Analisar,
100 anos depois, como se deu a abordagem da Revolução Russa por parte da
imprensa burguesa, nos permite tomar consciência de sua natureza, bem como de
sua proximidade com o pensamento da esquerda reformista. A Revolução Russa de
1917 foi, sem dúvida, o principal fato do século XX em razão do seu valor
histórico-universal, apesar de sua posterior degeneração stalinista.
Após um século torna-se mais fácil
perceber os equívocos e as intenções dos jornais de época, sobretudo se
conhecemos os acontecimentos históricos que levaram os bolcheviques ao poder. É
assustador – e esclarecedor – perceber a proximidade das posições da imprensa
burguesa e da esquerda reformista. Saltam aos olhos a compreensão mútua e
subjacente entre ambos quando se analisam trechos de algumas reportagens e notas
dos jornais New York Times, O Estado de S.Paulo e A Federação, que era a publicação
oficial do Partido Republicano Rio Grandense, de orientação castilhista (na época,
um dos principais jornais do Rio Grande do Sul).
Em A
Federação, de 30 de abril de 1917, podemos ler uma longa citação dos
jornais “socialistas” reformistas, que defendiam a continuidade da Rússia na 1ª
Guerra até o “esmagamento do militarismo
alemão”. Ou seja, A Federação
soube tirar proveito do oportunismo deslavado da linha “socialista”
oportunista, que orientava os operários e camponeses a servirem como bucha de
canhão da burguesia russa e, consequentemente, da francesa e inglesa. Conclui este
artigo com a reprodução de um editorial do jornal Russka Velia, também de orientação oportunista, em que podemos ler:
“Não somente os socialistas, mas também
os anarquistas, negam reconhecer em Lenin um partidário de suas doutrinas. É
claro que os atos desse agitador não tem importância alguma, mas ameaçam romper a união dos socialistas russos”.
A Federação, de 30 de abril de 1917 |
Quem fala pela boca dos “socialistas russos” é a própria burguesia. Tanto é assim que A Federação, um periódico da elite sul rio grandense, soube reconhecer seus interesses naquele editorial e se utilizar muito bem dele para influenciar os operários daqui, mostrando como devem agir os “verdadeiros socialistas”. Cai de maduro que se os atos de Lenin não tivessem “importância alguma”, não poderiam ameaçar romper a união dos socialistas russos. Quem conhece a história da Revolução Russa sabe que os atos daquele “agitador” não só tiveram importância, como foram decisivos para o triunfo da revolução. A burguesia prezava pela “união dos socialistas” [reformistas] porque dessa “unidade” dependia a sorte do governo provisório russo e, por conseguinte, a sua própria sorte na guerra mundial. Ela era um dique de contenção para o descontentamento dos trabalhadores russos. Se não fosse rompida, não haveria revolução de outubro.
Seguindo o seu instinto de classe muito
sorrateiramente, O Estado de S.Paulo também
se apercebeu da ameaça representada por Lenin. No dia 20 de abril de 1917
publicou uma reportagem, com manchete intitulada “O discurso do socialista Lenin”, em que afirmava: “Os
jornais criticam severamente o
discurso do socialista democrata Lenin, que acaba de chegar do exílio,
aconselhando o governo a solicitar a paz à Alemanha” (grifos nossos).
Cumprindo seu papel de eco dos amos internacionais, o jornal paulista, se
escondendo atrás dos jornais que “criticam o discurso” de Lenin (sem dizer
quais eram), reforça a tentativa de sua desmoralização política, como se o que
ele estivesse defendendo fosse um crime e não a própria continuidade da guerra
em nome dos interesses imperialistas. A manutenção da Rússia na guerra mundial
foi uma política prioritária do governo provisório de Kerensky. Era unânime a
política do “socialismo reformista” em seguir de forma submissa esta diretriz:
desde os mencheviques liderados por Martov e Plekhanov, até os bolcheviques que
não estavam exilados, como Kamenev, Zinoviev e Stalin. Somente com a chegada de
Lenin à estação Finlândia, no dia 3 de abril de 1917, é que os bolcheviques
mudaram sua política ameaçando romper a tão prezada “unidade dos socialistas
russos”. Esta nova política, como se pode ver pela repercussão na imprensa
mundial, causou preocupação por parte da burguesia, que compreendeu bem qual
papel procurava cumprir o “agitador sem importância”. A permanência da Rússia
na guerra era fundamental para os interesses imperialistas dos países da
Tríplice Entente. A saída da Rússia da guerra, uma exigência dos trabalhadores
e do povo russo em geral, somente foi acolhida por Lenin e, posteriormente,
após duras críticas, pelos outros bolcheviques. A manutenção daquela “unidade
socialista”, portanto, era anti-operária e anti-popular, servindo apenas aos
interesses da burguesia imperialista.
O "agitador sem importância" falando aos soldados, camponeses e operários |
Procurando reforçar a política
oportunista do reformismo socialista, o New York Times lançou uma nota no dia
14 de abril de 1917, afirmando que “o
Partido Socialista defendia a continuação da guerra contra a Alemanha e que
apenas um grupo de social-democratas extremistas [no caso os bolcheviques
liderados por Lenin] continua criando
problemas com suas publicações, Iskra em
Petrogrado e A Social Democracia em
Moscou [os dois eram jornais bolcheviques]. Seus temerários e inescrupulosos
ataques não apenas ao governo [provisório], mas a todos os grupos socialistas menos
eles mesmos, provocaram uma saudável reação.
Eles estão se isolando” (grifos e adendos entre colchetes nossos).
Para o NYT uma saudável reação não seria o
fim da guerra, mas o isolamento dos bolcheviques. Não casualmente a atual
esquerda continua trabalhando com a mesma fórmula de isolamento de posições
minoritárias que lhe são incômodas. Aqui reside um parentesco e um diálogo
entre o “socialismo” reformista e a imprensa burguesa. Caso não houvesse tido
esta ousadia consciente por parte do “grupo de social-democratas extremistas”,
certamente não teria havido Revolução Russa e, muito menos, a Rússia teria
saído da Guerra Mundial, preparando as bases para o fim do conflito bélico
imperialista. Que estas sucintas linhas, de uma clareza insofismável, deixe as
futuras gerações bem conscientes do papel cumprido em cumplicidade pela
imprensa burguesa e o reformismo socialista.
Fontes:
-
A Federação, de 30/04/1917
-
O Estado de São Paulo, de 20/04/1917
- The New York Times, de 14/04/1917
- Revista Press, Ano 21, Edição 176
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