terça-feira, 17 de novembro de 2015

Deuses e Gigantes


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            No início do Sistema Solar, possivelmente o universo estava se recuperando do fim de um dos seus ciclos eternos que duram bilhões de anos, após uma fase de relativa calmaria. Provavelmente um evento casual desencadeou uma grande onda de mudanças cósmicas que, por sua vez, levou a outra grande onda de mudanças cósmicas: em razão das condições propícias criadas pelo movimento cíclico da matéria eterna do universo, dentro de uma gigantesca nuvem gasosa de uma parte periférica da Via Láctea – a nebulosa primordial –, os primeiros átomos de hidrogênio fundiram-se provocando uma explosão termonuclear, dando origem ao hélio e, neste processo, ao Sol. Este evento liberou tamanha energia que foi arrastando e atraindo tudo a sua volta, se expandindo e, ao mesmo tempo, desencadeando uma gigantesca onda giratória em um movimento que levou outros bilhões e bilhões de anos terrestres. Assim fez-se o calor e a luz.
            O seu campo eletromagnético foi criando pequenos “vácuos” gravitacionais, preenchidos pelos restos de poeira estelar e, posteriormente, por rochas e dejetos espaciais que possibilitaram o surgimento do que viríamos a chamar de planetas. Assim se fez a Terra; mas também se fez Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão (não necessariamente ao mesmo tempo e nesta ordem). Planetas que, sendo parte do movimento ininterrupto da matéria, estão em eterna transformação. Cada um deles desenvolveu um campo gravitacional próprio. Neste processo, a queda de braço para ver quem seria o astro rei do sistema interplanetário se deu entre o Sol e um gigantesco planeta rebelde, Júpiter. Como sabemos, o vencedor deste duelo de titãs foi o Sol; Júpiter se apagou e centrou a atividade na sua formação atmosférica. Alguns planetas muito próximos do Sol, possivelmente já tenham passado pela flor de sua idade, vivendo o inferno da proximidade solar ou de um terrível e devastador efeito estufa; outros estão formando sua atmosfera, sofrendo com vendavais e tempestades de milhões de anos, e constituindo-se como o que se convencionou chamar de “gigantes gasosos”; outros são apenas o resultado da “recente” fusão de rochas espaciais, sendo atraídos pelo campo gravitacional do Sol. Entre uns e outros, está um oásis chamado Terra.
            Foi neste lar cósmico que a matéria adquiriu consciência de todo este processo e de si mesma, também em um longo período que durou bilhões de anos. Como tudo o que permeia a existência, foi uma evolução repleta de contradições, crises, revoluções, e, quando a consciência surgiu, de ilusões. Os seres humanos são estes seres vivos privilegiados, capazes de compreender racionalmente toda a amplidão e profundidade do universo, e fazer uso das forças da natureza também conscientemente. Mas não são os únicos seres vivos. Na Terra, outros seres têm sua reverência ao universo e formas de interação menos conscientes com a natureza. Os seres humanos são a imagem e semelhança de si mesmos. Foram criados pela evolução natural da matéria orgânica, refletindo as condições materiais da Terra e tendo parentesco direto ou indireto com todos os demais seres vivos que a habitam. Somente milhões de anos mais tarde, alguns habitantes do seu hemisfério ocidental criaram um deus à imagem e semelhança humana, bem como a fábula absurda que exalta a criação do homem e inferioriza a mulher.

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            Provavelmente a Terra tenha se formado a partir da junção de poeira estelar, rochas, detritos e gases, em um longo processo cósmico, que é inconcebível estimar em termos temporais humanos; pelo menos agora, quando a ciência apenas começa a desvendar mistérios básicos e elementares da nossa existência e da matéria. A ciência moderna – e, em particular, a geologia – fala em 4,6 bilhões de anos.
No início era um amontoado gigantesco de rochas, atraídas e fundidas pelo campo gravitacional, aquecidas e esfriadas, e envoltas por uma nuvem ainda maior de gases, tal como os planetas gigantes são atualmente. A formação da atmosfera terrestre deve ter demandado muito mais tempo do que qualquer era geológica conhecida. Chuvas ininterruptas entrecortadas por temporais violentos, relâmpagos, tornados e furacões, somados a erupções vulcânicas de um núcleo incandescente criaram o verdadeiro inferno sobre a Terra. Calor e frio estiverem em uma luta titânica até forjar o solo, a temperatura e a harmonia de nossa atmosfera. É bem plausível – ainda que não totalmente comprovada – a hipótese de que um choque violento com um meteoro tenha possibilitado o desprendimento de gigantescos destroços da Terra que vieram, pouco a pouco (ou seja, bilhões de anos terrestres), a conformar a Lua. Com a formação do satélite natural terráqueo, a rotação de ambos corpos celestes entraram em harmonia e equilíbrio, possibilitando o surgimento do tempo terrestre, isto é, dos dias e noites, e do ano, mais ou menos como os conhecemos hoje (24h e 365 dias).
Provavelmente a atmosfera criou-se conjuntamente com os oceanos, que delimitaram as primeiras das diversas formas geográficas do nosso planeta. Os oceanos eram e são “sopas” que contém nutrientes, produtos dissolvidos do material subaquático, gases provenientes da atmosfera e das atividades vulcânicas. Deve ter recebido incontáveis descargas elétricas de tempestades furiosas. Foi, possivelmente, o cenário mais adequado para o surgimento da vida. A água oceânica serviu como primeira atmosfera biológica terrestre, abrigando os primitivos seres unicelulares e as bactérias, até que a atmosfera, tal como a conhecemos, tivesse plenamente surgido. Incontáveis gerações nasceram, se desenvolveram, se modificaram, reproduziram e morreram neste grande elo biológico. Muitas dúvidas ainda permeiam estas induções, mas seja como for, toda a teoria científica está assentada em uma concepção materialista, o que exclui a possibilidade de um criador ultraterreno e de uma concepção teleológica.

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            Foi na chamada “explosão cambriana” – há mais ou menos 530 milhões de anos –, que, possivelmente, a atmosfera da Terra tenha completado o seu ciclo, criando as condições para que a vida saísse dos oceanos e começasse a colonização terrestre. A invasão começou com as plantas, que se alastraram por todos os continentes. Depois vieram os seres vertebrados, anfíbios e répteis. A sua evolução culminou no surgimento dos dinossauros, que dominaram a Terra por um longo tempo. Os ancestrais dos mamíferos surgiram durante esse reinado reptílico dos dinossauros. O seu fim – seja lá como isso tenha acontecido – foi determinante para que os mamíferos pudessem evoluir e, do tronco dos primatas, se desprender o ramo dos “homos”, de onde provém o homo sapiens.
            Fugindo das regiões do planeta congeladas pela era glacial, os ancestrais humanos – tais como uma raça de “macacos” antropomorfos extraordinariamente desenvolvida, da qual Darwin nos deu uma descrição aproximada – deslocaram-se e concentraram-se nas zonas tropicais. Estes ancestrais não eram macacos comuns, mas hominídeos que possuíam características semelhantes em razão da raiz genética em comum.
Antes da primeira lasca de sílex ser transformada em machado pela mão do homem, deve ter transcorrido um período de tempo tão largo que, em comparação com ele, o período histórico por nós conhecido torna-se insignificante. Durante esse longo transcurso, uma evolução biológica fundamental aconteceu: a mão, em função das necessidades de sobrevivência, de sustentáculo do corpo, ficou livre para adquirir destreza e habilidade quando os seres humanos passaram a andar de forma ereta. Dialeticamente, a mão não é apenas o órgão de trabalho, é também produto dele. Com as primeiras formas de trabalho, se desenvolveram também a necessidade da comunicação, daí o aperfeiçoamento gradual da laringe. O trabalho começa com a elaboração dos instrumentos mais antigos dos seres humanos pré-históricos, que eram os de caça e de pesca, utilizados também como armas. Mas a caça e a pesca pressupunham a passagem da alimentação exclusivamente vegetal à alimentação mista, o que significa um novo passo de suma importância na transformação do “macaco” em homem. A alimentação, cada vez mais variada, oferecia ao organismo novas substâncias, com o que foram criadas as condições químicas e biológicas para a transformação destes “macacos antropomorfos” em seres humanos.
Nesse longo período, manadas caçadoras e coletoras desses hominídeos extraíam diretamente da natureza os alimentos necessários para a sua sobrevivência. Migravam de um lugar para outro e lutavam com outras manadas pela posse do território; mas eram incapazes de extrair dessas áreas mais do que aquilo que a natureza generosamente lhes oferecia. Foi necessário, seguramente, que transcorressem centenas de milhares de anos antes que a sociedade humana surgisse daquelas manadas de “macacos” antropomorfos, que viviam ora nas árvores, ora no chão. Quando o homo sapiens se separa definitivamente do “macaco” é que surge a sociedade humana[1].

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            A consciência humana surgiu e se aperfeiçoou durante o processo evolutivo da sua transformação de “macaco” em ser humano. Foi como acordar de um sono profundo em meio a uma guerra, tentando se situar e entender o que se passava ao nosso redor: a origem, o andamento e o porquê de tudo aquilo. Muitas respostas insatisfatórias e ilusórias se improvisaram, passando de geração para geração. Diversos erros advieram daí, mas, também, o aperfeiçoamento da linguagem e da comunicação, bem como da cultura humana. A natureza era um lugar horripilante, inseguro e ameaçador. A imagem de um gigantesco monstro predador, todo poderoso, desnudava-se diante dos olhos dos primeiros seres humanos mais ou menos conscientes. Diversas perguntas que se abriram não obtiveram respostas. Sem uma explicação para pequenos e grandes fenômenos, a humanidade, na sua luta pela consciência, foi obrigada a preencher os vazios científicos com hipóteses infundadas. O medo e a dúvida andaram lado a lado; sobretudo, o medo da morte. As explicações eram dadas conforme estas figurações gerais. Desde a pré-história, mergulhado na mais profunda ignorância sobre seu próprio organismo e excitado pelas aparições que sobrevinham em seus sonhos, o homem chegou à ideia de que seus pensamentos e suas sensações não eram funções de seu corpo, e sim uma alma especial que morava nesse corpo e o abandonava na hora da morte. A magia e o misticismo estão ali onde não existe a compreensão e o controle efetivo sobre a natureza; compreensão e controle estes que a ciência e a tecnologia proporcionam, em parte, aos seres humanos.
            A natureza era um mistério, tornando difícil entender o mundo. Somos descendentes de povos que respondiam aos perigos da existência inventando histórias sobre deidades imprevisíveis, descontentes e vingativas. Por muito tempo – e ainda hoje – o instinto humano da compreensão foi frustrado por fáceis explicações religiosas e místicas. Por exemplo, o povo aborígine Kung, de Botsuana, possui uma explicação para a Via Láctea. Chamam-na de “a espinha dorsal da noite”, como se o céu fosse um grande animal dentro do qual vivêssemos. Estaríamos, talvez, no estômago deste animal e, ao olhar para cima, veríamos a sua “espinha dorsal”. A explicação deles torna a Via Láctea tanto útil quanto compreensível, com um toque poético. Os Kung acreditam que a Via Láctea sustenta a noite, pois se não fosse por ela, fragmentos de escuridão se despedaçariam aos nossos pés[2].
            A efetividade e a extensão da atividade do homem, inclusive sua atividade mental, dependem do nível de sua capacidade de produção material. Esta capacidade se multiplica e avança na medida em que a sociedade avança tecnológica e cientificamente. As tribos da idade da pedra, que viveram da coleta de alimentos e permaneceram no estágio econômico da caça e da pesca, tinham uma imagem que correspondia à sua capacidade produtiva extremamente débil e a relações sociais muito simples. Estes povos caçadores sentavam, tarde da noite, ao redor de uma fogueira, não apenas para assar a caça, mas para contar-inventar histórias sobre as figuras no céu: leões, cachorros, ursos, caçadores. Outras figuras eram estranhas! Seriam as figuras dos seres poderosos que habitavam o céu? Aqueles mesmos que fazem a tempestade quando ficam zangados?
            Uma das associações “naturais” que estes povos primitivos faziam entre a sua realidade imediata e a explicação do mistério das estrelas, provavelmente, se deu a partir do domínio de sua primeira tecnologia: o fogo! As estrelas eram fogueiras de outros grupos caçadores que a acendiam à noite. Como as estrelas dão uma luz menor do que a da fogueira do grupo observador; então, aqueles “fogos” no céu devem ser de grupos muito distantes. Eles pensavam que aqueles outros grupos olhavam de volta, para “baixo”, assim como eles contemplavam as estrelas, que, na verdade seriam “fogueiras”, olhando para “cima”. Mas a contradição e as dúvidas se aprofundavam: por que os fogos daquele grupo caçador lá em cima não caem em nossos pés? Por que aquelas tribos estranhas não despencam do céu?[3]
            Os gregos primitivos, mais engenhosos que os grupos de caçadores coletores pré-históricos, ensaiaram uma resposta mais elaborada, mas não menos mística e fantasiosa: a deusa Hera havia casado com Zeus, o chefe dos deuses do Olimpo. Como as histórias antigas contam, a lua-de-mel foi em Samos. A religião grega explicava que a faixa de luz difusa no céu noturno é o leite de Hera, que esguichou do seu seio atravessando o céu, uma lenda que é a origem do nome ainda usado no Ocidente: a Via Láctea[4].

- 1
            A única alternativa que se apresentava aos povos primitivos para escapar das deficiências de sua economia social era a magia e a religião. Esperava-se que esta satisfizesse as exigências e desejos que a vida social despertava sem contar com os meios para atendê-las. As técnicas da magia e da religião fazem supor que existem poderes superiores e sobrenaturais que podem influir, para o bem ou para o mal, no curso dos acontecimentos. Portanto, era necessário neutralizá-los ou vencê-los[5]. Daí advém inúmeros rituais tribais e religiosos que conhecemos – dentre os quais, destacam-se as oferendas e os sacrifícios. A magia e a religião se apóiam no princípio de que ao criar a ilusão de que se controla a realidade, se pode chegar a controlá-la efetivamente. É uma técnica ilusória que complementa as deficiências da verdadeira técnica[6]. As ilusões místicas e religiosas também se reforçam a partir de outros sentimentos psicológicos, como o desamparo e as questões emocionais despertadas pelas ameaças naturais.
            O animismo é comum à magia e à religião, e passou à filosofia e à ciência através do idealismo filosófico. Mas outros caminhos, mais corajosos e determinados, na busca pela consciência se desprenderam do caminho místico e religioso. Foi por ele que se abriu a conscientização de que deveria haver um meio de se saber do mundo sem a hipótese divina, que deveriam existir princípios, forças e leis da natureza através dos quais o mundo poderia ser compreendido sem se atribuir uma tempestade à intervenção direta de Zeus[7].
            Esta grande revolução no pensamento humano começou entre 600 e 400 a.C. e culminou no nascimento da filosofia nos movimentados centros comerciais da civilização egéia. A primeira escola filosófica de que se têm notícias estava em Mileto, uma das cidades fundadas pelos gregos jônicos na costa da Ásia menor. Os povos mais avançados, inclusive depois de terem chegado à civilização, tiveram que avançar muito em seu desenvolvimento econômico e social para estar em condições de superar intelectualmente a visão da realidade baseada na magia e na religião. Foi necessária uma prodigiosa quantidade de mudanças históricas, avanços da tecnologia, transformações na estrutura social e definições de determinadas categorias do pensamento, antes que a vanguarda filosófica e política da humanidade pudesse se livrar das concepções primitivas e alcançar o método do raciocínio filosófico.
            Assim como os gregos continuavam utilizando artigos de pedra e bronze junto com os de ferro, a magia e a religião se amalgamavam em sua cultura com os primeiros brotos do pensamento filosófico e científico. A filosofia não podia descartar as questões mitológicas neste ambiente social. Somente com o crescimento populacional humano por diversas regiões da África, Ásia e Europa, bem como o aperfeiçoamento da técnica do trabalho, que levou ao aumento do domínio e do conhecimento humano sobre a natureza, que a filosofia materialista começou a dar os seus primeiros passos.
            Os coletores de alimentos e os caçadores não necessitavam marcar a passagem do tempo de maneira muito exata e sua noção sobre a periodicidade dos dias, meses e anos era por demais elementar. Este conhecimento se transforma pela primeira vez em uma necessidade econômica e em uma função social com a atividade agrícola, devido ao ritmo uniforme e regular da produção. Os seres humanos se viram obrigados a prestar atenção a determinadas regularidades no movimento das estações, dos corpos celestes porque seu sustento dependia delas. A necessidade de descobrir modos de medir o tempo levou à invenção do calendário e às primeiras descobertas astronômicas.
Na antiguidade o ponto mais alto no domínio da tecnologia foi a difusão do uso do ferro. Na idade do ferro foram aperfeiçoadas as principais ferramentas manuais. A combinação da cultura urbana com as ferramentas de ferro elevou a engenharia a outro nível. Em 500 a.C. uma montanha foi perfurada para a construção de um túnel de quinhentos metros de largura para proporcionar água a Samos. É importante salientar esta façanha porque Samos foi uma das cidades-estado jônicas onde floresceu a filosofia. Junto com estas “modernizações” tecnológicas sobreveio a escrita, a lógica, a gramática e a possibilidade de estudo do pensamento abstrato.
Por trás dos gregos estavam as experiências práticas e realizações dos cretenses e dos micênicos, dos fenícios e dos hititas, dos sumérios, dos babilônios e dos egípcios. Os gregos tomaram dos babilônios e dos egípcios os rudimentos das matemáticas e da astronomia, dos mesopotâmicos e egípcios a medicina, dos fenícios a escrita. Ao material proveniente destas culturas tão ricas e variadas, agregaram suas próprias contribuições, criando assim, uma forma de pensar e uma concepção de mundo única e nova. A filosofia idealista e materialista grega – esta última representada, sobretudo, pelos filósofos pré-socráticos – é o fruto maduro do esforço e do conhecimento de todos estes povos do Oriente Médio e do Mediterrâneo[8].
Foi nesta etapa de desenvolvimento humano e neste contexto histórico que o embate filosófico entre as duas concepções de mundo começou a delinear-se, estendendo-se até os dias atuais. Este embate é a questão fundamental da filosofia: o que determina a realidade? A ideia ou a matéria? Segundo a resposta que dessem a esta pergunta, os filósofos dividiam-se em dois grandes campos. Os que afirmavam o caráter primordial do pensamento em relação a natureza e, admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de uma ou de outra forma, firmavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a natureza (ou em outras palavras, o mundo material e a prática social) como o elemento primordial, pertencem ao campo do materialismo.

Interlúdio

– Esta disputa em torno da realidade é uma espécie de batalha entre deuses e gigantes. Um bando joga tudo à terra, toma literalmente as pedras e as árvores, argumentando que só o que pode ser tocado e sentido é real, definindo a realidade como um corpo e se alguém diz que algo sem corpo é real, o desprezam e se negam a escutá-lo.
– Sim, são indivíduos que se acham inteligentes; conheci alguns.
– De modo que seus adversários nas alturas do desconhecido defendem sua posição com grande habilidade; defendem que a existência verdadeira consiste em certas formas inteligíveis, incorpores; descrevem o que os outros chamam verdade como uma forma passageira do vir a ser, não como a realidade e tornam pedaços o que eles chamam de corpos. Sobre esta questão se leva continuamente uma terrível batalha[9].




1
            Os dois filósofos entraram na sala do campo histórico com as suas túnicas gregas, em meio a um baixíssimo nível tecnológico e científico. Se olharam com desconfiança, mas se cumprimentaram de modo cortês.
            O filósofo idealista, ajeitando a túnica no braço, pergunta:
            – Então você nega que a ideia determina o real e é o seu elemento primordial?
            – Nego categoricamente! – disse o filósofo materialista, colocando os cotovelos sobre o encosto da cadeira.
            – Como o mundo pode prescindir de uma inteligência superior para a sua criação? – retrucou o idealista.
            – A realidade é composta de matéria, que é sua substância primordial. O pensamento e as ideias são apenas os reflexos, mais ou menos exatos, dos fenômenos que se processam na natureza e no universo, constituídos por matéria. O próprio órgão humano capaz de produzir ideias, o cérebro, é matéria, muito embora as ideais em si, isto é, o produto do cérebro, não o seja. Para nós, uma concepção filosófica do mundo consistente não pode basear-se em princípios validados por apelos à uma razão abstrata, à intuição, à evidência em si mesma ou a qualquer outra causa subjetiva e puramente teórica. Somente vocês, idealistas, podem fazê-lo. Além do que, a lógica filosófica sustentada por vocês está permeada por contradições insolucionáveis. Por exemplo: se as coisas materiais não existem realmente e a ideia é o elemento criador do real, como seria possível que todas as mentes pensassem exatamente a mesma coisa para gerar uma mesma realidade vista e sentida por todos nós?
            – Existem várias hipóteses para lhe responder – disse o filósofo idealista –: quem guiaria as ideais menores seria uma inteligência superior, divina; ou poderia ser uma ideia absoluta, que comanda todas as ideias menores; ou mesmo a negação de qualquer outra ideia que não seja a pensada imediatamente por nós. Você pode escolher qualquer uma destas hipóteses.
            – Ou seja – retomou o filósofo materialista –, todas são hipóteses infundadas, baseadas unicamente em razões abstratas, subjetivas, teóricas, evidenciadas em si mesma, que, de uma forma ou de outra, terminam na necessidade de um deus, ou de uma inteligência superior, como vocês gostam de dizer.
            – Como pode um mundo e um universo como o nosso não ser pensado por uma inteligência superior? Poderia toda esta harmonia e perfeição ser obra do acaso? – disse o filósofo idealista com ares triunfais.
            – E por que não? A sua harmonia e perfeição são relativas. Não seria a mente humana, desenvolvida e evoluída por centenas de milhares de gerações, que consegue ver, sentir e colocar harmonia no caos da natureza e do universo? A nossa capacidade racional se desenvolveu com o tempo e, sobretudo, com o trabalho, a sua técnica e ciência, que possibilitaram a compreensão de que a natureza podia ser quantificada, qualificada, estudada e admirada.
            – Isso não é possível! Eu não posso aceitar que o nosso mundo, com toda a sua vastidão, tenha surgido do nada! A nossa realidade é o reflexo da mente e da ideia superior, absoluta! A matéria é criada por ela! A crença num mundo “exterior” à nossa mente não se justifica racionalmente. Não podemos encontrar nenhuma evidência para isso! – o filósofo idealista bufava, como que profundamente ofendido.
            – Por que, então, todos nós, seres humanos, agimos como se esta “crença” no mundo exterior fosse real? Vejamos um exemplo bem singelo! O que se passa se não comermos? Os processos fisiológicos pelos quais convertemos a matéria exterior em nosso próprio corpo, nossa própria vida, nossas sensações e pensamentos, constituem a prova cotidiana da verdade da preponderância da matéria sobre a ideia! Quando respiramos, comemos ou bebemos, transformamos continuamente os elementos da natureza em nossa própria substância humana. Nossa dependência total do material é demonstrada pelo fato de a falta de oxigênio, alimento e bebida, produzir a asfixia, a fome e a sede; das quais provém a doença ou mesmo a morte. Aliás, acredito que esta deva ser a chave pra compreender um dos objetivos finais de toda a sua concepção filosófica: o medo da morte! – concluiu o filósofo materialista, olhando fixamente para o oponente.
            – Isto é uma blasfêmia! Você quer me dizer que toda a riqueza enciclopédica que ajudamos a desenvolver dentro do campo filosófico se reduz ao medo da morte? – perguntou, irado, o filósofo idealista.
            – Reconheço a contribuição importante, sobretudo dos primeiros grandes filósofos idealistas, ao pensamento humano no campo da lógica e na tentativa de procurar entender qual era a constituição da realidade! Mas reconheço isso nos primeiros anos de vida do pensamento humano, quando a ciência recém engatinhava. Com a evolução da ciência moderna, o pensamento idealista, mesmo com todas as suas contribuições importantes do passado, tornou-se uma distorção grosseira da realidade, um verdadeiro contra senso. Penso que, em última análise, o pano de fundo de toda esta concepção se reduz a este medo inconsciente, do qual todos os seres humanos, por instinto ou reflexão, sentem. Se a morte não é o fim, como muitos de vocês e os seus primos-irmãos, os religiosos, afirmam, porque têm medo dela? Não seria a libertação do corpo material e a volta para o mundo das ideias, ou para o paraíso, onde tudo é eterno, perfeito, incorruptível, algo sublime, livre de medos e insegurança? Não me parece muito coerente esta conduta. Dentre vocês, o único que manteve-se coerente com isso, segundo tenho conhecimento, foi Sócrates ao beber cicuta. Nenhum outro! Nem mesmo o seu discípulo mais ardoroso, Platão, que levou o seu pensamento até o extremo e foi um campeão do idealismo, teve a mesma ousadia! O medo de deixar de existir é o que move esse desejo de vencer a morte! Eu gostaria muito de poder sobreviver ao fim da existência física, que é magnânima e única, baseado somente na força da minha vontade, mas não posso contrariar as evidências materiais que nos cercam, inclusive este instinto humano que luta pela vida por que pressente o que significa a morte – o filósofo materialista se ajeitou na cadeira e respirou fundo.
            – Não se trata apenas de desejo – retrucou o idealista.
            – Não? – indagou o materialista – Está baseado em quê, então?
            – Numa profunda certeza da intuição humana.
            – Continua sendo uma certeza absolutamente vazia e abstrata, mais baseada na vontade e nos desejos pessoais do que em qualquer outra coisa.
            – Não – disse o idealista, indignado – trata-se de uma certeza divina. Somente os homens, que são seres racionais, são capazes de apreendê-la!
            ­– Voltamos para o início! Não conseguimos avançar nenhum passo! Ficamos reféns de uma contradição insolucionável.
            – A contradição está na sua concepção filosófica! – disse o idealista com o dedo em riste – Como pode ter tanta convicção de que o que sentimos através dos sentidos é realmente verdadeiro e existe fora de nós! O mundo é o não-eu criado pelo nosso “eu”; é sustentando pela ideia absoluta; o ser é a sua consciência; o físico nada mais é do que o psíquico! Qualquer coisa que fuja desta lógica é uma ilusão!
            – Não, não e não! – disse o materialista, se levantando da cadeira – Ilusão é a sua filosofia, que apenas consiste em tomar o psíquico como ponto de partida. A partir dele vocês deduzem a natureza e só depois da natureza deduzem a consciência humana comum. Este “psíquico” primordial revela-se sempre, portanto, como uma abstração estéril que esconde uma teologia diluída. Como é possível uma filosofia que ensine que a natureza física é um derivado da mente, da ideia? Todos nós sabemos o que é uma ideia humana, mas a ideia sem o ser humano ou anterior ao ser humano, a ideia em abstrato, a ideia absoluta, é uma invenção teológica de vocês! Todos sabem o que é uma sensação humana, mas a sensação sem um ser humano, anterior ao ser humano é um absurdo, uma abstração morta, um artifício idealista!
            – Como vocês são reducionistas! O seu tipo de pensamento está ultrapassado, morreu com os filósofos pré-socráticos! Eu somente posso saber que existo se eu penso, raciocino, produzo ideias! Se eu penso, logo eu existo! Se eu não penso, eu não sinto, eu não existo!
            – A sua filosofia está de cabeça para baixo: eu primeiro tenho que existir física e materialmente, para depois sentir, produzir ideias e poder pensar. Portanto, a lógica é: existo, logo penso! Na verdade, pela sua lógica, não temos aqui as sensações humanas habituais e conhecidas de todos, mas sensações imaginadas, sensações de ninguém, sensações em geral, sensações divinas, tal como a ideia humana se tornou divina na sua filosofia logo que separada do ser humano e do cérebro humano!
            – Vocês não entendem nada! – disse o idealista voltando seu olhar para o chão com uma expressão de desaprovação – Nos igualam aos animais, ao mundano, ao terreno, ao mundo sensível, natural, onde tudo é imperfeito, mutável, corruptível. Somente a ideia pode dar perfeição e ordem a este caos; somente ela pode ter criado tudo isso, comandar tudo isso!
            – Se a natureza é um derivado, uma “criação” – disse o materialista voltando ao seu assento –, é evidente que ela só pode ser um derivado de uma coisa maior, mais rica, mais vasta, mais poderosa do que a própria natureza e o universo, uma coisa que existe para além deles, pois para “produzir” a natureza e o universo é necessário existir independentemente da natureza e até mesmo do universo. Quer dizer: existe alguma coisa fora da natureza e do universo e que, além disso, os produz. A isto, costumamos chamar de “deus”. Vocês sempre se esforçam por modificar esta última designação, por torná-la mais abstrata, mais nebulosa e, ao mesmo tempo, por uma questão de verossimilhança, mais próxima do “psíquico”, como dado imediato que não exige demonstração e nem comprovação.
            – Isso tudo é tolice! Nós nos baseamos nas nossas percepções intuitivas e racionais inatas! – contestou o idealista, já cansado do embate.
            – Nós afirmamos que a experiência socialmente organizada dos seres vivos é um derivado da natureza física, o resultado de um longo processo de desenvolvimento dela, desenvolvimento este que se deu a partir de um estado da natureza física em que não havia e não podia haver sociedade, nem organização, nem derivado desta experiência dos seres vivos. Vocês, idealistas, nos dizem que a natureza física é um derivado desta experiência dos seres vivos e, dizendo isto, equiparam-se à natureza de deus. E nós que falamos tolices? Definitivamente não! A noção de “deus” é, indubitavelmente, um derivado da experiência socialmente organizada dos seres vivos, sobretudo a partir do longo período que se desenvolve na história após a nossa era, a era greco-romana; ou seja: a Idade Média. É o reinado do catolicismo sobre a Europa, que nas etapas seguintes se estenderá ao mundo todo. E é indubitável que o catolicismo seja uma experiência socialmente organizada, sobretudo a partir do feudalismo; só que ele não reflete a “verdade objetiva”, mas apenas a exploração da ignorância popular por determinadas classes sociais[10].
            – É realmente muito difícil discutir com você! Você é intransigente, sectário, e está me agredindo! Quer impor sua opinião sobre os outros! Bem que os neoplatônicos me alertaram sobre vocês – falou o filósofo idealista, se levantando da cadeira como quem dá a entender que vai embora.
            – Na ausência de bons argumentos a acusação é sempre a melhor arma – disse rindo o materialista – A verdade, quer você queira ou não, é que o catolicismo está socialmente organizado, harmonizado, concertado pelo seu desenvolvimento secular; ele encaixa-se do modo mais indiscutível na cadeia de causalidade.
***
            Bem nesse instante entrou na sala histórica um filósofo neoplatônico, que se posicionou ao lado do filósofo idealista.

2
            No campo filosófico, a longa noite medieval se caracterizou pela destruição das obras dos filósofos gregos pré-socráticos – os primeiros materialistas –, o que levou os seus ensinamentos ao esquecimento por mais de mil anos. Em seu lugar, reafirmaram as teses idealistas de Platão, modificando alguns nomes e conceitos, dando origem ao que se chamou de neoplatonismo. Durante o feudalismo, a filosofia se tornou serva da teologia. Todo o “conhecimento” e o debate filosófico eram realizados entre os muros dos mosteiros e controlados com mãos de ferro pela Igreja Católica.
            Segurando uma Bíblia na mão, o neoplatônico disse:
            – A razão é Deus! Deus é razão! Qualquer explicação do mundo que prescinda destas premissas não é filosofia, não é uma explicação, não é nada! Aquele que destrói Deus está destruindo a razão humana e a própria humanidade!
            – Foi exatamente isto que tentei dizer ao mentecapto ali! – disse o filósofo idealista com desdém, apontando para o filósofo materialista.
            – Querer fundir “deus” e “razão” é um artifício muito engenhoso para esconder as profundas contradições em que vocês estão imersos – disse o filósofo materialista.
            – Não há contradição alguma! – disse o filósofo neoplatônico, se apoiando nos ombros do filósofo idealista – Conformemo-nos à analogia da fé, jamais nos esquecendo que devemos repudiar qualquer interpretação contrária à lei divina, ou capaz de nos fazer crer que a nossa santa Igreja, sua hierarquia, seus pensadores, tenham ensinado algum erro, contradito a si mesmos. Tenhamos presente que jamais é possível haver contradição entre a Sagrada Escritura, retamente interpretada, e a verdadeira ciência[11] – enquanto falava, o filósofo neoplatônico erguia a Bíblia.
            – Me chama a atenção as seguintes expressões: “devemos repudiar”, “jamais é possível interpretação contrária”! – o filósofo materialista se levantou e começou a andar em círculos pela sala – Toda esta pomposidade das suas palavras serve unicamente para esconder a ausência de conteúdo, as contradições insolucionáveis de vossa filosofia. É evidente que a intenção é esconder a profunda e irreconciliável contradição entre a sagrada escritura e a verdadeira ciência. Em absolutamente nada batem as afirmações da Bíblia e da ciência moderna. Somente um cego, crente ingênuo incorrigível, ou pessoas mal intencionadas podem afirmar tamanho disparate!
            – Trata-se apenas de uma interpretação literal errada da Bíblia. Tudo o que a ciência moderna afirma já estava contido em metáforas lá – disse o neoplatônico, com os cotovelos escorados nas costas do filósofo idealista.
            – Esta é outra manobra bastante comum. Joga-se tudo para o campo subjetivo da interpretação literal lingüística e tudo está resolvido! Não! – gesticulava de pé o filósofo materialista – Como é possível ignorar a tamanha desproporção entre o tempo mais ou menos calculado entre a criação divina, expressa na Bíblia, e o tempo estimado pela geologia, geografia e astronomia modernas? Um “pequeno erro literal” de mais de 4 bilhões de anos! Não é necessário reafirmar as descobertas da química, física e biologia modernas, que através do darwinismo e, posteriormente, da genética, deram um duro golpe em todas as concepções religiosas da Bíblia.
            – A força divina não se expressa nestas questiúnculas mundanas – gritou o filósofo idealista, que até então ouvia tudo em silêncio –, precisamos investigar as questões metafísicas, da origem de tudo!
            – Sim! ­– disse ironicamente o materialista – Cada um puxa a batalha para o terreno que lhe é mais favorável!
            – Não banque o engraçadinho! – retrucou o idealista – Nem sempre entendemos pela razão, sobretudo pela razão mundana, materialista. A questão envolvendo Deus transcende o seu tipo de terreno. Explora os terrenos da crença humana. Há uma tendência de crermos em tudo o que entendemos, mas nem tudo o que cremos também entendemos.
            O filósofo neoplatônico se intrometeu:
            ­– O grande profeta bíblico, Isaías, dizia ser necessário crer para compreender, pois a fé ilumina os caminhos da razão e, posteriormente, a compreensão nos confirma a crença. Isso significa que, para nós, a fé revela verdades aos seres humanos de forma indireta e intuitiva. Vem depois a razão, esclarecendo aquilo que a fé já antecipou.
            – Novamente a intuição, o transcendental, o incognoscível, o abstrato! – disse o materialista voltando ao seu assento.
            – É Deus que permite às essências realizarem-se em entes, em seres existentes – prosseguiu o neoplatônico, ainda escorado sobre o idealista.
            – É necessário um “primeiro motor”! – afirmou o idealista de dedo em riste – Tudo aquilo que se move é movido por outro ser. Por sua vez, esse outro ser, para que se mova, necessita também ser movido por outro ser, e assim sucessivamente. Se não houvesse um primeiro ser movente, cairíamos em um processo indefinido, aí sim em uma verdadeira contradição!
            – Logo – intrometeu-se novamente o neoplatônico –, é necessário chegar a um primeiro ser movente que não seja movido por nenhum outro. Este ser é Deus! É preciso admitir, assim, que há um ser que sempre existiu, um ser absolutamente necessário, que não tenha fora de si a causa de sua existência, mas, ao contrário, que seja a causa da necessidade de todos os seres e do próprio mundo!
            – Aqui é importante perguntar: “absolutamente necessário” para quem? Para a vossa filosofia que fica num beco sem saída? – ironizou o materialista – Por que um “ser”? Por acaso isso não seria um auto reflexo peculiarmente humano?
            – Ele é incorrigível! – bradou o idealista – Todas as coisas brutas, que não possuem inteligência própria, existem na natureza cumprindo uma função, um objetivo, uma finalidade. Devemos admitir, então, que existe algum ser inteligente que dirige todas as coisas da natureza para que cumpram seu objetivo. Uma das interpretações possíveis é que este ser seja realmente Deus!
            – Com vocês, idealistas, voltamos sempre à estaca zero! É preciso uma inteligência que paire no ar, que viva independentemente do ser humano, da natureza e do universo. E o mais curioso é que ela sempre reflete, direta ou indiretamente, o ser humano e a sua inteligência. Não seria mais honesto reconhecer que nesta concepção existe um quê de místico e primitivo, bastante estranho à concepção científica? Esta última se baseia em evidências, fatos, comprovações; em última análise, em hipóteses desencadeadas pelas evidências; a fé religiosa, por sua vez, é auto suficiente, basta-se equivocadamente a si mesma! O que é a fé se não acreditar cegamente em algo que não há evidências?
            – Ele é realmente incorrigível! – concordou o neoplatônico.
            – Cada um pode acreditar no que quiser! Eu poderia me conformar com isso se vocês não propagassem e doutrinassem centenas de milhares de pessoas neste absurdo, nestas contradições nebulosas, que, no fim das contas, servem para ajudar a perpetuar a ordem social, uma vez que quem é doutrinado no abstrato, não enxerga o concreto, o real! Para isso dispõem de uma estrutura milenar, como a Igreja, de terras, bancos, televisões, universidades, escolas; do senso comum! O idealismo, que vocês representam e propagam, para a vergonha da inteligência humana e da filosofia, é o pensamento mais difícil de combater, embora seja o mais absurdo de todos.
            – “Vergonha da inteligência humana”! Ora, vejam só! – disse o idealista – Representamos a mais fina flor do pensamento racional humano.
            – É verdade! – concordou, indignado, o neoplatônico.
            – É bastante natural que pensem isto! Afinal, não defenderiam suas posições com tamanho afinco, apesar de que muitos dentre vocês, bem como as inúmeras pessoas influenciadas pela sua filosofia, ajam de forma desonesta, pois existem inúmeras brechas para a desonestidade intelectual dentro da vossa concepção filosófica. Transformam a realidade e as descobertas científicas, tal como se apresentam, em distorções agradáveis para aquilo que individualmente gostaríamos que fosse verdade; ou pior, em coisas que sabem que não correspondem à realidade, mas afirmam assim mesmo pela força da inércia intelectual, do medo das conseqüências do próprio pensamento. Preferem interromper a cadeia de conclusões a olhar a realidade de frente, por mais amarga que se apresente!
            – Que absurdo! Agora já beira as raias da agressão – lamentou-se o neoplatônico.
            – Eu gostaria muito de ouvir uma única teoria sua, sem agressões verbais, que nos expusesse a sua concepção sobre deus, sobre o divino, se é que vocês possuem alguma! – desafiou o idealista.
            – Perfeitamente! – disse o materialista se ajeitando na cadeira – Para nós, a religião é o sonho da mente humana. Assim como se interpreta o sonho, é necessário interpretar a religião. Ou seja, é preciso transformar o objeto da fantasia no objeto da realidade. Para começar, eu lhe diria que deus é um substituto paterno, ou mais corretamente, que ele é um pai sublimado, ou, ainda, que constitui a cópia de um pai tal como ele é visto e experimentado na infância; pelos indivíduos em sua própria infância e pela humanidade em sua pré-história, como pai da horda primeva[12].
            – Um profanador! Um herege que se julga a altura do divino, do sagrado! – intrometeu-se o neoplatônico – Vejam só que arrogância! Ele compara a sagrada revelação a uma “fantasia”.
            – Todas as qualidades atribuídas a deus são sempre humanas – prosseguiu o materialista, ignorando as observações do neoplatônico –, não há diferença alguma!
            – Como não?! – indagaram o idealista e o neoplatônico em coro, se entreolhando.
            – Se vocês deixarem, poderei desenvolver a nossa concepção sobre o “divino” até o fim – continuou o materialista.
            ­– Prossiga! – disse o idealista, visivelmente contrariado.
            ­– O ser humano é para si, ao mesmo tempo “eu” e “tu”, pois ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, o gênero humano, isto é, a sua essência, e não somente a sua individualidade, é para ele objeto. Mas a religião é a consciência do infinito, do eterno, certo?
            O filósofo idealista e o neoplatônico assentiram com a cabeça.
– Assim sendo – prosseguiu o materialista –, não é e não pode ser mais que a consciência que o homem tem da sua essência não finita, não limitada, mas infinita. Enquanto indivíduos, temos a noção de que somos finitos; mas enquanto gênero somos infinitos, pelo menos, até que haja um cataclismo que destrua o planeta e, consequentemente, a nossa espécie. Ora, se é assim, então a religião só pode ser, em última análise, a própria consciência que o homem tem de si mesmo enquanto essência infinita. A ilusão fundamental que origina a religião consiste no fato de o ser humano fixar a distinção entre o “eu” e o objeto, considerando sua própria essência infinita, seu objeto, como distinto de si, como deus, tentando, deste modo, superar a tensão fundamental entre o eu e o objeto de sua consciência. Assim, os predicados atribuídos a deus são determinações genéricas humanas. O conceito de divindade coincide com o de humanidade. A noção de deus é, portanto, o relacionamento do ser humano com a sua própria essência, mas com a sua própria essência não como sendo sua, mas de um outro ser supostamente diverso dele. Este processo de cisão coincide com o de objetivação. Este processo de objetivação é desarraigador no ser humano, porque aquilo que é objetivado e afirmado em deus, é negado no ser humano. O ser humano afirma em deus o que nega em si mesmo. Para enriquecer deus, deve o ser humano tornar-se pobre. Tudo de que se priva e dispensa em si mesmo, só goza ele em deus numa intensidade incomparavelmente maior e mais rica. Deus não é o que o ser humano é; o ser humano não é o que deus é. Deus é o ser infinito, o homem o finito; deus é perfeito, o ser humano imperfeito; deus é eterno, o ser humano transitório; deus é santo, o ser humano é pecador. Deus e o ser humano são extremos: deus é unicamente positivo, o cerne de todas as realidades; o ser humano é unicamente negativo, o cerne de todas as nulidades.
            – Não posso acreditar no que escutei! – disse, horrorizado, o neoplatônico.
            – Eu não esperava outra coisa que não isto! – concordou o idealista, também horrorizado – Então você nega que Deus seja a revelação da verdade, expressão da própria existência do ser humano?
            – Sim! – retrucou o materialista – A consciência que o ser humano tem de deus é, na verdade, a consciência que tem da sua própria essência, divinizada, porque a falta da consciência deste fato é exatamente o que funda a base peculiar da religião.
            – Não pode ser! – surtou o neoplatônico – Chamem a Santa Inquisição! Levem este herege aos tribunais da fé! Ele quer separar o homem de Deus! Quer humanizar Deus e não divinizar o homem! Estás negando a possibilidade da humanidade garantir o seu lugar junto ao Criador, seu pecador imundo!
            – O ser humano é o começo da religião, o centro da religião e o fim da religião! – reafirmou o materialista em meio aos gritos histriônicos do neoplatônico.
            – Concordo em partes com você – repensou o idealista de forma oportunista –, mas ainda vejo o espírito divino como criador da realidade e o arauto das grandes realizações humanas.
            – A essência de “deus” pode ser resumida da seguinte maneira: o sentimento da dependência é a sua base. Deste modo, a religião, sobretudo o cristianismo, faz com que o homem não se empenhe nas tarefas temporais, na construção da história e da sociedade, afastando o interesse humano da realidade concreta, devido à espera de um quimérico mundo vindouro. Exatamente por isso deixou de lado os desejos atingíveis do ser humano. Arrancou-o à vida temporária através da promessa da vida eterna; arrancou-o à confiança em suas próprias forças em detrimento da confiança na ajuda de deus; arrancou-o à fé numa vida melhor aqui na Terra e do esforço para consegui-la em detrimento da fé numa vida melhor no céu[13].
            – Seu caluniador! Arderás no fogo do inferno por esta impertinência! – disse o neoplatônico com fogo nos olhos e apontando para o materialista – Saiba que o Criador o castigará por negar-lhe a nossa criação por Ele! Deus nos criou e também pode nos destruir por causa de blasfemadores como você!
            – Não foi deus que criou o ser humano; foi o ser humano que criou deus – respondeu asperamente o materialista.
            – Você quer destruir o amor entre os seres humanos, pois deus é o amor; quer acabar com a esperança, com a vida após a morte. Imaginem uma sociedade sem Deus? Seria o caos! Todos matariam a todos, sem temer a nada e nem a ninguém. O seu problema é que não tem deus no coração – disse, aflito, o filósofo neoplatônico.
            – Por que destruiríamos o amor? Para nós, materialistas, apesar de não necessitarmos de um deus, reconhecemos a existência do amor entre os seres humanos. Não o entendemos como algo abstrato, igual em todas as épocas e lugares, mas como o reflexo da cultura humana e da sociedade. Modifica-se, adquire novos valores, abandona os que tinha. Nunca é igual a si mesmo; não pode ser eterno, nem perfeito. Aliás, este é um grande equívoco dos românticos: achar que o amor é desse jeito. O amor não necessita de receitas e de dogmas. Está na natureza, da mesma forma que a violência. Quanto ao caos e a violência, isso é uma profunda ironia da sua parte, pois a Europa cristã medieval matou inúmeros seres humanos em nome de deus e da santa igreja católica, mas na verdade seu interesse era apenas por terras e poder econômico. Estas justificativas religiosas para as guerras vêm desde a antiguidade e perduram ainda hoje, na contemporaneidade. O mundo moderno descobriu o “super ego”, as pulsões de vida, de morte, de criação e de destruição. Deus não é mais necessário sob nenhum ponto de vista, apenas para a dependência sentimental e ilusória de um pai e de uma mãe superiores. Eu não tenho deus no coração, como você acusa, nem creio na vida após a morte, mas isso não significa que não ame as pessoas que me querem e me fazem bem, da mesma forma que a existência na Terra e o valor da vida adquirem um novo significado muito mais profundo e belo do que as receitas religiosas.
            O filósofo neoplatônico olhava para o materialista atônito, queimando-o e flechando-o com o olhar. Se pudesse enterraria o oponente vivo, para livrar-se de tal inconveniente. Porém, foi a evolução histórica que enterrou a estrutura econômica feudal e, com ela, todo o seu pensamento filosófico, político e social, incluso o pensamento neoplatônico. Sobreveio o período das comoções revolucionárias na Europa: o iluminismo, a idade da razão, da luta contra o obscurantismo religioso medieval, travestido de filosofia.
***
            O filósofo idealista retirou-se da sala histórica com o seu aliado neoplatônico, enquanto o filósofo materialista seguiu sentado em seu lugar, esperando o retorno do oponente. Dentro de alguns instantes, o filósofo idealista entrou novamente na sala usando uma peruca branca com rolinhos e vestindo uma roupa clássica da Europa do século XVIII. Junto com ele, adentrou o recinto um filósofo “materialista envergonhado”, que se posicionou ao lado do materialista que já estava lá.

3
            O filósofo materialista, olhando para os demais, retomou a palavra:
            – Outra questão fundamental da filosofia, intimamente ligada com o debate anterior, deve tomar a nossa atenção agora: como se conhece a realidade? Isto é, como a humanidade, que tem tão vasta cultura técnica e científica, pelo menos se comparado com os outros seres vivos, adquire conhecimento? Qual é a sua base e fundamentação?
            – São questões profundas e interessantes – disse o idealista –; sem dúvida nos encontraremos em campos opostos!
            – Me diga, então, caro opositor, como a humanidade adquire conhecimento? – indagou rapidamente o materialista – A humanidade pensa antes de agir ou age e depois pensa, tal como dizia o Evangelho de são João, que “no início era o verbo”? Ou, dito de outra forma: a humanidade teoriza primeiro e depois pratica, ou pratica e depois teoriza?
            – Nós partimos da compreensão da doutrina das ideias inatas, ou “inatismo”, se preferir, que sustenta que o homem nasce com determinadas crenças verdadeiras e já possui, em germe, o verdadeiro conhecimento racional. Os filósofos que sustentavam tal concepção, justamente por isso, ficaram conhecidos como “racionalistas”. Segundo eles, a alma humana teria uma espécie de repositório de informações conferidas por Deus ou pela ideia absoluta, e isso validaria as certezas sobre as coisas do mundo, que, em última instância, são criadas por estes seres superiores.
            ­– Estes “racionalistas” partem da mesma compreensão que vocês; qual seja: que a ideia determina e cria o universo, o mundo e a natureza a nossa volta, certo? ­– indagou o “materialista envergonhado”.
            – Exatamente! – confirmou o idealista – Sendo assim, para nós, São João estava correto: no princípio era o verbo! O pensamento precede a ação; logo, a teoria precede a prática. E a vossa concepção sobre o conhecimento, qual seria?
            – Partimos do pressuposto que ao nascermos somos como um papel em branco, uma “tábula rasa”, diziam os filósofos empiristas, que é escrita e marcada na medida em que vivemos e temos experiências de mundo.
– Suponhamos, pois – disse o idealista –, que a mente é, como você disse, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer ideias; como ela é suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do ser humano pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento?
– A isso respondemos, numa palavra: da experiência prática! – disse categoricamente o materialista – Todo o nosso conhecimento está fundado nela; e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. É por isso que, para nós, no início era a ação, ação e mais ação, baseada no espontaneísmo das necessidades. Primeiro se pratica e, no decurso deste processo, se tira algumas conclusões que se transformam em teoria, que pode ser passada adiante para as gerações seguintes.
O filósofo “materialista envergonhado” interrompeu:
– Estas gerações futuras podem pensar em cima de “teorias” sistematizadas em forma de conhecimento e recebidas do passado, porém, não sabem que se trata de um conhecimento baseado em uma prática inicial, fruto de alguma necessidade humana. A nossa filosofia tenta ajudá-las a tirar estas conclusões.
– Muito interessante! – disse o idealista – Mas parece que falta alguma coisa. Vocês poderiam me dar algum exemplo para ilustrar?
– Com prazer! – assentiu o filósofo materialista – Imaginemos que estamos na pré-história, quando a humanidade ainda não dominava a indústria da produção de lenha. Como ela fazia para alimentar o fogo, essencial para a sobrevivência dos bandos nômades? Logo após o descobrimento da utilidade do fogo e o seu domínio, entendeu-se que ele precisava ser alimentado permanentemente. Os seres humanos pré-históricos tentaram queimar vários objetos, alguns soltavam muita fumaça, tendo baixo custo-benefício; outros não queimavam, como as pedras; a madeira proveniente das árvores foi a solução ideal e lógica. Como chegamos à fabricação dos machados e das serras elétricas modernas para cortar árvores?
– Certamente surgiu de algum cérebro privilegiado, que o projetou a partir da idealização inata de sua capacidade racional – respondeu o filósofo idealista.
            – Não! – contestou o filósofo materialista – No início se pegava os gravetos e pedaços de madeira caídos no chão; depois, passaram a cortar os galhos com as mãos, com o peso do corpo, na base de muito esforço físico. Pensem no cansaço, no desgaste, nos ferimentos resultantes, no dispêndio de energia para o pouco resultado efetivo. A experiência levou a conclusão da necessidade de se utilizar um intermediário entre as mãos e a árvore, ou seja, algum meio. No início foram as pedras lascadas, os machadinhos de sílex (no caso de algumas tribos) e, finalmente, após o domínio da metalurgia, o machado de lâmina de ferro. O surgimento do machado de ferro é impensável sem toda esta experiência prática prévia.
            – Vocês invertem a lógica – contestou o idealista –, isto é um contra senso! Platão, no diálogo Fédon, diz que conhecer é recordar-se daquilo que nossas almas imortais, que habitavam o “mundo das ideias”, já sabiam, mas, que ao nascer, esquecemos. Logo, o surgimento do machado de ferro no mundo sensível é um reflexo da ideia de machado, que já existia no “mundo das ideias”.
            – Você tinha razão quando disse que estaríamos em campos opostos – falou o “materialista envergonhado”.
            – Após este processo ­– retomou o materialista –, quando a humanidade começou a produzir machados de ferro e transformou a produção de lenha num ofício, a experiência diária dos lenhadores foi levando ao aperfeiçoamento seus instrumentos de trabalho, isto é, os machados. Cada vez mais sua aerodinâmica vai se modificando para facilitar os movimentos e melhorar o desempenho. Todas essas modificações não surgiram primordialmente da mente humana, do mundo das ideias ou de uma suposta razão pura, mas surgiram como reflexo da experiência da prática social, representada, sobretudo, pelo trabalho. Sendo assim, as ideias surgem na mente humana não “do além”, mas da sua atividade prática. Poderíamos dar o mesmo exemplo sobre a “descoberta” do fogo, da roda, da medicina, do surgimento das demais indústrias. Como já foi dito, uma vez que a ação e a experiência levam a uma conclusão, a uma teoria, esta é passada para as gerações futuras, que podem pensar a partir dela, sem ter passado pela experiência inicial. Isso dá a plena impressão de que as ideias se formam do nada, que teorizamos antes de praticar, que o conhecimento humano provém de uma espécie de “razão pura”. Mas isto é um engano. As ideias, as teorias e os pensamentos são uma reprodução mais ou menos exata do que a realidade projeta sobre os nossos sentidos.
            – Como vocês são reducionistas! – afirmou o idealista se colocando de pé e ajeitando o seu sobretudo – Rejeitamos o conhecimento objetivo que vocês defendem! Rejeitamos que o espaço e o tempo existam realmente fora de nós! Rejeitamos que na experiência exista necessidade, casualidade, força! Não se pode atribuir realidade fora de nossas representações! Que vocação para menosprezar o poder das ideias e da razão humana; para rebaixar o ser humano a um nível inferior!
            – Não se trata disso – retomou a palavra o materialista –, mas de visões de mundo opostas, que resultam em caminhos completamente diferentes.
            – Mesmo entre vocês existem divergências profundas! – falou o idealista, de pé, apontando para os materialistas.
            – Como assim? – perguntou admirado o “materialista envergonhado”.
            – Muitos de vocês não descartam a ideia de Deus, de um criador; outros colocam em dúvida a possibilidade de se conhecer a própria essência da matéria; outros, dizem que o conhecimento provém da experiência sensível, mas não reconhecem a possibilidade de que os sentidos estejam em contato com uma realidade que exista realmente; outros tentam fazer uma junção entre o materialismo e o idealismo, sem se definir pela preponderância de nenhum. Ou seja, existem muitas posições filosóficas entre vocês, cujo traço fundamental é a conciliação entre o materialismo e o idealismo, o compromisso entre um e outro, a combinação num só sistema de correntes filosóficas heterogêneas e opostas – disse, bufando, o idealista.
            – Realmente; não o nego! – afirmou o filósofo materialista – Penso que isto seja um equívoco por parte dos filósofos que você citou. Deve-se notar que as proposições básicas de ambos os tipos de pensamento se opõem absolutamente. Um deve estar correto e o outro errado. Não podem ser ambos corretos! Quem sustenta consequentemente as posições de um, inevitavelmente chega a conclusões absolutamente opostas às do outro. De fato a história da filosofia exibe muitas combinações de ideias e métodos que ocupam todo um espectro de posições entre ambos os extremos. Ainda que estas matizes do pensamento não possam se agrupar incondicionalmente sob nenhuma das duas categorias claramente definidas, só podem ser entendidas referindo-se a elas. Só seremos capazes de analisar e compreender todas estas formações complexas e contraditórias da história da filosofia se captarmos a fundo as ideias que caracterizam os dois oponentes principais. Com eles não se esgota o campo da filosofia, mas o dominam. Determinam as tendências principais de sua evolução e as posições reais das escolas que oscilam entre ambos. Constituem o guia que nos permite orientarmo-nos firmemente e sem nos perder no labirinto das opiniões e controvérsias filosóficas.
            O “materialista envergonhado” corou e desviou o olhar para o chão.
            – Porém – prosseguiu o materialista –, é preciso dizer que, apesar dos erros inevitáveis, cada uma das grandes escolas filosóficas materialistas trouxe à luz, à sua maneira e de acordo com as condições de sua época, novos aspectos do pensamento materialista. Cada um contribuiu com elementos essenciais da criação do todo, aprofundando a compreensão da natureza, da sociedade, da mente humana e das relações entre todos estes elementos, mesmo que de forma contraditória e híbrida. A filosofia materialista não só mudava formalmente em cada etapa do seu desenvolvimento, mas também se diversificava consideravelmente e ampliava a sua perspectiva. Deste modo, se penetrava cada vez mais na realidade e na essência da matéria.
            – Mentira! – bradou o idealista – Este filósofo ao seu lado acha que não é possível penetrar na realidade; ou seja, não se pode conhecer a essência da matéria. Eu conheço muito bem a sua concepção! – enquanto gritava, o idealista olhava fixamente para o “materialista envergonhado”.
            Extremamente constrangido e contrariado, o “materialista envergonhado” tomou a palavra:
            – Sou levado a concluir que nossas percepções sensoriais realmente se baseiam em “coisas em si”, ou seja, que estão objetivamente fora de nós.
            – Sim, neste caso estamos em pleno acordo! – interrompeu o materialista.
            – Mas o eixo da questão não está aí! Conclua o seu raciocínio – ordenou o idealista.
            – Er... a “coisa em si” existe realmente fora de nós – prosseguiu o “materialista envergonhado” –, mas ela é incognoscível!
            – Ha ha ha! – riu o idealista – Aí está a contradição! Para alguns de vocês – enquanto falava ele apontava para o “materialista envergonhado” – a matéria é incognoscível, impenetrável, o pensamento e o conhecimento humano nunca serão capazes de desvendá-la!
            – Er... me desculpem, mas como é que podemos saber se os nossos sentidos, que nos trazem sensações subjetivas, podem nos fornecer uma sensação correta? Passar do fenômeno, isto é, das nossas sensações, percepções, etc., à coisa existente fora da nossa percepção sensorial é um contra senso; e admitimos esse contra senso não para o conhecimento, mas apenas para a fé – falou outra vez extremamente constrangido o “materialista envergonhado”.
            – Aí está! Aí está! – disse, triunfalmente, o filósofo idealista – Todos os caminhos levam à nossa filosofia; vocês estão derrotados!
            – Ledo engano, caro amigo! – retomou a palavra o materialista – Este filósofo não passa de um idealista disfarçado com uma máscara de materialismo. O seu pensamento é de um autêntico “materialista envergonhado”. Tirou inúmeras conclusões materialistas, como por exemplo, o fato da realidade existir fora de nós, objetivamente, mas faz um lamaçal confuso a partir destas conclusões. Qualquer diferença misteriosa, engenhosa e sutil entre o fenômeno e “a coisa em si”, isto é, os objetos materiais e a própria materialidade da natureza que nos cerca, é um completo disparate filosófico. Na realidade, cada ser humano já observou milhões de vezes a transformação simples e evidente da “coisa em si” em fenômeno, em “coisa para nós”. Esta transformação é precisamente o conhecimento construído pela humanidade.
            – Não existe um conhecimento construído pela humanidade, mas apenas o conhecimento concedido pela graça de Deus ou da Ideia Absoluta! – redargüiu o idealista – A conclusão do pensamento deste filósofo – o idealista apontava para o “materialista envergonhado” –, a coroação do seu sistema, é a mesma que a minha; a saber: se não podemos conhecer a matéria, chegar na essência da realidade, conhecer a “coisa em si”, então caímos inevitavelmente na conclusão de que a origem do ser humano, do planeta, do universo, da natureza, enfim, da matéria, seguem sendo tão misteriosos quanto sempre o foram! Somente o divino e o superior a releva para nós.
            – A natureza e suas manifestações são a tradução do que é “deus” – disse o “materialista envergonhado” – Não acho que deus ou uma “ideia absoluta” criaram a natureza e a regem, mas são idênticos à ela, são a mesma coisa. Nunca conseguiremos penetrar nos meandros dessa natureza, dessa realidade, de sua matéria, e, por isso mesmo, chegar à “verdade” é impossível.
            – Discordamos! – falaram em uníssono o materialista e o idealista.
            – Discordam? – horrorizou-se o “materialista envergonhado”.
            – Sim! Totalmente! – começou o idealista – É evidente que existe uma “verdade” e esta se encontra em Deus, na Ideia Absoluta, nas revelações divinas e filosóficas sobre a preponderância da ideia sobre a matéria. Quando chegamos a esta consciência plena a verdade absoluta se revela para nós em toda a sua plenitude – concluiu o filósofo idealista erguendo suas mãos aos céus.
            – Discordo de você – disse o materialista apontando para o “materialista envergonhado” – e de você também! – apontou para o idealista.
            – Naturalmente! – disparou o último com uma expressão de desdém.
            – Podemos sim conhecer a realidade, a natureza, a matéria ­– disse o materialista –, mas isso nada tem a ver com uma verdade absoluta, eterna, divina.
            – Se a “verdade” é uma forma da experiência humana – levantou-se o “materialista envergonhado” –, não pode haver “verdade” independente da humanidade, não pode haver “verdade objetiva”.
            – Bravo! – gritou o idealista – Nesse ponto estamos de acordo! Se a “verdade” é uma forma organizadora da experiência humana, não pode ser verdadeira a afirmação da existência da Terra fora de toda a experiência humana. A verdade é relativa e imaterial; ela só se torna absoluta e eterna em Deus, ou na Ideia Absoluta, se preferir!
            – Vocês estão equivocados, caros amigos! – disse o materialista abrindo os braços – A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na prática que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da prática é uma questão puramente escolástica, metafísica, abstrata e ilusória[14]!
            – Ousa menosprezar outra vez a força da racionalidade humana! – disse o idealista, indignado – Não se trata de falar sobre “realidade”!
            – Não é possível conhecer a “verdade” e nem a realidade objetiva – concluiu o “materialista envergonhado” – Isso tudo é perda de tempo!
            – De qualquer forma, gostaria de ouvir os disparates finais do caro filósofo – disse o idealista olhando para o materialista.
            – Claro que sim! Será um prazer – disse, sorrindo, o filósofo materialista – O ponto de vista da vida, da prática, deve ser o ponto de vista primeiro e fundamental da teoria do conhecimento. E ele conduz inevitavelmente ao materialismo, afastando desde o princípio as invencionices intermináveis da escolástica professoral idealista. Naturalmente, não se deve esquecer que o critério da prática nunca pode, no fundo, confirmar ou refutar completamente uma representação humana, qualquer que seja. Este critério é também suficientemente “indeterminado” para não permitir que os conhecimentos do homem se transformem num “absoluto”, e, ao mesmo tempo, suficientemente determinado para conduzir uma luta implacável contra todas as variedades de idealismo e agnosticismo, aos quais vocês representam. Se aquilo que a nossa prática confirma é a única e última verdade objetiva, daí decorre o reconhecimento de que o único caminho para esta verdade é o caminho de que a ciência assente no ponto de vista materialista. A única conclusão a tirar da opinião partilhada pelos materialistas consiste no seguinte: seguindo pelo caminho da filosofia materialista, nos aproximaremos cada vez mais da “verdade objetiva”, sem nunca a esgotar; mas, seguindo por qualquer outro caminho, não podemos chegar senão à confusão e à mentira[15].
            – Que absurdo! – bradaram o idealista e o “materialista envergonhado” em uníssono.
            – Eu ainda não terminei! – prosseguiu o materialista – O avanço da ciência moderna tem decidido definitivamente a questão em favor do materialismo. Por exemplo: as ciências da natureza não permitem duvidar de sua afirmação de que existência da Terra antes da humanidade é uma verdade. Isto é perfeitamente compatível com a teoria materialista do conhecimento: a existência do que é refletido na mente humana, independentemente daquilo que reflete, é a premissa fundamental do materialismo. Ou seja, a independência do mundo exterior em relação à consciência. A afirmação das ciências da natureza de que a Terra existia antes da humanidade é uma verdade objetiva. Esta tese das ciências da natureza é incompatível com a filosofia idealista ou agnóstica; sobretudo com a doutrina da “verdade” de ambas as filosofias. Indo mais além, é possível afirmar que não conhecemos a “verdade” na questão da forma da Terra? Durante séculos se sustentou erroneamente que a Terra era plana. Passadas inúmeras gerações de pensadores que foram mortos pela Igreja por sustentaram concepções opostas, as grandes navegações, o surgimento dos aviões, dos satélites e dos avanços da ciência moderna, é possível negar que a Terra seja esférica?; que essa conclusão seja uma “verdade” inquestionável, conquistada pela prática e pelo avanço tecnológico e científico humano?
– Sabemos que existe uma série de outros filósofos que negam a possibilidade de se conhecer o mundo, ou, pelo menos, de conhecê-lo de modo completo – interviu o “materialista envergonhado” – Entre os mais modernos encontramos David Hume e Kant, que desempenharam um papel muito importante no desenvolvimento da filosofia.
– Em refutação aos seus pontos de vistas – prosseguiu o materialista –, os argumentos decisivos já foram dados por Hegel na medida em que isso podia ser feito de uma perspectiva idealista. A refutação mais contundente dessas noções filosóficas é, como eu já disse, a prática, principalmente a experimentação e a indústria. Se podemos demonstrar a exatidão de nossa maneira de conceber um processo natural, por exemplo, reproduzindo-o nós mesmos, criando-o a partir de suas condições próprias; e se, além disso, o colocamos a serviço de nossos próprios objetivos, então acabamos com a “coisa em si” inacessível de Kant. As substâncias químicas produzidas no mundo vegetal, mineral e animal continuaram sendo “coisas em si” inacessíveis, até que a indústria química começou a produzi-las, uma após a outra; com isso, a “coisa em si” converteu-se em coisa para nós, como por exemplo, a matéria corante de garança[16], a alizarina, que já hoje não se extrai da raiz daquela planta, mas obtém-se do alcatrão de hulha, por um processo muito mais barato e mais simples. A química e a física quântica, penetrando cada vez mais na essência da matéria, nos desmistificam a sua composição. Se, apesar de tudo isso, vocês idealistas, agnósticos e “neo-kantianos”, tentam nos fazer crer que não podemos conhecer a essência da realidade, da matéria, bem como nos negam a possibilidade da existência de uma “verdade objetiva”, então, essas tentativas, agora que suas doutrinas filosóficas estão refutadas prática e teoricamente, defendê-las somente pode ser encarado como um retrocesso científico e, na prática, nada mais do que uma forma vergonhosa de aceitar o materialismo às escondidas e de renegá-lo em público[17].
            O filósofo “materialista envergonhado” levantou-se, ultrajado, e retirou-se da sala.
            – Veja só o que fez! – falou o idealista apontando para a porta – Este é o resultado de sua filosofia, o afastamento das pessoas. Vocês são sectários, querem impor sua opinião sobre os demais! E o pior de tudo, caem numa contradição, pois a sua “filosofia materialista” não passa de um conjunto de ideias, logo, voltamos ao início.
            – Que grandes mestres da confusão, do labirinto sem saída, da enrolação! – disse o materialista erguendo o braço, indignado – Vocês não conseguem achar uma resposta plausível e aí apelam para o emocional, para o lado individual, declaram-se ofendidos pessoalmente. Isto não faz parte do debate científico e filosófico!
            – Pois então me responda! – disse o idealista, também indignado – A filosofia materialista não é um conjunto de ideias, portanto, demonstrando, na prática, a preponderância das ideias sobre a matéria?
            – Caro opositor, esta forma de colocar a questão apenas obscurece o debate. O fato da filosofia materialista se expressar através de uma doutrina de ideias não demonstra em nada a supremacia das ideias sobre a matéria na questão fundamental da filosofia, que pretende desvendar o que determina primordialmente a realidade e qual a fonte real do nosso conhecimento. O materialismo não nega a existência das ideias, apenas nega que as ideias possam existir sem a matéria, andando soltas pelo ar. Expressamos a nossa concepção filosófica através de um conjunto de ideias, que são o resultado da evolução da técnica, da ciência e da prática social, isto é, do trabalho, de mais de 3 mil anos de história, pelo menos. Estas conclusões não surgiram do além, como você dá a entender, mas desta evolução social, econômica e cultural.
            Já aflito e nervoso, o idealista dispara:
            – Mas de onde surgiu essa cadeira que estamos sentados senão da mente humana, que a idealizou, pensou, projetou e a fez surgir?
            – Este tipo de pensamento em nada apaga o que já foi dito: o fato de uma cadeira ser pensada antes de ser produzida, tal como o arquiteto que idealiza e calcula a construção de um edifício no papel, não significa que ela surja com o poder da mente, mas apenas através do trabalho conjugado de pedreiros e engenheiros, bem como de todas as matérias primas e os meios de produção necessários. O ofício de marceneiro e arquiteto, que idealizam e pensam os móveis e as construções, é, como já foi dito, o resultado da evolução social, sobretudo da experiência de séculos de construção de casas e utensílios domésticos, que foram aperfeiçoados a partir desta experiência. Esta é apenas uma das confusões envolvendo o termo “materialismo” e “idealismo”, que vocês ajudam a propagar. Existe ainda aquele outro senso comum que entende por “materialismo” o comer e beber sem medida, a cobiça, o prazer da carne, a vida esbanjadora, a avareza, a ânsia de dinheiro e de lucro; e por “idealismo” a fé na virtude, no amor ao próximo, num mundo melhor ou numa “causa” justa. Há que se cuidar destes dois erros semânticos que levam a conteúdos completamente diferentes. Não podemos confundir a concepção filosófica de tais palavras com a concepção do senso comum! Os malabarismos semânticos e etimológicos constituem o último recurso da filosofia idealista.
            – Vocês se acham os donos da verdade – choramingou o idealista ­–, tem respostas prontas para tudo!
            – A questão é simplesmente a seguinte – retrucou o materialista –: temos uma concepção de mundo que nos faz mais sentido; e é, em tudo, oposta à vossa. Não somos donos de uma suposta “verdade”. Ela está em movimento, bem como a realidade. Justamente por isso não pode ser eterna, imutável, absoluta; ela também não tem suas raízes no ar, mas na realidade material. Sabemos que existem inúmeras lacunas na nossa concepção filosófica, que cremos ser a base para a evolução do pensamento científico, mas isso não significa que a concepção idealista ou religiosa consiga preencher essas lacunas. Apenas o esforço honesto e incansável desta geração e das futuras será capaz de ir, gradativamente, preenchendo-as. Nos esforçamos para isso.

4
            Os filósofos materialista e idealista já usavam ternos e gravatas dos séculos 19 e 20 quando chegaram ao diálogo que segue:
            – Como não poderia deixar de ser – iniciou o materialista –, cada uma das concepções filosóficas apresentadas tem uma visão sobre a sociedade.
            – Naturalmente! – assentiu o idealista.
            – Portanto – prosseguiu o primeiro –, acabam tendo e apoiando, de uma forma ou outra, uma posição política.
            – Provavelmente sim – disse o idealista –, mas quero que me explique melhor aonde quer chegar com isso.
            – Com prazer, caro amigo! – falou o materialista, sorrindo. Ele pigarreou, ajeitou-se melhor na cadeira, e disse:
– Agora é preciso encontrar as forças que movem a sociedade, suas raízes e alicerces. Segundo a sua concepção filosófica, onde predomina a explicação da história pela vontade de deus, se tenta explicar as transformações históricas pela evolução dos costumes e das ideias. Seus representantes mais destacados foram os apologistas do capitalismo dos séculos 18 e 19: Voltaire, Saint-Simon, Montesquieu; a escola filosófica alemã, Hegel, Schelling, etc.
– Hegel foi um dos primeiros filósofos a buscar uma explicação para a história. Ele pertence ao nosso campo filosófico – disse o idealista, orgulhoso.
O materialista calou-se, ouvindo o que o oponente dizia:
– Como eminente pensador idealista dialético, Hegel considerava que a história estava sujeita à leis, mas essas leis seriam a expressão da “Ideia Absoluta”. Para ele, a razão governa a sociedade. O espírito, que ele não entendia como sendo “Deus”, mas a “Ideia Absoluta”, era a base da história. A “razão” seria a expressão da natureza humana. Fora dela só existiria o absurdo.
            – Sim, já falamos sobre isso – disse o materialista, olhando fixamente para o adversário – Seguindo a lógica de suas explanações anteriores, podemos concluir que, para vocês, a história não é explicada pela prática social, mas pela evolução das ideias, pela natureza humana ou pela vontade de “deus”. Dessa forma, a história orientaria-se para um objetivo ideal, fixado antecipadamente; segundo Hegel, para a realização da “Ideia Absoluta”. Não negamos que as ideias e os costumes são elementos importantes da realidade. Nesse sentido, o idealismo encerra uma parte da verdade. O seu erro não consiste em sublinhar a importância da ideia ou da razão, mas considerá-la como causa primeira ou mais profunda da história e da evolução social. Não seria a “ideia” governada, por sua vez, por outras causas?
            – É claro que não – disse, convictamente, o idealista –, ela se basta a si mesma! É a causa de tudo.
            – Para nós isso é um contra senso! – prosseguiu o materialista – É claro que as ideais são governadas por outras causas, como já defendemos antes. Na procura dessas causas, muitos filósofos avançaram no sentido do materialismo, mas sem superar o idealismo totalmente. John Locke afirma que as ideias têm origem na experiência. Saint-Simon procura sentar as bases de uma história científica elaborando uma teoria da luta de classes: a luta do terceiro estado (a burguesia) contra a aristocracia (o feudalismo). A Revolução Francesa era para Saint-Simon apenas um episódio da grande luta multissecular entre os industriais e os nobres. A luta de classes seria uma luta entre interesses opostos e geraria as ideologias correspondentes. No entanto, como ideólogo burguês, via nos interesses da burguesia, então progressivos, a culminância do desenvolvimento social e histórico. Para os filósofos idealistas do passado, as massas ou as classes não existiam. A história era obra dos grandes homens (guerreiros, generais, sacerdotes, reis, imperadores) ou dos deuses. Mas, diante da grande Revolução Francesa, resultava impossível não reconhecer o papel das massas populares. Assim, vemos que essa revolução, manifestação da luta de classes por excelência, provoca uma revolução paralela no mundo das ideias dominantes.
            – Você está me dizendo que a luta de classes é a causa que governaria as ideias e as ideologias? – indagou o idealista.
            – Sim, é uma parte importante destas causas.
            – Que blasfêmia! ­– indignou-se o idealista – Vocês continuam querendo menosprezar as ideias e a racionalidade humana!
            – Evidentemente que a luta de classes também tem as suas causas materiais – complementou rapidamente o materialista.
            – E quais seriam? – perguntou o idealista, curioso.
            – A economia, as relações de produção entre os seres humanos e a base material sobre a qual se ergue os pilares da sociedade, bem como as suas ideias e ideologias correspondentes.
            – Mas a economia é uma concepção do ser humano – disse o idealista –, foi criada por ele, da mesma forma que a sociedade, que é composta por seres humanos, que pensam, que criam.
            O materialista respirou fundo, como que cansado de explicar para quem não quer entender; olhou para o seu oponente e disse:
– Não são os objetivos isolados que explicam os fenômenos sociais e históricos, mas as leis econômicas imanentes. Somente essas leis podem explicar os grandes acontecimentos e ações de massas: as guerras, as revoluções, a queda dos impérios, etc. Essas leis são a causa determinante que se reflete na consciência das massas e de seus líderes, os que foram chamados de “grandes homens” pela historiografia antiga. Os processos que ocorrem na consciência das massas não são independentes da realidade material. As causas primeiras das grandes transformações sociais não devem ser procuradas na cabeça dos homens, mas nas transformações operadas no modo de produção, isto é, na economia. Não é a consciência que determina o ser, mas o ser social que determina a sua consciência.
– Absurdo! – gritou enfaticamente o idealista – Para nós o que importa é a índole humana, as suas ideias inatas. A economia é determinada pelas concepções do homem e deve estar de acordo com a sua natureza, tal como o capitalismo está.
– Errado! – bradou o materialista – A nossa concepção da história, o materialismo histórico, não concorda que apenas o capitalismo corresponda à natureza humana. Todos os sistemas sociais que estejam de acordo com o nível de desenvolvimento econômico também o correspondem. Não existe um sistema social ideal. Cada forma de sociedade, cedo ou tarde, deve ceder lugar à outra forma mais adiantada. O progresso econômico e social é a lei mais geral. Os seres humanos não criam a história de acordo com os seus desejos e concepções in abstractum, mas de acordo com as condições econômicas e materiais herdadas das gerações passadas. Assim, é o estado econômico de um povo que determina, por sua vez, seu estado político, filosófico, científico, tecnológico e assim sucessivamente[18].
– E o estado econômico, não teria outras causas? – indagou o idealista.
– Sem dúvida – respondeu o materialista –, como todas as coisas do mundo têm sua causa, e esta causa, causa fundamental de toda evolução social e, portanto, de todo movimento histórico, é a luta que o ser humano trava com a natureza para assegurar a sua própria existência. Na produção social da sua existência, os seres humanos entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um grau de desenvolvimento determinado das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social[19].
– Não, não e não! – desesperou-se o idealista – Está na natureza humana ser competitivo, por isso o capitalismo expressa o melhor sistema econômico que podemos criar.
– Potencialmente os seres humanos podem ser competitivos ou não – disse o materialista ­– Quem acirra a competição e a luta de todos contra todos não são os seres humanos no abstrato, descolados da realidade material e social, mas aqueles que estão condicionados por uma sociedade concreta, que opera segundo valores concretos, que valoriza e incentiva a competição acima da cooperação e da solidariedade. O capitalismo é apenas um degrau na evolução social humana, assim como o escravismo e o feudalismo também o foram. Conforme as leis materiais que regem a evolução da natureza e do universo (isto é, segundo o materialismo dialético), num certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é apenas a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais até então se tinham movido. Trocando em miúdos, isso quer dizer que um sistema econômico vai ser substituído por outro através de uma revolução social, mais cedo ou mais tarde, nem que seja através de um colapso econômico e social que ocasione um declínio generalizado, até que as gerações humanas futuras consigam se reorganizar para superar estes entraves. Quem pensa de forma diferente, desconsidera a dialética da realidade, portanto, age como um reacionário, como um entrave para o desenvolvimento político, social, econômico, filosófico e científico!
– Está nos chamando de retrógado? – indagou o idealista, surpreso.
            – E por que não? – respondeu o materialista – É só reparar o papel cumprido por vossa filosofia ao longo da história: a doutrina platônica das Ideias ou Formas Eternas como causas, cumpre uma função indispensável e auxiliar na dominação de classe. Chega a ser a base racional da aceitação das ideias absolutas e de normas atemporais imunes à mudanças. Garantiam que os “melhores” possuíssem o direito de governar, ou seja, os aristocratas, e que a justiça que estes administravam estava enraizada de forma imóvel nas “verdades eternas”. Daí advém a justificativa para a dominação escravista de uma classe sobre a outra, afirmando que “alguns homens nasceram para pensar e governar” (os que receberam uma “pitada de ouro” na criação) e outros “nasceram para trabalhar” (os que receberam uma “pitada de prata e bronze”). Recobrem este absurdo com uma aura de “eternidade” e divinizam esta conclusão, jogando suas origens para um passado longínquo, muito longe de uma investigação imediata e de uma verificação fácil. A filosofia idealista platônica, de uma forma ou outra, induz a pensar que “deus” criou as desigualdades sociais, que estas se originam de diferenças inatas que vem desde a criação dos seres humanos e que, portanto, estão na própria natureza das coisas. Se aqueles constituídos de “metal ordinário”, isto é, os de prata e bronze, tomarem o poder, a ordem divina será alterada e a sociedade irá à ruína.
            – Então você reduz o precioso e rico pensamento platônico e socrático a uma forma de encobrir a dominação de uma classe sobre a outra? Que reducionismo anacrônico! – falou com desdém o idealista.
            – A diferença essencial entre o idealismo atual, ainda vivo e lamentavelmente infiltrado no pensamento científico, e o antigo, é que os titãs do idealismo da antiguidade, como Sócrates e Platão, bem como os do começo da era burguesa, como Descartes, Hume, Kant e Hegel, contribuíram com muitos elementos valiosos ao avanço do conhecimento, que foram incorporados ao tesouro do pensamento filosófico humano; enquanto que os pigmeus idealistas contemporâneos, pós-modernos e afins, repetem os velhos erros da antiguidade que atrasam o avanço da filosofia, da ciência e, consequentemente, da sociedade. Além do que, a franqueza com que Platão trata a questão da dominação de classe contrasta com a hipocrisia atual com que os ideólogos e políticos modernos ocultam a influência reacionária das instituições e ideias religiosas. O maior serviço que os idealistas prestaram à religião e às classes dominantes é o de terem feito o sobrenatural mais aceitável para a mente crítica, atribuindo razões lógicas para a sua existência e supostas “atividades”. Depois vieram os teólogos e padres medievais, que, se sustentando nas mesmas concepções platônicas, justificavam a existência de senhores feudais e servos como “ordem divina” e “natural” do mundo. Atualmente, os ideólogos burgueses e filósofos modernos se sustentam em supostos “argumentos sociológicos” que tem as mesmas raízes idealistas para lutar contra os socialistas que querem derrubar a ordem social capitalista e, assim, libertar as amarras da economia e da ciência para que evoluam sem entraves; pelo menos sem os entraves medievais, religiosos e místicos, que correspondem à infância intelectual da humanidade.
            – E que “argumentos sociológicos” seriam estes? – questionou o idealista, num misto de curiosidade e horror.
            – São vários! – disse o materialista erguendo a mão – A classe dominante os dissemina por diversos meios: grande imprensa, escolas, universidades, etc. Eles dão base para o senso comum da sociedade capitalista atual. Vejamos um caso específico: o problema da violência urbana! Os crimes, que aumentam assustadoramente nas grandes cidades, seriam cometidos como um reflexo de problemas sociais ou da mentalidade individual dos criminosos?
            – Trata-se de um problema de índole – respondeu o idealista –, ou seja, é inato; portanto, seu centro está na mentalidade, em homens que não conseguem resistir à tentação de fazer o mal.
            – Errado! – disse o materialista – A causa da criminalidade encontra-se nas desigualdades sociais e, secundariamente, na mentalidade humana.
            – Como é possível hierarquizar e separar a sociedade da mente humana? – disparou o idealista.
– Certamente que um fator não exclui o outro – disse, ligeiramente, o materialista –, nem se trata de uma mera questão mecânica de hierarquia, mas aqui precisamos encontrar as raízes principais. As classes dominantes, sobretudo a burguesia, têm interesse em esconder as bases reais, materiais e econômicas da sua exploração social. Enquanto luxo e ostentação se concentram nas suas mãos, miséria, opressão e barbárie se concentram no lado dos “de baixo”. É esta ostentação e exploração que gera a miséria, a fome, o desemprego, a competição brutal entre os trabalhadores e a violência social. Estes são os fatores materiais que geram o crime. Enquanto não forem solucionados, haverá crime! As questões subjetivas, de índole, estão subordinadas à situação objetiva geral.
– Não! – gritou o idealista – É tudo uma questão de educação!
– Como pode ser apenas de educação? ­– questionou o materialista – É mesmo possível desconsiderarmos, ou mesmo secundarizarmos, todos aqueles graves problemas? Imaginemos hipoteticamente que duas crianças de classes sociais distintas estudam em uma mesma escola que discute diariamente questões de ética e moral. Uma mora na Barra da Tijuca, zona nobre do Rio de Janeiro, e a outra na favela da Cidade de Deus. Como esperar que ambas ajam da mesma maneira perante o crime organizado?
            – Isso é um disparate! – afirmou enfaticamente o idealista com o dedo em riste – Então como explicar o fato de jovens de classe média caírem no crime, senão a má índole inata?
            – Não podemos nunca perder a conexão da parte com o todo, pois assim evitamos correr o risco de cair na abstração. O que foi falado antes não invalida o fato de que todos os jovens de classe média estão inseridos nessa mesma sociedade que se influencia mutuamente, impõem padrões, modas, costumes, hábitos, medos e neuroses! – o materialista parou, respirou fundo e prosseguiu – No caso da classe média, não necessariamente as causas econômicas influenciam diretamente a ação criminosa. Muitos outros motivos, de ordem secundária, podem levar seus membros a cometer pequenos e grandes crimes, como por exemplo: impor medo, se auto afirmar em uma sociedade doente e desigual, falta de perspectiva sentimental e familiar; ou mesmo doenças psicológicas inconscientes, criadas pelo contexto social, tais como neuroses, histerias, perversões, alívio para o vazio existencial, etc. Pensemos mais longe ainda: o que faz a alta burguesia através da lavagem de dinheiro, pressão nos parlamentos e nos políticos, corrupção nos mais diversos níveis, etc., senão praticar autênticos crimes? Ela não é levada a fazer isso por necessidades imediatas, tal como um ser humano pobre das periferias ou mesmo da classe média; mas é movida por motivações políticas e econômicas que tem a finalidade de sustentar a ordem social da qual depende os seus lucros e a sua faustosa condição de vida. Ou seja, por mais que pareça, se olharmos bem, veremos que seu crime não é uma ação proveniente de impulsos isolados de sua mente, mas é o resultado das suas necessidades políticas e econômicas pessoais para manter seus negócios dentro da lógica do capitalismo. Mexa nessas condições materiais e econômicas, destrua esta lógica, e logo a alta burguesia não terá mais como agir desta forma.
            – A cada novo ponto de vista uma nova superação! – zombou o idealista – É evidente que isto não passa de uma nova besteira! O capitalismo se desenvolveu e se mantém porque ele é o mais adaptado às características inatas do ser humano, que é ambicioso por natureza. Nenhum outro sistema econômico, como o socialismo, por exemplo, pode dar certo porque vai contra esta ambição humana. Chegamos ao ápice do desenvolvimento social, ao fim da história! As instituições democráticas do capitalismo possuem defeitos, mas são as melhores que os seres humanos podem construir.
            – Como seria possível chegar ao fim da história? – perguntou intrigado o materialista – Por acaso a humanidade se acabou ou está em vias de extinção? Não haveria mais possibilidades de evolução e de modificação do status quo?
            – Do jeito que as coisas andam, só poderemos esperar o seu fim – disse enfaticamente o idealista.
            – “O jeito das coisas”, como você fala, nada mais é do que a atual estrutura social desenvolvida pelo capitalismo até aqui. É esta estrutura que leva a humanidade primeiro à degeneração e, depois, à ruína. O homem não é o lobo do homem, como dizia Thomas Hobbes em tom profético e imutável. Todo o pensamento reacionário se agarra a esta máxima de Hobbes como um náufrago se agarra a um pedaço do navio, esquecendo que esta disputa selvagem entre os seres humanos é um reflexo da sociedade de classe.
            – Mas Thomas Hobbes não é considerado um filósofo materialista? – indagou o idealista.
            – Sim – confirmou o materialista – O seu pensamento, apesar de conter fortes referências a deus, é próximo do materialismo; muito embora seja um materialismo bastante contraditório. Suas posições políticas descontextualizadas de sua época histórica (o século 17) tornam-se visceralmente reacionárias. É isso que faz o pensamento anti-dialético e reacionário: descontextualizar!
            – Um materialista reacionário, hã? – interrompeu o idealista – Pelo que você me falou até agora cheguei a pensar que não existissem!
            – Existem muitos materialistas reacionários – respondeu o materialista – O pensamento mecanicista e dogmático (anti-dialético) leva ao reacionarismo, muito embora a atuação de Hobbes na Inglaterra do século 17 fosse progressiva. É isso que fazem aqueles que querem blefar em filosofia ou em política: generalizam máximas escondendo seu contexto!
            – Gostaria que me desse exemplos de materialistas reacionários da contemporaneidade – questionou o idealista.
– A disputa ideológica dentro da União Soviética, no século 20, nos deu um valioso exemplo sobre a diferença entre o materialismo dialético e o materialismo reacionário. O trotskismo conservava a vitalidade e a clareza do materialismo dialético, progressivo e revolucionário; enquanto que o stalinismo nos demonstrava o “materialismo” dogmático, reacionário, grosseiro, completamente anti-dialético.
            – Para mim são dois bárbaros! – disse com desdém o filósofo idealista.
– Enfim...! ­– exclamou o materialista – Já imaginava que fosse colocar tudo no mesmo saco. O seu problema não é com o “reacionário” ou o “revolucionário” na história, mas com o materialismo. O que eu quis lhe dizer antes é que estamos numa permanente evolução, desde os primórdios da humanidade, até os dias atuais.
            – Nem sempre, caro filósofo! – interrompeu o idealista – Em muitos momentos retrocedemos assombrosamente!
– A linha de desenvolvimento foi tortuosa, é verdade, repleta de avanços e retrocessos – concordou o materialista –, mas ela anda pra frente, apesar dos pesares. Todo o conhecimento humano, adquirido pela prática de inúmeras sociedades ao longo dos séculos, não pode retroceder a etapas já superadas. Todas as instituições reacionárias, geralmente ligadas à religião (sacerdócio greco-romano, clero católico, etc.), cedo ou tarde, cedem ou são superadas completamente. O novo luta contra o velho numa disputa ininterrupta. O conflito é o pai de todo o desenvolvimento. Não devemos temê-lo em nenhuma esfera da vida, mas aceitá-lo e compreendê-lo. O capitalismo é apenas um dos sistemas econômicos desenvolvidos pela humanidade na sua longa evolução; e a sua sociedade, a sociedade burguesa, um estágio social nesta marcha histórica. O aguçamento das suas contradições fez soar o sinal do seu esgotamento.
– Que espécie de contradições? – perguntou o idealista.
– As contradições de classe, que já lhe fiz referência – respondeu o materialista, fazendo um gesto com a mão em direção ao passado – O ascenso da grande indústria sobre bases capitalistas converteu a pobreza e a miséria das massas trabalhadoras em condição de existência da sociedade. O desenvolvimento tecnológico e a automatização não se traduzem mais em bem estar social, mas em desemprego em massa. Da mesma forma que a manufatura nos primórdios do capitalismo, ao atingir uma determinada fase de desenvolvimento, se chocou com o regime de produção feudal, hoje, a grande indústria se choca com o regime burguês de produção. Encadeada a essa ordem dominante, coibida pelos limites estreitos do modo de produção capitalista, a grande indústria cria, de um lado, uma proletarização das grandes massas do povo; e de outro lado, uma crescente massa de produtos que não encontram saída. Superprodução e miséria das massas, cada uma delas sendo causa da outra, eis aí a contradição absurda da grande indústria que reclama imperiosamente a libertação das forças produtivas mediante uma mudança do modo de produção. Sob o regime capitalista, o desenvolvimento inaudito das forças produtivas chega a um limite, expresso pelo excesso da oferta sobre a procura, pela superprodução e abarrotamento dos mercados; e pelas crises que ocorrem, em média, a cada dez anos. Entra-se num círculo vicioso: superabundância de meios de produção e de produtos de um lado e, de outro, operários sem trabalho e sem meios de vida. Essa contradição se aguça até converter-se em contra-senso: o modo de produção revolta-se contra a forma de propriedade. A burguesia revela-se incapaz de continuar dirigindo as forças sociais produtivas; da mesma forma, revela-se uma classe supérflua como, então, a nobreza feudal se revelou: todas as suas funções sociais são executadas agora por empregados assalariados.
– E como se resolve esta contradição? – perguntou o idealista, nitidamente aflito – Será que você pensa em colocar os de baixo, isto é, os trabalhadores, no poder?
– O capitalismo está num beco sem saída – prosseguiu o materialista –, não pode solucionar essas contradições, apesar dos discursos enganosos dos ideólogos da burguesia de que solucionará. O prolongamento da sua existência significa uma agonia econômica e social sem precedentes; significa a barbárie para a maioria da população mundial. Somente o proletariado, organizado das mais diversas formas, mas, principalmente, tendo construído um partido revolucionário, pode derrubá-lo e instaurar o poder dos trabalhadores. Essa é a sua missão histórica. O socialismo científico (o marxismo), expressão teórica do movimento proletário, é o instrumento programático indispensável, o único capaz de levar à classe oprimida a consciência das condições e da natureza da sua própria ação. Caso ele falhe, em razão de diversos motivos, sobretudo em função do oportunismo político infiltrado no seu seio e dos teóricos burgueses modernos, que querem requentar as velhas teorias idealistas para puxar a roda da história para trás, aí sim poderemos falar em um eclipse da humanidade. É necessário estabelecer novas relações sociais de produção, isto é, relações socialistas: acabar com a propriedade privada e intelectual, que impede a elevação cultural, teórica e econômica de toda a população e com a divisão em classes que condena a classe dominante ao paraíso, com todo o conforto e tecnologia à disposição, e a classe explorada, que chafurda na pré-história, na barbárie, na ignorância. Estas são as causas materiais que geram a confusão ideológica na mente dos seres humanos, somado à grande contribuição que vocês, idealistas, dão para aprofundar esta confusão e ajudar a preservar a sociedade burguesa.
– Imaginem só, colocar os homens de prata e bronze no mesmo patamar que os de ouro! Isto sim é o eclipse da humanidade! Eles só pensam em comer, em fugir ao trabalho; são incapazes de um único pensamento elevado! – falou o idealista, com ares de nobreza.
– Agora chegamos ao ponto alto do nosso debate, companheiro! – falou o materialista levantando-se da cadeira – A nossa arma teórica tem como base o materialismo, que nos coloca as relações sociais e o seu desenvolvimento numa perspectiva correta. As classes dominantes, e a burguesia em particular, que foi defensora do materialismo no momento de sua ascensão histórica (nos séculos 17 e 18), hoje tornou-se partidária do idealismo filosófico, uma vez que este lhe fornece as armas místicas e religiosas que ajudam a dissimular as contradições de classe e a eternizar metafisicamente as suas estruturas sociais. Não apenas as instituições democráticas da burguesia não são as melhores, como já deram mostras de falência e inoperância para os trabalhadores. O rechaço da grande massa da população aos políticos é o reflexo disso: nestas instituições apenas beneficia-se a burguesia através de negociatas e acordões espúrios. Seria obra do acaso, isto é, da “mentalidade má” dos políticos a sua conduta na vida pública ou seria a própria estrutura destas instituições, que não passam de um balcão de negócios, de um instrumento da exploração do trabalho assalariado pelo capital, cujas engrenagens são movidas por grandes somas de dinheiro, pelo suborno, pela chantagem, que fazem com que os políticos ajam desta forma?
– Que ultrajante! Sua vileza no debate me assusta! – atacou o idealista – Nós defendemos o que há de melhor no espírito humano: a beleza, a bondade, a justiça, o amor! Se os políticos ou qualquer outro ser humano age de uma forme indigna, injusta ou amoral a culpa é somente sua! É o somatório dessas ações que cria a corrupção generalizada, os problemas das administrações públicas.
– No abstrato vocês podem defender tudo isso – disse o materialista olhando o oponente nos olhos –, mas na prática a sua filosofia serve como uma luva aos interesses da exploração, da miséria, da injustiça e do desamor. Não casualmente, a sua filosofia transformou-se numa deformadora da realidade, para justificá-la e receber os polpudos soldos da burguesia.
– Que absurdo! Chamem a polícia! – bradou o idealista.
– No caminho do materialismo, a filosofia torna-se ciência! Somente os trabalhadores conscientes, em razão do seu caráter de desapego às benesses da sociedade oficial e da imperiosa necessidade de derrubá-la e superá-la, podem levantar a bandeira filosófica do materialismo. Foi por este motivo que Engels afirmou que é apenas na classe operária que continua a subsistir intacto o sentido teórico da filosofia. Aí ele é inextirpável; aí não têm lugar quaisquer considerações de carreira, de tirar proveitos, de benevolente proteção a partir de cima; pelo contrário, quanto mais sem transigências e sem prevenções a ciência avançar, tanto mais se encontrará em consonância com os interesses e as aspirações dos operários e do proletariado em geral. A nova orientação, que reconheceu na história do desenvolvimento do trabalho a chave para o entendimento da história, dirigiu-se de antemão preferencialmente à classe operária e encontrou aí a receptividade que não procurou nem esperava da intelectualidade oficial. O movimento operário é o herdeiro e o continuador da evolução filosófica[20]. Fora dele apenas poderemos esperar mais distorções e deformações pós-modernas, regadas com grandes somas de dinheiro, de publicidade e de apelo editorial.
O idealista largou os braços e ficou olhando para o chão, desolado. Suas feições eram de perplexidade e desaprovação.

5
            A sala histórica finalmente chegou à contemporaneidade. Os dois filósofos estavam com roupas sociais modernas, em um grande auditório repleto de pessoas, sentadas, em pé, todas se espremendo e querendo acompanhar o debate de algum jeito. Entre os ouvintes estavam operários, universitários, estudantes, professores, repórteres, religiosos, curiosos; enfim, uma massa de indivíduos ávidos por entender o que estava em jogo nesta grande batalha filosófica. Tudo parecia estar um pouco mais claro, mas ainda permaneciam muitas dúvidas.
            Se aproveitando delas, o filósofo idealista pós-moderno deu o ponta pé inicial:
            – Apesar de todos os seus ataques desprezíveis, vocês, materialistas, não podem se desfazer de nós. Olhe para o materialismo do século 17, 18 e 19! Do ponto de vista filosófico é totalmente mecanicista, ou, como vocês gostam de rotular, metafísico!
            – Não há dúvida de que sim – concordou o materialista dialético – Trata-se de uma das formas do materialismo, pensado e desenvolvido ainda em um ambiente influenciado pela psicologia newtoniana, que foi muito forte naquele período histórico.
            – Então – prosseguiu o idealista pós-moderno –, logo após vieram os idealistas, com Hegel à cabeça, e resolveram a contradição: resgataram a dialética, reelaboraram-na e libertaram o pensamento filosófico para perceber as contradições, a evolução e o movimento da realidade, que é um só!
            – É verdade! – concordou o materialista dialético.
            – Viram? – perguntou o idealista pós-moderno ao oponente, mas olhando para todo o auditório – Vocês precisam de nós. Se não fosse uma mente idealista brilhante, como a de Hegel, vocês estariam chafurdando eternamente numa concepção materialista mecanicista.
            – Não há dúvida de que o pensamento hegeliano é brilhante! – assentiu o materialista dialético – Contudo, não podemos esquecer que seu pensamento estava imerso em contradições insolucionáveis; e que a dialética só conseguiu se desvencilhar deste labirinto e se desenvolver plenamente quando foi reformulada através do materialismo de Marx e Engels.
            – Mentira! – pulou do seu assento o idealista pós-moderno – Toda a dialética já estava presente no pensamento de Hegel! Ele resolveu a contradição da lógica aristotélica ao colocar o debate em outro nível, demonstrando que não existem apenas objetos fixos, imóveis, observados um após o outro, cada qual independente do outro, como algo determinado e eterno; em suma, como uma série de antíteses desconexas, mas demonstrou que uma coisa pode ser, ao mesmo tempo, o que é e outra coisa distinta.
            – Sim, isso está correto! – disse o materialista dialético – Mas a dialética de Hegel estava formulada dentro de uma casca contraditória de idealismo!
            – Que contradição se refere você? – perguntou o idealista pós-moderno sob os olhares atento dos ouvintes. O materialista dialético prontamente respondeu:
            – Como sintetizador do método dialético, Hegel deve ser considerado o fundador da lógica moderna, nisso estamos em pleno acordo! Porém, em Hegel, a dialética é apenas o auto desenvolvimento do conceito, pois não a reconhece como uma força na própria natureza. A dialética de Hegel era o reflexo da “Ideia absoluta” (a coroação do sistema hegeliano) que se “exterioriza” ao converter-se na natureza, o que equivalia a converter a dialética num produto cerebral. Sendo assim, ela convertia-se num labirinto sem saída, Era necessário retirar-lhe a couraça mística de idealismo e dar-lhe um conteúdo materialista.
            – Lá vem você com o seu dogmatismo do século 19 – disse com desdém o idealista pós-moderno.
            – Quem começou falando de Hegel foi você – falou o materialista dialético, apontando para o oponente – Eu apenas estava me referindo a como o seu pensamento foi superado.
            – Que empáfia! – disse o idealista pós-moderno, se sentindo ultrajado – Vocês viram? – perguntou para a platéia.
            – Como eu dizia – prosseguiu o materialista ignorando as provocações –, o método do materialismo dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de ideia, é o criador do real, e o real é apenas a sua manifestação externa. Para Marx e Engels, ao contrário, o ideal não é mais que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado. A mistificação por que passa a dialética nas mãos de Hegel não o impediu de ser o primeiro a apresentar as formas gerais de seu movimento de maneira ampla e consciente. Nos escritos de Hegel, a dialética está de cabeça pra baixo. Era necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional dentro do invólucro místico[21]. Marx e Engels resgataram conscientemente a dialética da filosofia alemã e aplicaram-na à concepção materialista da natureza e da história[22]. Resumidamente podemos dizer que o marxismo tirou a couraça idealista da dialética de Hegel e corrigiu as distorções metafísicas do materialismo de Feuerbach. Transformou a dialética em materialista e o materialismo em dialético.
            – E como ficou esta fusão estranha? – indagou o idealista pós-moderno.
            – Em primeiro lugar – começou a explicar o materialista dialético –, é preciso dizer que a forma de existência da matéria é o movimento. A matéria só existe através do movimento. É por meio dele que ela se manifesta e se revela. Disto nos convencemos pelos fatos cotidianos, pelo desenvolvimento da ciência, pela prática. Esta conclusão só foi possível após superarmos as antigas concepções materialistas da filosofia do século 17, 18 e 19, de pensadores como John Locke, La Mettrie, Ludwig Feuerbach, dentre outros.
            – Lá vem você querendo valer-se da ciência para nos desmerecer! Só o seu método é o correto; o nosso é sempre errado e anti-científico! Pra que limitar o debate nesta dicotomia absurda? – disse o idealista pós-moderno erguendo os braços.
            – Deixe-me lhes explicar usando como exemplo o átomo – falou o materialista dialético – Como um determinado corpo material, ele existe porque as partículas “elementares” que o formam se movem continuamente. Sem movimento, essas partículas do átomo não poderiam existir, como não poderia existir sem movimento nenhum outro corpo. Graças ao movimento é que os corpos materiais se manifestam, atuam em nossos órgãos dos sentidos. O sol, por exemplo, irradia continuamente no espaço cósmico uma quantidade inumerável de partículas em movimento. Ao atingirem a Terra, estas partículas atuam sobre os nossos órgãos dos sentidos e nos dão a percepção da existência do Sol e de inúmeros outros fenômenos vinculados a ele. Assim, também, todos os outros corpos materiais existem e se manifestam apenas em movimento. Movem-se não somente as partículas “elementares” nos átomos, mas também os átomos nas moléculas, as moléculas nos corpos. Move-se toda a massa incontável de corpos terrestres e cósmicos. Modificam-se os organismos vivos, a vida social, e as ideias e noções vinculadas aos primeiros. É impossível achar uma partícula que seja do mundo material que não se encontre em movimento, em mutação. O movimento da matéria é absoluto e eterno, não pode ser criado nem destruído, tal como nos disse Lavoisier. Isto é confirmado pela lei da conservação e transformação da energia, que afirma que o movimento da matéria não desaparece e não surge novamente, mas apenas muda de aspecto, ou seja, se transforma.
            – Mas se o movimento é eterno, absoluto, como é possível falar em repouso? – perguntou o idealista pós-moderno.
            – No fluxo geral de transformações da matéria há também momentos de equilíbrio, de repouso relativo. Mas estes se relacionam não com a matéria em seu conjunto; apenas com um ou outro objeto e processo, tomado separadamente. O caráter absoluto do movimento pressupõe obrigatoriamente o repouso, pois este é uma condição necessária do desenvolvimento do mundo. Não se deve compreender o repouso como um estado inerte, estagnado. Um corpo só pode estar em repouso em relação a algum outro corpo, mas participa obrigatoriamente do movimento universal da matéria.
            – E o que nos explica o materialismo mecanicista? – indagou novamente o idealista pós-moderno.
            – Os materialistas antigos também reconheciam o caráter universal do movimento da matéria, mas o compreendiam de maneira limitada, metafísica, unilateral. Não relacionavam o movimento com a transformação, com o desenvolvimento dos corpos e, frequentemente, o representavam apenas como o deslocamento mecânico no espaço. O materialismo dialético não reduz as diversas formas de movimento apenas à mecânica ou a qualquer outra forma que seja, mas relaciona o movimento com a transformação, com o desenvolvimento dos corpos, com o surgimento do novo e o perecimento do velho. O movimento é entendido pelo materialismo dialético de modo amplo, como qualquer mudança, como a transformação em geral, que abrange todos os processos em curso no universo, podendo ser ele movimento mecânico, físico, químico, biológico ou social (incluso o psicológico)[23].
            – Concepções ultrapassadas, anacrônicas! – disse desdenhosamente o filósofo pós-moderno.
            – Como pode ser ultrapassada uma concepção filosófica que se baseia no movimento? – devolveu-lhe a pergunta o materialista dialético.
            – Limitar a complexidade da filosofia e da realidade a uma dicotomia entre o materialismo e o idealismo, como vocês querem, é anti-dialético! – rebateu o idealista pós-moderno – A dialética não reconhece apenas o “preto” e o “branco”.
– Entendemos que a dialética sem uma base na realidade torna-se abstrata e relativista; isto é, não chega a lugar algum. Ela reconhece os absolutos, muito embora saiba que os absolutos possuem limites. É preciso que a dialética entre em contato com a realidade concreta, com a natureza, caso contrário ela não passará de um exercício de escolástica, de viver relativizando todos os fenômenos, o que seria um grave erro. Para vocês, que se escondem atrás dessa relativização absoluta, isso é dicotômico; para nós, trata-se de uma necessidade de método para o conhecimento humano avançar.
            – Vivemos uma época em que a ampla maioria das universidades do mundo questionam a existência da matéria, das classes sociais; em suma, das concepções antiquadas, dicotômicas, sustentadas por vocês. O momento exige que não limitemos o debate como vocês querem. Para quê limitarmo-nos e rotularmos? – questionou o idealista pós-moderno.
            – Este é, na verdade, o impasse que vivemos no momento, fruto dos retrocessos políticos, econômicos e sociais do final do século 20 e início do 21 – respondeu o materialista dialético – Os idealistas “líquidos” dos mais diferentes matizes, quanto mais distorções fazem nas teorias, na filosofia e na ciência, mais incentivos financeiros e editoriais recebem da alta burguesia. Eles alegam que a verdade não existe; o que existiria seriam apenas interpretações, pontos de vista particulares, saberes, todos igualmente válidos. E que qualquer tentativa de conhecer a verdade não passaria de pura arrogância e pretensão daqueles que buscam aprisionar a complexidade de nossa existência dentro de limites autoritariamente impostos por uma abordagem determinista qualquer. Acusam os que procedem desta forma de querer retornar ao século 19! Eles, supostamente, representariam “o futuro”. Baseiam-se na filosofia do pragmatismo norte americano, onde todos os conceitos, inclusive os religiosos, são verdadeiros na medida em que são úteis de alguma forma para a obtenção de vantagens e êxitos imediatos. Buscam esconder que esta ideologia de relativização absoluta não representa mais do que o retorno às velhas ideologias do passado, já superadas pelo avanço atual da concepção materialista, e está a serviço dos interesses das elites. Sendo assim, querem confundir a vanguarda do proletariado na sua missão histórica de fazer a revolução socialista e, consequentemente, de popularizar a ciência.
– Que reducionismo! Que atraso! – disse o idealista pós-moderno com a mão na testa – Ainda fala em proletariado, em revolução socialista?!
– Sempre o desmerecimento sem conteúdo! – respondeu o materialista dialético olhando para o auditório lotado – As pessoas aqui presentes podem julgar por si mesmas os argumentos e a prática dos seguidores de cada filosofia.
– Como levar a sério uma filosofia que não considera importante a individualidade, a subjetividade de cada um, e que joga tudo para as raízes econômicas ou materiais? – indagou o idealista pós-moderno, também olhando para o auditório.
– Este reducionismo é feito por vocês, idealistas! – contra atacou o materialista dialético – Somente aqueles que não conhecem a filosofia materialista ou os enganadores conscientes podem interpretar e resumir o materialismo a essa caricatura. A nossa filosofia compreende perfeitamente o papel do indivíduo na história e na sociedade. Buscamos a compreensão da psicologia e da “subjetividade” pessoal dentro deste contexto, afinal de contas, não somos seres isolados, mas influenciados pelo meio em que vivemos. Desde a linguagem, que “coloniza” o nosso pensamento individual, até o trabalho, o comércio, as artes, as relações humanas, a necessidade de amizade, do desabafo, etc., somos influenciados pela sociedade.
– Mas vocês colocam os indivíduos como seres passivos perante o social – interrompeu o idealista pós-moderno –, vocês invertem a lógica!
– Não, caro opositor, quem inverte a lógica são vocês! – respondeu rapidamente o materialista dialético – Reflitamos sobre o seguinte: os indivíduos, graças a determinadas particularidades do seu caráter, podem influir nos destinos da sociedade. A filosofia idealista contraria esta conclusão jogando o protagonismo para os céus, para deus, para a ideia absoluta ou seja lá para quem for. Nós acreditamos que sim, o indivíduo não apenas pode influenciar a sociedade como esta influência é a base do que chamamos de “história”. Por vezes esta influência pode ser considerável, mas tanto a própria possibilidade desta influência como suas proporções são determinadas pela organização da sociedade, pela correlação das forças que nela atuam. O caráter do indivíduo constitui “fator” do desenvolvimento social ou do seu retrocesso somente onde o permitem as relações sociais.
– Errado! – bradou o idealista pós-moderno – Este grau depende, sobretudo, da influência e do talento do indivíduo!
– Estamos de acordo sobre isso – respondeu o materialista dialético –, mas o indivíduo não pode manifestar seu talento senão quando ocupa na sociedade a situação necessária para poder fazê-lo.
– Desta forma andamos em círculos! – debochou o idealista pós-moderno – Vá direto ao ponto!
­– Ok! Vejamos um exemplo! – disse o materialista dialético – É conhecido o caso do fracasso francês na guerra dos sete anos[24], onde a influência pessoal da marquesa de Pompadour sobre Luís XV, rei da França, selou a sua derrota. A nobreza feudal francesa estava em decadência histórica e, não obstante, ocupava todos os altos postos no exército. Um general desta nobreza foi um desencadeador do fracasso militar francês. Ele estava nesta posição porque era um protegido pessoal da marquesa de Pompadour. A força dela não residia em si própria, mas no poder do rei, que se submetia aos seus caprichos. E o poder pessoal do rei estava submetido a uma estrutura social histórica. É forçoso reconhecer que a vaidosa marquesa foi um dos fatores que acentuou consideravelmente a influência desfavorável das causas gerais sobre a França durante a guerra dos sete anos. Aqui é necessário assinalar que a possibilidade de o indivíduo influir sobre a sociedade abre as portas à influência das chamadas “casualidades” sobre o destino histórico dos povos. A luxúria de Luís XV era uma conseqüência necessária do estado de seu organismo. Porém, no que se refere ao curso geral do desenvolvimento da França, este estado que era casual, não deixou de exercer sua influência sobre o ulterior destino militar francês, passando a fazer parte das causas que determinaram este destino. Como se vê, nossa concepção filosófica e histórica não exclui em nada a individualidade e a subjetividade na sua explicação. Pelo contrário, lhes dá uma lucidez e precisão muito mais profundas do que a concepção idealista.
– Isto é conversa! – retrucou o idealista pós-moderno – Pra vocês tudo sempre termina remetendo à economia e às “forças objetivas”!
– Você continua a caricaturizar nossa concepção! – respondeu o materialista dialético – Para nós, é no estado das forças produtivas que se encontra a causa determinante das relações sociais. Esse estado depende do somatório das particularidades individuais de diferentes pessoas, no sentido de uma menor ou maior capacidade de tais indivíduos para impulsionar os aperfeiçoamentos técnicos, as descobertas e invenções, que imprimem novo sentido e dinâmica para a sociedade. Nenhuma outra particularidade garante a pessoas isoladas o exercício de uma influência direta sobre o estado das forças produtivas e, por conseguinte, sobre as relações sociais por elas condicionadas, isto é, as relações econômicas. Um dado indivíduo, quaisquer que sejam suas particularidades e talentos, não pode eliminar determinadas relações econômicas quando estas correspondem a um específico estágio das forças produtivas. No entanto, as particularidades individuais da personalidade tornam-na mais ou menos apta a satisfazer as necessidades sociais que surgem em virtude de relações econômicas determinadas ou para opor-se a elas[25].
– Pare de conversa fiada! Vamos direto ao ponto: como é possível explicar personalidades emblemáticas, como a de Hitler? – indagou o idealista pós-moderno, consternado – Está bastante claro que outro indivíduo não poderia cumprir o mesmo papel que o führer! Sua maldade era um desígnio inato de seu ser que serviu de base para aquela monstruosidade.
–Você está equivocado! – falou o materialista dialético sob um urro de surpresa do auditório – Suponhamos que Hitler tivesse morrido nas trincheiras da 1ª Guerra Mundial em 1918 ou num acidente de avião em 1933; seu posto teria sido ocupado, naturalmente, por outro, e embora esse outro tivesse sido inferior a ele em seus “talentos” de führer, os acontecimentos, apesar de tudo, provavelmente teriam tomado o mesmo rumo que tomaram com Hitler, num ritmo maior ou menor. O que estava em jogo era o destino do imperialismo alemão e do regime político criado por ele, cuja solução só poderia ser dada com a guerra, que aconteceria com ou sem Hitler. Era a questão da supremacia dos imperialismos em guerra que precisava ser resolvida. O condicionamento social já estava dado pelas forças produtivas alemãs, que necessitavam se desenvolver e disputar o seu lugar no mercado mundial. Hitler, apesar de aparecer como o criador de um regime nefasto, foi, dialeticamente, seu criador e, ao mesmo tempo, instrumento histórico de uma classe.
– Mas como é possível que Hitler represente um avanço das forças produtivas? – perguntou o idealista pós-moderno, meio confuso, sob o olhar atento do plenário.
– Na verdade, como representante do imperialismo alemão, Hitler estava se opondo ao avanço das forças produtivas – respondeu o materialista dialético – Lutou com unhas e dentes para manter o capitalismo, apoiando-se no capital financeiro alemão, esmagando o forte movimento operário da Alemanha, investindo e intensificando a produção bélica (que representa as forças destrutivas), invadindo a URSS e outros países. Mas isso não invalida o que falei antes.
– Não? – indagou o idealista pós-moderno, ainda confuso.
– Não! – confirmou o materialista dialético – No lado oposto ao de Hitler, e também cumprindo um papel histórico consciente, estava Lenin, que liderou a Revolução Russa de 1917. É conhecida a sua atuação neste processo revolucionário, o que demonstra, na prática, a dinâmica do papel do indivíduo na história segundo a nossa concepção. Lenin representava as forças históricas progressivas, isto é, o proletariado em ascensão, que lutava contra a guerra imperialista de rapina e na direção da superação do capitalismo; portanto, servia como um elo para o destravamento das forças produtivas; ao contrário de Hitler, que queria aprofundar as amarras do regime capitalista, agora sob o seu domínio imperialista, e representava a alta burguesia alemã, retrógrada. Os momentos decisivos da revolução foram cumpridos positivamente por Lenin, que trabalhou para tencionar o partido bolchevique a superar os entraves políticos através da independência de classe do proletariado, que respondeu mostrando toda a sua força e potencialidade possíveis dentro do contexto histórico russo. Apesar de tudo isso, mesmo que Lenin não tivesse morrido prematuramente, em janeiro de 1924, ele provavelmente não conseguiria deter a ascensão da burocracia stalinista, uma vez que esta era uma expressão objetiva do isolamento internacional da revolução russa, da derrota da revolução européia (sobretudo da alemã), do atraso interno da própria Rússia, do seu baixo nível econômico e cultural. Certamente que a ascensão da burocracia stalinista encontraria sérios problemas se Lenin estivesse vivo, mas o refluxo revolucionário e a reação política já estavam em curso no final de sua vida. Compreendendo a dialética da história e o seu papel nela, ele teria contribuído para levantar novas tarefas e consignas que preparariam a luta do proletariado em um novo contexto, provavelmente de enfrentamento à burocracia stalinista, como toda a sua atuação imediatamente anterior a sua morte atesta. Mas falar sobre isso agora é apenas um exercício de hipóteses... O caso de Robespierre, Napoleão, Zumbi, Abraham Lincoln, Gandhi, Getúlio Vargas, Stálin e Trotsky também poderiam servir de exemplos sobre o papel do indivíduo na história e na sociedade.
– Hmmm... Interessante, mas o que você nos apresentou ainda não me convence! Se tudo o que fala é certo e “científico”, então porque a nossa filosofia pode ter tantos adeptos? – insistiu o idealista pós-moderno com ares triunfais.
– É estranho você atribuir a coerência de sua filosofia ao número de adeptos – respondeu o materialista dialético sob um burburinho do auditório.
– Como não proceder assim? – falou o idealista pós-moderno erguendo os ombros e as mãos – O número de nossos adeptos demonstra que temos razão, que nosso pensamento corresponde ao pensamento de milhares de pessoas; isto é, o idealismo encontra eco na maneira de pensar e de conceber o mundo de centenas de milhares de pessoas, logo, é compreendido e apoiado pela racionalidade humana natural. Já vocês, encontram-se em minoria. São como seitas!
– Esta é uma interpretação equivocada – disse o materialista dialético – Acho que os argumentos apresentados até aqui são suficientes para demonstrar que o idealismo filosófico, seja em que vertente for, é um engodo, uma invencionice, um erro, uma ilusão que custa muito caro ao desenvolvimento intelectual, cultural, econômico e social da humanidade.
– Então me diga – gritou o idealista pós-moderno para inflamar todos os presentes –: como uma concepção filosófica, que segundo você, baseia-se em um disparate, pode ter tanta força e tantos adeptos?
– Penso que não existe uma única causa para uma pessoa ser partidária do idealismo filosófico ou de uma religião, mas podemos arriscar algumas sugestões – respondeu o materialista dialético num tom de voz suave, tentando acalmar o zumzumzum que vinha do auditório –: em primeiro lugar, não há dúvida que a grande adesão à filosofia idealista se dá em razão do seu patrocínio pela classe dominante, que a propaga de diversas formas, sutis ou escancaradas, através da grande mídia, das universidades, escolas, igrejas; do seu milionário mercado editorial e da sua indústria cultural, que divulga majoritariamente os pensadores dessa vertente filosófica, apesar de se dizer “imparcial”.
– Calúnia! – gritou novamente o idealista pós-moderno – Ele não quer reconhecer o nosso mérito! Somos reconhecidos pelas nossas grandes contribuições ao avanço científico! É daí, e somente daí, que vem todo este destaque! As pessoas buscam as nossas explicações; se apóiam em nós pois reconhecem nossa força intelectual e ontológica!
– Será mesmo? – indagou o materialista dialético – Cada nova descoberta e avanço científico sentam um novo golpe, quase fatal, nas antigas concepções e crenças religiosas e, por conseguinte, na concepção filosófica idealista.
– O que você está querendo dizer com isso? – perguntou o idealista pós-moderno.
– Quero dizer que se a religião e o idealismo não foram superados ainda é porque existem causas inconscientes que os fazem subsistir, tanto do ponto de vista objetivo, econômico; quanto do ponto de vista subjetivo, psicológico.
– Não é possível! – indignou-se o idealista pós-moderno, suando frio – Ele acha que nós seremos superados! Ha ha ha! Isso só pode ser uma piada!
– De maneira alguma – retomou o materialista dialético – Baseando-nos na psicanálise, podemos concluir que realmente existem brechas por onde o pensamento religioso e idealista penetra inconscientemente na grande massa humana. Freud dizia que a religião é “a neurose obsessiva da humanidade”, no que está em pleno acordo com a nossa concepção filosófica. Eu diria que esta crença religiosa e adesão à filosofia idealista correspondem a sentimentos infantis não resolvidos, sendo este um dos principais motivos para a atrofia intelectual da maior parte dos seres humanos. Esta atrofia intelectual leva à pusilanimidade, à covardia intelectual, ao seguidismo, à transformação de uma massa humana em massa de manobra. As ilusões idealistas e, por conseguinte, as religiosas, só podem se manter em razão dos medos emocionais humanos inconscientes e do desamparo frente aos perigos da natureza, sobretudo ao “perigo” da morte. É por isso que o ser humano transforma as forças da natureza em outros “seres humanos superiores” (deuses ou deus) com os quais pode se relacionar como faz com os seus iguais, bem como lhes confere um caráter paterno. Nisso, não apenas segue um modelo infantil, mas, também, um modelo filogenético. Os deuses-pais (ideias absolutas, forças superioras, deuses, etc.) teriam uma tarefa tripla: afastar os pavores da natureza, reconciliar os seres humanos com a crueldade do destino, em especial como ela se mostra na morte, e recompensá-los pelos sofrimentos e privações que a convivência na sociedade lhes impõe[26]. É daí que provém a semelhança desagradável entre o idealismo, a religião e as produções espirituais e místicas dos povos primitivos.
– As suas conclusões resumem-se a ataques anti-religosos! – interrompeu o idealista pós-moderno ao mesmo tempo em que se ouvia um burburinho que vinha de diferentes cantos do auditório.
– Não há diferença fundamental entre as concepções idealistas, religiosas e místicas – respondeu imediatamente o materialista dialético –, pois, apesar de diferentes na aparência e no modo de colocar as questões, elas bebem na mesma fonte. Além do que, mesmo para o ser humano atual, argumentos puramente racionais contam muito pouco quando confrontados a ímpetos passionais; sobretudo quando as suas convicções mais íntimas e reconfortantes são questionadas. A realidade se sobrepõe aos nossos desejos e anseios. É preciso olhá-la de frente e não procurar subterfúgios! Quanto mais educarmos as futuras gerações nesta perspectiva, mais chances teremos de efetivamente vencer os desafios colocados à humanidade pela natureza. A nossa concepção filosófica apenas tenta olhar a realidade de frente para tirar conclusões óbvias, porém, que estão em frontal contradição com as crenças místicas e religiosas milenares da humanidade. É por isso que todos aqueles que defendem a nossa concepção de modo dogmático não representam o nosso pensamento filosófico e as intenções de nosso movimento.
– Vocês se acham perfeitos; os guias geniais dos povos! – ironizou o idealista pós-moderno.
– Não nos achamos melhores por defender tal filosofia, muito menos infalíveis; apenas procuramos não negar as evidências e indícios que nos saltam aos olhos e que as ilusões religiosas, nas quais todos nós fomos criados, querem nos impedir de ver. Estamos sempre abertos a auto crítica. Só não a faremos sem compreender que realmente estamos equivocados.
– Mentira! – pulou do seu assento o idealista pós-moderno – Vocês querem reduzir o debate a nada, querem impor suas concepções, são reducionistas e rotuladores! Não estão abertos ao diálogo! Por acaso também não temem a morte?
– Caro opositor, simplesmente procuramos olhar a realidade sem máscaras e sem uma lente que seja agradável às nossas certezas reconfortantes ­– disse calmamente o materialista dialético – É evidente que tememos a morte, o não-existir, o fim da existência e da vida! Pensar nisso é extremamente penoso, ainda mais quando nos deparamos com a certeza dela. A realidade é muito dura, nós sabemos; mas dourar a pílula é muito pior! A cada ilusão desfeita por um golpe da realidade, que sempre se impõe, a desilusão é muito maior e talvez possa se tornar fonte de desestímulos fatais para o gênero humano. Precisamos colocar o debate filosófico e científico na perspectiva correta. No caminho do idealismo, a filosofia retrocede ao misticismo, à mitologia e à religião, isto é, converte-se em um labirinto sem saída. Para superar a atrofia intelectual, o ser humano do futuro precisa construir seus alicerces intelectuais no terreno do materialismo.
– E na nossa concepção filosófica não haveria, por exemplo, contribuições importantes até mesmo para o materialismo, como a questão da intuição humana no conhecimento? – questionou o idealista pós-moderno.
– Em nome de uma suposta contribuição intuitiva do idealismo – disse o materialista dialético – não podemos desprezar tudo o que ele traz de contrabando, inclusive o suporte que ele dá para a hipocrisia social e política que rege o mundo dominado pelo imperialismo capitalista. Não desconsideramos a intuição. Existem vários tipos dela. Concordamos com a “intuição” presente no trabalho científico de Einstein, que não transcende o humano e lhe abre novos horizontes; mas discordamos da suposta “intuição divina”, de filósofos como Santo Agostinho.
            – Se vocês matarem a ideia de Deus estarão abrindo um precedente para a destruição da sociedade, das relações sociais, da própria humanidade! – desesperou-se o idealista pós-moderno.
            – Não seria uma vantagem indubitável deixar deus completamente fora do jogo e reconhecer de forma honesta a origem puramente humana de todas as instituições sociais e preceitos culturais? – perguntou o materialista dialético para o seu oponente e para o plenário – Além da pretendida santidade, também cairiam por terra a rigidez e a imutabilidade destes mandamentos, leis e concepções. Restaria o humano, o real, o concreto! O que é a manutenção da ideia de deus senão uma forma de submeter a sociedade às forças cegas (seja da economia, da dominação política, do senso comum, etc.) para conduzir a sociedade, a economia e as próprias vidas individuais para onde quer a classe dominante? Sabemos que andar com as próprias pernas é muito difícil, mas não nos restam dúvidas de que nos habituar a encarar a realidade de frente nos dará uma força e uma coragem até então desconhecidas. Superamos a fase dos deuses: já descobrimos como fazer fogo, a metalurgia, a eletricidade, os átomos, a célula, o superego! O momento agora é de fazermos uma intervenção cirúrgica sobre o que toleraremos como superego social e o que combateremos. Criaremos a base para uma nova moral, mais elevada; até que um dia seja possível dispensar qualquer forma de moral, guiando-nos única e exclusivamente pela riqueza cultural, científica; pelo conhecimento conquistado e por relações sociais verdadeiramente humanas!
            – Que delírio! – exclamou o idealista pós-moderno.
            – Não cremos na moral eterna e denunciamos o embuste de todas as fábulas a respeito da moral – respondeu o materialista dialético – A moral deve servir para que a sociedade humana se eleve a maior altura possível, para que se liberte da exploração do trabalho. Nós a negamos no sentido em que a pregou a burguesia, baseando-se em mandamentos divinos. Sabemos muito bem que o clero, os escravistas e a burguesia falavam em nome de deus para defender seus interesses de exploradores. Ou então, em lugar de inferir esta moral dos preceitos da ética, dos mandamentos de deus, deduziam-na de frases idealistas ou semi-idealistas que, decididamente, se pareciam muito com os mandamentos divinos. Nós, os materialistas dialéticos, dizemos que a nossa “moral” está subordinada inteiramente aos interesses da luta de classe do proletariado por sua libertação.
– O que você propõe? Que a filosofia se resuma ao que vocês querem? – indagou num último esforço o idealista pós-moderno.
            – Queremos que a filosofia supere definitivamente o idealismo filosófico e religioso, colocando-o no seu lugar; isto é, no museu de curiosidades humanas, junto com a roda, o arco e flecha e o Estado. A dialética materialista transforma a filosofia em ciência e a desmistifica. Tira-a do campo meramente especulativo e a transforma numa base para a interconexão das diversas ciências e, portanto, num ponto de apoio para a evolução do pensamento humano. Nos nossos dias a forma mais alta de pensamento e de inteligência é guiada pelo método do materialismo dialético. Num futuro, quando as forças produtivas se desenvolverem qualitativamente e novas condições materiais surgirem, certamente ele dará lugar a uma forma de pensamento mais elevada; todavia, hoje, ela representa o ápice do pensamento humano. No campo político é preciso superar o pensamento materialista de tipo stalinista, que ainda impera na vanguarda brasileira e mundial. É preciso resgatar e fazer reflorescer a dialética materialista expressa no materialismo trotskista. Dentro do campo político e da luta dos trabalhadores é a nossa única chance de termos um futuro.
            – Que blasfêmia! Que ultraje! – disse o idealista pós-moderno, de braços cruzados – Você é sectário, ultrapassado, anacrônico! Quer que a massa seja protagonista, mas como se a maior parte dela é ignorante e egoísta?
            – Como uma filosofia da práxis (prática), o materialismo marxista (que vive no pensamento trotskista e é o marxismo do nosso tempo), pode ajudar as massas a se tornarem protagonistas da história, na medida em que um número cada vez maior de membros da classe subalterna venha a adquirir conhecimentos especializados, desenvolvendo a possibilidade de uma atividade intelectual crítica e uma visão de mundo coerente!
            – Isso é impossível! – grunhiu o idealista pós moderno, no seu último esforço.
– Diante de tudo o que foi exposto, não é possível ser um simples observador – disse o materialista dialético olhando para o auditório – É preciso tomar partido! É importante que cada um de nós (sobretudo os trabalhadores conscientes) seja um elemento atuante na luta pelo progresso da filosofia e da ciência. Não podemos tolerar mais uma sociedade que faz uma ode ao pensamento religioso e idiotizante. Quando colocarmos para nossa nação e para o mundo a perspectiva de um esforço hercúleo visando superar a pré-história intelectual humana, seremos não apenas capazes de explicar o universo em que vivemos e somos parte, mas superaremos definitivamente o medo que ele nos inspira e criaremos as condições para entrar numa comunhão de progresso ininterrupto com ele.
***
Sob o olhar atônito do idealista pós-moderno, a maior parte do auditório ovacionou o inflamado orador. Apesar das ervas daninhas e das pedras, uma semente fértil foi lançada ao solo. Agora é preciso regá-la...





Notas

[1] Adaptado de “Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem”, de F. Engels.
[2] Adaptado de “Cosmos”, de Carl Sagan.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] Adaptado de “As origens do materialismo”, de George Novack
[6] Idem.
[7] Adaptado de “Cosmos”, de Carl Sagan.
[8] Adaptado de “As origens do materialismo”, de George Novack
[9] O sofista, Platão.
[10] Adaptado de “Materialismo e empiriocriticismo”, de Lenin.
[11] Adaptado da Bíblia Sagrada, Edições Paulinas.
[12] Adaptado das “Obras psicológicas completas”, Volume XIX (1923-1925), de Sigmund Freud.
[13] Adaptado de “A essência do cristianismo”, de Ludwig Feuerbach.
[14] Adaptado da 2ª tese “à Feuerbach”, de Karl Marx.
[15] Vários trechos das posições materialistas deste diálogo foram adaptados de “Materialismo e empiriocriticismo”, de Lenin.
[16] Trata-se de uma planta rubiácea.
[17] Adaptado de “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, de F. Engels.
[18] Adaptado de “Uma breve exposição sobre o materialismo histórico”, texto de formação da Luta Marxista.
[19] Adaptado do “Prefácio à Contribuição para a crítica da economia política”, de Karl Marx.
[20] Adaptado de “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, de F. Engels.
[21] Adaptado de “O Capital”, de Karl Marx.
[22] Adaptado de “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, de F. Engels.
[23] Adaptado de “Filosofia marxista”, de V.G. Afanassiev.
[24] A Guerra dos Sete Anos foi uma série de conflitos internacionais que ocorreram entre 1756 e 1763, durante o reinado de Luís XV, entre França, Áustria e seus aliados (Saxônia, Rússia, Suécia e Espanha) de um lado, e Inglaterra, Portugal, Prússia e Hanôver, de outro. O conflito terminou com a vitória da Inglaterra e de seus aliados.
[25] Adaptado de “O papel do indivíduo na História”, de G. Plekhanov.
[26] Adaptado de “O futuro de uma ilusão”, de Sigmund Freud.

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