Charles Bittencourt
era um bom homem: temente a deus, fraterno com as pessoas, educado. Se vestia à
moda antiga: usava blazer, camisa social com suspensórios e chapéu dos anos
1950. Não se metia em política, mas julgava-se politizado o suficiente para
emitir algumas opiniões. Era funcionário público de carreira. Não que ele fosse
dos melhores, mas também não era relapso, como virou costume ouvir acusações a
respeito, sobretudo vindo dos meios de comunicação. Por consequência, como as
atribuições do seu cargo exigiam, ele não tinha vícios e buscava ser um “bom
cristão”. Possuía uma bela família, que trabalhava duro para sustentar. Era
bastante amável com ela, dedicando-lhe bastante tempo. É claro: ninguém é de
ferro! Às vezes brigava com a mulher ou algum dos filhos, mas nada que fugisse
ao bom senso. Ia de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Durante este
percurso, o universo buscava contato.
Certo dia, em uma manhã chuvosa e
cinzenta, Charles vestiu seu blazer marrom e saiu caminhando pela rua em
direção ao trabalho (sim, ele trabalhava perto de casa e nem ônibus precisava
pegar, embora tivesse um belo carro popular na garagem, usado apenas em
ocasiões especiais). Quando se aproximava da esquina, viu uma cena absurda,
horrenda, inaceitável. Uma mãe, vestida só com trapos e possuindo apenas sacos
com escassos pertences, segurava um bebê que chorava de fome. Seus olhares se entrecruzaram.
Charles não pôde evitar. Foi tão sentido e tão desesperado, que lhe ficou
gravado na mente até chegar ao trabalho. Nenhum preconceito plantado na sua
mente por anos de debates familiares, nenhuma criminalização midiática, nenhuma
ideologia foi capaz de esconder aquele fato tão cruel e desumano ali, bem debaixo
do seu nariz, quase na porta de sua casa. A mãe murmurou palavras
monossilábicas pedindo ajuda, como se fossem grunhidos. Charles constrangeu-se profundamente.
Arregalou os olhos, alisou o seu blazer e lançou um qualquer “não tenho nada”
para poder seguir apressando o passo.
Chegou no trabalho pálido. Algo de
estranho tinha acontecido. Suando e aflito, tomou um copo d’água de um gole só.
Os colegas, preocupados, foram lhe perguntar: “o que foi, colega?”. Charles
respondeu: “nada, nada!”. E sentou-se para trabalhar. A maré da rotina avançou
sobre sua consciência. Começou a trabalhar e imediatamente esqueceu-se de tudo.
Um pouco depois já estava conversando com os colegas animadamente e falando
sobre a partida de futebol do seu time.
Durante toda aquela semana, Charles
saía de casa e se deparava com aquela mãe e o seu bebê subnutrido. Novamente
uma onda de agitações lhe atormentava, mas chegava no trabalho e era logo
afogado pelo mar da rotina. Se esquecia de tudo outra vez. E lá estava o seu
colega, do setor ao lado, conversando animadamente com ele sobre e vitória da
seleção brasileira da semana passada. E novamente, tendo muito que trabalhar,
Charles esquecia-se de tudo.
Quinze dias mais tarde, Charles não viu
mais a mãe e o seu bebê subnutrido, mas encontrou dezenas de moradores de rua
dormindo empoleirados uns sobre os outros, embaixo de uma marquise de loja,
próximo à entrada do edifício do seu trabalho. Ele pensou consigo: “que vida,
meu deus do céu! Como isso é possível em pleno século 21?”, mas chegando à sua
repartição pública, tendo muito que trabalhar, logo esqueceu de tudo.
Num primeiro momento, Charles não
percebeu que estes episódios foram lhe corroendo a própria dignidade humana,
mesmo que ele próprio tivesse condições dignas de vida. Olhava para os filhos e
para a esposa e suspirava aliviado, mas ao adormecer, tinha sonhos
horripilantes, onde via esqueletos humanos, crianças subnutridas e a morte, a
espreitar todos eles. Acordava assustado, mas não associava estes sonhos à
nada, a não ser à forças do além. Levantava-se, chegava no trabalho e, tendo
muito que trabalhar, logo se esquecia de tudo.
Que força inconveniente era esta que
abria um clarão de luz na sua mente para uma parcela da realidade que parecia
não existir, mas que logo depois lhe fazia sutilmente esquecer de tudo? Certo
dia ficou sabendo que a filha de um colega de trabalho foi estuprada em um
assalto. Charles horrorizou-se, empalideceu! Que sociedade era aquela? Mas
tinha muito que trabalhar, logo esquecia de tudo. Dias mais tarde, soube que
uma colega de trabalho apanhava regularmente do marido, o que explicava muitos
hematomas que ela exibia e justificava como sendo quedas e acidentes de
trabalho doméstico. Charles pensou na mulher: “deus me livre”. Uma sensação boa
de saber que estava em paz com a esposa lhe acalantou o coração, mas como tinha
muito trabalho a fazer, logo esqueceu-se da colega, que trabalhava no setor ao
lado.
O mundo era maior do que o trajeto da
casa até o trabalho de Charles. Muitos episódios perturbadores como aqueles
foram se sucedendo em sua vida. Charles viu imagens na internet de um matadouro
e tomou consciência de como a indústria da carne tratava um novilho recém
nascido. Horrorizou-se. Chegou a pensar em tornar-se vegetariano. Tentou até
pautar isso em conversas com colegas de trabalho, que o ouviram por alguns
segundos, mas logo voltaram a falar sobre a espetacular partida da noite
anterior. Como tinham muito trabalho a fazer naquele dia, Charles logo esqueceu
de tudo.
Numa outra ocasião, Charles pôde ver imagens
da guerra na Síria: crianças, mulheres e senhores de idade sendo bombardeado
com armas químicas e mísseis de última geração, por “oposição” e situação.
Chegou aos seus ouvidos a informação do grande número de refugiados que tentava
chegar na Europa através de botes insalubres. Viu a imagem de uma criança
morta, atirada ao relento na beira de uma praia qualquer. Como isso era
absurdo! “Em que mundo vivemos?”, ele disse aos colegas ainda sob o impacto de
todas aquelas cenas horríveis. Apesar de todas estas “coisas do mundo”, havia
muito trabalho a fazer, e logo ele esquecia de tudo novamente.
Aqueles episódios todos, apesar de
sempre esquecidos por Charles, acabaram se somando e despertando uma
preocupação. “Devo estar doente”, ele concluiu. Foi ao médico: “doutor, eu vejo
cenas horríveis todos os dias, nosso mundo está doente, mas logo a seguir eu e
os meus colegas esquecemos de tudo. Eu acho que estou com alguma doença. Não é
possível examinar meu cérebro?”. O médico franziu a testa. Pegou o estetoscópio
e levou às costas de Charles; pediu que falasse “trinta e três”. Olhou seus
olhos com uma lanterna. Pediu que colocasse a língua pra fora. Por fim,
solicitou exames em três laboratórios diferentes. Ao chegar em um deles, que
ficava no hospital central, Charles se deparou com uma fila enorme, cheia de
idosos, crianças e mães com rostos de uma pintura de Tarsila do Amaral. Um
senhor de idade desmaiou de tanto passar mal. Ficou ali, agonizando. Charles,
que possuía plano de saúde privado, logo foi atendido e liberado. Porém, a cena
do velho agonizando lhe marcou a mente como ferro e fogo. Sonhou com aquilo de
noite. No outro dia, o trabalho acumulado lhe levou a esquecer tudo novamente.
Apesar deste esforço para curar-se, o médico disse que Charles não tinha nenhum
problema: “sua saúde é de ferro”. “Não é possível”, ele tentou argumentar com o
médico, “você deve conhecer algum neurologista”. O médico indicou um conhecido
seu. Novos exames foram feitos e nada de novo apareceu.
A pior notícia que acometeu Charles foi
a de um operário que se suicidou de cima de uma caixa d’água quando viu que não
teria condições de sustentar a própria família. “Por que isso, meu deus do céu,
por quê?”, ele perguntava para si próprio em um surto humanizador. Procurou
comentar com os colegas de trabalho sobre todos estes problemas. Eles apenas
respondiam: “Ah Charles, sempre foi assim e sempre será!”, e tornavam a falar
de futebol. Em casa, tentou desabafar com a esposa, mas ela estava muito preocupada
com o almoço do dia seguinte e com a lista do supermercado. O filho mais velho
jogava videogame no quarto e não deu a mínima para o pai quando ele se sentou
na cama para tentar conversar. A filha, pendurada no celular, falando com
amigos, também não deu muita atenção ao pai, plantado na sua frente, esperando
uma resposta. Ficou aflito. Sentou-se na sua poltrona, bem no meio da sala, e
logo após a novela de sua mulher ia começar a partida do seu time; ao primeiro
ponta-pé Charles já havia esquecido de tudo.
Naquela noite, porém, Charles não
conseguiu dormir. Foi como se uma força estranha lhe tivesse tomado conta. Apagou,
exausto, às 2h; e acordou às 5h da manhã totalmente transtornado. Vestiu seu
blazer marrom, colocou os suspensórios e o chapéu, tomou café, escovou os dentes
e saiu de casa, perplexo, às 6h da manhã (uma hora mais cedo do que estava
acostumado). Chegou no trabalho, subiu até o último andar e abriu a janela. Sentiu
a brisa fresca das primeiras horas do dia. Respirou fundo. Pisou no parapeito,
se agarrou na maçaneta da janela e como que fora de si lançou-se ao ar. Às
6h13min estava espatifado no pátio do seu trabalho. A partir das 7h da manhã um
grupo de colegas olhava, horrorizado o que havia acontecido com o infeliz
colega. 7h25min chegaram os primeiros repórteres e cinegrafistas para noticiar
o fato.
Na
edição daquele dia o suicídio foi noticiado. O povo estarrecido e horrorizado
leu aquela notícia, comentaram à boca pequena, passaram-na adiante, mas, como
tinham muito que trabalhar, logo iniciaram suas atividades e esqueceram-se do
ocorrido.