quinta-feira, 29 de agosto de 2019

A essência do leninismo

A crise de direção revolucionária segue desperdiçando oportunidades, levando os trabalhadores e os estudantes a becos sem saída cada vez maiores. Apesar disso, grupos de militantes revolucionários rompem aqui e acolá com organizações burocráticas e oportunistas; não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Um grupo de militantes desgarrados se encontrou nas lutas da vida e formaram um grupo de WhatsApp para trocar impressões, debater divergências e tentar combater esta hidra que é a crise de direção. Neste grupo se encontram diversas tendências políticas, desde anarquistas, até marxistas e trotskistas ortodoxos e heterodoxos, bem como ativistas desiludidos que buscam uma palavra de incentivo e esperança. O texto abaixo foi redigido pelo companheiro Eduardo Cambará para discutir com os membros do referido grupo sobre formas de organização revolucionária, espontaneísmo e, é claro, leninismo, que é sempre muito citado, mas muito mal compreendido. Esta reflexão é um pequeno tijolinho colocado na grande construção coletiva que deve ser a luta pela superação da crise de direção.

Sobre organização revolucionária e o leninismo

A maioria da esquerda entende leninismo como sinônimo exclusivo de centralismo democrático. De fato, este conceito é parte importante do leninismo, mas não é tudo. Em 99% dos casos a “esquerda” o entende e o pratica como centralismo burocrático porque o dissocia de sua compreensão política e teórica. Através de uma prática nefasta reforça a propaganda burguesa que aponta o stalinismo como consequência inevitável do leninismo. Esta compreensão metafísica do centralismo democrático e do leninismo leva muitos ativistas a virarem as costas para a riqueza de suas contribuições, ao invés de compreendê-lo dialeticamente no sentido da sua incorporação crítica à prática militante.

Eu não vejo como uma organização revolucionária hoje pode abrir mão do leninismo sem graves prejuízos de organização dos trabalhadores e da atividade prática militante. Isso nada tem a ver com tratar Lenin como um Papa infalível. Leninismo é, antes de tudo, luta contra o espontaneísmo dos trabalhadores, contra a submissão consciente ou inconsciente do proletariado à política burguesa, a arte das palavras de ordem que vão contraponto, progressiva e irreconciliavelmente, trabalhadores contra patrões, sempre levando em consideração a realidade concreta e a correlação de forças. O leninismo é, ainda, o combate sem tréguas à duplicidade e inconsistência da teoria, propaganda e das palavras de ordem vazias levantadas pelo oportunismo e/ou sectarismo. É a concretização mais realista do programa com as massas, colocando tarefas precisas.

Neste grupo acredito que temos aqueles que pensam que o espontaneísmo é necessário por demonstrar as tendências e os verdadeiros sentimentos dos trabalhadores, nos aproximando de uma concepção anarquista; e aqueles que acharão que o centralismo por si mesmo é o principal construtor de uma organização revolucionária. Eu penso que devemos ter uma linha no meio termo entre essas duas concepções. A massa sem direção leva à explosões espontâneas, tipo espoleta sem pólvora; que acaba sendo dominada e dirigida pela burguesia (as "revoluções" do mundo árabe servem de exemplo). Por mais importantes que sejam, e por mais que tenhamos que estar atentos a todos os movimentos espontâneos dos trabalhadores, qualquer mobilização precisa de um programa e de um caminho a seguir. A massa, quer queiramos ou não, é composta por vários estratos, que tem sua culminância na divisão entre vanguarda e retaguarda. Isto é um fato sociológico. Não se pode igualar a sua vanguarda com a sua retaguarda, ainda que se tenha que levar em consideração os anseios da retaguarda. Dizer que uma massa não precisa de direção é o mesmo que dizer que ela não precisa de programa político, que todos seriam igualmente bons e salutares; que não devemos interferir na consciência atrasada (geralmente burguesa) dos trabalhadores, considerando isso como "autoritarismo".

Dirigir não significa impor e oprimir, tal como foi o stalinismo e como a maior parte da "esquerda" atualmente entende a palavra “direção”. Dirigir é debater, propor, disputar, convencer (avançar, retroceder para avançar de novo, se autocriticar), saber ouvir e saber a hora de intervir. A direção deve ser conquistada, tal como fizeram os bolcheviques em 1917; e não imposta, tal como fez o stalinismo a partir de 1925 com o refluxo da Revolução Russa. É por isso que discordo de muitos companheiros que tentam explicar a degeneração da Revolução de Outubro em stalinismo pelos “erros” e “excessos” do bolchevismo “contra os trabalhadores”, como se isso fosse culpa da “mera organização em partido” e que o stalinismo seria a continuação exata do leninismo e o seu resultado inevitável. Condenam o bolchevismo porque este não traz embutido em si mesmo uma garantia milagrosa contra a degeneração, tal como se ele tivesse proposto realizar uma tarefa fácil e a-histórica.

Na contra-mão dos companheiros que questionam a importância da direção revolucionário (partido), estão aqueles que pensam que a essência do leninismo está no centralismo democrático. De fato não existe partido revolucionário sem centralismo democrático, mas isso precisa ser melhor debatido. O centralismo democrático é quase um resultado natural de um debate franco, honesto e, se necessário, duro, entre camaradas. É a disciplina livremente contratada a partir da percepção de uma política correta. Não pode existir uma real unidade em qualquer forma de militância se isso não envolver o mínimo de compromisso entre a minoria e a maioria, mas isso jamais pode ser visto como um fim em si mesmo. Resumem tudo em um sofisma: Lenin fez uma revolução porque defendia um partido centralizado. Esta conclusão simplória esconde o desejo de controle total, que para Lenin era um meio e não um fim em si mesmo, como o é para o monolitismo stalinista. Lenin foi enfático ao dizer que o partido bolchevique correspondia às condições da Rússia do início do século 20. Isso não quer dizer que podemos prescindir do centralismo democrático, mas que ele precisa ser construído de acordo com as condições concretas, sobretudo do tamanho, organização e inserção do partido ou movimento, sendo mais o resultado e um meio de organização do que uma imposição formal e burocrática de cima para baixo.

Precisamos debater como organizar os organismos de base, tempos de duração de mandatos, como compor um comitê central e como renová-lo; até onde ele pode interferir e até onde não pode? Como encontrar um equilíbrio entre a dialética espontaneísmo X centralização? Até onde a centralização mata a evolução espontânea e até onde o espontaneísmo mata uma saída revolucionária, entregando-a de bandeja para a burguesia? Como sintetizar esta dialética? Dizer simplesmente que se trata de aplicar o centralismo democrático é uma tautologia. Vivemos hoje o mesmo problema russo do início do século 20: pequenas organizações revolucionárias espalhadas por todo o Brasil e pelo mundo, tal como uma torre de Babel. Bastaria apenas centralizá-las? Quem poderia fazer isso hoje? E o mais importante: com qual política?

Acredito que nenhuma organização revolucionária de militantes pode abrir mão da experiência leninista. Eu falo por experiência própria: existe muita força nos seus métodos, de exigência e desmascaramento, que qualquer grupo de militantes não pode abrir mão se quer de fato lutar por uma revolução. Mas a força do leninismo, mais do que o centralismo democrático em si, está na sua conexão com a realidade. Podemos dizer, seguramente, que o leninismo tem força e realizou uma revolução sobretudo porque estava escrupulosamente conectado com a realidade. Sua política revolucionária era a expressão desse realismo e combatia sem tréguas e sem piedade qualquer política deslocada da realidade ou dúbia. Isto é, ao meu ver, o que mais precisamos resgatar do leninismo. É por isso que a palavra de ordem de “Fora Bolsonaro ou Fora qualquer um levantada neste período histórico de crise de direção que vivemos não tem nenhum vestígio de ligação com o leninismo.

Análise do "Fora Bolsonaro"  a partir de citações de Lenin no livro de Trotsky "Stalin - uma análise do homem e de sua influência".

As palavras de ordem e a ação da esquerda brasileira quando não são abertamente oportunistas e degeneradas, são “infantilmente inventadas” (Esquerdismo....). Do ponto de vista da propaganda do socialismo estaria correto debatermos com os trabalhadores a necessidade de tirarmos Bolsonaro pelas nossas mãos através da luta e de uma revolução. Mas não é assim que a "esquerda" compreende esta palavra de ordem, pois a trata como uma tarefa de agitação para ser concretizada agora. 

Devemos comparar o Fora Bolsonaro” de hoje com o método empregado por Lenin durante a Revolução de 1917, mais especificamente enquanto ocorriam as jornadas de julho, quando os operários estavam armados e exigiam a saída dos “ministros capitalistas” e a própria derrubada armada do governo provisório. Nesta ocasião, Lenin disse o seguinte: "O verdadeiro governo é o Soviete de Deputados Operários... Nosso partido é uma minoria no Soviete... Isso não pode ser contornado! Cabe a nós explicar - pacientemente, persistentemente e sistematicamente - a erroneidade de suas táticas. Enquanto formos uma minoria, nossa tarefa é fazer a crítica com o objetivo de abrir os olhos das massas (...) A questão é que o proletariado não está suficientemente consciente e nem suficientemente organizado. Isso deveria ser admitido. A força material está nas mãos do proletariado, mas a burguesia está alerta e pronta".

Companheiros, Lenin disso isso em junho de 1917, quando os bolcheviques somavam em suas fileiras cerca de 200 mil membros! A esquerda hoje chama o “Fora Bolsonaro em condições completamente opostas, ignorando todos os conselhos de Lenin. Portanto, servem, na prática, como bucha de canhão do oportunismo petista, abrindo caminho para o eleitoralismo burguês. Muito provavelmente se os companheiros estivessem em julho de 1917, mantendo sua posição do "Fora este ou aquele" para agitação sem condições, colocariam a Revolução Russa a perder.

Como se pode ver, o centralismo democrático não é um remédio milagroso, depende da escrupulosidade do realismo político. Se usado como um fim em si mesmo pode servir apenas para “centralizar o oportunismo, o sectarismo ou, até mesmo, o espontaneísmo. Além disso, não basta dizer que temos que ir até a massa, até os operários, até às periferias. É necessário saber o que fazer lá. Temos que reformular todo o nosso trabalho de base. Ir para a porta de fábrica ou para as periferias gritar Fora Bolsonaro sem condições não é apenas equivocado, mas um desserviço pra revolução. É necessário reformular a propaganda, a agitação, a aproximação com todos esses setores. É fundamental desenvolver um método de "politizar" os problemas cotidianos da vida pessoal e individual de cada trabalhador (incluso e fundamentalmente as suas contradições sexuais e morais), além de aprender a explicar pacientemente, persistentemente e sistematicamente. Há todo um campo de desgaste ao governo Bolsonaro que precisa ser trabalhado para avançarmos em direção à revolução no Brasil. Um pequeno exemplo: devemos demonstrar que Bolsonaro nem sequer liberal é; há todo um campo que envolve a propaganda do socialismo que precisa ser resgatado e reconstruído.

A restauração do capitalismo representou uma vitória ideológica conjuntural da burguesia, o que possibilitou que os trabalhadores seguissem anestesiados contra a ideia de “socialismo”, tornando-os reféns da barbárie criada pelo capitalismo. A crise da sociedade capitalista é vista e sentida como um beco sem saída, que tende a reforçar os sentimentos niilistas no campo ideológico e pessoal. Quando eles olham para o socialismo não se sensibilizam com as agitações das organizações e partidos de esquerda, que tendem a lhes soar como utópicas ou como a possibilidade de uma repetição mecânica do que foram os regimes stalinistas. A esquerda precisa se reinventar permanentemente, saber desenvolver crítica e autocrítica pessoal e coletiva; cultivar a sinceridade e a honestidade nos debates internos; lutar contra os seus próprios dogmas e contra a tendência inata de transformar o “socialismo” numa nova forma de messianismo e de religião. Acredito que para a massa em geral é fundamental a defesa racional do socialismo contra o irracionalismo burguês, que só pode sustentar a barbárie capitalista recorrendo à distorções teóricas e literárias grosseiras, quase uma institucionalização da mentira, do terrorismo psicológico e da idiotice; sobre a vanguarda de “esquerda” é necessário debater profundamente qual a sua estratégia ao socialismo, desmascarando aonde nos leva tal ou qual caminho, e levantando a bandeira da revolução, sempre procurando sustentá-la com uma sólida e lúcida análise da realidade que se reavalie e se autocritique permanentemente. Para isso é fundamental o exercício da verdade, da coerência e da autocrítica.

Em síntese, arrisco concluir o seguinte: para uma organização revolucionária devemos ter, sim, centralismo democrático (total liberdade de discussão e centralidade na ação, mas isso levando em consideração o grau de acordo e concordância com a política, que, como foi dito, precisa ser escrupulosamente realista); reformular totalmente o trabalho de base, a agitação e a propaganda da “esquerda” e de uma futura organização revolucionária. Esta é uma das minhas esperanças com este embrião de célula ovo ou zigoto.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Os protestos de Hong Kong defendem a liberdade de especulação


*Texto escrito originalmente para o blog da Construção pela Base - corrente de oposição à burocracia sindical e à direção central do CPERS sindicato (www.construcaopelabase.blogspot.com).

         Há cerca de 2 meses Hong Kong está convulsionada. Milhares de pessoas, entre estudantes e trabalhadores, saíram às ruas para protestar contra a lei de extradição para a China, com centenas de feridos, bombas de gás lacrimogêneo, quebradeiras de prédios, lojas, vidraças e vitrines. A segunda maior central sindical de Hong Kong, a HKCTU, convocou uma “greve geral” de 1 dia. Os mais entusiastas destas manifestações falam em “revolução” dos guarda-chuvas (símbolo do movimento) e outros tantos reivindicam “todo o apoio às mobilizações de Hong Kong”, afirmando se tratar de uma luta pelas “liberdades democráticas, como o direito à livre expressão e organização política”.

A “esquerda” brasileira, totalmente burocratizada e encastelada nos sindicatos ou no parlamento, deu mostras de que basta ter massas nas ruas para que se apoie qualquer espécie de protestos, não demonstrando nenhum tipo de preocupação crítica. O espontaneísmo segue sendo a sua principal característica, o que compromete a independência de classe. Foi assim com as “revoluções coloridas” e a “primavera árabe”. Continua sendo com o apoio desavergonhado e acrítico às manifestações de Hong Kong, que possuem as mesmas características de supostamente serem “apartidárias” e “apolíticas” – a principal artimanha do imperialismo, que tem sido usado exitosamente nesse início de século 21 para jogar todos os protestos de massa contra a “esquerda” e os próprios interesses históricos dos trabalhadores.

Não há como entender os protestos por “democracia” e “liberdade de expressão” de Hong Kong sem entender a história desta cidade peculiar.

 

Hong Kong: um paraíso fiscal para os especuladores!

         A conquista da China pelo Império Britânico está repleta de crimes horrendos, como as Guerras do Ópio (ocorridas entre 1839 e 1860), que viciaram a população chinesa nesta droga através do tráfico para compensar a balança comercial desfavorável à Inglaterra. A vitória inglesa nesta guerra impôs uma dura penalidade à China: a entrega dos seus principais portos à ganância comercial da burguesia britânica, dentre os quais, a ilha de Hong Kong, que ficaria sob domínio inglês por 155 anos.

         Em 1997 a cidade foi devolvida à China, já sob a liderança do Partido Comunista, uma vez que o prazo havia expirado. Ainda em 1984, o líder “comunista” que trabalhou pela restauração do capitalismo na China, escondendo isso sob o nome de “as quatro modernizações”, Deng Xiao Ping, negociou pontos para a reincorporação de Hong Kong à China com ninguém menos que a primeira ministra britânica, Margaret Tatcher, a dama de ferro fundadora do neoliberalismo. Com o slogan de “uma cidade, dois sistemas” (isto é, na verdade, um eufemismo pra esconder a submissão aos interesses do capitalismo internacional), Hong Kong se tornou uma Região Administrativa Especial (RAEs), que estabeleceu um novo prazo para passar totalmente ao controle da China, previsto para 2047. Na prática, a cidade continua a utilizar a lei comum inglesa, cujo sistema jurídico e administrativo foi implantado através da Lei Básica de Hong Kong, em 1990 (portanto, ainda sob domínio inglês) e que serve como uma miniconstituição da região, conhecida como Declaração Conjunta Sino-Britânica.

         Os mais de 100 anos que a Inglaterra teve o controle da ilha deixaram suas marcas profundas, que foram utilizadas para cercar a China e assegurar a sua influência. Hong Kong tornou-se um paraíso fiscal devido as suas leis que limitam ou eximem a tributação dos ricos residentes e das corporações estrangeiras da ilha. É por isso que a maioria dos principais bancos do mundo têm operações lá. A cidade também possui a segunda maior bolsa de valores da Ásia, além de ter moeda própria, o dólar de Hong Kong, que opera com câmbio vinculado ao dólar dos EUA e se submete às regras dos monopólios impostas ao mercado internacional, algo que não acontece com a moeda chinesa, controlada por Pequim. Hong Kong também tem uma Assembleia Legislativa com 70 integrantes, composta por empresários, sindicalistas, professores, líderes religiosos e até celebridades, eleitos por residentes com mais de 18 anos. Metade das vagas é ocupada por representantes de regiões e a outra metade por representantes de empresas.

         Atingindo uma população de 7,5 milhões de habitantes, a ilha não tributa os rendimentos auferidos além das suas fronteiras. Os grandes capitalistas do mundo – sobretudo do ramo financeiro – podem explorar o proletariado chinês nas zonas francas da China continental, especular na bolsa de valores de Hong Kong e ainda guardar suas fortunas numa região autônoma livre de impostos sobre ganhos de capital, juros e dividendos.

         Por volta de 2015, os estrangeiros tinham aproximadamente US$ 2,1 trilhões em ativos gerenciados na ilha e US$ 350 bilhões depositados nas fronteiras de Hong Kong. Uma vez que a Suíça cedeu à pressão internacional para compartilhar informações sobre contas bancárias estrangeiras e proprietários de ativos que procuravam fugir de impostos, Hong Kong se tornou uma “alternativa” porque recusou-se a fazer o mesmo, transformando-se em um paraíso fiscal renomado.

 

O que quer a China com a lei de extradição?

         Em 2019 Pequim fez tramitar na Assembleia Popular Nacional da China uma lei que tem o objetivo de extraditar criminosos que estejam protegidos pelas leis autônomas de Hong Kong para a China continental. Foi contra esta lei que se desencadearam as manifestações de rua, classificadas pelo governo chinês de “violentas e inaceitáveis”; e saudadas pela “esquerda” brasileira como positivas e “revolucionárias”. O governo chinês acusa a existência de um núcleo organizado pelos EUA dentro destas mobilizações, sobretudo a partir de uma de suas ONGs conhecida como National Endowment for Democracy (que inclusive tem sede em Hong Kong), cuja principal função seria incitar a sabotagem, a violência e a “desobediência civil”, escondendo-se atrás de um discurso “em defesa da democracia e da liberdade”. Em alguns cartazes das manifestações de rua se pode ler a reivindicação de intervenção de Trump.

A mídia comercial, seguida pela “mídia da esquerda”, reforça a ideia de que se trata de reivindicações por “democracia” e por “liberdades individuais”. Afirmam ainda que o projeto de lei sobre extradição para a China continental coloca em risco a credibilidade e a “alma” de Hong Kong, enquanto que o governo chinês quer “preencher um vazio jurídico”. O jornal O Globo sustenta que “líderes empresariais, advogados, grupos de imprensa e grupos de direitos humanos temem que Pequim use a lei para pedir a extradição de fugitivos por razões políticas ou empresariais”[i]. De acordo com o governo chinês, o texto preenche uma lacuna jurídica e impedirá que Hong Kong se converta em refúgio para “certos criminosos”. Caso aprovada, a lei permitirá às autoridades de Hong Kong extraditar pessoas não apenas para a China continental, mas para qualquer país do mundo com o qual ainda não tenham acordo de extradição.

Está claro que Pequim, com a ajuda do governo autônomo de Hong Kong, está trabalhando para preparar a anexação da cidade à China, prevista para 2047. Daí a alegação de “preencher um vazio jurídico”; ao mesmo tempo em que pretende impor restrições a atividades econômicas autônomas, o que envolve um inevitável enfrentamento com os setores interessados em manter Hong Kong como um paraíso fiscal sem leis para a especulação; dentre os quais, estão, certamente, os imperialismos ocidentais representados pelos EUA e pela Inglaterra. Aproveitando-se desse conflito, os EUA de Donald Trump e a sua aliada Inglaterra intensificam a guerra comercial e híbrida contra a China de Xi Jinping.

É precisamente isso que está por trás das mobilizações de rua contra a lei de extradição, que são manipuladas por estes interesses imperialistas. Não é casual que existam manifestantes que levantem a bandeira dos EUA nos protestos e que a mídia comercial (sempre secundada pelos seus papagaios da “esquerda”) afirme se tratar de uma manifestação por “democracia” e por “liberdades individuais” contra o “autoritarismo comunista”.

 

Podemos confiar no governo chinês? Ele é realmente comunista?

Apesar de a China ter a sua frente um Partido Comunista, ela já não pode ser considerada socialista ou comunista. Lá opera livremente a propriedade privada de monopólios e grandes empresas, que exploram um proletariado contido e subjugado por um Partido “Comunista”. A tradição teórica e prática deste partido está baseado no stalinismo, que tanto estrago já causou ao movimento socialista. O “socialismo com características chinesas” é um engodo para encobrir o fato de a propriedade privada operar lá livremente, a submissão aos ditames do mercado e a exploração brutal do seu próprio proletariado.

A China está preparando as bases para a reanexação de Hong Kong ao seu território, o que gera, inevitavelmente, atritos sociais e conflitos com interesses da especulação financeira de bancos e grandes empresas. A sua preocupação não é o combate à odiosa especulação capitalista, mas a reanexação de um território economicamente importante que é usado na disputa imperialista para sabotá-la. Não há, portanto, nenhuma preocupação com os interesses históricos do proletariado, tampouco com as condições de vida dos trabalhadores de Hong Kong, ainda que tenhamos que reconhecer que é absurdo um país não ter a soberania plena de seu próprio território.Hon

 

Especular no mercado financeiro é uma “liberdade de expressão”?

         O que a mídia comercial, de “esquerda” e as ONGs imperialistas alegam sobre “liberdade individual” é, portanto, apenas a liberdade para especular em um paraíso fiscal. Não há uma única preocupação com as condições de exploração sofrida pelo proletariado chinês ou de Hong Kong. Ao contrário do que sustenta o PSOL, também não há nenhuma reivindicação “democrática” ou de “organização política” autêntica que realmente interesse ao proletariado, mas apenas de fortalecimento da democracia burguesa e dos seus negócios.

         A especulação financeira é uma atividade de parasitas; e pra desgraça humana, uma das mais rentáveis do mundo. Especulação significa lucro fácil; o oposto do que supostamente prega a ideologia da meritocracia e do empreendedorismo capitalista. Não há produção real ou incremento da economia. Ela contribui para o surgimento de capitais fictícios que engendram as crises econômicas futuras, além de enriquecer meia dúzia de banqueiros e acionistas em detrimento da população global. A especulação com a compra de safras agrícolas antecipadamente, por exemplo, intensifica a fome na África e em outras regiões que dependem da agricultura. É para isso que trabalha a burguesia ligada a Trump: desregulamentar todo o mercado financeiro e combater qualquer tipo de legislação contra a especulação.

Isto seria “liberdade de expressão” ou de exploração?

 

A direita tem mobilizado as massas muito mais exitosamente que a “esquerda”!

         Neste início de século 21 vimos a explosão de diversas manifestações espontâneas: primavera árabe, Occupy Wall Street, Coletes Amarelos, manifestações de 2013 no Brasil, dentre outras. Dada a inoperância e o oportunismo da “esquerda”, a direita e o imperialismo canalizaram estas manifestações para si. Mais do que isso: a partir de ONGs e organizações reacionárias (como o MBL), a direita passou a mobilizar massas através do ódio, do sadismo e do caos social gerado pela crise do capitalismo. A “esquerda” vergonhosamente tem apoiado todos estes “movimentos” sem nenhuma preocupação com suas palavras de ordem, sua real organização e inserção no movimento de massas, bem como sua agitação e propaganda.

         Em 1909, Lenin já zombava desse espontaneísmo: “A ‘filosofia’ dos heróis da espontaneidade reduz-se, em traços gerais, a esperar que a história trabalhe por nós e que o mundo capitalista caminhe para o declínio; uma vez que o surto revolucionário tende para a situação revolucionária, a atmosfera revolucionária impelirá mecanicamente as massas para a influência do partido [revolucionário]. Apoiar qualquer mobilização de massa, sem a menor preocupação com o conteúdo e o programa das manifestações, não pode gerar nenhuma situação revolucionária, tampouco o crescimento do partido revolucionário, mas apenas a consolidação do domínio da burguesia. É precisamente isso que nos ensina este início de século.

Os EUA, através da sua sempre aliada e cada vez mais submissa, Inglaterra, tem usado as massas de Hong Kong como parte da sua guerra comercial e híbrida contra a China. Quem não entendeu isso não entendeu nada do que se passa em Hong Kong! O grande problema continua sendo a crise de direção do proletariado, que não apresenta política independente nessa disputa.

         Ao contrário desta compreensão, o PSOL conclama “todo o apoio às mobilizações de Hong Kong”[ii], o que poderia ser traduzido por: “todo apoio ao imperialismo norte-americano e aos seus especuladores”; e o PSTU preocupantemente afirma que “a classe operária entra em cena”[iii]. Para sustentar este disparate oportunista, se sustenta na nota da HKCTU, cujo programa das famosas “greve gerais” de 1 dia, contém o seguinte: “a) Retirada permanente do projeto de ‘lei de extradição’; b)Retirada da caracterização de ‘motim’ dos protestos de 12 de junho passado; c) Liberação sem acusações dos manifestantes detidos; d) Investigação independente da violência policial e o abuso de poder, e e)Implementação plena do sufrágio universal (para a eleição do Chefe de Governo e do Conselho Legislativo)”[iv].

         Como se pode ver, não há entre as principais reivindicações nenhuma que seja proletária. A maioria delas diz respeito aos interesses do imperialismo; e as outras defendem a não criminalização daqueles que lutaram em defesa dos especuladores. Isso não impediu o Esquerda Diário e o MRT de dizerem que “a greve geral em Hong Kong põe em xeque o governo de Carrie Lam e de Pequim”[v]. O espontaneísmo da “esquerda” tem servido para sustentar a mobilização de massas da direita e do imperialismo contra os trabalhadores e o socialismo. Iludem suas bases de que estão trabalhando pela revolução socialista, quando na verdade são o abre alas dos interesses do imperialismo dentro do movimento sindical e político do proletariado.

         A LIT e o PSTU vão mais longe quando reafirmam a sua teoria oportunista de “Revolução Democrática”, aconselhando que “os trabalhadores e as massas da China continental” devem avançar “para a derrubada do regime chinês (com a palavra de ordem de ‘Abaixo a ditadura’)”[vi], notadamente para instaurar na China a democracia burguesa, uma vez que é apenas o imperialismo norte-americano que pode instaurar, no momento, qualquer regime político neste país. Dão, assim, um passo adiante no seu servilismo ao imperialismo. E quando afirma que “a luta em Hong Kong pode chegar a um ‘limite intolerável’ para o regime chinês se a governadora Carrie Lam for derrubada pela luta e Beijing perder o controle do território”[vii], deixa claro que trabalha – consciente ou inconscientemente – a favor do imperialismo estadunidense e britânico.

         No caso de Hong Kong, assim como em muitos outros – incluso no Brasil –, “a esquerda” dá mostras que não superou o espontaneísmo das massas e que funciona apenas como a quinta coluna do imperialismo. Novamente sacrifica uma política de independência de classe, tanto na propaganda quanto na agitação, em nome de supostamente “apoiar as massas” em suas “justas” reivindicações. Se não superarmos esta teoria e esta prática oportunista, a revolução socialista estará irremediavelmente condenada; e com ela, as condições de vida do proletariado.




NOTAS

[i] https://oglobo.globo.com/mundo/entenda-por-que-uma-nova-lei-de-extradicao-vem-causando-protestos-em-hong-kong-23731229

[ii] http://psol50.org.br/todo-apoio-as-mobilizacoes-de-hong-kong/

[iii] https://www.pstu.org.br/hong-kong-a-classe-operaria-entra-em-cena/

[iv] http://en.hkctu.org.hk/content/strive-five-major-demands-calling-workers-strike-5-august

[v] https://www.esquerdadiario.com.br/A-greve-geral-em-Hong-Kong-poe-em-xeque-o-governo-de-Carrie-Lam-e-de-Pequim

[vi] https://www.pstu.org.br/hong-kong-a-classe-operaria-entra-em-cena/

[vii] Idem


sábado, 24 de agosto de 2019

Economia, destruição ambiental e a Revista Veja

Olhando uma banca de revista me deparei com uma capa da Revista Veja criticando o governo Bolsonaro. A foto é da Amazônia pegando fogo e o "alerta internacional". Não resisti e fui folheá-la.

"Criticam" o seu mito dizendo que ele está causando constrangimento internacional e prejudicando a economia. Umas folhas mais adiante diz que "apesar de ele estar trabalhando bem pelas 'reformas' econômicas, no campo do meio ambiente está sendo um desastre".

Somente a mentalidade burguesa consegue separar economia de meio ambiente. É impossível ele trabalhar bem pela economia ao mesmo tempo em que arrasa a Amazônia.

O desastre ambiental da Amazônia protagonizado pelo agronegócio e o governo Bolsonaro não é nada diferente do que faz o sistema financeiro com a economia comum, das pessoas pobres, que dependem das taxas de banco para o cartão de crédito, do salário mínimo, dos serviços públicos, do transporte etc.

As chamas desgovernadas que na Amazônia estão destruindo o nosso futuro ambiental, não são menos desgovernadas que a exploração inescrupulosa do sistema financeiro, que depreda a economia dos pobres e transforma o verde do suor arrecadado no orçamento público, nas cinzas da miséria do povo brasileiro.

Por Eduardo Cambará, professor da rede pública e andarilho dos bairros Farroupilha, Bonfim e Cidade Baixa de Porto Alegre.

Espontaneísmo: doença crônica da esquerda


Em março de 2019 ocorreu num pequeno estabelecimento nas cercanias da estação Carandiru da linha azul de São Paulo, a Iª Conferência de uma organização de trabalhadores chamada União Proletária (UP). Nela participaram pequenas delegações de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Esta última contava com 4 militantes de Porto Alegre, dentre os quais estava o autor destas linhas, Eduardo Cambará, que foi designado como responsável para redigir um balanço.
          Durante a conferência foram debatidos diversos temas, onde pipocaram divergências profundas que são analisadas neste texto, feito a pedido do companheiro Alberto Rodrigues, o principal dirigente da UP. Certo de que os temas abordados são relevantes para toda a esquerda brasileira, principalmente porque expressam claramente os desvios e os problemas relacionados ao culto do espontaneísmo, o blog Consciência Proletária resolveu publicá-lo na íntegra, preservando alguns nomes e pequenos detalhes.
         Eis o balanço na íntegra:

Balanço da conferência e apresentação das nossas divergências

         Na condição de observadores da Iª Conferência da UP, tivemos a oportunidade de ver determinadas questões que podem ter passado despercebidamente pelos camaradas e, sobre as quais, gostaríamos de chamar a atenção. No melhor estilo da tradição revolucionária de dizer o que se pensa, apresentamos a seguir nossas impressões e divergências com o método e o funcionamento em que a UP está sendo construída. Não somos oportunistas para buscar a unidade pela unidade e de esconder nossas opiniões.
       Assim, esperamos poder contribuir com os camaradas e desenvolver um debate sadio na perspectiva de superar a crise de direção revolucionária.

I) Os pontos de acordo:

         Compreendemos que a crise da humanidade continua sendo a crise de direção revolucionária. Buscamos, assim como os camaradas, a superação deste problema com a construção de um partido revolucionário capaz de organizar os trabalhadores para tomar o poder e construir o socialismo. Sem dúvida a disciplina revolucionária é importante e jamais pode redundar num grupo de amigos (o que não significa que os militantes não possam ser amigos). Fizemos um grande esforço financeiro, político e pessoal para estar presente nesta Iª conferência, visando, justamente, superar esta crise de direção e o isolamento local.
         A reivindicação dos documentos clássicos do marxismo também são elementos importantíssimos no caminho da construção do partido revolucionário: o Manifesto Comunista, as teses dos 3 primeiros Congressos da III Internacional, o Programa de Transição e o trotskismo. Tudo isso são elementos importantes com os quais concordamos. Temos que levar em consideração a cara experiência do passado sintetizada no marxismo, mas, também, as boas contribuições do presente. Concordamos em vários pontos, mas o objetivo deste texto, como já foi dito, é justamente desenvolver as divergências, por isso, nos centraremos nelas.
A experiência prática e o modus operandi de uma organização podem nos dizer muito mais sobre ela do que o seu programa escrito. À algumas divergências dos documentos que nos foram apresentados (que eram poucas antes da conferência), se somaram grandes divergências de ordem prático-organizativas, que revelaram para nós como os camaradas compreendem o programa e as perspectivas de militância.

II) As divergências teóricas:

a) Colapso do capitalismo, espontaneísmo e movimentismo
O documento dos camaradas fala em um “novo colapso mundial” do capitalismo. Esta caracterização, que na nossa avaliação é apenas uma hipótese, foi reforçada por diversas e repetitivas falas durante a conferência e em outros artigos da sua principal publicação, o jornal Correio Revolucionário. Portanto, é central. Conhecemos e concordamos com a tese marxista da lei da queda tendencial da taxa de lucros, mas ela nada tem a ver com colapso. Esta palavra é infeliz porque leva à conclusão de que o capitalismo caminha para a sua própria destruição sem um agente consciente.
         Ora, o capitalismo tem demonstrado uma capacidade elástica de se manter aumentando a exploração e institucionalizando a barbárie, que está aí a olhos vistos. Inúmeros são os seus mecanismos de dominação: desde as ideologias, as mídias, até a burocracia sindical, as forças armadas da polícia e do exército. O colapso do capitalismo sem um partido revolucionário de massas não pode criar outra coisa que não a barbárie, jamais o socialismo. Trotsky escreveu que “não há nenhuma crise que, por si mesma, possa ser ‘mortal’ para o capitalismo. As oscilações da conjuntura criam somente uma situação na qual será mais fácil ou mais difícil para o proletariado derrotar o capitalismo. A passagem da sociedade burguesa para a sociedade socialista pressupõe a atividade de pessoas vivas, que fazem sua própria história. (...) se o partido operário, apesar das condições favoráveis, se mostra incapaz de levar o proletariado à conquista do poder, a vida da sociedade continuará, necessariamente, sobre bases capitalistas; até uma nova crise ou uma nova guerra; talvez até o desmoronamento completo da civilização europeia”[i].
         Por mais crítica que seja a situação, a burguesia se sente muito a vontade com a atual esquerda. Não se vê, no geral, ameaçada por ela. Assim, mesmo a pior crise do capitalismo tende a manter um moribundo insepulto assombrando a humanidade. O mais inteligente é não subestimar o poder que o capitalismo e a burguesia imperialista têm de se manter, como já foi demonstrado ao longo dos séculos. Isso nada tem a ver com “niilismo” ou “não querer mobilizar os trabalhadores”. Ao contrário: pretende lhe mostrar a realidade, por mais amarga que seja, para saber que sua mobilização se dará em condições cada vez mais difíceis. Não se trata de “baixar as armas”, mas de nos prepararmos melhor e mais conscientemente, sem nenhum tipo de ilusão.
         Gostaríamos muito que os camaradas estivessem corretos, já que seria um caminho mais fácil; no entanto, por mais crítica que seja a crise futura do capitalismo, ele não cairá de maduro. Sendo assim, o mais prudente é se preparar para o pior; e preparar os trabalhadores para o pior também. O nosso pior inimigo são as nossas ilusões. A análise dos camaradas remete a um “catastrofismo” que esconde um espontaneísmo não declarado: o capitalismo vai colapsar sem a intervenção consciente e organizada dos trabalhadores; ou seja, será o resultado de ações do tipo dos coletes amarelos, aos quais os camaradas não cansam de atribuir qualidades. Este “catastrofismo”, na verdade, é comum a várias organizações de esquerda, tal como conhecemos no MRS e no PSTU, servindo para esconder um movimentismo bárbaro (isto é, manter os militantes presos às tarefas de organização do movimento que, no geral, não correspondem à realidade; afinal de contas, a catástrofe está logo ali e basta que todo mundo se dedique um pouco mais; qualquer outro tipo de atividade e tarefa é visto como “desvio pequeno-burguês” ou “diletante” – sobretudo formação teórica independente).
         O espontaneísmo “apartidário” tem sido a regra de todas as últimas manifestações e insurreições populares pelo mundo, como os protestos de 2013 no Brasil, Ocuppy Wall Street (EUA e Inglaterra), Indignados (Espanha), a “primavera árabe” e os coletes amarelos na França. Terminam sempre no leito da burguesia, quando não do neofascismo. Os movimentos espontâneos só podem ser dirigidos pela burguesia ou pelo partido revolucionário. Não é casual que a grande mídia sempre dê destaque ao fato dos manifestantes rechaçarem os partidos. Até o presente momento não se desenvolveu nenhuma força que tenha superado o capitalismo que não fosse através de um partido revolucionário. A história não nos mostrou nenhuma vitória do espontaneísmo dos trabalhadores. Este é, precisamente, o dilema atual dos coletes amarelos na França.
         Ao contrário disso, os camaradas entendem que Macron fez concessões “para conter a revolução” e que “se explodir um movimento de coletes amarelos no Brasil a CUT não dura mais 1 dia”. Ora, os coletes amarelos não protagonizam nenhuma revolução; quando muito uma insurreição popular que demonstra descontentamento, mas, tal como as jornadas de 2013, confundem palavras de ordem revolucionárias, moderadas e reacionárias. Que “revolução” pode resultar disso? Em 2013 o movimento também se deu por fora da CUT e da UNE, mas aí estão elas de pé, entravando o nosso caminho.
         A ausência de um partido revolucionário capaz de criar um movimento consciente e organizado de trabalhadores é um grande calcanhar de Aquiles. Os coletes amarelos estão muito longe desta perspectiva, embora apontem tendências. Falta na França, bem como no resto do mundo, um partido revolucionário de massas. No entanto, compreendemos partido revolucionário de uma forma bastante diferente dos camaradas da UP.

b) A burocracia sindical está em fase terminal?
         De fato o governo Bolsonaro protagoniza uma cruzada contra os sindicatos. Contudo, age dessa forma porque faz parte da sua luta contra a hegemonia petista na sociedade, que se dá, em grande parte, através do controle dos sindicatos, das centrais e dos movimentos sociais. Sérgio Moro e os seus asseclas ameaçam a liberdade sindical como parte desta ofensiva. Os trabalhadores não dão mostras de que vão superar os sindicatos “pela esquerda”, indo além da política e do controle burocrático. Para isso, também necessitariam da influência de um partido revolucionário de massas, o que hoje não existe. Sem direção revolucionária os trabalhadores tendem ao espontaneísmo “apartidário”, o que nos coloca determinadas tarefas.
         Uma vez que os trabalhadores levantassem a cabeça e, de fato, começassem a lutar contra a burocracia sindical e ameaçassem os projetos do governo, não devemos ter dúvidas de que Sérgio Moro, Bolsonaro e a burocracia sindical petista se uniriam contra tal movimento e selariam uma nova santa aliança (inclusive com o imperialismo, que certamente tiraria fundos de alguma reserva pra isso). O que queremos dizer com tudo isso é que a burocracia sindical só será derrotada e expulsa dos sindicatos como resultado do crescimento consciente do movimento revolucionário dos trabalhadores (partido). Lamentavelmente não vemos outra maneira.
         Mesmo que a burocracia sindical vá a falência, como apregoam os camaradas, sem partido revolucionário organizado o capitalismo conseguiria criar uma nova forma de ludibriar e conter o movimento dos trabalhadores, seja através das ilusões, das divisões, da formação de uma nova burocracia no seio dos movimentos espontâneos e, em última instância, através da repressão, que só pode ser enfrentada consciente e organizadamente. Apesar da ofensiva de Sérgio Moro contra os sindicatos, ainda é cedo para falar em superação da burocracia sindical. O certo seria nos munirmos com palavras de ordem, uma agitação e propaganda que combatam conscientemente a burocratização sindical e as ilusões dos trabalhadores de base (sendo uma o elo que engendra a outra).
Pode ser que o lulismo esteja irremediavelmente condenado, como pregam os camaradas, mas a burguesia não pode prescindir de novas e piores frentes populares. Esta é parte fundamental da manutenção da sua dominação. Se não é mais Lula e o PT, pode ser o PSOL ou outro movimento oportunista que surja. O que queremos dizer é: só vamos superar qualquer forma de frente popular e de burocracia sindical com o crescimento consciente e organizado de um movimento revolucionário. Infelizmente, ainda estamos longe disso e os métodos de construção partidária apontados pelos camaradas possuem graves problemas.

c) China e Rússia são os novos imperialismos?
         No debate internacional sobreveio uma polêmica sobre se China e Rússia seriam “novos imperialismos”. Os camaradas afirmam que não, pois não preenche os requisitos apontados por Lenin no seu estudo sobre o imperialismo. Realmente China e Rússia não preenchem. Apesar disso, ambos países vem cumprindo um papel imperialista, mesmo sem tais requisitos. Ainda que não tenham nenhum monopólio ou multinacional reconhecida, a China possui as maiores reservas cambiais do mundo, o maior mercado interno e o maior proletariado, bem como a exploração de recursos naturais de outros países a partir de suas empresas “estatais”. Atrai grande parte do capital mundial e imprime o ritmo da produção em escala global. Tem intervido no mundo todo de forma mais sutil que os EUA e a Europa, mas o faz visivelmente para garantir seus interesses econômicos.
         Desta forma, ainda que não seja um “imperialismo clássico”, sua atuação é de um país imperialista e os trabalhadores conscientes devem tratá-la enquanto tal. Por exemplo: ignorar que quem sustenta Maduro é China e Rússia compromete uma política de independência de classe dos trabalhadores na Venezuela.

d) Sobre o partido revolucionário e o leninismo
         Reparamos que os camaradas agem como se a UP já fosse um partido revolucionário. Nós, ao contrário, compreendemos que se trata de uma célula, se caracterizando mais como um grupo de propaganda e intervenção em algumas categorias do que como um partido constituído. Na nossa concepção, um partido revolucionário deve reunir centenas de milhares de indivíduos, o que não é o caso. Nos autoproclamarmos um “partido revolucionário” não nos torna um. Este corte é necessário porque nos coloca com os pés no chão para conseguirmos delinear nossas atividades futuras; caso contrário, cairemos numa forma de autoengano. O grau excessivo de centralização deve ceder mais espaço para uma maior democracia e formação teórica. As propostas políticas de intervenção, propaganda e agitação devem levar esta realidade em consideração.
         A maioria da esquerda entende leninismo como sinônimo exclusivo de centralismo democrático. De fato, este conceito é parte importante do leninismo, mas não é tudo. E pra piorar, em 99% dos casos a “esquerda” o entende e o pratica como centralismo burocrático. Através da sua prática nefasta reforça a propaganda burguesa que associa leninismo a stalinismo.
         Leninismo é, antes de tudo, luta contra o espontaneísmo dos trabalhadores, contra a submissão consciente ou inconsciente dos trabalhadores à política burguesa, a arte das palavras de ordem que vão contraponto, progressiva e irreconciliavelmente, trabalhadores contra a burguesia, sempre levando em consideração a realidade concreta e a correlação de forças. O leninismo é, ainda, o combate sem tréguas à duplicidade e inconsistência da teoria, propaganda e das palavras de ordem vazias levantadas pelo oportunismo e/ou sectarismo. Ser fiel ao verdadeiro leninismo e ao bolchevismo é colocar em primeiro plano o combate a esta cultura nefasta da vanguarda espontaneísta. Nas palavras dele: “... é preciso não esquecer nunca um traço característico de todo o oportunismo contemporâneo, em todo o seu domínio: o seu caráter vago, impreciso, inapreensível. Pela sua própria natureza o oportunismo evita sempre pôr as questões de maneira clara e definida, procura a resultante, arrasta-se como uma cobra entre dois pontos de vista que se excluem mutuamente, procurando ‘estar de acordo’ com um e com outro, reduzindo as suas divergências a ligeiras modificações, a dúvida, a votos piedosos e inocentes, etc”[ii]. Neste trecho está toda a alma do leninismo! O resto é compreensão burocrática ou burguesa do pensamento de Lenin.
         O centralismo democrático é quase um resultado natural de um debate franco entre camaradas. A disciplina livremente contratada a partir da percepção de uma política correta. Zinoviev e Kamenev romperam o centralismo no auge da revolução de 1917. O que fez Lenin? Os chamou de “pequeno-burgueses”, “hippies”, “diletantes” e outras preciosidades do gênero? Não! Quem procede desta forma é o stalinismo. Lenin foi à base do partido explicar pacientemente a diferença concreta entre as duas políticas, de forma duríssima, mas sem nenhum tipo de ataque pessoal ou rótulos. Ameaçou ele próprio a romper com o partido e começar tudo do zero caso aquela política fosse levada em seu nome.
         Que “leninistas” hoje compreendem-no assim? Ao contrário, resumem tudo em um sofisma: Lenin fez uma revolução porque defendia um partido centralizado. Esta conclusão simplória esconde o desejo de controle total, que para Lenin era um meio e não um fim em si mesmo, como o é para o monolitismo stalinista. De toda a riqueza do leninismo os camaradas da UP parecem guardar apenas isso. Lenin foi enfático ao dizer que o partido bolchevique correspondia às condições da Rússia do início do século 20. Isso não quer dizer que podemos prescindir do centralismo democrático, mas que ele precisa ser construído de acordo com as condições concretas, sobretudo do tamanho, organização e inserção do partido, sendo mais o resultado e um meio de organização do que uma imposição formal e burocrática de cima para baixo. É preciso respeitar os diversos níveis de consciência da militância e da massa em geral, para, aí sim, intervir sobre ela.
         Outro ponto importante do leninismo é a teoria revolucionária, que deve ser sempre entendida como um guia prático para as ações cotidianas do que uma repetição formalista dos “mestres”. A formação deve estar a serviço da explicação da vida cotidiana, da intervenção sindical e política; e não para reafirmar dogmas, autoridades ou lugares comuns (isto é, deve libertar mentes e não aprisioná-las). A vida cotidiana também precisa jogar luz sobre a teoria; as boas experiências precisam ser condensadas em teoria. O marxismo é justamente isso: a condensação da experiência prática de mais de 150 anos de movimento operário mundial. Repeti-la como um dogma ou um tantra jamais resolverá qualquer problema real; apenas reforçará concepções burocráticas e autoritárias.
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         Na UP também reparamos que as mulheres não falam. Qual a causa disso? Os camaradas já pararam para refletir? O ponto sobre opressão feminina, que constava na programação da conferência, foi totalmente ignorado e não esteve mais na pauta; tampouco resoluções foram apresentadas. Este silêncio de dois dias das mulheres da UP deve gerar reflexões nos companheiros.
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Uma vanguarda que pretende organizar o partido revolucionário não pode jamais idealizar as massas. Precisa trabalhar sobre ela tal como ela é. Não pode esperar messianicamente levantes que somente poderão ver a luz do dia através de muitas contradições; muito menos embelezar o espontaneísmo, como faz a maior parte da esquerda. Este é o caminho mais curto para a ruína.

III – Divergências práticas:

e) A burocracia é fruto apenas do Estado, dos partidos e dos sindicatos?
         O camarada Alberto apresentou o argumento de que a burocracia sindical e política é o resultado direto e simples da base material dos sindicatos, de um partido, do Estado; e que esta não existe, nem pode existir nas pequenas organizações por falta de base material. De fato o aparato material e econômico é uma base fundamental para as burocracias, cujo principal papel é frear a luta independente dos trabalhadores. Porém, a visão mecanicista do materialismo nos coloca uma viseira. Por isso, perguntamos: a burocracia sindical é apenas questão de dinheiro e aparato? Na nossa avaliação, não! Muito além disso, a burocracia é uma questão de método, de necessidade de poder, de hábitos arraigados na mente humana. Pode surgir, inclusive, em organizações anarquistas, como já fomos testemunhas durante as jornadas de 2013, quando a Federação Anarquista Gaúcha (FAG) burocratizou o funcionamento do Bloco de Lutas pelo Transporte Público no melhor estilo cutista, junto com PSOL e PSTU. A FAG teria uma base material para manter? Viveria de uma base material do Estado? Por que, então, ela agiu daquela forma? Porque a burocracia é uma necessidade premente para qualquer tipo de controle e poder (mesmo nas pequenas organizações); é um método e um modus operandi, sendo inevitável até certo ponto, mas se tornando um monstro quando tida como “natural” ou inexistente.
         Exemplos de germes de burocratismo na UP podem ser vistos em muitos raciocínios apresentados. Quem não concorda com a “linha oficial” é taxado de “pequeno-burguês”, “hippie” ou “diletante”, sem que isso seja explicado detalhadamente; sem ser apresentado fatos concretos ou trechos de textos. Trata-se de um método nefasto de controle. Nos causou profunda preocupação a forma como o camarada Alberto exerce hegemonia sobre a organização. A sua exigência de disciplina torna-se um fardo desprovido de conteúdo, bem nos moldes do que conhecemos no PSTU e no MRS. Não trabalha para o crescimento individual dentro da coletividade, nem para a auto gestão da própria organização, mas para imprimir o ritmo de um indivíduo sobre o coletivo, resultando num movimentismo bárbaro.
         Reconhecemos a importância de uma direção. Mas os camaradas vão por um caminho equivocado, que não pode redundar em outro desfecho que não numa variante de stalinismo. Isto é apenas um alerta. O curso dos acontecimentos pode ser modificado desde que compreendido a fundo (isto é, se não tivermos desaprendido a aprender, como dizia Rosa). O contraponto ao burocratismo não está no caos do grupo de amigos, nem na diletância ou no descaso com os encaminhamentos; mas no debate democrático, com tarefas livremente debatidas e assumidas, evitando ataques pessoais ou rótulos entre camaradas, e visando sempre o crescimento individual dentro da coletividade (não a dissolução do primeiro na última); está também na formação teórica permanente. Em síntese: deve ser o debate do que se entende por política revolucionária versus a política equivocada. Jamais exigir a disciplina por disciplina, que redunda num mal estar (tal como um ambiente de fábrica, onde se exerce toda a tirania do capital) que acaba sendo usado como forma de “disciplinar” companheiros.
         Outro exemplo de burocratismo é exigir que um ponto se atenha a sua proposta de debate (o que é correto), mas nos encaminhamentos responder polêmicas que foram levantadas antes, falando livremente sem nenhum tipo de controle (enquanto se cobra o tempo de outros camaradas). Exige-se uma postura dos companheiros e se executa sutilmente outra. Lembremos que o stalinismo acusou o trotskismo de ser um “desvio pequeno burguês” sem conseguir sustentar uma única vírgula do porquê de tal caracterização. Uma postura burocrática também se reconhece através da caricaturização das posições dos oponentes. Por exemplo: discordar das opiniões de que não teremos um colapso do capitalismo ou da palavra de ordem “Fora Bolsonaro” é, segundo foi dito, achar que os trabalhadores não vão se mobilizar “pelos próximos 5 mil anos”. São conclusões colocadas na boca do oponente justamente porque discordamos dele, e não decorrências lógicas da sua argumentação. Proceder desta forma desonesta abre toda a margem para o controle e o poder autoritário. Aí estão germes perigosos do burocratismo.

f) Como entendemos frente única?
         Os camaradas da UP entendem frente única como uma forma de centralização e criação de organismos e programas comuns. Isso demonstra que frente única não é vista como “acordos práticos para ações de massas”, mas tal como o morenismo as preconizava: unidades programáticas e frentes permanentes. Não existe centralismo democrático em uma frente, e ela deve se pautar por ações concretas em categorias ou movimentos sociais, jamais num organismo permanente que, além de desenvolver um inviável programa comum, asfixie correntes menores ou ativistas independentes.
         Novamente temos argumentações burocráticas: não concordar com determinadas políticas (por exemplo: “educação pública, gratuita e de qualidade” como eixo central, já que até a CUT e a CNTE defendem isso) é “se entrincheirar localmente e ser contra um trabalho nacional”. Logo, temos uma clara tentativa de centralizar pela força, substituindo o debate honesto e franco de divergências que devem se resolver pela experiência prática de uma intervenção conjunta na luta de classes.
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         Outro problema grave dos documentos da UP no que diz respeito às frentes é a margem aberta à participação nas frentes populares, o que é um grande problema. Nas teses dos Eixos Programáticos da União Proletária podemos ler: “Neste momento, não há organizações que nos permitam realizar o entrismo orientado por Trotsky. Mas poderão aparecer no próximo período à luz do ascenso de massas. Isso impõe a necessidade de fortalecer a política revolucionária de independência de todos os setores da burguesia, de não rebaixar a nossa política”.
         Primeiramente é importante salientar que o entrismo preconizado por Trotsky era pontual e rápido; específico de uma conjuntura onde o destino da URSS e de muitos processos revolucionários na Europa estava em jogo. Isto não existe mais! Tampouco preconizou entrismo em “frentes populares genéricas”, mas em partidos muito bem caracterizados. Este trecho, portanto, não está apenas contra o trotskismo, que condenava veementemente qualquer participação nas frentes populares, mas contra a própria caracterização dos camaradas que afirmam que haverá um colapso do capitalismo no próximo período, a destruição da burocracia sindical e a falência total do lulismo ou de qualquer outra frente popular que possa manter o capitalismo. Se, como nos dizem os camaradas, não haverá força capaz de deter o futuro ascenso de massas, tal como os coletes amarelos “brasileiros”, por que, então, abrir tal precedente? Tudo isso soa, no mínimo, estranho.
         No Programa de Transição, reivindicado pela UP, lemos: “A IV Internacional não tem lugar em nenhuma Frente Popular”. No seu livro, Aonde vai a França, Trotsky escreve: “Nem ‘programas’ comuns, nem organismos permanentes, nem renúncia a criticar os aliados circunstanciais. Este tipo de acordos e compromissos episódicos, estritamente limitados a objetivos precisos – os únicos que Lenin tomava em consideração – nada tinham em comum com a Frente Popular, que representa um conglomerado de organizações heterogêneas, uma aliança duradoura de classes diferentes ligadas para todo um período – e que período! – por uma política e um programa em comum: por uma política de ostentação, de declamação e de poeira nos olhos. (...) A política de Frente Popular é uma política de traição. A regra do bolchevismo, no que se referia aos blocos, era a seguinte: marchar separados, vencer juntos! A regra atual da Internacional Comunista é: marchar juntos para ser derrotado separadamente”.
         Ao que tudo indica, os camaradas estão dispostos a cometer este erro em relação às frentes em defesa da Venezuela. Não devemos criar nenhum organismo permanente com organizações oportunistas e burocráticas. Devemos, na contramão disso, relembrar as questões básicas levantadas pelo trotskismo sobre frente única: “combinação apenas nisto: como combater, quem combater e quando combater”[iii]. Trocando em miúdos: atos e manifestos em defesa da Venezuela contra a intervenção imperialista, seja com quem for, mas mantendo a nossa própria política e programa, é correto segundo a perspectiva trotskista; fóruns e frentes permanentes, ao contrário, são equívocos que facilmente podem se transformar em traições.

g) Sobre a não participação e disputa eleitoral nos sindicatos reacionários
         Não há dúvida de que a esmagadora maioria dos sindicatos brasileiros são profundamente reacionários. A burocracia sindical é a sua excrescência inevitável. A conclusão do camarada Alberto, no entanto, é fabulosa: ele deu a entender nas suas falas, em diversos momentos, que seria contra disputar o aparato sindical, referindo-se especificamente à disputa eleitoral algumas vezes, mas em outras, dando a entender que se tratava de todos os momentos (tal como se fosse perda de tempo). A política do camarada peca pelo esquerdismo, já bem analisado por Lenin: não devemos ser contra disputar o aparato sindical e as suas eleições, mas se preocupar com que método e política fazemos isso. Mais do que isso: não há como derrotar a burocracia sindical sem participar ativamente dos sindicatos reacionários.
         Lenin disse: “Podemos (e devemos) empreender a construção do socialismo não com um material humano fantástico, nem especialmente criado por nós, mas com o que nos foi deixado de herança pelo capitalismo. Não é necessário dizer que isso é muito ‘difícil’; mas, qualquer outro modo de abordar o problema é tão pouco sério que não deve nem ser mencionado”[iv]. Apesar de dizer que os sindicatos são importantíssimos e que devem se tornar “escolas de comunismo”, Lenin também reconhece que eles “começaram a manifestar inevitavelmente certos aspectos reacionários, certa estreiteza corporativa, certa tendência ao apoliticismo, certo espírito de rotina, etc”[v].
Mas Lenin, lá do longínquo ano de 1920, alerta: “temer esse ‘espírito reacionário’, tentar prescindir dele, ignorá-lo, é uma grande tolice, pois equivale a temer o papel de vanguarda do proletariado que consiste em instruir, ilustrar, educar, atrair para uma vida nova as camadas e as massas mais atrasadas da classe operária e do campesinato”. E conclui: “é preciso travar essa luta implacavelmente e mantê-la obrigatoriamente, como nós temos feito, até desmoralizar e expulsar dos sindicatos todos os chefes incorrigíveis do oportunismo. É impossível conquistar o poder político (e não se deve nem pensar em tomar o poder político) enquanto essa luta não tiver atingido certo grau. Por isso, deduzir “do caráter reacionário e contrarrevolucionário das cúpulas dos sindicatos que é necessário... sair dos sindicatos! Renunciar ao trabalho neles! Criar novas formas de organização operária, inventadas! Uma estupidez tão imperdoável, que equivale ao imenso serviço que os comunistas prestam à burguesia”[vi]; pois “a tarefa dos comunistas consiste em saber convencer os elementos atrasados, saber atuar entre eles, e não em isolar-se deles com palavras de ordem inventadas em nossa cabeça e infantilmente ‘esquerdistas’”[vii].
         Não é preciso acrescentar mais nada; exceto o fato dos companheiros terem ignorado solenemente o nosso material de propaganda sindical, totalmente alicerçado no espírito descrito por Lenin, nada economicista ou defensor de “entricheiramento local”, como insistentemente tentam nos taxar. É esta política sindical que apresentamos aos camaradas da UP para combater a burocracia sindical no Brasil e no mundo todo; e não apenas a “defesa de uma educação pública, gratuita, inclusiva e de qualidade”.

h) Sobre a arte das palavras de ordem
         Maiakovski já se lamentava em 1924, suplicando: “tempo, solta de novo ao vento as palavras de ordem de Lenin”. Até hoje a esquerda não aprendeu o seu método. O reivindica com um formalismo assustador. As palavras de ordem da esquerda brasileira quando não são abertamente oportunistas e degeneradas, são “infantilmente inventadas”.
O caso atual é o “Fora Bolsonaro”, que é levantado entusiasticamente pelo PCO, mas tende a se alastrar por toda a “esquerda”, como já é praxe, pois sabemos que ela adora radicalismos estéreis para esconder sua crise e o seu seguidismo. Do ponto de vista da propaganda do socialismo estaria correto debatermos com os trabalhadores a necessidade de tirarmos Bolsonaro pelas nossas mãos através da luta e de uma revolução. Mas não é assim que o PCO e a esquerda compreendem esta palavra de ordem, pois a tratam como uma tarefa de agitação para ser concretizada agora.
Devemos perguntar então: quem tem forças hoje para colocar Bolsonaro pra fora? A UP, uma célula de partido revolucionário? O PT, que foi deposto vergonhosamente pelos aliados de ontem? A CUT, que sabota qualquer luta independente? O PCO?
O “Fora Bolsonaro” como forma de agitação significa, concretamente, trabalhar para que o vice assuma (tal como aconteceu com Dilma a nível federal) ou desgastar o governo eleitoralmente para que algum outro partido assuma o governo. Nesse caso, sabemos, nada mudaria. Num linguajar direto: o “Fora Bolsonaro” significa hoje “Viva Mourão!”. Ou os camaradas acham que por um evolucionismo vulgar a palavra de ordem “Fora Bolsonaro”, como que por um passe de mágica, irá crescendo numa maré montante conforme os nossos desejos e fará o governo cair? Quais condições existem hoje para um governo alternativo? Não seria isso uma demonstração de impaciência (ou até mesmo de desespero)?
Tergiversar acrescentando “Fora Bolsonaro e os militares” não resolve em nada a questão, apenas cria um novo disparate. A lógica leninista nos diria que, como ainda não temos condições de “botá-los para fora”, devemos nos centrar nas palavras de ordem de acumulação de forças, de desgaste do governo do ponto de vista revolucionário e não eleitoral. O método marxista, para avançar a luta, a consciência e a organização dos trabalhadores, consiste, como apontou Lênin, em preconizar ativamente, sublinhar e colocar em primeiro plano consignas que criem progressivamente uma cunha entre a política dos trabalhadores e a política da burguesia; sempre observando a correlação de forças e não tirando coelhos da cartola.
No livro Duas táticas da social-democracia na revolução democrática, Lenin fala sobre o formalismo da palavra de ordem da Assembleia Constituinte. Mesmo que não seja o mesmo caso, o método apresentado neste livro serve perfeitamente pra elucidar o que afirmamos sobre o “Fora Bolsonaro”: “Para a instauração da república é absolutamente necessária uma assembleia de representantes do povo, que deve ser necessariamente de todo o povo (na base do sufrágio universal, igual, direto e secreto) e constituinte. É isso que, mais adiante, reconhece a resolução do congresso. Mas não se limita a isso. Para estabelecer uma nova ordem de coisas que 'traduza efetivamente a vontade do povo' não basta que se dê à assembleia representativa a denominação de constituinte. É preciso que esta assembleia tenha poder e força para 'constituir'. Consciente disso, a resolução do congresso não se limita à palavra de ordem formal de 'assembleia constituinte', mas acrescenta as condições materiais sem as quais não será possível à referida assembleia o cumprimento da sua missão. Indicar as condições em que a assembleia constituinte nominal pode transformar-se em assembleia constituinte efetiva é de uma necessidade imperiosa, já que a burguesia liberal, personificada no partido monárquico-constitucionalista, deturpa deliberadamente, como já indicamos por mais de uma vez, a palavra de ordem de assembleia constituinte de todo o povo, reduzindo-a a uma frase oca”[viii].
Talvez os camaradas dirão que “somos pequeno-burgueses e que defendemos que os trabalhadores não se mobilizarão pelos próximos 5 mil anos, que somos derrotistas” e outras tantas palavras elogiosas. Nesse caso, farão muito melhor em dialogar com Lenin diretamente na fonte. Movimentismo e impaciência estão na contramão do leninismo. Nunca fizeram milagres e jamais farão.
Tão ilusória e descolada da realidade quanto o “Fora este ou aquele” é a agitação permanente da “esquerda” sobre “greve geral”. Este delírio de uma noite de verão vai da burocracia sindical cutista até a LBI, passando por correntes do PT, PCB, PSTU, PSOL, PCO et caterva. Transformam a “greve geral” numa panaceia (sem falar nas farsas de “greves gerais” de 2 ou 3 dias). Não querem ver que quanto mais se clama por “greve geral” mais longe dela ficamos. O primeiro dever de um leninista, antes do discurso burocrático padrão sobre centralismo democrático e a subsequente verborragia pró-disciplina bolchevique, é combater qualquer política deslocada da realidade, seja de “greve geral”, de “Fora este ou aquele” sem correlação de forças ou qualquer outra.
Rosa Luxemburgo, assim como Lenin, sabia concretizar uma política revolucionária. Diz ela: “A revolução russa nos ensina que a greve de massas não é nem ‘fabricada’ artificialmente nem decidida ou ‘propagada’ num espaço imaterial e abstrato, senão que representa um fenômeno histórico (...). É tão impossível ‘propagar’ a greve de massas como meio abstrato de luta como ‘propagar’ a revolução. (...) Empreender uma propaganda em regra em favor da greve de massas como forma de ação proletária, querer estender essa ‘idéia’ para ganhar pouco a pouco a classe operária seria uma ocupação tão ociosa, tão vã e insípida como empreender uma campanha de propaganda pela ideia da revolução ou do combate de barricadas”[ix].
Nós não levantamos abstrações como palavras de ordem: nem “greve geral” sem condições, nem “Fora este ou aquele” sem correlação de forças e poder proletário alternativo. Todas estas abstrações são contraproducentes e servem perfeitamente pra esconder um oportunismo vergonhoso desta “esquerda” na vida cotidiana.
Sabemos que os camaradas defendem o “Fora Bolsonaro”, o que, para nós, é um erro. E em relação à palavra de ordem permanente de “rumo à greve geral”, qual é a posição da UP?

IV – Conclusões:

         A Iª conferência da UP foi instrutiva e formativa para nós. Agradecemos o convite, apesar de fazermos um balanço negativo dela. Como ficou visível ao longo deste texto, temos muitas divergências políticas, que são grandes e profundas. Não se pode tapar o sol com a peneira e nem este é o nosso método!
Mesmo assim, manter uma tribuna de debates aberta e intervenções práticas onde for possível, respeitando-se rigorosamente a independência de cada organização, é um desafio que propomos aos camaradas. A troca de informação, de opinião e de críticas numa conjunta como a atual é de fundamental importância, sem tentativas de centralização forçada, mas de trocas fraternas de solidariedade, informações, produções teóricas, etc. A luta de classes é um divisor de águas e o critério da verdade: mesmo havendo divergências profundas hoje, se houver sinceridade de ambos os lados, a realidade resolve sem imposições e controles burocráticos.
A dureza das nossas palavras é diretamente proporcional a nossa sinceridade. Esperamos que pontuar todas estas divergências tenha sido produtivo para gerar reflexões e mudanças de posturas com vistas à superar a crise de direção revolucionária.

Com nossas melhores saudações revolucionárias
Eduardo Cambará
Em 13 de março de 2019

CITAÇÕES



[i] TROTSKY, Leon. Aonde vai a França?
[ii] LENIN, Vladmir. Um passo em frente e dois passos atrás: a crise no nosso partido.
[iii] TROTSKY, Leon. Revolução e contra-revolução na Alemanha.
[iv] LENIN, Vladmir. Esquerdismo, doença infantil do comunismo.
[v] Idem.
[vi] Idem.
[vii] Idem (itálico no original e negritos nossos).
[viii] LENIN, Vladmir. Duas táticas da social-democracia na revolução democrática (negritos nossos).
[ix] LUXEMBURGO, Rosa. Greve de massas, partido e sindicatos.