terça-feira, 29 de maio de 2018

A importância da série "Thirteen reasons why"

Em memória da aluna do 2º ano do Ensino Médio da
 Escola Estadual Alcides Cunha que se suicidou recentemente

A série norte-americana Thirteen reasons why (13 razões porquê), disponível na Netflix, aborda de forma profunda um tema que ainda é tratado como tabu: o suicídio. O pior caminho é não tocar num grave problema social, pois se queremos entender os "porquês" e evitar que se repitam, teremos que debatê-los. Nesse sentido, o tema trazido pela série é muito relevante. Ela conta a história do suicídio de Hannah Baker, uma jovem estudante, que vivia numa pequena cidadezinha do interior da Califórnia, extremamente sádica e conservadora.
Hannah era um protótipo de pessoa que vivia a vida viva, se aproximando das pessoas sem segundas intenções ou preconceitos. Buscava vivenciar suas experiências de vida sem fazer mal aos outros. Por possuir este caráter viçoso, Hannah se chocou com a moral social vigente, retrógrada e conservadora. Sofreu ataques de diversos tipos e, sobretudo, o bullying escolar (uma praga que definitivamente precisamos cortar pela raiz), sobretudo o resultante da moral machista. Procurou consolo e ajuda como sempre acontece, de forma silenciosa e confusa. Não a encontrou! Os dias de hoje são muito corridos e agitados. Mal temos tempo de lidar com o nosso próprio sofrimento (quando este não é totalmente tragado pelo trabalho alienado), que dirá perceber o sofrimento alheio?
Hannah se matou, assim como tantas outras hannahs mundo afora! Mesmo tentando negar, percebo que todos nós carregamos uma parcela de culpa nisso tudo. Por não procurarmos estabelecermos pontes entre nós; por fugirmos uns dos outros no auge de nossa cegueira; por acharmos que um dia difícil nos permite a omissão; por vermos todos os dias nossa humanidade escorrendo pela latrina e, na maioria dos casos, aceitando tudo isso apaticamente, vestindo, de uma forma ou outra, o véu do conformismo e da hipocrisia social. Vamos nos suicidando e vendo outros se suicidarem aos pouquinhos todos os dias, sem quebrar pelo meio a moral, os formalismos, a rotina!
O suicídio não é apenas um "suicídio", mas um assassinato social. Hannah foi morta pelo "estilo de vida norte-americano", onde não há espaço para "perdedores" ou pessoas "autônomas". Uma sociedade marcada pelo culto da meritocracia (que na verdade não é nada meritocrática, mas idiocrática, impositivitocrática, aristocrática moderna) gera exclusões, rótulos, hipocrisias, mentiras sociais. Se impõe a asfixia da verdade, o seu assassinato diário, a ditadura do silêncio para a vida viva! Quem devia ser punido é eleito como modelo a ser seguido! O vazio existencial é transformado em ódio incontido, e transborda pelos poros os resquícios do fascismo, enrustido e capciosamente cultivado pelo "estilo de vida norte-americano".
Hannah foi estuprada. Desde esta selvageria, aceita como "normal", declarou-se morta! Hannah foi menos estuprada e menos morta por quem justificou este barbarismo contra ela afirmando que "ela queria", ou que ela seria uma "vagabunda"? Ou por um estilo de vida que coloca a mulher numa condição subalterna ao homem, fadada a ser cheerleader e a amar o capitão do time de futebol americano? E quanto ao personagem nerd, excluído, perdedor, destinado pelo regime social norte-americano a ser um arremedo de ser humano, sistematicamente violentado e estuprado por não conseguir ser reconhecido, por lhe negarem a verdade e o direito de dizer a verdade? A série também mostra o lado dramaticamente humano dos atiradores de escola dos EUA. Educados a amar o militarismo, as armas, as guerras, os jogos de guerras, a serem fortes, a usarem armas e não o amor, o trabalho e a sabedoria. O que poderia resultar disso tudo, senão o suicídio em massa dos que não se adaptam a esta barbárie sádica civilizada?
A segunda temporada, que é melhor do que a primeira, ainda tem o grande mérito de demonstrar que a justiça está corrompida e comprada pelos mais ricos, geralmente pelos manipuladores e beneficiários do "estilo de vida norte-americano", os homens, brancos, hetero-estupradores, empresários e "bem sucedidos" graças a exploração alheia. A justiça, totalmente amparada pelo formalismo e pela hipocrisia social, está trabalhando para eles diariamente. A eles a impunidade é um direito moral e constitucional, garantido pela dólarcracia.
Há, no entanto, uma resistência nos produtores da série em demonstrar a ligação de tudo isso com o sistema capitalista, que gera todas estas mazelas sociais, em especial a moral decadente e autoritária que estamos submetidos diariamente. Apesar desta omissão, a série tem o mérito de tocar em todas estas feridas (que são escondidas atrás de tabus sociais e religiosos) e de lutar, mesmo que não declaradamente, contra a barbárie civilizada do regime social de Trump e do Partido Republicano. Enquanto arte, tem o direito de ser livre de menções políticas ou econômicas diretas, embora seus atores, escritores e produtores, nas suas ações e declarações públicas fora da série, não o tenham.

PS: no Brasil o nosso bullying não é exatamente como o norte-americano, embora não seja menos nefasto. Não sei os porquês de minha aluna ter cometido suicídio (apesar de ser muito doloroso, gostaria de saber), mas me sinto triste e mal por não ter podido ajudá-la, por ver uma vida jovem e cheia de promessas se perder por alguma insuficiência social e, também, da minha parte. Ou começamos a nos ajudar, a colocar o amor, o trabalho e a sabedoria em primeiro lugar, ou a barbárie social e a desumanidade como regime político interromperá vidas jovens e adultas, procurando tratar tudo isso como casos individuais e não sociais.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

A história da humanidade é, também, a história da busca pelo sexo

A história da humanidade é a história da luta de classes; portanto, a evolução social é determinada a partir de conflitos materiais entre as classes e, destas, com a natureza. Tudo isso foi proclamado por K. Marx e F. Engels a mais de 150 anos.
Contudo, há que se acrescentar que a história humana é, também (e não menos importante), a história da busca pelo sexo, da dominação sexual e do estupro. Desde a conquista do maior número de parceiras e descendentes, traições conjugais, passando pela imposição do patriarcado, até os estupros legalizados nas invasões militares, bem como a imposições de casamentos arranjados ou não.
A dominação econômica não possui também a finalidade de dominação sexual? A orgia dos antigos reis, o harém dos sheiks árabes, a tentativa de impressionar a partir de posses materiais como carros, mansões, ostentações não tem nada a nos dizer do ponto de vista subjetivo?
O caso mais simbólico de tudo isso, contudo, foi certamente o episódio da história romana conhecida como "O rapto das Sabinas". Ela nos conta que o Rei Rômulo (ou talvez Numa Pompílio), vendo a baixa população feminina da cidade de Roma, procurou negociar com o rei sabino casamentos entre romanos e sabinas. Os homens sabinos, contudo, protestaram veementemente, o que levou o rei sabino a negar a oferta romana.
O rei de Roma, então, com a desculpa de uma cerimônia religiosa aos deuses, convidou os sabinos, preparando uma ardilosa armadilha. Durante o evento, os soldados romanos "raptaram" as sabinas, obrigando-as, posteriormente, a se casarem com cidadãos romanos. O historiador antigo, Tito Lívio, nega ter havido abuso sexual, mas hoje é impossível imaginar uma ação social tão traiçoeira como esta sem que tenha sido "legalizado" algum tipo de estupro sobre as sabinas, bem como o assassinato dos homens sabinos (que certamente devem ter resistido ao sequestro de suas mulheres e filhas). Tanto é assim que em inglês o episódio é conhecido como The rape of the sabines (isto é, "o estupro das sabinas").
Na Idade Média o rapto das sabinas se tornou o "direito" de Prima Noctes dos senhores feudais sobre as servas na primeira noite após o seu casamento. As invasões bárbaras, as conquistas militares, as guerras certamente possibilitaram outros tantos estupros e casos de opressão sexual.




Onde fica o amor livremente contraído na história? Acaso ele não teria existido? Certamente que sim, embora os episódios tão nefastos como estes deixem claro que ao lado das questões econômicas, fortes fatores sexuais influenciaram a conduta humana (subjetiva), tanto quanto a cobiça econômica (objetiva). A história também é marcada pela luta contra as opressões morais, sobretudo as de caráter sexual. A principal luta atual se dá contra a opressão patriarcal e os seus inúmeros resquícios medievais locais e regionais.

Post-Scriptum:
As relações sexuais entre os seres humanos (sobretudo na pré-história) não devem ter sido civilizadas; isto é: o estupro devia ser uma prática cotidiana e recorrente. Basta olhar uma matilha de cães e a forma como tratam uma fêmea no cio. Os humanos pré-histórico deviam reproduzir práticas semelhantes, que não foram prontamente superadas com o início das civilizações antigas e mesmo na Idade Média. Hoje em dia, apesar de todo o discurso civilizatório (sobretudo no Ocidente) percebemos os resquícios do estupro nas relações sexuais, que ainda estão longe de serem totalmente superadas. As relações mais humanas que precisam ser criadas no campo econômico, também precisam se estender ao campo das relações sexuais humanas.



segunda-feira, 21 de maio de 2018

Sobre a educação sexual

Um dos desenhos que mais se repetem em classes, cadeiras, paredes e portas nas escolas que trabalhei é de pênis. Isto tem me intrigado muito nos últimos dias. A primeira reação é sempre a de reprimir e exigir responsáveis. Mas acredito que quanto mais se repreender este tipo de manifestação, sem compreender suas raízes, mais eles se reproduzirão e se multiplicarão.

Ainda não encontrei uma explicação satisfatória para o fenômeno. Provavelmente não tenha uma, mas várias. Comecei por esboçar uns rabiscos no qual, em um dado momento, me vi escrevendo sobre a questão dos "desenhos obscenos". Este é certamente o primeiro erro. Por que obscenos? Por que tratar uma parte do corpo humano como obsceno e anti-natural? Seriam nossos órgãos genitais e o ato sexual assuntos que merecem censura, silêncio ou repressão?

A questão a ser levantada é: por que se repetem tanto? O que querem dizer? Eu consegui formular algumas respostas, mas espero que os colegas educadores ajudem a desvendar esta esfinge:

1 - Seria uma forma de quebrar o silêncio sobre um tema que é tabu na escola e na sociedade (justamente um dos assuntos mais importante para adolescentes e para seres humanos no geral - ou pelo menos deveria ser);
2 - Forçar um debate, mesmo que ele seja feito de maneira equivocada (afinal de contas são adolescentes e não possuem uma estratégia para debater ou uma reflexão profunda), sobre educação sexual, sobre a busca pelo prazer;
3 - Representaria uma forma de rebeldia da idade, que pretende chocar os padrões morais, atingir autoridades (pais, professores, sociedade).
4 - A repressão pura e simples jamais irá acabar com este tipo de "vandalismo" nas classes e paredes escolares. Apenas o debate construtivo, a introdução de temas de educação sexual sem nenhum tipo de moralismo ou concepções pedagógicas mecanicistas poderão (eu acredito) fazer com que diminua este tipo de "manifestação" até a sua extinção completa. Tudo isso se dará na exata medida em que o tema deixar de ser um tabu tratado como "obsceno".
***
Muito se tem falado sobre a escola não corresponder aos interesses dos jovens de hoje. Quem fala isso tem toda a razão, porém, propõe políticas públicas que continuam fora dos seus interesses. A escola omite um dos principais assuntos da vida humana: o sexo!

Isso não significa propor um debate meramente mecânico-biológico, de orientações utilitaristas (usem camisinha, tomem pílula, planejem a gravidez, como evitar DST, etc, etc, etc). Tudo isso é importante, mas não chega nem perto do problema. Também não se trata de propor um debate "pornográfico", desprovido de reflexões críticas e amoral. Há que se estabelecer uma nova forma de moral. Não a moral ultrapassada e decadente das religiões patriarcais, mas uma moral natural, que respeite a vida viva e as suas verdadeiras emoções.

Algo em nós se opõe à possibilidade de um debate público sobre esse tópico. Este "algo" é, segundo Reich, precisamente a peste emocional social, que luta constantemente para preservar a si mesma e a suas instituições. O resultado é o crescimento do sadismo fascista e da neurose de massas, que tomam formas em nefastas couraças anti-naturais que cristalizam a frustração sexual (profundamente necessária para as bases da sociedade de classes atual).

Traçou-se, então, uma distinção nítida errônea entre vida pública e vida privada, e esta última é impedida de chegar até à tribuna dos debates públicos e, sobretudo, à escola, totalmente fechada a este tema. Atualmente, segundo nossos padrões hipócritas de sociedade, a vida pública é assexuada na superfície e pornográfica ou pervertida nas profundezas. Se essa dicotomia não existisse, a vida pública coincidiria com a vida privada e espelharia, de modo correto, a vida cotidiana em amplas formas sociais. 

O debate pautado nesse sentido serviria para abrir as válvulas que bloqueiam o fluxo de energia biológica no animal humano, para que as outras coisas importantes, como o pensamento límpido, a decência natural e o trabalho agradável possam funcionar e para que a sexualidade pornográfica deixe de ocupar a todo o pensamento das pessoas como ocorre hoje.

A questão que fica, então, é como organizar a nova educação sexual dos jovens em escolas de pensamento fechado, autoritário e cheias de tabus?

domingo, 20 de maio de 2018

O Oiapoque desconectado do Chuí

Belém do Pará, São Luís do Maranhão, Teresina, Manaus e Rio Branco: 5 grandes cidades do país da qual, nós do sul (e talvez do Brasil inteiro), não fazemos a menor ideia do que acontece. A maioria delas com mais de 1 milhão de habitantes e de importância histórica para o país. Temos mais informações sobre o que se passa em Nova York, Paris ou Hong Kong do que nessas cidades que fazem parte da nossa própria terra. A nível nacional tudo fica centrado, como samba de uma nota só, em São Paulo e Rio. As dificuldades de integração não param por aí: faltam políticas federais e muitas vezes é mais barato ir pra Europa do que visitar nossos irmãos do norte.

Se faz necessário, então, rever esta política (ou ausência de política) de integração. O melhor começo é quebrar o gelo...