quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O que está por trás do pacote do governo Leite?

* Texto escrito originalmente para o blog da Construção pela Base - oposição à direção e à burocracia sindical do CPERS


“Na América Latina é normal:
sempre se entregam os recursos
em nome da falta de recursos”.
(Eduardo Galeano, As veias abertas...)

            A principal justificativa do governo Leite (PSDB e comparsas) para a aplicação do seu pacote contra o funcionalismo público é a crise financeira do Estado. Esta justificativa surgiu a partir de um acordo tácito entre o governo Sartori (MDB e cia.) e a grande mídia (RBS, Record, etc.), potencializando-se no governo de Eduardo Leite. A tecla da “crise financeira” foi tantas vezes batida que se transformou numa verdadeira ideologia que justifica todas as ações drásticas dos governos do RS contra o seu próprio povo, mas, em particular, contra os servidores.
         Os governos do RS e a grande mídia sabem bem que a cegueira proveniente de uma ideologia é a maior força do Estado, porque se trata do próprio núcleo central da política, da economia e da cultura. Eles não poderiam avançar contra direitos básicos e serviços públicos sem uma forte ideologia que justificasse e legitimasse seus ataques.
         É evidente que a crise econômica existe, sobretudo a partir de 2008 quando explodiu no epicentro do sistema, os EUA e a Europa. Porém, na periferia teve outras consequências. Aqui houve a transformação da crise em uma ideologia que serve pra justificar todos os ataques em curso, principalmente visando solucionar a crise no seu epicentro. Como o centro do mercado exige maiores recursos econômicos e sociais para sustentar, sobretudo, sua especulação financeira desenfreada e sem lastro na economia real, é necessário “ajustar” os Estados e as economias da periferia a estas novas exigências.
         É por isso que um dos principais jornais da burguesia mundial, o Financial Times, defende “um ‘recomeço’ para o capitalismo”[i]. Para isso, aconselha à burguesia neofascista, decidida a aprofundar a sua especulação financeira e a reverter a tendência à queda da sua taxa de lucro dando golpes de estado, a humanizar o capitalismo, “defendendo que mercado e Estado não deixem as comunidades para trás”, mas conclui o artigo deixando escapar sua verdadeira intenção: “a questão realmente importante não é se o capitalismo está quebrado, mas o que deve ser feito para consertar o sistema econômico”.
         E é justamente aí que se inserem as propostas feitas por todos os países da periferia do sistema de “ajustes fiscais”, como no Equador e no Chile; de Reforma da Previdência, como a de Paulo Guedes e Bolsonaro; e, é claro, o pacote de Eduardo Leite.

Como o governo Leite transforma a crise em ideologia para aplicar seu pacote?
         Os termos utilizados pelo governo Leite são capciosamente selecionados. Ele fala que o “Estado deve enfrentar sua verdade fiscal” e buscar o “equilíbrio das contas”[ii]. Mutila e esconde a submissão econômica do Estado ao mercado financeiro, com o total amparo da grande mídia; ao mesmo tempo em que afirma que tem compromisso com a clareza de informação. Escondendo-se atrás de adjetivos cinicamente selecionados, como “atualizar, sintonizar, modernizar, equilibrar”, o governo vende a ideia de que quer debater “a raiz da crise das finanças públicas”[iii], quando na verdade usa toda a sua equipe de marketing e as secretarias de Estado para confundir os debates, obscurecer os reais problemas e jogar as raízes para o céu. Assim, sustenta que a sua “principal despesa é o gasto com o pessoal”[iv], ou seja, com os servidores do Estado.
         Fazendo a ponte com a crise, o governo Leite afirma que “a situação estrutural se agrava em momentos de crise na economia. Atualmente, o país atravessa uma de suas piores recessões. Com a economia patinando, não há sinais de alteração neste cenário”[v]. Aqui se vê como a crise vira ideologia e é vendida quase como uma fatalidade divina, que serve bem para iludir a população. Porém, o que o governo Leite esconde é que ele separa a crise do Estado das exigências do mercado (privatizações, isenções de impostos, sonegações, juros altos). O seu método é simples: isola o Estado do mercado, como se uma coisa não tivesse nada a ver com a outra, omitindo que o principal problema financeiro é justamente a drenagem de recursos do Estado para o mercado (sobretudo o mercado financeiro). Simultaneamente reforça a tese de que o problema é o próprio Estado (o público) e a solução o mercado e as privatizações.
         Quando sustenta o “por que mexer na despesa com o pessoal?”, usa a velha artimanha de se comparar a uma família, omitindo a sua real intenção de destinar tudo ao mercado para ajudá-lo a “consertar” o sistema. A propriedade, o lucro, as isenções de impostos às grandes empresas são intocáveis e inquestionáveis, chamadas pelo governo de “problemas mitos”. Justifica-se, dizendo, que “a simples eliminação de incentivos implicaria risco de perda de empresas, empregos e receitas”[vi]. Ou seja, “as novas façanhas” do governo do Estado são, portanto, se submeter à chantagem econômica das grandes empresas multinacionais, que geram um rombo nas finanças do Estado, não apenas através das isenções fiscais, mas, também, da sonegação, que atinge a casa dos 8 bilhões de reais, criando uma quantidade medíocre de empregos. Além disso, o governo Sartori aumentou o ICMS, gerando uma arrecadação de R$25,15 bilhões entre janeiro e agosto deste ano[vii], estimando atingir a marca da R$33 bilhões[viii]. Há também a possibilidade de “equilibrar” as finanças acabando com a desoneração sobre os principais produtos de exportação do agronegócio gaúcho, como a soja, a carne, o arroz e o fumo, que faturaram em 2019, mais de R$12 bilhões[ix].
“Ignorando” tudo isso, o governo afirma que 82% das despesas do Estado foram para pagar salários e encargos sobre a folha. Capciosamente esconde o fato de que os referidos gastos com o pessoal estão muito abaixo das isenções de impostos, sonegações fiscais e dos gastos com a dívida pública. A folha de pagamento mensal do poder Executivo atinge apenas R$ 1,5 bilhão[x], ou seja, muito menos do que se perde mensalmente com isenção de impostos e sonegação; enquanto que o que se entregou ao sistema financeiro em apenas um mês no ano de 2015, por exemplo, atinge a casa dos R$3,7 bilhões para o pagamento de juros da dívida pública, o que não a impediu de continuar crescendo. A nível federal, o governo destina cerca de R$2,5 bilhões por dia aos agiotas internacionais que detém os papéis da dívida pública brasileira[xi]!
A secretaria da fazenda “explica” que esta dívida “permite o financiamento do desenvolvimento econômico e social, antecipando poupança que de outra maneira só seria possível em longo período de tempo”[xii]. Ao contrário do alegado “financiamento do desenvolvimento econômico e social”, vemos apenas uma estrutura montada para manter o fluxo de recursos públicos para os banqueiros, sem nenhuma contrapartida a este desenvolvimento.
Como a sangria desatada não para, Eduardo Leite afirma, escondendo toda esta estrutura, que: “o Regime de Recuperação Fiscal é determinante. Ele não é mais uma opção para o estado, é uma necessidade que se impõe”[xiii]. Mas faltou acrescentar: uma necessidade de quem? Sobre isso não há uma palavra. O secretario da fazenda, Marco Aurélio Cardoso, por sua vez, emenda que “o que é importante nesse momento é a gente construir um cenário de superávit para o estado. Enquanto a gente não conseguir parar de gerar déficits, a gente não vai conseguir estancar o crescimento da dívida”[xiv]. Porém, ambos escondem que esta sangria financeira só pode redundar numa política econômica recessiva ao governo do Estado, o que não pode parar de “gerar déficits”.

A internacionalização da economia exige um Estado com número reduzido de servidores
         Um dos principais motivos dos inúmeros golpes de Estados patrocinados pelos EUA nos países da América Latina, que resultaram na ascensão da direita neofascista, é criar uma nova forma de organização estatal que permita a reestruturação da acumulação de capital visando superar a sua tendência à queda da taxa de lucros. Nesta nova organização estatal não há espaço para os serviços públicos como educação, saúde, previdência, direitos trabalhistas, etc.
         O objetivo final é internacionalizar totalmente a economia e o mercado interno dos países periféricos do sistema, transformando-os em reles plataforma de exportação de matérias-primas e produtos de médio ou pouco valor agregado, como grãos, minerais, hidrocarbonetos e proteínas animais; tudo no contexto de submeter os trabalhadores a formas modernas de escravidão assalariada. Será a plena substituição do Estado-Nação por uma ordem neocolonial globalizada, de submissão direta ao imperialismo e suas transnacionais, que terão mais poder que qualquer governo ou parlamento.
         Uma das principais características do desenvolvimento do capitalismo em um país é a formação do seu mercado interno. A escassa soberania econômica interna que alguns países periféricos possuíam – como o Brasil e a Bolívia, por exemplo – será totalmente arruinada e entregue aos bancos e às transnacionais. Haverá a legalização das isenções de impostos, sonegação fiscal e do livre envio de lucros ao exterior, sem maiores preocupações com encargos trabalhistas, previdenciários ou com o “desenvolvimento econômico e social” do país.
         O secretário Marco Aurélio Cardoso fala em “parar de gerar déficits” e a sua secretaria da fazenda afirma que a dívida pública “permite o financiamento do desenvolvimento econômico e social”, mas tudo isso não passa de ideologia de direita. O déficit é gerado inevitavelmente pela estrutura econômica imposta pelo capitalismo aos países periféricos e aceita servilmente pelos seus governos, como é o caso do governo Leite. As condições contratuais da dívida pública impõem leis de responsabilidade fiscal e outras restrições econômicas que geram inevitavelmente déficits orçamentários e dependências econômicas. Estas são suas reais finalidades.
         Para muitas pessoas, o Estado investir na sociedade é entendido apenas como consertar ou construir estradas, escolas e algumas reformas infraestruturais. Esta é uma visão limitada. Ao contrário disso, combater de fato a crise financeira “para gerar superávits” exige uma politica econômica expansiva a partir de investimentos reais das empresas e bancos públicos na sociedade. Por exemplo: investir na indústria, na construção civil, na área de serviços; ou seja, gerar empregos a partir do investimento no mercado interno. A especulação financeira através da dívida pública não permite o reinvestimento na diversificação da produção econômica. O governo deveria investir em vários ramos do mercado interno visando fomentar a produção para realmente gerar receita e financiar o desenvolvimento econômico e social do nosso Estado, cessando os déficits. Isto, porém, é visto e vendido pelo dogmatismo anacrônico liberal – da grande mídia e outros “economistas” – como “intervenção do Estado na economia”, o que seria uma heresia inaceitável. Por estes motivos o governo petista foi derrubado em 2016.
Pra piorar, os ajustes fiscais e os “planos de reestruturação” exigem privatizações de estatais que teriam papel fundamental nesse desenvolvimento interno, como Sulgás, CEEE e Banrisul, o que limita ainda mais o poder de investimento social do Estado. Assim, fazem o mercado avançar decisivamente sobre o Estado, submetendo-o e engessando-o financeiramente conforme seus interesses econômicos, que é, em síntese, a destinação da maior parte dos recursos para a iniciativa privada internacional e nacional (ou seja, a concretização da Agenda 2020 da FIERGS). Eis aí a “verdade fiscal” do Estado; eis aí a “raiz da crise das finanças públicas”; eis aí os únicos e verdadeiros mitos.
A aplicação do pacote de Eduardo Leite contra os servidores conclui a destruição do Estado visando destinar os recursos dos “gastos com pessoal” para o sistema financeiro e para subsidiar a produção de soja do agronegócio[xv]. Assim se criará uma nova estrutura de acumulação no seu epicentro às custas da exploração dos países e dos povos da periferia. O pacote do governo Leite, sua agenda de privatizações e a sua “reforma estrutural do Estado” é, para resumir, uma opção política pelo não investimento social em nome dos interesses dessa internacionalização da economia e do mercado interno, visando sustentar o sistema financeiro. Não casualmente, Eduardo Leite foi aos EUA para “conferências” na mesma semana em que enviou o seu pacote à Assembleia Legislativa; voltou falando em “privatizar prestação de serviços para a educação” e em “conceder todas as rodovias para a iniciativa privada”[xvi].

Como combater o pacote e a reestruturação do Estado?
         Numa reação a esta reestruturação do capitalismo (o que, no linguajar do Financial Times, seria o “conserto do sistema”) vários povos se sublevaram: Coletes Amarelos na França; o movimento indígena no Equador; os trabalhadores e os estudantes no Chile e na Bolívia. No Brasil, muitas categorias do funcionalismo público deflagraram greves, como foi o caso dos Correios e do magistério de diversos estados e municípios. O setor privado ainda segue inerte.
         No RS, o CPERS se coloca como vanguarda nesta luta, deflagrando uma greve no dia 14 de novembro que começou forte e com bastante adesão. Porém, é necessário algumas ponderações, uma vez que a direção do movimento dissemina ilusões reformistas. Está fora de questão a importância desta greve, pois a pior derrota é a derrota sem luta; mas, para além das questões organizativas (comando e fundo de greve), ela tem um claro problema político: se limita a obrigar o governo Leite a retirar o pacote da Assembleia Legislativa. Se essa importante reivindicação fosse conquistada, o governo, junto com a grande mídia, os empresários da FIERGS e os bancos, tratariam de aplicar o mesmo projeto de inúmeras outras formas com a finalidade de nos impor esse e outros pacotes, uma vez que não podem renunciar a esta perspectiva econômica. Disso depende o funcionamento do capitalismo periférico.
Assim, se faz necessário a unidade com todos os setores sociais, para além do funcionalismo público, com as categorias da iniciativa privada, os subempregados e desempregados, na perspectiva de transformar o RS e o Brasil no Chile, tendo no horizonte o objetivo de ir além do espontaneísmo, com o desafio de organizar os trabalhadores e estudantes por local de trabalho, estudo e moradia, apostando na construção de um poder popular com vistas ao socialismo – único sistema econômico que pode superar as contradições insolucionáveis do capitalismo sem a destruição das condições de vida dos trabalhadores. Nesse sentido, superar as ilusões reformistas da massa e de suas “direções” é imprescindível.


NOTAS


[iii] Extraído do documento: “Reforma Estrutural do Estado”, governo do Rio Grande do Sul (capa).
[iv] Extraído do documento: “Reforma Estrutural do Estado”, governo do Rio Grande do Sul (página 3).
[v] Extraído do documento: “Reforma Estrutural do Estado”, governo do Rio Grande do Sul (página 7).
[vi] Extraído do documento: “Reforma Estrutural do Estado”, governo do Rio Grande do Sul (página 14).
[xi] Com os dados da Cartilha da dívida pública do RS, 2016, elaborada pela Auditoria Cidadã da Dívida Pública e pelo Sindicato de auditores públicos externos do tribunal de contas do Estado do RS (CEAPE-Sindicato).
[xiv] Idem.
[xv] Este foi o principal produto exportado pelo Rio Grande do Sul em 2018, segundo os dados do Ministério da Economia, Indústria e Comércio Exterior.

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