terça-feira, 22 de agosto de 2023

Relacionamento aberto: entre a emancipação e o hedonismo

 

Os tempos atuais trazem uma imensa gama de "novidades emancipatórias".
O questionamento do casamento no seu atual formato monogâmico talvez seja uma das mais destacadas.
Na internet e nos livros existem tantas receitas, orientações, "lacrações", ordens, palavra de ordens, ideologias, mantras e tantras do que deve ser feito para se evoluir, crescer, "entender a vida", "parar de sofrer", "dissolver o eu", que seria até engraçado (com um olhar de bom-humor) se não fosse um pouco trágico.
A enxurrada dessas "receitas" e orientações gera também o caos e pode bem servir para confundir, piorando a sensação de desespero e desamparo.
***
Na questão do casamento não monogâmico, isto é, do "relacionamento aberto" (dentre outros assuntos), podemos citar a famosa máxima de Gramsci: "a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem".
Cita-se especificamente o caso do "relacionamento aberto" porque é um dos elementos importantes da composição de uma nova sociedade, evitando julgamentos destrutivos e trabalhando para a superação da moral atual. O fato de muitas pessoas (e, principalmente, muitos militantes) propagarem e supostamente já praticarem o "relacionamento aberto" não significa que estejam necessariamente construindo uma nova forma de relacionamento "socialista", revolucionária ou, simplesmente, novas formas mais saudáveis de se relacionar.
Tudo tem que ser examinado com muito cuidado e critério, principalmente no trato entre si e no grau de autonomia emocional e real que desenvolve nas pessoas envolvidas.
Em muitos casos ocorre a infiltração de pensamentos, sentimentos e utilitarismos burgueses, dado que vivemos no capitalismo em decomposição selvagem e bárbara. Se não temos o "novo nascido" — ou sequer em vias de nascimento visível —, muito provavelmente esta modalidade de relacionamento pode ser infiltrada por motivações narcisistas, hedonistas e utilitaristas; muitas vezes se escondendo atrás de justificativas "modernas", "progressistas", "socialistas", "marxistas".
Não há relacionamento aberto possível sem se preocupar com o outro; sem ser sensível com suas demandas e tempos; sem paciência e, sobretudo, sem que o entorno, a sociedade, a moral, o julgamento alheio, estejam se modificando para melhor (por menor que seja o passo adiante).
É necessário, sobretudo, a autorreflexão, auto reconhecimento e maturidade — artigos raros, em especial, a última, uma vez que a sociedade capitalista, suas instituições, mídias e religiões organizadas, infantilizam as massas de seres humanos, injetando-lhe incontáveis doses diárias de hedonismo e narcisismo egocêntrico, como forma de dominação e submissão.

sábado, 5 de agosto de 2023

Os limites do poder


Quando morreu a consciência do povo
falou-se em autoridade do governo
e lealdade dos cidadãos
(Lao Tsé)

            O senso comum das pessoas pensa, com certa razão, que o poder pode solucionar todos os problemas da sociedade. Os marxistas e os leninistas das mais distintas tendências lutam pelo poder, afirmando, também com certa razão, que “fora do poder, tudo é ilusão”, o que corrobora com a ideia geral do senso comum no âmbito da militância.

         Se queremos mudar a sociedade e, sobretudo, conservar essas mudanças, certamente teremos que enfrentar o problema do poder. No entanto, até para que possamos usá-lo da maneira mais eficaz e saudável possível, evitando os erros e os vícios do passado, que ainda sobrevivem dentro da inércia histórica, é importante refletir sobre sua natureza e seus limites.

         Para o comunista, cineasta e pensador italiano, Paolo Pasolini, "estar no poder significa dispor dos instrumentos do poder". Correto. É por isso que a militância socialista luta pelo poder, cuja finalidade é remodelar e reestruturar a sociedade de acordo com novos princípios. Porém, não significa apenas dispor dos instrumentos do poder. Significa, também, enfrentar os problemas e os limites do poder, como, por exemplo, disciplinar a massa, enfrentado-se com o seu senso comum mais atrasado e com a sua ausência de interesse por seus deveres, uma vez que, ultimamente, só tem se lembrado de exigir os direitos.

         Muita gente, dentro e fora da militância de esquerda, pensa que basta chegar ao poder para que a mentalidade e as ações da massa se readequem espontaneamente e “se resolvam por si mesma”, pelo simples fato do surgimento de um “novo poder” – supostamente de caráter proletário. As experiências revolucionárias do século XX não demonstraram isso. Grande parte dos militantes de esquerda insinua, de uma forma ou outra, que pode existir um trabalho de base perfeito, ou a construção de alianças que redundem numa tomada do poder que seja a expressão acabada e universal dos desejos e anseios da massa — como se a massa não fosse contraditória e repleta de problemas internos. Os métodos da “ditadura do proletariado” precisam ponderar onde e quando atuar e intervir, pois a depender de determinados métodos e ações pode dificultar o seu desenvolvimento ou até mesmo jogá-la nos braços da burguesia, uma vez que a sua mentalidade alienada a faz desejar, grande parte do tempo, o mesmo que a classe dominante.

         As camadas mais populares da massa também precisam amadurecer, demonstrando algum tipo de vontade coerente e progressista, por menor que seja, aprendendo a se colocar no lugar do governo para também desenvolver a capacidade de pensar dentro da lógica dos "problemas de poder". Caso contrário, viveremos eternamente como crianças dependentes, que são acostumadas a exigir sem ter em contrapartida algum tipo de dever para com esse poder ou, no mínimo, para com a sociedade.

         Quando o governo tem um caráter de classe — no caso, quando se tratam de governos burgueses — há uma direção política e econômica bem nítida que termina segregando a sociedade e contribuindo para a manutenção da pobreza, mesmo em meio a algum tipo de fartura. No caso de um governo socialista, que pretende mudar o sistema e fazer o oposto, cabe refletirmos sobre os limites do poder.

         Os governos, no geral, não agem no vazio. Escolhem sempre entre alternativas e, portanto, estão submetidos a restrições que são decorrentes, muitas vezes, de escassez de recursos, de valores sociais incompatíveis com certas escolhas, com interesses de outros países e de grupos sociais, de flutuações do nível de atividade econômica mundial, de mudança nos padrões de produção e de avanços tecnológicos, dentre outros.

         A ação de governo (e de poder) consiste, essencialmente, em tomar decisões, em escolher entre alternativas reais, e toda a escolha inevitavelmente cria descontentamento. Mesmo entre a classe trabalhadora, que em razão de inúmeras heranças da sociedade capitalista, pode não entender tais escolhas e até mesmo se colocar politicamente contrários a um possível governo revolucionário em distintas oportunidades. A simples repressão a estes possíveis descontentamentos gera consequências desfavoráveis e danosas — às vezes irreversíveis.

         É necessário educar a mente popular — o senso comum — sobre os problemas do poder. Tratá-lo como mágico ou místico, capaz de resolver todos os problemas com uma varinha de condão, é o que faz com que as pessoas sejam presas fáceis do rebaixado e conveniente discurso político que reduz tudo à corrupção. É muito importante demonstrar que os governos não agem no vazio, mas que existem condições e limites, mesmo para os governos mais bem “equipados” e posicionados.

         A postura infantil só critica, exige tudo e desconsidera todos esses problemas. Ela não pode criar uma massa com uma consciência realista, que seja base de apoio e sustentação de uma profunda mudança social, como um governo socialista, por exemplo. É muito importante levar tudo isso em consideração para podermos desenvolver um novo trabalho político e social de base que seja correspondente aos limites reais do poder, para que este não seja mais uma fonte de ilusões, nem de espera por “soluções milagrosas”.