para os endinheirados.

O seu poder econômico e, consequentemente, político, se baseia no mercado mundial e na transnacionalização do capital.

Musk pode escolher a legislação de qual país vai respeitar e qual vai condenar como “ditadura”, a depender da sua estratégia empresarial. Enquanto condena a política e a justiça no Brasil como ditatoriais, respeita as da Índia, que tem tendências de direita radical.

Condena a “ditadura” na Venezuela e na China, mas apoia Donald Trump, que avaliza o genocídio em Gaza, dá suporte à Israel e pretende levantar tarifas alfandegárias contra a indústria chinesa de carros elétricos — isto é, tarifas e barreiras artificiais, cujo nome simples é: intervenção arbitrária na economia em benefício próprio.

Enquanto seduz a opinião pública mundial e da juventude brasileira com o seu discurso empreendedor e de “vencedor”, tributário do American Way of Life, decide e condena, na prática, quem é democrata e quem é ditador.

 

No caso do Brasil, Musk não respeita a legislação e a constituição vigentes. Faz campanha aberta contra elas escondido atrás do discurso de “liberdade de expressão”, no que é seguido pela família Bolsonaro e todos os seus apoiadores.

Enquanto mente descaradamente que o objetivo de vendas da sua internet por satélite é conectar escolas rurais da Amazônia, fornece conexão real para os madeireiros e o agronegócio ilegal, que desmata e queima as florestas sul americanas, tendo impacto no clima mundial.

Esta é a única “liberdade de expressão” que Musk conhece e respeita. Gritando contra a “ditadura”, esconde a verdadeira ação ditatorial, que é uma espécie de poder absolutista desconhecido pelos próprios reis europeus dos séculos XVII e XVIII.

 

Bolsonaro condecorando Musk pelos seus "grandes serviços" prestados ao agronegócio brasileiro nas queimadas


Não é por acaso que o agronegócio e a direita brasileira o idolatre, pois agem do mesmo modo.

O agronegócio do nosso país, por exemplo, funciona a partir de suas próprias leis: explora, desmata, queima, difama, mente, invade terra indígena, mata e compra qualquer um que se coloque contra o seu caminho. É isso que a direita entende como “liberdade econômica” e “empreendedorismo”.

Tal como os reis absolutistas, intimida e sabota jornalistas independentes; compra a grande imprensa para fazer sua propaganda positiva; manda tocar o horror e mata opositores. 

Se surge alguém que pretende regulamentar o setor, inclusive com cobrança de impostos — já que o que ele paga de tributos é uma piada de mau gosto —, ocorre uma campanha difamatória e mentirosa de que isso quebrará o país, reproduzida e repetida por mídias, jornais, telejornais, revistas, propagandas, portais de internet, youtubers, etc. Vão para as redes sociais — também muito bem pagas — chorar pela “liberdade de expressão”.

         Entendem por “liberdade de expressão” o “direito” de serem supremacistas brancos, racistas, xenófobos, egoístas e egocêntricos; isto é, o “direito” de defenderem a imoralidade da sua fortuna e da “liberdade de mercado” que é só para poucos, baseada em fraudes, sabotagens, intervenções diretas ou indiretas nos governos, no mercado e na sociedade.

A sua fortuna é usada de forma arbitrária, contrária a qualquer lei ou regulamentação, e “convence” facilmente aqueles de mente fraca ou que vivem à mercê do espírito de rebanho. A direita aprova tudo isso escondendo este poder absolutista dos bilionários atrás da “moral e dos bons costumes”, do “empreendedorismo”, de “democracia x ditadura”, de “liberdade” e de slogans como “deus, pátria e família”.

Em síntese: o absolutismo monárquico renasceu sob a forma de absolutismo econômico dos grandes bilionários, que possuem diversos meios para se venderem como salvadores da humanidade, quando, na verdade, são uma das principais ameaças à vida dos mais pobres e do próprio planeta.

 ***

O poder absolutista dos bilionários também não seria possível se não houvesse uma propensão nas pessoas comuns para naturalizá-lo como legítimo e desejável.

A maioria do povo pobre simpatiza com Bolsonaro, Marçal, Elon Musk e a direita em geral porque comunga com eles certas noções e valores de acumulação de riquezas e de códigos morais tradicionais. 

Por exemplo: o homem como chefe de família — já que não pode mandar na arbitrariedade dos governos, dos bancos, da polícia ou local de trabalho, quer compensar em casa, nas mulheres e nos filhos, agredindo-os se necessário for —; algumas mulheres também não veem nenhum problema em se colocar nessas condições.

Portanto, o povo pobre que apoia a direita simpatiza, em essência, com essa posição de poder e hierarquia. Não que tenha ou possa a vir a ter poder real na sociedade, mas porque intimamente aspira a isso. Quer acreditar nesta ilusão e até se empolga com essa possibilidade.

O discurso e a prática da esquerda (sobretudo da autointitulada revolucionária) não o toca, porque esse chefe de família não quer dividir, não quer um outro tipo de sociedade que acabe com essa espécie de sonho de ser um milionário que ele compartilha, não quer outro tipo de sociedade que faça a gente ver o outro e divida a riqueza com ele porque ninguém o olha nesta que existe e nem divide riqueza alguma com ele, mas que mantenha e defenda a fortuna e as propriedades que futuramente talvez possa vir a ter, para que ele também possa vir a ser reconhecido, aclamado, respeitado, servido.

Assim funciona, pensa e sente todo o seu sistema de ética e moral — e a direita e seus ideólogos sabem disso.

Mesmo o discurso cristão-evangélico é interesseiro para este chefe de família porque pretende salvar e estender ao máximo a vida do seu ego, de sua família, dos seus descendentes, dos seus. Ou seja, como os bilionários e poderosos, quer viver mais e se prolongar mais. Transforma a religião num balcão de negócios: te dou a minha fé e devoção e em troca quero a vida eterna.

Esta é sua visão econômica, política e espiritual, numa tacada só. Os manipuladores da psicologia de massas sabem muito bem como negociar com este tipo de consciência e comprá-las com alguns trocados.

Os setores progressistas, conscientes e de “esquerda” continuam errando porque entram no jogo deste debate viciado e compram a superficialidade do debate, sem chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome. Também ignoram a necessária compreensão e intervenção sobre a psicologia de massas, que termina sempre por ser idealizada.

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