Biden e Putin em teleconferência sobre a questão ucraniana |
Foi
com a “guerra da Síria”, em 2014, que a disputa pelo poder mundial entre os blocos
liderados pelos EUA, por um lado, e China-Rússia, por outro, tornou-se mais
evidente. A Ucrânia – região literalmente esmagada entre a Rússia e a Europa – representou
desde sempre um dos principais palcos desta disputa[1].
Agora ela volta aos noticiários do
mundo com a manchete de uma “invasão russa”, porém, não falando nenhuma vírgula
dos reais motivos desta tensão: a continuidade da luta pela hegemonia mundial
entre os referidos blocos. O oferecimento de uma vaga na OTAN (Organização do
Tratado do Atlântico Norte) à Ucrânia por parte do governo norte-americano nada
tem a ver com o interesse de cooperação, integração e defesa do povo ucraniano,
mas de uma nítida provocação por parte dos EUA ao bloco liderado por China e
Rússia, visando intensificar o tensionamento.
O real objetivo por debaixo desta ação
provocadora é criar dificuldades entre a relação econômica cada vez mais
estreita entre Rússia, aliada preferencial da China, e a Europa – principal
cliente da Gazprom, a gigante russa
exportadora de gás natural. Como a venda de gás natural é a principal renda
orçamentária do Estado russo, criar problemas diplomáticos com a Europa,
ocasionando crises de abastecimento, de confiança e de preços, é o centro da
estratégia ianque, sobretudo pressionando os países europeus a impor sanções
econômicas ao governo de Putin, o que teria – dentre outras consequências – um
efeito de encarecimento do gás russo (ou mesmo a supressão do fornecimento, a
depender do êxito político-militar-diplomático-midiático ianque).
A
Rússia é responsável por 43% do abastecimento de gás natural do continente
europeu, sendo secundada pela Noruega, Oriente Médio e EUA[2]. Ela
tornou-se a principal exportadora de gás para a Europa devido às grandes
reservas naturais e os baixos custos de produção. Contudo, grande parte dos
gasodutos russos passam pelo território ucraniano, o que explica a escolha do
alvo norte-americano. É também, de certa forma, uma resposta ao movimento russo-chinês
de 2020, que fechou um acordo na OPEP, visando manter os preços do barril de
petróleo abaixo de 30 dólares. Esta ação capitaneada pela Rússia era uma
resposta às sanções impostas ao país pelos EUA como fruto da guerra na Síria e
na Ucrânia, em 2014 e, certeiramente, gerou uma profunda crise sobre as
empresas petrolíferas estadunidenses, salvas, como sempre, com maciças injeções
de dólares do Estado[3],
o que gerou hiperinflação repassada para o restante dos países do mundo – em
especial os semicoloniais, como o Brasil.
O pacote de sanções econômicas dos EUA contra a Rússia já está pronto, mesmo que nenhuma invasão militar da Ucrânia tenha acontecido até agora. Por outro lado, o governo russo denuncia as movimentações militares norte-americanas de cercamento ao território do país e exige a imediata retirada dos mísseis de longo alcance instalados em território ucraniano.
O confronto é contra o conjunto do
bloco sino-russo e não apenas contra a Rússia
As ações do governo dos EUA vão além da
Rússia, ainda que ela seja neste momento o alvo principal. A Europa vem sendo
disputada por projetos econômicos que não se resumem à questão do gás natural
russo. A China, por exemplo, está patrocinando uma nova Rota da Seda que se
estende dos rincões asiáticos até o norte da Itália e o centro da Europa
Ocidental, incluindo o percurso pelo Oriente Médio e pela África. Até a
Argentina declarou-se interessada em participar do ambicioso projeto econômico,
ainda que esteja do outro lado do Atlântico[4].
Este novo centro gravitacional
econômico que ameaça sugar todo o seu entorno é o cerne das preocupações do
imperialismo ianque, que pressente as suas consequências. As provocações
norte-americanas na Ucrânia inserem-se na escalada de ataques econômicos,
políticos, diplomáticos, midiáticos e militares para inviabilizar a construção
destas pontes econômicas. A retirada das tropas militares do Afeganistão por
Joe Biden no ano passado está dentro da lógica desta movimentação de peças no
tabuleiro geopolítico mundial[5].
Há uma característica interna no jogo
político dos EUA: os republicanos centram seu fogo contra a China; os
democratas contra a Rússia. No entanto, a finalidade é a mesma: dividir o bloco
que está em franca ascensão econômica e representa a principal ameaça à
hegemonia mundial dos EUA. Por isso, ambas retóricas internas de republicanos versus democratas, por mais divergentes
que soem, na prática, se complementam (isso não quer dizer que o bloco
sino-russo também não tire partido da divisão interna estadunidense). O
principal objetivo da jogada dos EUA na Ucrânia, no entanto, é criar condições
para impor sanções e prejudicar os negócios russos com os europeus que dependem
da Gazprom. Ao enfraquecer a Rússia, atingem
o conjunto do bloco sino-russo. A estratégia norte-americana quer também
tensionar por uma nova redistribuição territorial da Europa, cujo modelo atual
já não corresponde à correlação de forças do pós-Segunda Guerra Mundial.
O governo ucraniano não respeita os
“acordos de paz de Minsk” estabelecidos pelo próprio Conselho de Segurança da
ONU e a OSCE[6]
após a guerra no leste da Ucrânia, em 2014, pelo simples fato de que a pressão
política estadunidense não o permite. O presidente fantoche da Ucrânia,
Volodymyr Zelensky, um verdadeiro títere norte-americano, faz jogo duplo. Ganha
tempo em “acordos velados” com os russos, acena aos europeus, mas endurece a
retórica apenas quando pressionado pelos EUA. No fim, a temida invasão russa
não se confirma e vemos, até o momento, apenas uma caótica guerra de
informações que tem como principal finalidade “abalar os mercados” – sobretudo
o de petróleo e o de gás natural.
O papel nefasto da grande mídia
Ocidental
Parte fundamental da estratégia de
dominação dos EUA está na desinformação através de propaganda, principalmente,
pela grande mídia, vendida como “notícias imparciais”. Sejam as emissoras
norte-americanas, sejam as suas sucursais neocoloniais, em especial na América
Latina, vemos uma enxurrada de cinismo e manipulação sutil. Como sempre, todo o
cenário internacional anterior é apagado e a crise ucraniana é colocada no
centro de notícias sem contexto histórico.
A disputa econômica é secundarizada ou
mesmo escondida para por em evidência quase que exclusiva a “movimentação de
tropas russas na fronteira ucraniana”. O núcleo da cobertura “jornalística”
ocidental – em particular da brasileira – é o seguinte: “EUA dizem que Rússia pode invadir Ucrânia a qualquer momento, mas
diplomacia segue possível”[7].
Isto é: tudo é apenas o resultado da ganância militar expansionista dos russos,
mas as “democracias ocidentais”, lideradas pelos EUA e os países europeus,
podem evitar a catástrofe da guerra sanguinária por vias diplomáticas.
Neste tipo de cobertura, a provocação e
a agressividade ianque são disfarçadas de pacifismo, dando-se destaque apenas aos
interesses russos. Já os interesses estadunidenses são dissimulados ou
totalmente escondidos. A elite brasileira e a sua grande mídia se colocam a
sombra do poder ianque porque compactuam com o seu projeto de dominação, sendo
sua sócia ultraminoritária.
Alguns de seus setores voltados para a
intelectualidade de classe média, como a CNN-Brasil,
fazem uma análise um pouco mais refinada, embora não menos sutil e perniciosa.
O mórbido Willian Wack, soldado midiático do império estadunidense de longa
data, anuncia em tom solene: “China e
Rússia fizeram questão de demonstrar ao mundo que o predomínio de uma só
megapotência, os EUA, acabou. Os líderes de Moscou e de Pequim se reuniram na
capital da China para dizer que Vladmir Putin tem razão, mas tem razão no quê?
Na essência, em contestar a ordem mundial estabelecida até aqui pelos [norte] americanos. A ordem internacional que se
estabelece agora deixou de ser unipolar, mas ficou bem mais perigosa”[8].
Em síntese, Wack e a CNN apontam – sem
o dizer honestamente – que a Rússia deveria submeter-se aos EUA na questão da
Ucrânia, aceitando a OTAN e os mísseis nas suas fronteiras, bem como aceitar os
seus projetos econômicos para a Europa e o mundo, dado que a ordem mundial unipolar
ianque era mais “segura” – e até onde podemos concluir, supostamente “menos
belicista” do que a ordem multipolar que pretendem impor China e Rússia.
É este o jornalismo “imparcial” que a
grande mídia brasileira tem professado.
China e Rússia são
antiimperialistas?
Setores da “esquerda” vendem o
confronto de China e Rússia com os EUA como uma luta antiimperialista.
Trata-se, na verdade, de uma luta pela hegemonia mundial, como bem disse o office boy norte-americano, Willian Wack,
entre uma ordem unipolar e uma ordem multipolar, ainda que a preponderância
desta ordem fique centrada especialmente na China.
A China inevitavelmente torna-se o
centro, dado o seu peso econômico, político e social. Ao contrário do que
apontam seus defensores mais acríticos – como os “losurdistas”, Elias Jabbour e
Jones Manoel, dentre outros –, cumpre o papel de um “imperialismo silencioso”,
tipicamente chinês, dado que não cumpre os pré-requisitos militares apontados
no “check-list” de Lenin. Ora, mas o imperialismo capitalista se dá, sobretudo,
através de mecanismos econômicos. Mesmo que a China não faça imposições
draconianas aos países que “ajuda” – tal como fazem o FMI e o Banco Mundial –,
nem desencadeie guerras e invasões militares (ainda que já tenha invadido
países no passado), isso não significa que não exerça uma forma de dominação,
sutil e silenciosa, bem aos moldes chineses.
O mesmo não se passa com a Rússia, que
historicamente exerce uma pressão política e militar sobre as regiões do seu entorno,
inclusive com anexações territoriais. Apesar da unidade com a China e o
discurso multipolar –conveniente neste momento –, a Rússia luta pelos seus
interesses exclusivamente nacionais, que, para se realizar, necessitam
consolidar o bloco com o governo chinês. Não se pode conquistar a independência
nacional no capitalismo sem expandir
a influência econômica e política, o que leva necessariamente ao surgimento de
um novo imperialismo. A elite russa atual é formada por uma máfia burguesa, imbuída do velho
espírito de dominação czarista e da burocracia stalinista, só que agora
revestido com discursos “mais modernos”.
O “mundo multipolar” proposto por China
e Rússia é, portanto, composto por mais centros, mas mantendo periferias. Como
ele se baseia na manutenção das relações capitalistas e, sobretudo, pelos
negócios, tal como o mercado mundial contemporâneo os compreende, não pode
deixar de desenvolver características imperialistas, ainda que brandas,
ocultas, disfarçadas com discursos de acolhimento. A situação de disputa pela
hegemonia no mundo com os EUA e o próprio desenvolvimento econômico nacional
autônomo colocam, inevitavelmente, certas práticas que desembocam, quer
queiramos ou não, em “constrangimentos” imperialistas sobre países vizinhos e semicoloniais
– como é o caso da Ucrânia.
O debate da “esquerda” brasileira ainda
está restrito a concepções tacanhas e obtusas: desde o apoio desavergonhado ao
imperialismo estadunidense (como foi o caso de LIT-PSTU, UIT-CST-MES-Psol e
MRT-Esquerda Diário) quando da malfada “revolução colorida” que derrubou o
antigo governo ucraniano e abriu o
caminho para o atual governo títere de Zelensky – ainda que no episódio
atual, como não houve envolvimento “de massas” em novas “revoluções coloridas”,
tenham ficado mais “neutros”[9]; até
os que são entusiastas da ascensão chinesa e russa (tipo Pepe Escobar, mídia
247, dentre outros), professando a derrota do imperialismo norte-americano
pelo bloco sino-russo – como se isso levasse a uma política de independência de classe e a real derrota
do imperialismo capitalista; passando por aqueles setores da “esquerda”
minoritária, composto por pequenos núcleos militantes, que fecham os olhos e,
como os avestruzes, enfiam a cabeça na terra, se negando a interpretar a
realidade internacional para tentar traçar uma política com independência de
classe.
O imediatismo economicista tem levado a “esquerda” a aceitar uma política ou outra, traçada geralmente pelos dois grandes blocos burgueses em disputa. Sabemos que a construção de um novo caminho com independência de classe é ainda ultra minoritário, tortuoso e difícil, mas o primeiro passo para a sua delimitação é não disseminar ilusões nas análises políticas e teóricas, procurando dar a devida dimensão do desafio histórico.
Referências
[1]
Ver: https://lutamarxistablog.blogspot.com/2014/03/ucrania-palco-da-disputa-imperialista.html
e https://lutamarxistablog.blogspot.com/2015/10/esquenta-nova-guerra-fria.html
[2]
Ver: https://www.dw.com/pt-br/por-que-a-ue-precisa-da-gigante-russa-de-energia-gazprom/a-60691185#:~:text=A%20Alemanha%2C%20o%20maior%20consumidor,de%20seu%20g%C3%A1s%20da%20R%C3%BAssia.
e: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/entenda-como-gasoduto-russo-de-us-11-bilhoes-dividiu-a-otan-e-ue-em-momento-de-crise/#:~:text=No%20momento%2C%20a%20R%C3%BAssia%20precisa,atrav%C3%A9s%20do%20territ%C3%B3rio%20da%20Ucr%C3%A2nia.
[3]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/03/coronavirus-crise-capitalista-e-o.html
[4]
Ver: https://www.comciencia.br/a-nova-rota-da-seda-na-pandemia/ e também: https://www.brasildefato.com.br/2022/02/07/argentina-entra-para-a-nova-rota-da-seda-e-espera-us-23-7-bilhoes-em-investimentos-chineses
[5]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/08/houve-vitoria-anti-imperialista-no.html
[6]
Ver: https://news.un.org/pt/audio/2015/06/1137541 ; https://pt.wikipedia.org/wiki/Protocolo_de_Minsk
; e, por fim: https://www.youtube.com/watch?v=sHPU4-U1emU&feature=youtu.be&ab_channel=TV247
[7]
Ver: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/02/06/eua-dizem-que-russia-pode-invadir-ucrania-a-qualquer-momento-mas-diplomacia-segue-possivel.ghtml
[8] https://www.youtube.com/watch?v=bgdYirTul5I&ab_channel=CNNBrasil
[9]
Ver: https://lutamarxistablog.blogspot.com/2014/03/ucrania-palco-da-disputa-imperialista.html
e https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2019/08/os-protestos-de-hong-kong-defendem.html
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