“Na América Latina é
normal:
sempre se entregam os
recursos
em nome da falta de
recursos”.
(Eduardo Galeano, As veias abertas...)
A principal justificativa do
governo Leite (PSDB e comparsas) para a aplicação do seu pacote contra o
funcionalismo público é a crise financeira do Estado. Esta justificativa surgiu
a partir de um acordo tácito entre o
governo Sartori (MDB e cia.) e a grande mídia (RBS, Record, etc.), potencializando-se
no governo de Eduardo Leite. A tecla da “crise financeira” foi tantas vezes
batida que se transformou numa verdadeira ideologia que justifica todas as
ações drásticas dos governos do RS contra o seu próprio povo, mas, em
particular, contra os servidores.
Os governos do RS e a grande mídia
sabem bem que a cegueira proveniente de uma ideologia é a maior força do
Estado, porque se trata do próprio núcleo central da política, da economia e da
cultura. Eles não poderiam avançar contra direitos básicos e serviços públicos sem
uma forte ideologia que justificasse
e legitimasse seus ataques.
É evidente que a crise econômica
existe, sobretudo a partir de 2008 quando explodiu no epicentro do sistema, os
EUA e a Europa. Porém, na periferia teve outras consequências. Aqui houve a
transformação da crise em uma ideologia
que serve pra justificar todos os ataques em curso, principalmente visando solucionar a crise no seu epicentro.
Como o centro do mercado exige maiores recursos econômicos e sociais para
sustentar, sobretudo, sua especulação financeira desenfreada e sem lastro na
economia real, é necessário “ajustar” os Estados e as economias da periferia a
estas novas exigências.
É por isso que um dos principais
jornais da burguesia mundial, o Financial
Times, defende “um ‘recomeço’ para o
capitalismo”[i].
Para isso, aconselha à burguesia neofascista, decidida a aprofundar a sua
especulação financeira e a reverter a tendência à queda da sua taxa de lucro
dando golpes de estado, a humanizar o capitalismo, “defendendo que mercado e Estado não deixem as comunidades para trás”,
mas conclui o artigo deixando escapar sua verdadeira intenção: “a questão realmente importante não é se o
capitalismo está quebrado, mas o que deve ser feito para consertar o sistema
econômico”.
E é justamente aí que se inserem as
propostas feitas por todos os países da periferia do sistema de “ajustes
fiscais”, como no Equador e no Chile; de Reforma da Previdência, como a de
Paulo Guedes e Bolsonaro; e, é claro, o pacote de Eduardo Leite.
Como o governo Leite
transforma a crise em ideologia para aplicar seu pacote?
Os termos utilizados pelo governo Leite
são capciosamente selecionados. Ele fala que o “Estado deve enfrentar sua verdade fiscal” e buscar o “equilíbrio das contas”[ii]. Mutila e esconde a
submissão econômica do Estado ao mercado financeiro, com o total amparo da
grande mídia; ao mesmo tempo em que afirma que tem compromisso com a clareza de
informação. Escondendo-se atrás de adjetivos cinicamente selecionados, como “atualizar, sintonizar, modernizar,
equilibrar”, o governo vende a ideia de que quer debater “a raiz da crise das finanças públicas”[iii], quando na verdade usa
toda a sua equipe de marketing e as
secretarias de Estado para confundir os debates, obscurecer os reais problemas
e jogar as raízes para o céu. Assim, sustenta que a sua “principal despesa é o gasto com o pessoal”[iv], ou seja, com os
servidores do Estado.
Fazendo a ponte com a crise, o governo
Leite afirma que “a situação estrutural
se agrava em momentos de crise na economia. Atualmente, o país atravessa uma de
suas piores recessões. Com a economia patinando, não há sinais de alteração
neste cenário”[v].
Aqui se vê como a crise vira ideologia e é vendida quase como uma fatalidade
divina, que serve bem para iludir a população. Porém, o que o governo Leite
esconde é que ele separa a crise do Estado das exigências do mercado
(privatizações, isenções de impostos, sonegações, juros altos). O seu método é
simples: isola o Estado do mercado, como se uma coisa não tivesse nada a ver
com a outra, omitindo que o principal problema financeiro é justamente a drenagem
de recursos do Estado para o mercado (sobretudo o mercado financeiro).
Simultaneamente reforça a tese de que o problema é o próprio Estado (o público)
e a solução o mercado e as privatizações.
Quando sustenta o “por que mexer na despesa com o pessoal?”, usa a velha artimanha de
se comparar a uma família, omitindo a sua real intenção de destinar tudo ao
mercado para ajudá-lo a “consertar” o sistema. A propriedade, o lucro, as
isenções de impostos às grandes empresas são intocáveis e inquestionáveis,
chamadas pelo governo de “problemas mitos”. Justifica-se, dizendo, que “a simples eliminação de incentivos
implicaria risco de perda de empresas, empregos e receitas”[vi]. Ou seja, “as novas
façanhas” do governo do Estado são, portanto, se submeter à chantagem econômica
das grandes empresas multinacionais, que geram um rombo nas finanças do Estado,
não apenas através das isenções fiscais, mas, também, da sonegação, que atinge
a casa dos 8 bilhões de reais, criando uma quantidade medíocre de empregos.
Além disso, o governo Sartori aumentou o ICMS, gerando uma arrecadação de
R$25,15 bilhões entre janeiro e agosto deste ano[vii], estimando atingir a
marca da R$33 bilhões[viii]. Há também a
possibilidade de “equilibrar” as finanças acabando com a desoneração sobre os
principais produtos de exportação do agronegócio gaúcho, como a soja, a carne, o
arroz e o fumo, que faturaram em 2019, mais de R$12 bilhões[ix].
“Ignorando” tudo isso, o governo afirma que
82% das despesas do Estado foram para pagar salários e encargos sobre a folha. Capciosamente
esconde o fato de que os referidos gastos com o pessoal estão muito abaixo das
isenções de impostos, sonegações fiscais e dos gastos com a dívida pública. A folha
de pagamento mensal do poder Executivo atinge apenas R$ 1,5 bilhão[x], ou seja, muito menos do
que se perde mensalmente com isenção de impostos e sonegação; enquanto que o
que se entregou ao sistema financeiro em apenas um mês no ano de 2015, por
exemplo, atinge a casa dos R$3,7 bilhões para o pagamento de juros da dívida
pública, o que não a impediu de continuar crescendo. A nível federal, o governo
destina cerca de R$2,5 bilhões por dia aos agiotas internacionais
que detém os papéis da dívida pública brasileira[xi]!
A secretaria da fazenda “explica” que esta
dívida “permite o financiamento do
desenvolvimento econômico e social, antecipando poupança que de outra maneira
só seria possível em longo período de tempo”[xii]. Ao contrário do alegado “financiamento do desenvolvimento
econômico e social”, vemos apenas uma estrutura montada para manter o fluxo de
recursos públicos para os banqueiros, sem nenhuma contrapartida a este
desenvolvimento.
Como a sangria desatada não para, Eduardo
Leite afirma, escondendo toda esta estrutura, que: “o Regime de Recuperação Fiscal é determinante. Ele não é mais uma
opção para o estado, é uma necessidade que se impõe”[xiii]. Mas faltou
acrescentar: uma necessidade de quem? Sobre isso não há uma palavra. O
secretario da fazenda, Marco Aurélio Cardoso, por sua vez, emenda que “o que é importante nesse momento é a gente
construir um cenário de superávit para o estado. Enquanto a gente não conseguir
parar de gerar déficits, a gente não vai conseguir estancar o crescimento da
dívida”[xiv].
Porém, ambos escondem que esta
sangria financeira só pode redundar numa política
econômica recessiva ao governo do Estado, o que não pode parar de “gerar
déficits”.
A internacionalização da economia
exige um Estado com número reduzido de servidores
Um dos principais motivos dos inúmeros
golpes de Estados patrocinados pelos EUA nos países da América Latina, que resultaram
na ascensão da direita neofascista, é
criar uma nova forma de organização estatal que permita a reestruturação da
acumulação de capital visando superar a sua tendência
à queda da taxa de lucros. Nesta nova organização estatal não há espaço
para os serviços públicos como educação, saúde, previdência, direitos trabalhistas,
etc.
O objetivo final é internacionalizar totalmente a economia e o mercado interno dos países
periféricos do sistema, transformando-os em reles plataforma de exportação
de matérias-primas e produtos de médio ou pouco valor agregado, como grãos, minerais,
hidrocarbonetos e proteínas animais; tudo no contexto de submeter os
trabalhadores a formas modernas de escravidão assalariada. Será a plena
substituição do Estado-Nação por uma ordem neocolonial globalizada, de
submissão direta ao imperialismo e suas transnacionais, que terão mais poder
que qualquer governo ou parlamento.
Uma das principais características do
desenvolvimento do capitalismo em um país é a formação do seu mercado interno.
A escassa soberania econômica interna que alguns países periféricos possuíam –
como o Brasil e a Bolívia, por exemplo – será totalmente arruinada e entregue
aos bancos e às transnacionais. Haverá a legalização das isenções de impostos,
sonegação fiscal e do livre envio de lucros ao exterior, sem maiores preocupações
com encargos trabalhistas, previdenciários ou com o “desenvolvimento econômico
e social” do país.
O secretário Marco Aurélio Cardoso fala
em “parar de gerar déficits” e a sua
secretaria da fazenda afirma que a dívida pública “permite o financiamento do desenvolvimento econômico e social”,
mas tudo isso não passa de ideologia de direita. O déficit é gerado inevitavelmente pela estrutura econômica imposta
pelo capitalismo aos países periféricos e aceita servilmente pelos seus
governos, como é o caso do governo Leite. As condições contratuais da dívida
pública impõem leis de responsabilidade
fiscal e outras restrições econômicas que geram inevitavelmente déficits orçamentários e dependências
econômicas. Estas são suas reais finalidades.
Para muitas pessoas, o Estado investir
na sociedade é entendido apenas como consertar ou construir estradas, escolas e
algumas reformas infraestruturais. Esta é uma visão limitada. Ao contrário
disso, combater de fato a crise financeira “para gerar superávits” exige uma politica econômica expansiva a partir de
investimentos reais das empresas e bancos públicos na sociedade. Por exemplo:
investir na indústria, na construção civil, na área de serviços; ou seja, gerar
empregos a partir do investimento no mercado interno. A especulação financeira
através da dívida pública não permite o reinvestimento na diversificação da
produção econômica. O governo deveria investir em vários ramos do mercado
interno visando fomentar a produção para realmente gerar receita e financiar o
desenvolvimento econômico e social do nosso Estado, cessando os déficits. Isto, porém, é visto e vendido
pelo dogmatismo anacrônico liberal –
da grande mídia e outros “economistas” – como “intervenção do Estado na
economia”, o que seria uma heresia inaceitável. Por estes motivos o governo
petista foi derrubado em 2016.
Pra piorar, os ajustes fiscais e os “planos
de reestruturação” exigem privatizações de estatais que teriam papel
fundamental nesse desenvolvimento interno, como Sulgás, CEEE e Banrisul, o que
limita ainda mais o poder de investimento social do Estado. Assim, fazem o
mercado avançar decisivamente sobre o Estado, submetendo-o e engessando-o
financeiramente conforme seus interesses econômicos, que é, em síntese, a
destinação da maior parte dos recursos para a iniciativa privada internacional
e nacional (ou seja, a concretização da Agenda 2020 da FIERGS). Eis aí a
“verdade fiscal” do Estado; eis aí a “raiz
da crise das finanças públicas”; eis aí os únicos e verdadeiros mitos.
A aplicação do pacote de Eduardo Leite contra
os servidores conclui a destruição do Estado visando destinar os recursos dos
“gastos com pessoal” para o sistema financeiro e para subsidiar a produção de
soja do agronegócio[xv]. Assim se criará uma nova
estrutura de acumulação no seu epicentro às custas da exploração dos países e
dos povos da periferia. O pacote do governo Leite, sua agenda de privatizações
e a sua “reforma estrutural do Estado” é, para resumir, uma opção política pelo
não investimento social em nome dos
interesses dessa internacionalização da
economia e do mercado interno, visando sustentar o sistema financeiro. Não
casualmente, Eduardo Leite foi aos EUA para “conferências” na mesma semana em
que enviou o seu pacote à Assembleia Legislativa; voltou falando em “privatizar prestação de serviços para a
educação” e em “conceder todas as
rodovias para a iniciativa privada”[xvi].
Como combater o pacote e a
reestruturação do Estado?
Numa reação a esta reestruturação do
capitalismo (o que, no linguajar do Financial
Times, seria o “conserto do sistema”) vários povos se sublevaram: Coletes
Amarelos na França; o movimento indígena no Equador; os trabalhadores e os
estudantes no Chile e na Bolívia. No Brasil, muitas categorias do funcionalismo
público deflagraram greves, como foi o caso dos Correios e do magistério de
diversos estados e municípios. O setor privado ainda segue inerte.
No RS, o CPERS se coloca como vanguarda
nesta luta, deflagrando uma greve no dia 14 de novembro que começou forte e com
bastante adesão. Porém, é necessário algumas ponderações, uma vez que a direção
do movimento dissemina ilusões reformistas. Está fora de questão a importância
desta greve, pois a pior derrota é a
derrota sem luta; mas, para além das questões organizativas (comando e
fundo de greve), ela tem um claro problema político: se limita a obrigar o
governo Leite a retirar o pacote da Assembleia Legislativa. Se essa importante
reivindicação fosse conquistada, o governo, junto com a grande mídia, os
empresários da FIERGS e os bancos, tratariam de aplicar o mesmo projeto de
inúmeras outras formas com a finalidade de nos impor esse e outros pacotes, uma
vez que não podem renunciar a esta perspectiva econômica. Disso depende o
funcionamento do capitalismo periférico.
Assim, se faz necessário a unidade com todos
os setores sociais, para além do funcionalismo público, com as categorias da
iniciativa privada, os subempregados e desempregados, na perspectiva de transformar o RS e o Brasil no Chile,
tendo no horizonte o objetivo de ir além do espontaneísmo, com o desafio de
organizar os trabalhadores e estudantes por local de trabalho, estudo e
moradia, apostando na construção de um poder popular com vistas ao socialismo –
único sistema econômico que pode superar as contradições insolucionáveis do
capitalismo sem a destruição das condições de vida dos trabalhadores. Nesse
sentido, superar as ilusões reformistas da massa e de suas “direções” é
imprescindível.
NOTAS
[iii]
Extraído do documento: “Reforma Estrutural do Estado”, governo do Rio Grande do
Sul (capa).
[iv]
Extraído do documento: “Reforma Estrutural do Estado”, governo do Rio Grande do
Sul (página 3).
[v]
Extraído do documento: “Reforma Estrutural do Estado”, governo do Rio Grande do
Sul (página 7).
[vi]
Extraído do documento: “Reforma Estrutural do Estado”, governo do Rio Grande do
Sul (página 14).
[xi]
Com os dados da Cartilha da dívida
pública do RS, 2016, elaborada pela Auditoria Cidadã da Dívida Pública e
pelo Sindicato de auditores públicos externos do tribunal de contas do Estado
do RS (CEAPE-Sindicato).
[xiv]
Idem.
[xv]
Este foi o principal produto exportado pelo Rio Grande do Sul em 2018, segundo
os dados do Ministério da Economia, Indústria e Comércio Exterior.
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