À companheira Mariana Veloso:
O livro que tu me
emprestou é bastante interessante e atual, embora com uma visão burguesa do
autor, conforme vocês já tinham me alertado. Essa visão é um limitador, ainda que
não o impeça de dar boas contribuições.
Dentre essas eu
chamaria a atenção para a vinculação que ele faz entre a eleição de Trump nos
EUA e o Brexit na Inglaterra, demonstrando que são duas faces
de um mesmo fenômeno. Seriam parte daquilo que chamamos de
"neofascismo", embora o autor não chegue nem perto da utilização
desse termo. Ambas campanhas estão se baseando nas fake news e
na utilização do emocional da população. Um dos pontos altos do livro é
exatamente esse, a demonstração de como a "verdade sai e a emoção
entra". Ou seja, como tem sido comum a utilização da emoção das
pessoas como forma de manipulação política. Nesse sentido casa muito bem
com o que será apresentado em a psicologia de massas do fascismo de Wilhelm
Reich. Hoje, essa psicologia conta com o apoio importantíssimo da internet e
das redes sociais, o que é satisfatoriamente observado no livro.
Uma grande
conclusão do autor, que pode ser comparada ao que dirá Reich sobre o fascismo
alemão, é que "Trump não recorreu a dados verificáveis, mas a
ressentimentos e medos; aquilo que os gurus de negócios chamam de 'marketing da
inadequação'". Assim, conseguiram manipular a população, não sem o
apoio de espionagem das redes sociais através de marketeiros, como Steve
Bannon, para conseguir construir esta nefasta obra de ódio. Na verdade esta
"manipulação" é parcial. A psicologia de massas nos diz que uma parte
dela é fruto da aceitação passiva das próprias pessoas, como o autor
reconhece: "o que acontece de novo não é a desonestidade e a
falsidade dos políticos, mas a resposta do público em relação a isso".
Frente a crise e ao desespero, os trabalhadores e o povo em geral não avançaram
um milimetro em direção à esquerda, mas abraçaram o primeiro charlatão que se
vendeu como "solução", seja Trump nos EUA, Bolsonaro aqui ou o Brexit na
Inglaterra.
A "teoria da
conspiração" é amplamente utilizada por estes "ideólogos", que
sabem bem manipulá-la. Há nos seres humanos uma propensão a crer nisso, no
sentido de fugir de suas responsabilidades sociais e a preferência por
"acreditar" em uma grande conspiração de seres malignos, sejam eles
quem for. Há certa correspondência disso com a crise dos sindicatos. Parte da
base da nossa categoria (o magistério estadual), por exemplo, prefere atribuir
todos os problemas dos sindicatos à participação dos partidos na sua direção.
Assim, fazem como o avestruz, enfiando a cabeça na terra e tudo estaria
resolvido ("me chamem só quando isso acabar", sem apontar pra sua
própria responsabilidade nisso; ou seja, acreditar em conspirações secretas é
um tanto conveniente para eles). É certo que os partidos burgueses e
reformistas destroem os sindicatos, mas isso não explica tudo e tampouco
resolve o problema ao se ignorar os sindicatos virando as costas. As
conspirações secretas seriam forças ocultas e místicas contra as quais
"não se pode fazer nada".
Outro ponto
importante tocado pelo autor, e que tem parentesco com o debate do neofascismo,
é o forte antiintelectualismo, ou seja: a negação dos fatos, das evidências e,
em última análise, da própria ciência. Esta é uma característica presente tanto
em Trump, Bolsonaro, Olavo de Carvalho, quanto no discurso dos ideólogos
do Brexit. Porém, o autor atribui o pós-modernismo – que ele
insinua servir de base a esse antiintelectualismo – à esquerda. Ou seja: a
esquerda teria desencadeado o pós-modernismo, o que é um absurdo gritante e uma
distorção. Todos nós sabemos que foi a burguesia e seus elementos de direita
nas universidades, na mídia, etc., que sustentaram o pós-modernismo, que nega a
matéria, a existência das classes, a relatividade da verdade. É o
pós-modernismo a base da "auto-verdade" e a da
"pós-verdade", se é que podemos sustentar esse termo estranho, que
ignora toda a base material e econômica da sociedade.
Aqui o autor começa
as suas distorções, porque é, como se disse no início, um autor burguês. Além
de igualar "marxismo e o fascismo" (tal como faz Bolsonaro por outros
meios), desenvolve um longo tratado contra as "ditaduras socialistas"
(que sabemos bem se tratar do stalinismo). Eis um ponto alto de suas
preocupações: ao combater as supostas "pós-verdades", quer evitar que
se descambe para um caminho anti capitalista e socialista. Ele cuida isso com
muito esmero. Não faz qualquer vinculação entre a "pós-verdade" e a
decadência do capitalismo. É claro, como autor burguês não pode se denunciar a
si mesmo, mas, justamente por isso, é como se faltasse um grande pedaço da
realidade, como se a mutilasse e a tentasse preservar de alguma forma. Assim,
não é capaz de tirar as maiores conclusões: a sua "luta contra a
pós-verdade" é incoerente, inconsequente e, por que não, insossa?
O que vivemos, na
minha opinião, é que a suposta "pós-verdade", fake news,
antiintelectualismo, etc, é a expressão no mundo das ideias (ou superestrutura
no linguajar marxista) da decadência econômica, social e política do
capitalismo. Não é possível sustentar tamanhas distorções sociais, visíveis a
olho nu, com mendigos, prostitutas, assaltantes, mortos-de-fome de todas as
espécies, de um lado; e milionários, bilionários, ricos e indiferentes, do
outro; sem apelar para a negação cabal da realidade. Tudo isso são
consequências do pós-modernismo desenfreado ensinado nas universidades,
impresso pelas grandes editoras e divulgados na grande mídia. Matthew D'ancona,
como jornalista burguês que é, jamais vai admitir isso, recorrendo à
"pós-verdade" que critica. Prefere criticar o marxismo, igualá-lo ao
fascismo, atacar as "ditaduras comunistas", do que reconhecer um fato
tão elementar; qual seja: que a decadência do capitalismo acirrou a disseminação
da "pós-verdade" e das fake news, que já existiam na
grande mídia comercial, nas universidades burguesas, nas grandes editoras, mas
que estava relativamente restritas e controladas. Ou seja, o feitiço virou
contra o feiticeiro: as ideologias burguesas tão utilizadas nos períodos
"democráticos", agora estão sendo levadas às últimas consequências
pelo neofascismo, o que se volta, inclusive, contra setores da mídia comercial,
das universidades e dos próprios partidos burgueses.
Apesar dessas
falhas que, na minha opinião, comprometem toda a obra, há uma parte que afirma
que pra combatermos e superarmos a narrativa da "pós-verdade",
precisamos nos adaptar "com disciplina rígida às circunstâncias em
que nos encontramos. Isso é menos óbvio do que parece. Há um instinto poderoso
para restabelecer aquilo que é perdido ou foi posto em risco, para reafirmar
o status quo anterior". Pode parecer singelo e dúbio,
mas se manter firmes frente a essa campanha enlouquecedora de mentiras de todos
lados (principalmente do governo) é a nossa principal tarefa, não ceder, não
desistir, não enfiar a cabeça na terra como o avestruz. A esquerda e os
sindicatos não cumprem essa tarefa mínima. Os ativistas destes setores se
entregam ou conciliam na primeira dificuldade. E é sabendo dessa resistência
gelatinosa que a direita e muitos dos seus ideólogos avançam. A nossa
resistência ao fascismo hoje, mais que militar, é moral, intelectual,
emocional. Esta singela conclusão é de grande valia!
É evidente que uma das
conclusões que salta aos olhos é a necessidade de se lutar contra o
capitalismo, fato que está definitivamente fora das pretensões do D'ancona; e,
no que depender dele, será combatido. Outra conclusão importante, que não é
tirada pelo nosso autor, destituído de qualidades socialistas, é que se a
"pós-verdade" sempre existiu de uma forma ou de outra, bem como
as fake news, então o que resta é a evidência de que se trata
principalmente de "manipulação dos sentimentos e das emoções" como
forma de dominação de classe. Isso está em perfeita sintonia com muitas das
conclusões de Wilhelm Reich acerca da psicologia de massas do fascismo. E as
emoções, que se constituem numa grande porta aberta para a dominação e a manipulação
de classe, nos aponta a necessidade de desenvolver técnicas de luta e de
denúncia contra isso.
Esta "grande
conclusão", contudo, ainda não tem resposta. Esperamos que se possa
debater entre a esquerda brasileira como superar este problema. Penso que
qualquer coisa muito distante disso nos faz andar em círculos e
"brincar" de guerra civil espanhola.
Sem mais, desculpe
pelo texto longo, espero que tenha ajudado de alguma forma.
Saudações revolucionárias e
antifascistas!
Eduardo Cambará