No início do Sistema Solar, possivelmente o universo estava se recuperando do fim de um dos
seus ciclos eternos que duram bilhões de anos, após uma fase de relativa
calmaria. Provavelmente um evento
casual desencadeou uma grande onda de mudanças cósmicas que, por sua vez, levou
a outra grande onda de mudanças cósmicas: em razão das condições propícias
criadas pelo movimento cíclico da matéria eterna do universo, dentro de uma
gigantesca nuvem gasosa de uma parte periférica da Via Láctea – a nebulosa
primordial –, os primeiros átomos de hidrogênio fundiram-se provocando uma explosão
termonuclear, dando origem ao hélio e, neste processo, ao Sol. Este evento
liberou tamanha energia que foi arrastando e atraindo tudo a sua volta, se
expandindo e, ao mesmo tempo, desencadeando uma gigantesca onda giratória em um
movimento que levou outros bilhões e bilhões de anos terrestres. Assim fez-se o
calor e a luz.
O seu campo eletromagnético foi
criando pequenos “vácuos” gravitacionais, preenchidos pelos restos de poeira
estelar e, posteriormente, por rochas e dejetos espaciais que possibilitaram o
surgimento do que viríamos a chamar de planetas. Assim se fez a Terra; mas também
se fez Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e Plutão (não
necessariamente ao mesmo tempo e nesta ordem). Planetas que, sendo parte do
movimento ininterrupto da matéria, estão em eterna transformação. Cada um deles
desenvolveu um campo gravitacional próprio. Neste processo, a queda de braço para
ver quem seria o astro rei do sistema interplanetário se deu entre o Sol e um
gigantesco planeta rebelde, Júpiter. Como sabemos, o vencedor deste duelo de
titãs foi o Sol; Júpiter se apagou e centrou a atividade na sua formação
atmosférica. Alguns planetas muito próximos do Sol, possivelmente já tenham passado
pela flor de sua idade, vivendo o inferno da proximidade solar ou de um
terrível e devastador efeito estufa; outros estão formando sua atmosfera,
sofrendo com vendavais e tempestades de milhões de anos, e constituindo-se como
o que se convencionou chamar de “gigantes gasosos”; outros são apenas o
resultado da “recente” fusão de rochas espaciais, sendo atraídos pelo campo
gravitacional do Sol. Entre uns e outros, está um oásis chamado Terra.
Foi neste lar cósmico que a matéria
adquiriu consciência de todo este processo e de si mesma, também em um longo
período que durou bilhões de anos. Como tudo o que permeia a existência, foi
uma evolução repleta de contradições, crises, revoluções, e, quando a
consciência surgiu, de ilusões. Os seres humanos são estes seres vivos
privilegiados, capazes de compreender racionalmente toda a amplidão e
profundidade do universo, e fazer uso das forças da natureza também
conscientemente. Mas não são os únicos seres vivos. Na Terra, outros seres têm
sua reverência ao universo e formas de interação menos conscientes com a
natureza. Os seres humanos são a imagem e semelhança de si mesmos. Foram
criados pela evolução natural da matéria orgânica, refletindo as condições
materiais da Terra e tendo parentesco direto ou indireto com todos os demais seres
vivos que a habitam. Somente milhões de anos mais tarde, alguns habitantes do
seu hemisfério ocidental criaram um deus à imagem e semelhança humana, bem como
a fábula absurda que exalta a criação do homem e inferioriza a mulher.
- 4
Provavelmente
a Terra tenha se formado a partir da junção de poeira estelar, rochas, detritos
e gases, em um longo processo cósmico, que é inconcebível estimar em termos
temporais humanos; pelo menos agora, quando a ciência apenas começa a desvendar
mistérios básicos e elementares da nossa existência e da matéria. A ciência
moderna – e, em particular, a geologia – fala em 4,6 bilhões de anos.
No início era um amontoado gigantesco de rochas,
atraídas e fundidas pelo campo gravitacional, aquecidas e esfriadas, e envoltas
por uma nuvem ainda maior de gases, tal como os planetas gigantes são
atualmente. A formação da atmosfera terrestre deve ter demandado muito mais tempo do que qualquer era geológica
conhecida. Chuvas ininterruptas entrecortadas por temporais violentos, relâmpagos,
tornados e furacões, somados a erupções vulcânicas de um núcleo incandescente criaram
o verdadeiro inferno sobre a Terra. Calor e frio estiverem em uma luta titânica
até forjar o solo, a temperatura e a harmonia de nossa atmosfera. É bem plausível – ainda que não totalmente
comprovada – a hipótese de que um choque violento com um meteoro tenha possibilitado
o desprendimento de gigantescos destroços da Terra que vieram, pouco a pouco
(ou seja, bilhões de anos terrestres), a conformar a Lua. Com a formação do
satélite natural terráqueo, a rotação de ambos corpos celestes entraram em
harmonia e equilíbrio, possibilitando o surgimento do tempo terrestre, isto é,
dos dias e noites, e do ano, mais ou menos como os conhecemos hoje (24h e 365
dias).
Provavelmente a atmosfera criou-se conjuntamente com os oceanos,
que delimitaram as primeiras das diversas formas geográficas do nosso planeta.
Os oceanos eram e são “sopas” que contém nutrientes, produtos dissolvidos do
material subaquático, gases provenientes da atmosfera e das atividades
vulcânicas. Deve ter recebido
incontáveis descargas elétricas de tempestades furiosas. Foi, possivelmente, o cenário mais adequado para
o surgimento da vida. A água oceânica serviu como primeira atmosfera biológica
terrestre, abrigando os primitivos seres unicelulares e as bactérias, até que a
atmosfera, tal como a conhecemos, tivesse plenamente surgido. Incontáveis
gerações nasceram, se desenvolveram, se modificaram, reproduziram e morreram
neste grande elo biológico. Muitas dúvidas ainda permeiam estas induções, mas
seja como for, toda a teoria científica está assentada em uma concepção
materialista, o que exclui a possibilidade de um criador ultraterreno e de uma
concepção teleológica.
- 3
Foi na chamada “explosão cambriana”
– há mais ou menos 530 milhões de anos –, que, possivelmente, a atmosfera da Terra tenha completado o seu ciclo,
criando as condições para que a vida saísse dos oceanos e começasse a
colonização terrestre. A invasão começou com as plantas, que se alastraram por
todos os continentes. Depois vieram os seres vertebrados, anfíbios e répteis. A
sua evolução culminou no surgimento dos dinossauros, que dominaram a Terra por
um longo tempo. Os ancestrais dos mamíferos surgiram durante esse reinado
reptílico dos dinossauros. O seu fim – seja lá como isso tenha acontecido – foi
determinante para que os mamíferos pudessem evoluir e, do tronco dos primatas,
se desprender o ramo dos “homos”, de onde provém o homo sapiens.
Fugindo das regiões do planeta
congeladas pela era glacial, os ancestrais humanos – tais como uma raça de
“macacos” antropomorfos extraordinariamente desenvolvida, da qual Darwin nos
deu uma descrição aproximada – deslocaram-se e concentraram-se nas zonas
tropicais. Estes ancestrais não eram macacos comuns, mas hominídeos que
possuíam características semelhantes em razão da raiz genética em comum.
Antes da primeira lasca de sílex ser transformada em
machado pela mão do homem, deve ter transcorrido um período de tempo tão largo
que, em comparação com ele, o período histórico por nós conhecido torna-se
insignificante. Durante esse longo transcurso, uma evolução biológica
fundamental aconteceu: a mão, em função das necessidades de sobrevivência, de
sustentáculo do corpo, ficou livre para adquirir destreza e habilidade quando
os seres humanos passaram a andar de forma ereta. Dialeticamente, a mão não é
apenas o órgão de trabalho, é também produto dele. Com as primeiras formas de
trabalho, se desenvolveram também a necessidade da comunicação, daí o
aperfeiçoamento gradual da laringe. O trabalho começa com a elaboração dos
instrumentos mais antigos dos seres humanos pré-históricos, que eram os de caça
e de pesca, utilizados também como armas. Mas a caça e a pesca pressupunham a
passagem da alimentação exclusivamente vegetal à alimentação mista, o que
significa um novo passo de suma importância na transformação do “macaco” em homem. A alimentação,
cada vez mais variada, oferecia ao organismo novas substâncias, com o que foram
criadas as condições químicas e biológicas para a transformação destes “macacos
antropomorfos” em seres humanos.
Nesse longo período, manadas caçadoras e coletoras
desses hominídeos extraíam diretamente da natureza os alimentos necessários
para a sua sobrevivência. Migravam de um lugar para outro e lutavam com outras
manadas pela posse do território; mas eram incapazes de extrair dessas áreas
mais do que aquilo que a natureza generosamente lhes oferecia. Foi necessário,
seguramente, que transcorressem centenas de milhares de anos antes que a
sociedade humana surgisse daquelas manadas de “macacos” antropomorfos, que
viviam ora nas árvores, ora no chão. Quando o homo sapiens se separa definitivamente do “macaco” é que surge a
sociedade humana[1].
- 2
A consciência humana surgiu e se
aperfeiçoou durante o processo evolutivo da sua transformação de “macaco” em
ser humano. Foi como acordar de um sono profundo em meio a uma guerra, tentando
se situar e entender o que se passava ao nosso redor: a origem, o andamento e o
porquê de tudo aquilo. Muitas respostas insatisfatórias e ilusórias se
improvisaram, passando de geração para geração. Diversos erros advieram daí,
mas, também, o aperfeiçoamento da linguagem e da comunicação, bem como da
cultura humana. A natureza era um lugar horripilante, inseguro e ameaçador. A
imagem de um gigantesco monstro predador, todo poderoso, desnudava-se diante
dos olhos dos primeiros seres humanos mais ou menos conscientes. Diversas perguntas
que se abriram não obtiveram respostas. Sem uma explicação para pequenos e
grandes fenômenos, a humanidade, na sua luta pela consciência, foi obrigada a
preencher os vazios científicos com hipóteses infundadas. O medo e a dúvida
andaram lado a lado; sobretudo, o medo da morte. As explicações eram dadas
conforme estas figurações gerais. Desde a pré-história, mergulhado na mais
profunda ignorância sobre seu próprio organismo e excitado pelas aparições que
sobrevinham em seus sonhos, o homem chegou à ideia de que seus pensamentos e
suas sensações não eram funções de seu corpo, e sim uma alma especial que
morava nesse corpo e o abandonava na hora da morte. A magia e o misticismo
estão ali onde não existe a compreensão e o controle efetivo sobre a natureza;
compreensão e controle estes que a ciência e a tecnologia proporcionam, em
parte, aos seres humanos.
A natureza era um mistério, tornando
difícil entender o mundo. Somos descendentes de povos que respondiam aos
perigos da existência inventando histórias sobre deidades imprevisíveis, descontentes
e vingativas. Por muito tempo – e ainda hoje – o instinto humano da compreensão
foi frustrado por fáceis explicações religiosas e místicas. Por exemplo, o povo
aborígine Kung, de Botsuana, possui uma explicação para a Via Láctea. Chamam-na
de “a espinha dorsal da noite”, como se o céu fosse um grande animal dentro do
qual vivêssemos. Estaríamos, talvez, no estômago deste animal e, ao olhar para
cima, veríamos a sua “espinha dorsal”. A explicação deles torna a Via Láctea
tanto útil quanto compreensível, com um toque poético. Os Kung acreditam que a
Via Láctea sustenta a noite, pois se não fosse por ela, fragmentos de escuridão
se despedaçariam aos nossos pés[2].
A efetividade e a extensão da
atividade do homem, inclusive sua atividade mental, dependem do nível de sua
capacidade de produção material. Esta capacidade se multiplica e avança na
medida em que a sociedade avança tecnológica e cientificamente. As tribos da
idade da pedra, que viveram da coleta de alimentos e permaneceram no estágio
econômico da caça e da pesca, tinham uma imagem que correspondia à sua
capacidade produtiva extremamente débil e a relações sociais muito simples. Estes
povos caçadores sentavam, tarde da noite, ao redor de uma fogueira, não apenas
para assar a caça, mas para contar-inventar histórias sobre as figuras no céu:
leões, cachorros, ursos, caçadores. Outras figuras eram estranhas! Seriam as
figuras dos seres poderosos que habitavam o céu? Aqueles mesmos que fazem a
tempestade quando ficam zangados?
Uma das associações “naturais” que estes
povos primitivos faziam entre a sua realidade imediata e a explicação do
mistério das estrelas, provavelmente,
se deu a partir do domínio de sua primeira tecnologia: o fogo! As estrelas eram
fogueiras de outros grupos caçadores que a acendiam à noite. Como as estrelas
dão uma luz menor do que a da fogueira do grupo observador; então, aqueles
“fogos” no céu devem ser de grupos muito distantes. Eles pensavam que aqueles
outros grupos olhavam de volta, para “baixo”, assim como eles contemplavam as
estrelas, que, na verdade seriam “fogueiras”, olhando para “cima”. Mas a
contradição e as dúvidas se aprofundavam: por que os fogos daquele grupo
caçador lá em cima não caem em nossos pés? Por que aquelas tribos estranhas não
despencam do céu?[3]
Os gregos primitivos, mais
engenhosos que os grupos de caçadores coletores pré-históricos, ensaiaram uma
resposta mais elaborada, mas não menos mística e fantasiosa: a deusa Hera havia
casado com Zeus, o chefe dos deuses do Olimpo. Como as histórias antigas contam,
a lua-de-mel foi em Samos. A
religião grega explicava que a faixa de luz difusa no céu noturno é o leite de
Hera, que esguichou do seu seio atravessando o céu, uma lenda que é a origem do
nome ainda usado no Ocidente: a Via Láctea[4].
- 1
A única alternativa que se apresentava
aos povos primitivos para escapar das deficiências de sua economia social era a
magia e a religião. Esperava-se que esta satisfizesse as exigências e desejos
que a vida social despertava sem contar com os meios para atendê-las. As
técnicas da magia e da religião fazem supor que existem poderes superiores e
sobrenaturais que podem influir, para o bem ou para o mal, no curso dos
acontecimentos. Portanto, era necessário neutralizá-los ou vencê-los[5].
Daí advém inúmeros rituais tribais e religiosos que conhecemos – dentre os
quais, destacam-se as oferendas e os sacrifícios. A magia e a religião se
apóiam no princípio de que ao criar a ilusão de que se controla a realidade, se
pode chegar a controlá-la efetivamente. É uma técnica ilusória que complementa
as deficiências da verdadeira técnica[6].
As ilusões místicas e religiosas também se reforçam a partir de outros
sentimentos psicológicos, como o desamparo e as questões emocionais despertadas
pelas ameaças naturais.
O animismo é comum à magia e à
religião, e passou à filosofia e à ciência através do idealismo filosófico. Mas
outros caminhos, mais corajosos e determinados, na busca pela consciência se
desprenderam do caminho místico e religioso. Foi por ele que se abriu a
conscientização de que deveria haver um meio de se saber do mundo sem a
hipótese divina, que deveriam existir princípios, forças e leis da natureza
através dos quais o mundo poderia ser compreendido sem se atribuir uma
tempestade à intervenção direta de Zeus[7].
Esta grande revolução no pensamento
humano começou entre 600 e 400
a .C. e culminou no nascimento da filosofia nos movimentados
centros comerciais da civilização egéia. A primeira escola filosófica de que se
têm notícias estava em Mileto, uma das cidades fundadas pelos gregos jônicos na
costa da Ásia menor. Os povos mais avançados, inclusive depois de terem chegado
à civilização, tiveram que avançar muito em seu desenvolvimento econômico e
social para estar em condições de superar intelectualmente a visão da realidade
baseada na magia e na religião. Foi necessária uma prodigiosa quantidade de
mudanças históricas, avanços da tecnologia, transformações na estrutura social
e definições de determinadas categorias do pensamento, antes que a vanguarda
filosófica e política da humanidade pudesse se livrar das concepções primitivas
e alcançar o método do raciocínio filosófico.
Assim como os gregos continuavam
utilizando artigos de pedra e bronze junto com os de ferro, a magia e a
religião se amalgamavam em sua cultura com os primeiros brotos do pensamento
filosófico e científico. A filosofia não podia descartar as questões
mitológicas neste ambiente social. Somente com o crescimento populacional
humano por diversas regiões da África, Ásia e Europa, bem como o
aperfeiçoamento da técnica do trabalho, que levou ao aumento do domínio e do
conhecimento humano sobre a natureza, que a filosofia materialista começou a
dar os seus primeiros passos.
Os coletores de alimentos e os
caçadores não necessitavam marcar a passagem do tempo de maneira muito exata e
sua noção sobre a periodicidade dos dias, meses e anos era por demais
elementar. Este conhecimento se transforma pela primeira vez em uma necessidade
econômica e em uma função social com a atividade agrícola, devido ao ritmo
uniforme e regular da produção. Os seres humanos se viram obrigados a prestar
atenção a determinadas regularidades no movimento das estações, dos corpos
celestes porque seu sustento dependia delas. A necessidade de descobrir modos
de medir o tempo levou à invenção do calendário e às primeiras descobertas astronômicas.
Na antiguidade o ponto mais alto no domínio da
tecnologia foi a difusão do uso do ferro. Na idade do ferro foram aperfeiçoadas
as principais ferramentas manuais. A combinação da cultura urbana com as ferramentas
de ferro elevou a engenharia a outro nível. Em 500 a .C. uma montanha foi
perfurada para a construção de um túnel de quinhentos metros de largura para
proporcionar água a Samos. É importante salientar esta façanha porque Samos foi
uma das cidades-estado jônicas onde floresceu a filosofia. Junto com estas
“modernizações” tecnológicas sobreveio a escrita, a lógica, a gramática e a
possibilidade de estudo do pensamento abstrato.
Por trás dos gregos estavam as experiências práticas
e realizações dos cretenses e dos micênicos, dos fenícios e dos hititas, dos
sumérios, dos babilônios e dos egípcios. Os gregos tomaram dos babilônios e dos
egípcios os rudimentos das matemáticas e da astronomia, dos mesopotâmicos e
egípcios a medicina, dos fenícios a escrita. Ao material proveniente destas
culturas tão ricas e variadas, agregaram suas próprias contribuições, criando
assim, uma forma de pensar e uma concepção de mundo única e nova. A filosofia
idealista e materialista grega – esta última representada, sobretudo, pelos
filósofos pré-socráticos – é o fruto maduro do esforço e do conhecimento de
todos estes povos do Oriente Médio e do Mediterrâneo[8].
Foi nesta etapa de desenvolvimento humano e neste
contexto histórico que o embate filosófico entre as duas concepções de mundo
começou a delinear-se, estendendo-se até os dias atuais. Este embate é a
questão fundamental da filosofia: o que determina a realidade? A ideia ou a matéria?
Segundo a resposta que dessem a esta pergunta, os filósofos dividiam-se em dois
grandes campos. Os que afirmavam o caráter primordial do pensamento em relação
a natureza e, admitiam, portanto, em última instância, uma criação do mundo, de
uma ou de outra forma, firmavam o campo do idealismo. Os outros, que viam a
natureza (ou em outras palavras, o mundo material e a prática social) como o
elemento primordial, pertencem ao campo do materialismo.
Interlúdio
– Esta
disputa em torno da realidade é uma espécie de batalha entre deuses e gigantes.
Um bando joga tudo à terra, toma literalmente as pedras e as árvores,
argumentando que só o que pode ser tocado e sentido é real, definindo a
realidade como um corpo e se alguém diz que algo sem corpo é real, o desprezam
e se negam a escutá-lo.
– Sim, são
indivíduos que se acham inteligentes; conheci alguns.
– De modo
que seus adversários nas alturas do desconhecido defendem sua posição com
grande habilidade; defendem que a existência verdadeira consiste em certas
formas inteligíveis, incorpores; descrevem o que os outros chamam verdade como
uma forma passageira do vir a ser, não como a realidade e tornam pedaços o que
eles chamam de corpos. Sobre esta questão se leva continuamente uma terrível
batalha[9].
1
Os dois filósofos entraram na sala
do campo histórico com as suas túnicas gregas, em meio a um baixíssimo nível
tecnológico e científico. Se olharam com desconfiança, mas se cumprimentaram de
modo cortês.
O filósofo idealista, ajeitando a
túnica no braço, pergunta:
– Então você nega que a ideia
determina o real e é o seu elemento primordial?
– Nego categoricamente! – disse o
filósofo materialista, colocando os cotovelos sobre o encosto da cadeira.
– Como o mundo pode prescindir de
uma inteligência superior para a sua criação? – retrucou o idealista.
– A realidade é composta de matéria,
que é sua substância primordial. O pensamento e as ideias são apenas os reflexos,
mais ou menos exatos, dos fenômenos que se processam na natureza e no universo,
constituídos por matéria. O próprio órgão humano capaz de produzir ideias, o
cérebro, é matéria, muito embora as ideais em si, isto é, o produto do cérebro,
não o seja. Para nós, uma concepção filosófica do mundo consistente não pode
basear-se em princípios validados por apelos à uma razão abstrata, à intuição,
à evidência em si mesma ou a qualquer outra causa subjetiva e puramente
teórica. Somente vocês, idealistas, podem fazê-lo. Além do que, a lógica
filosófica sustentada por vocês está permeada por contradições insolucionáveis.
Por exemplo: se as coisas materiais não existem realmente e a ideia é o
elemento criador do real, como seria possível que todas as mentes pensassem
exatamente a mesma coisa para gerar uma mesma realidade vista e sentida por
todos nós?
– Existem várias hipóteses para lhe
responder – disse o filósofo idealista –: quem guiaria as ideais menores seria
uma inteligência superior, divina; ou poderia ser uma ideia absoluta, que comanda
todas as ideias menores; ou mesmo a negação de qualquer outra ideia que não
seja a pensada imediatamente por nós. Você pode escolher qualquer uma destas
hipóteses.
– Ou seja – retomou o filósofo
materialista –, todas são hipóteses infundadas, baseadas unicamente em razões
abstratas, subjetivas, teóricas, evidenciadas em si mesma, que, de uma forma ou
de outra, terminam na necessidade de um deus, ou de uma inteligência superior,
como vocês gostam de dizer.
– Como pode um mundo e um universo
como o nosso não ser pensado por uma inteligência superior? Poderia toda esta
harmonia e perfeição ser obra do acaso? – disse o filósofo idealista com ares
triunfais.
– E por que não? A sua harmonia e
perfeição são relativas. Não seria a mente humana, desenvolvida e evoluída por
centenas de milhares de gerações, que consegue ver, sentir e colocar harmonia
no caos da natureza e do universo? A nossa capacidade racional se desenvolveu
com o tempo e, sobretudo, com o trabalho, a sua técnica e ciência, que
possibilitaram a compreensão de que a natureza podia ser quantificada, qualificada,
estudada e admirada.
– Isso não é possível! Eu não posso
aceitar que o nosso mundo, com toda a sua vastidão, tenha surgido do nada! A
nossa realidade é o reflexo da mente e da ideia superior, absoluta! A matéria é
criada por ela! A crença num mundo “exterior” à nossa mente não se justifica
racionalmente. Não podemos encontrar nenhuma evidência para isso! – o filósofo
idealista bufava, como que profundamente ofendido.
– Por que, então, todos nós, seres humanos,
agimos como se esta “crença” no mundo exterior fosse real? Vejamos um exemplo
bem singelo! O que se passa se não comermos? Os processos fisiológicos pelos
quais convertemos a matéria exterior em nosso próprio corpo, nossa própria
vida, nossas sensações e pensamentos, constituem a prova cotidiana da verdade
da preponderância da matéria sobre a ideia! Quando respiramos, comemos ou
bebemos, transformamos continuamente os elementos da natureza em nossa própria
substância humana. Nossa dependência total do material é demonstrada pelo fato
de a falta de oxigênio, alimento e bebida, produzir a asfixia, a fome e a sede;
das quais provém a doença ou mesmo a morte. Aliás, acredito que esta deva ser a
chave pra compreender um dos objetivos finais de toda a sua concepção
filosófica: o medo da morte! – concluiu o filósofo materialista, olhando
fixamente para o oponente.
– Isto é uma blasfêmia! Você quer me
dizer que toda a riqueza enciclopédica que ajudamos a desenvolver dentro do
campo filosófico se reduz ao medo da morte? – perguntou, irado, o filósofo idealista.
– Reconheço a contribuição
importante, sobretudo dos primeiros grandes filósofos idealistas, ao pensamento
humano no campo da lógica e na tentativa de procurar entender qual era a constituição
da realidade! Mas reconheço isso nos primeiros anos de vida do pensamento
humano, quando a ciência recém engatinhava. Com a evolução da ciência moderna,
o pensamento idealista, mesmo com todas as suas contribuições importantes do
passado, tornou-se uma distorção grosseira da realidade, um verdadeiro contra
senso. Penso que, em última análise, o pano de fundo de toda esta concepção se
reduz a este medo inconsciente, do qual todos os seres humanos, por instinto ou
reflexão, sentem. Se a morte não é o fim, como muitos de vocês e os seus
primos-irmãos, os religiosos, afirmam, porque têm medo dela? Não seria a
libertação do corpo material e a volta para o mundo das ideias, ou para o
paraíso, onde tudo é eterno, perfeito, incorruptível, algo sublime, livre de
medos e insegurança? Não me parece muito coerente esta conduta. Dentre vocês, o
único que manteve-se coerente com isso, segundo tenho conhecimento, foi
Sócrates ao beber cicuta. Nenhum outro! Nem mesmo o seu discípulo mais
ardoroso, Platão, que levou o seu pensamento até o extremo e foi um campeão do
idealismo, teve a mesma ousadia! O medo de deixar de existir é o que move esse
desejo de vencer a morte! Eu gostaria muito de poder sobreviver ao fim da
existência física, que é magnânima e única, baseado somente na força da minha
vontade, mas não posso contrariar as evidências materiais que nos cercam,
inclusive este instinto humano que luta pela vida por que pressente o que
significa a morte – o filósofo materialista se ajeitou na cadeira e respirou fundo.
– Não se trata apenas de desejo –
retrucou o idealista.
– Não? – indagou o materialista –
Está baseado em quê, então?
– Numa profunda certeza da intuição
humana.
– Continua sendo uma certeza
absolutamente vazia e abstrata, mais baseada na vontade e nos desejos pessoais
do que em qualquer outra coisa.
– Não – disse o idealista, indignado
– trata-se de uma certeza divina. Somente os homens, que são seres racionais,
são capazes de apreendê-la!
– Voltamos para o início! Não
conseguimos avançar nenhum passo! Ficamos reféns de uma contradição
insolucionável.
– A contradição está na sua
concepção filosófica! – disse o idealista com o dedo em riste – Como pode ter
tanta convicção de que o que sentimos através dos sentidos é realmente
verdadeiro e existe fora de nós! O mundo é o não-eu criado pelo nosso “eu”; é sustentando pela ideia absoluta; o
ser é a sua consciência; o físico nada mais é do que o psíquico! Qualquer coisa
que fuja desta lógica é uma ilusão!
– Não, não e não! – disse o
materialista, se levantando da cadeira – Ilusão é a sua filosofia, que apenas
consiste em tomar o psíquico como ponto de partida. A partir dele vocês deduzem
a natureza e só depois da natureza deduzem a consciência humana comum. Este
“psíquico” primordial revela-se sempre, portanto, como uma abstração estéril
que esconde uma teologia diluída. Como é possível uma filosofia que ensine que
a natureza física é um derivado da mente, da ideia? Todos nós sabemos o que é
uma ideia humana, mas a ideia sem o ser humano ou anterior ao ser humano, a
ideia em abstrato, a ideia absoluta, é uma invenção teológica de vocês! Todos
sabem o que é uma sensação humana, mas a sensação sem um ser humano, anterior
ao ser humano é um absurdo, uma abstração morta, um artifício idealista!
– Como vocês são reducionistas! O
seu tipo de pensamento está ultrapassado, morreu com os filósofos
pré-socráticos! Eu somente posso saber que existo se eu penso, raciocino,
produzo ideias! Se eu penso, logo eu existo! Se eu não penso, eu não sinto, eu
não existo!
– A sua filosofia está de cabeça
para baixo: eu primeiro tenho que existir física e materialmente, para depois
sentir, produzir ideias e poder pensar. Portanto, a lógica é: existo, logo
penso! Na verdade, pela sua lógica, não temos aqui as sensações humanas
habituais e conhecidas de todos, mas sensações imaginadas, sensações de
ninguém, sensações em geral, sensações divinas, tal como a ideia humana se
tornou divina na sua filosofia logo que separada do ser humano e do cérebro
humano!
– Vocês não entendem nada! – disse o
idealista voltando seu olhar para o chão com uma expressão de desaprovação –
Nos igualam aos animais, ao mundano, ao terreno, ao mundo sensível, natural, onde
tudo é imperfeito, mutável, corruptível. Somente a ideia pode dar perfeição e ordem
a este caos; somente ela pode ter criado tudo isso, comandar tudo isso!
– Se a natureza é um derivado, uma
“criação” – disse o materialista voltando ao seu assento –, é evidente que ela
só pode ser um derivado de uma coisa maior, mais rica, mais vasta, mais poderosa
do que a própria natureza e o universo, uma coisa que existe para além deles,
pois para “produzir” a natureza e o universo é necessário existir independentemente
da natureza e até mesmo do universo. Quer dizer: existe alguma coisa fora da
natureza e do universo e que, além disso, os produz. A isto, costumamos chamar
de “deus”. Vocês sempre se esforçam por modificar esta última designação, por
torná-la mais abstrata, mais nebulosa e, ao mesmo tempo, por uma questão de
verossimilhança, mais próxima do “psíquico”, como dado imediato que não exige
demonstração e nem comprovação.
– Isso tudo é tolice! Nós nos
baseamos nas nossas percepções intuitivas e racionais inatas! – contestou o
idealista, já cansado do embate.
– Nós afirmamos que a experiência
socialmente organizada dos seres vivos é um derivado da natureza física, o
resultado de um longo processo de desenvolvimento dela, desenvolvimento este
que se deu a partir de um estado da natureza física em que não havia e não
podia haver sociedade, nem organização, nem derivado desta experiência dos
seres vivos. Vocês, idealistas, nos dizem que a natureza física é um derivado
desta experiência dos seres vivos e, dizendo isto, equiparam-se à natureza de
deus. E nós que falamos tolices? Definitivamente não! A noção de “deus” é,
indubitavelmente, um derivado da experiência socialmente organizada dos seres
vivos, sobretudo a partir do longo período que se desenvolve na história após a
nossa era, a era greco-romana; ou seja: a Idade Média. É o reinado do
catolicismo sobre a Europa, que nas etapas seguintes se estenderá ao mundo
todo. E é indubitável que o catolicismo seja uma experiência socialmente organizada,
sobretudo a partir do feudalismo; só que ele não reflete a “verdade objetiva”,
mas apenas a exploração da ignorância popular por determinadas classes sociais[10].
– É realmente muito difícil discutir
com você! Você é intransigente, sectário, e está me agredindo! Quer impor sua
opinião sobre os outros! Bem que os neoplatônicos me alertaram sobre vocês –
falou o filósofo idealista, se levantando da cadeira como quem dá a entender
que vai embora.
– Na ausência de bons argumentos a
acusação é sempre a melhor arma – disse rindo o materialista – A verdade, quer
você queira ou não, é que o catolicismo está socialmente organizado,
harmonizado, concertado pelo seu desenvolvimento secular; ele encaixa-se do
modo mais indiscutível na cadeia de causalidade.
***
Bem nesse instante entrou na sala
histórica um filósofo neoplatônico, que se posicionou ao lado do filósofo
idealista.
2
No campo filosófico, a longa noite
medieval se caracterizou pela destruição das obras dos filósofos gregos
pré-socráticos – os primeiros materialistas –, o que levou os seus ensinamentos
ao esquecimento por mais de mil anos. Em seu lugar, reafirmaram as teses idealistas
de Platão, modificando alguns nomes e conceitos, dando origem ao que se chamou
de neoplatonismo. Durante o
feudalismo, a filosofia se tornou serva da teologia. Todo o “conhecimento” e o
debate filosófico eram realizados entre os muros dos mosteiros e controlados
com mãos de ferro pela Igreja Católica.
Segurando uma Bíblia na mão, o
neoplatônico disse:
– A razão é Deus! Deus é razão!
Qualquer explicação do mundo que prescinda destas premissas não é filosofia,
não é uma explicação, não é nada! Aquele que destrói Deus está destruindo a
razão humana e a própria humanidade!
– Foi exatamente isto que tentei
dizer ao mentecapto ali! – disse o filósofo idealista com desdém, apontando
para o filósofo materialista.
– Querer fundir “deus” e “razão” é
um artifício muito engenhoso para esconder as profundas contradições em que vocês
estão imersos – disse o filósofo materialista.
– Não há contradição alguma! – disse
o filósofo neoplatônico, se apoiando nos ombros do filósofo idealista – Conformemo-nos
à analogia da fé, jamais nos esquecendo que devemos repudiar qualquer
interpretação contrária à lei divina, ou capaz de nos fazer crer que a nossa
santa Igreja, sua hierarquia, seus pensadores, tenham ensinado algum erro,
contradito a si mesmos. Tenhamos presente que jamais é possível haver
contradição entre a Sagrada Escritura, retamente interpretada, e a verdadeira
ciência[11] –
enquanto falava, o filósofo neoplatônico erguia a Bíblia.
– Me chama a atenção as seguintes
expressões: “devemos repudiar”, “jamais é possível interpretação contrária”! –
o filósofo materialista se levantou e começou a andar em círculos pela sala –
Toda esta pomposidade das suas palavras serve unicamente para esconder a
ausência de conteúdo, as contradições insolucionáveis de vossa filosofia. É
evidente que a intenção é esconder a profunda e irreconciliável contradição
entre a sagrada escritura e a verdadeira ciência. Em absolutamente nada batem
as afirmações da Bíblia e da ciência moderna. Somente um cego, crente ingênuo
incorrigível, ou pessoas mal intencionadas podem afirmar tamanho disparate!
– Trata-se apenas de uma
interpretação literal errada da Bíblia. Tudo o que a ciência moderna afirma já
estava contido em metáforas lá – disse o neoplatônico, com os cotovelos
escorados nas costas do filósofo idealista.
– Esta é outra manobra bastante
comum. Joga-se tudo para o campo subjetivo da interpretação literal lingüística
e tudo está resolvido! Não! – gesticulava de pé o filósofo materialista – Como
é possível ignorar a tamanha desproporção entre o tempo mais ou menos calculado
entre a criação divina, expressa na Bíblia, e o tempo estimado pela geologia,
geografia e astronomia modernas? Um “pequeno erro literal” de mais de 4 bilhões
de anos! Não é necessário reafirmar as descobertas da química, física e
biologia modernas, que através do darwinismo e, posteriormente, da genética,
deram um duro golpe em todas as concepções religiosas da Bíblia.
– A força divina não se expressa
nestas questiúnculas mundanas – gritou o filósofo idealista, que até então
ouvia tudo em silêncio –, precisamos investigar as questões metafísicas, da
origem de tudo!
– Sim! – disse ironicamente o
materialista – Cada um puxa a batalha para o terreno que lhe é mais favorável!
– Não banque o engraçadinho! – retrucou
o idealista – Nem sempre entendemos pela razão, sobretudo pela razão mundana,
materialista. A questão envolvendo Deus transcende o seu tipo de terreno. Explora
os terrenos da crença humana. Há uma tendência de crermos em tudo o que entendemos,
mas nem tudo o que cremos também entendemos.
O filósofo neoplatônico se
intrometeu:
– O grande profeta bíblico, Isaías,
dizia ser necessário crer para compreender, pois a fé ilumina os caminhos da
razão e, posteriormente, a compreensão nos confirma a crença. Isso significa
que, para nós, a fé revela verdades aos seres humanos de forma indireta e
intuitiva. Vem depois a razão, esclarecendo aquilo que a fé já antecipou.
– Novamente a intuição, o
transcendental, o incognoscível, o abstrato! – disse o materialista voltando ao
seu assento.
– É Deus que permite às essências
realizarem-se em entes, em seres existentes – prosseguiu o neoplatônico, ainda
escorado sobre o idealista.
– É necessário um “primeiro motor”!
– afirmou o idealista de dedo em riste – Tudo aquilo que se move é movido por
outro ser. Por sua vez, esse outro ser, para que se mova, necessita também ser
movido por outro ser, e assim sucessivamente. Se não houvesse um primeiro ser
movente, cairíamos em um processo indefinido, aí sim em uma verdadeira
contradição!
– Logo – intrometeu-se novamente o
neoplatônico –, é necessário chegar a um primeiro ser movente que não seja
movido por nenhum outro. Este ser é Deus! É preciso admitir, assim, que há um
ser que sempre existiu, um ser absolutamente necessário, que não tenha fora de
si a causa de sua existência, mas, ao contrário, que seja a causa da
necessidade de todos os seres e do próprio mundo!
– Aqui é importante perguntar:
“absolutamente necessário” para quem? Para a vossa filosofia que fica num beco
sem saída? – ironizou o materialista – Por que um “ser”? Por acaso isso não
seria um auto reflexo peculiarmente humano?
– Ele é incorrigível! – bradou o
idealista – Todas as coisas brutas, que não possuem inteligência própria,
existem na natureza cumprindo uma função, um objetivo, uma finalidade. Devemos
admitir, então, que existe algum ser inteligente que dirige todas as coisas da
natureza para que cumpram seu objetivo. Uma das interpretações possíveis é que
este ser seja realmente Deus!
– Com vocês, idealistas, voltamos
sempre à estaca zero! É preciso uma inteligência que paire no ar, que viva
independentemente do ser humano, da natureza e do universo. E o mais curioso é
que ela sempre reflete, direta ou indiretamente, o ser humano e a sua
inteligência. Não seria mais honesto reconhecer que nesta concepção existe um
quê de místico e primitivo, bastante estranho à concepção científica? Esta
última se baseia em evidências, fatos, comprovações; em última análise, em
hipóteses desencadeadas pelas evidências; a fé religiosa, por sua vez, é auto
suficiente, basta-se equivocadamente a si mesma! O que é a fé se não acreditar
cegamente em algo que não há evidências?
– Ele é realmente incorrigível! –
concordou o neoplatônico.
– Cada um pode acreditar no que
quiser! Eu poderia me conformar com isso se vocês não propagassem e
doutrinassem centenas de milhares de pessoas neste absurdo, nestas contradições
nebulosas, que, no fim das contas, servem para ajudar a perpetuar a ordem
social, uma vez que quem é doutrinado no abstrato, não enxerga o concreto, o
real! Para isso dispõem de uma estrutura milenar, como a Igreja, de terras,
bancos, televisões, universidades, escolas; do senso comum! O idealismo, que
vocês representam e propagam, para a vergonha da inteligência humana e da
filosofia, é o pensamento mais difícil de combater, embora seja o mais absurdo
de todos.
– “Vergonha da inteligência humana”!
Ora, vejam só! – disse o idealista – Representamos a mais fina flor do
pensamento racional humano.
– É verdade! – concordou, indignado,
o neoplatônico.
– É bastante natural que pensem
isto! Afinal, não defenderiam suas posições com tamanho afinco, apesar de que
muitos dentre vocês, bem como as inúmeras pessoas influenciadas pela sua
filosofia, ajam de forma desonesta, pois existem inúmeras brechas para a
desonestidade intelectual dentro da vossa concepção filosófica. Transformam a
realidade e as descobertas científicas, tal como se apresentam, em distorções
agradáveis para aquilo que individualmente gostaríamos que fosse verdade; ou
pior, em coisas que sabem que não correspondem à realidade, mas afirmam assim
mesmo pela força da inércia intelectual, do medo das conseqüências do próprio
pensamento. Preferem interromper a cadeia de conclusões a olhar a realidade de
frente, por mais amarga que se apresente!
– Que absurdo! Agora já beira as
raias da agressão – lamentou-se o neoplatônico.
– Eu gostaria muito de ouvir uma
única teoria sua, sem agressões verbais, que nos expusesse a sua concepção
sobre deus, sobre o divino, se é que vocês possuem alguma! – desafiou o
idealista.
– Perfeitamente! – disse o
materialista se ajeitando na cadeira – Para nós, a religião é o sonho da mente
humana. Assim como se interpreta o sonho, é necessário interpretar a religião.
Ou seja, é preciso transformar o objeto da fantasia no objeto da realidade.
Para começar, eu lhe diria que deus é um substituto paterno, ou mais
corretamente, que ele é um pai sublimado, ou, ainda, que constitui a cópia de
um pai tal como ele é visto e experimentado na infância; pelos indivíduos em
sua própria infância e pela humanidade em sua pré-história, como pai da horda
primeva[12].
– Um profanador! Um herege que se
julga a altura do divino, do sagrado! – intrometeu-se o neoplatônico – Vejam só
que arrogância! Ele compara a sagrada revelação a uma “fantasia”.
– Todas as qualidades atribuídas a
deus são sempre humanas – prosseguiu o materialista, ignorando as observações
do neoplatônico –, não há diferença alguma!
– Como não?! – indagaram o idealista
e o neoplatônico em coro, se entreolhando.
– Se vocês deixarem, poderei
desenvolver a nossa concepção sobre o “divino” até o fim – continuou o
materialista.
– Prossiga! – disse o idealista,
visivelmente contrariado.
– O ser humano é para si, ao mesmo
tempo “eu” e “tu”, pois ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque
o seu gênero, o gênero humano, isto é, a sua essência, e não somente a sua
individualidade, é para ele objeto. Mas a religião é a consciência do infinito,
do eterno, certo?
O filósofo idealista e o
neoplatônico assentiram com a cabeça.
– Assim sendo – prosseguiu o materialista –, não é e
não pode ser mais que a consciência que o homem tem da sua essência não finita,
não limitada, mas infinita. Enquanto indivíduos, temos a noção de que somos
finitos; mas enquanto gênero somos infinitos, pelo menos, até que haja um
cataclismo que destrua o planeta e, consequentemente, a nossa espécie. Ora, se
é assim, então a religião só pode ser, em última análise, a própria consciência
que o homem tem de si mesmo enquanto essência infinita. A ilusão fundamental
que origina a religião consiste no fato de o ser humano fixar a distinção entre
o “eu” e o objeto, considerando sua própria essência infinita, seu objeto, como
distinto de si, como deus, tentando, deste modo, superar a tensão fundamental
entre o eu e o objeto de sua consciência. Assim, os predicados atribuídos a
deus são determinações genéricas humanas. O conceito de divindade coincide com
o de humanidade. A noção de deus é, portanto, o relacionamento do ser humano
com a sua própria essência, mas com a sua própria essência não como sendo sua,
mas de um outro ser supostamente diverso dele. Este processo de cisão coincide
com o de objetivação. Este processo de objetivação é desarraigador no ser humano,
porque aquilo que é objetivado e afirmado em deus, é negado no ser humano. O
ser humano afirma em deus o que nega em si mesmo. Para enriquecer deus, deve o
ser humano tornar-se pobre. Tudo de que se priva e dispensa em si mesmo, só
goza ele em deus numa intensidade incomparavelmente maior e mais rica. Deus não
é o que o ser humano é; o ser humano não é o que deus é. Deus é o ser infinito,
o homem o finito; deus é perfeito, o ser humano imperfeito; deus é eterno, o
ser humano transitório; deus é santo, o ser humano é pecador. Deus e o ser humano
são extremos: deus é unicamente positivo, o cerne de todas as realidades; o ser
humano é unicamente negativo, o cerne de todas as nulidades.
– Não posso acreditar no que escutei!
– disse, horrorizado, o neoplatônico.
– Eu não esperava outra coisa que
não isto! – concordou o idealista, também horrorizado – Então você nega que
Deus seja a revelação da verdade, expressão da própria existência do ser humano?
– Sim! – retrucou o materialista – A
consciência que o ser humano tem de deus é, na verdade, a consciência que tem
da sua própria essência, divinizada, porque a falta da consciência deste fato é
exatamente o que funda a base peculiar da religião.
– Não pode ser! – surtou o
neoplatônico – Chamem a Santa Inquisição! Levem este herege aos tribunais da
fé! Ele quer separar o homem de Deus! Quer humanizar Deus e não divinizar o
homem! Estás negando a possibilidade da humanidade garantir o seu lugar junto
ao Criador, seu pecador imundo!
– O ser humano é o começo da
religião, o centro da religião e o fim da religião! – reafirmou o materialista
em meio aos gritos histriônicos do neoplatônico.
– Concordo em partes com você –
repensou o idealista de forma oportunista –, mas ainda vejo o espírito divino
como criador da realidade e o arauto das grandes realizações humanas.
– A essência de “deus” pode ser
resumida da seguinte maneira: o sentimento da dependência é a sua base. Deste
modo, a religião, sobretudo o cristianismo, faz com que o homem não se empenhe
nas tarefas temporais, na construção da história e da sociedade, afastando o
interesse humano da realidade concreta, devido à espera de um quimérico mundo
vindouro. Exatamente por isso deixou de lado os desejos atingíveis do ser humano.
Arrancou-o à vida temporária através da promessa da vida eterna; arrancou-o à
confiança em suas próprias forças em detrimento da confiança na ajuda de deus;
arrancou-o à fé numa vida melhor aqui na Terra e do esforço para consegui-la em
detrimento da fé numa vida melhor no céu[13].
– Seu caluniador! Arderás no fogo do
inferno por esta impertinência! – disse o neoplatônico com fogo nos olhos e
apontando para o materialista – Saiba que o Criador o castigará por negar-lhe a
nossa criação por Ele! Deus nos criou e também pode nos destruir por causa de
blasfemadores como você!
– Não foi deus que criou o ser humano;
foi o ser humano que criou deus – respondeu asperamente o materialista.
– Você quer destruir o amor entre os
seres humanos, pois deus é o amor; quer acabar com a esperança, com a vida após
a morte. Imaginem uma sociedade sem Deus? Seria o caos! Todos matariam a todos,
sem temer a nada e nem a ninguém. O seu problema é que não tem deus no coração
– disse, aflito, o filósofo neoplatônico.
– Por que destruiríamos o amor? Para
nós, materialistas, apesar de não necessitarmos de um deus, reconhecemos a
existência do amor entre os seres humanos. Não o entendemos como algo abstrato,
igual em todas as épocas e lugares, mas como o reflexo da cultura humana e da sociedade.
Modifica-se, adquire novos valores, abandona os que tinha. Nunca é igual a si
mesmo; não pode ser eterno, nem perfeito. Aliás, este é um grande equívoco dos
românticos: achar que o amor é desse jeito. O amor não necessita de receitas e
de dogmas. Está na natureza, da mesma forma que a violência. Quanto ao caos e a
violência, isso é uma profunda ironia da sua parte, pois a Europa cristã
medieval matou inúmeros seres humanos em nome de deus e da santa igreja católica,
mas na verdade seu interesse era apenas por terras e poder econômico. Estas
justificativas religiosas para as guerras vêm desde a antiguidade e perduram
ainda hoje, na contemporaneidade. O mundo moderno descobriu o “super ego”, as
pulsões de vida, de morte, de criação e de destruição. Deus não é mais
necessário sob nenhum ponto de vista, apenas para a dependência sentimental e
ilusória de um pai e de uma mãe superiores. Eu não tenho deus no coração, como
você acusa, nem creio na vida após a morte, mas isso não significa que não ame
as pessoas que me querem e me fazem bem, da mesma forma que a existência na
Terra e o valor da vida adquirem um novo significado muito mais profundo e belo
do que as receitas religiosas.
O filósofo neoplatônico olhava para
o materialista atônito, queimando-o e flechando-o com o olhar. Se pudesse
enterraria o oponente vivo, para livrar-se de tal inconveniente. Porém, foi a
evolução histórica que enterrou a estrutura econômica feudal e, com ela, todo o
seu pensamento filosófico, político e social, incluso o pensamento
neoplatônico. Sobreveio o período das comoções revolucionárias na Europa: o
iluminismo, a idade da razão, da luta contra o obscurantismo religioso
medieval, travestido de filosofia.
***
O filósofo idealista retirou-se da
sala histórica com o seu aliado neoplatônico, enquanto o filósofo materialista
seguiu sentado em seu lugar, esperando o retorno do oponente. Dentro de alguns
instantes, o filósofo idealista entrou novamente na sala usando uma peruca
branca com rolinhos e vestindo uma roupa clássica da Europa do século XVIII.
Junto com ele, adentrou o recinto um filósofo “materialista envergonhado”, que se
posicionou ao lado do materialista que já estava lá.
3
O filósofo materialista, olhando
para os demais, retomou a palavra:
– Outra questão fundamental da
filosofia, intimamente ligada com o debate anterior, deve tomar a nossa atenção
agora: como se conhece a realidade? Isto é, como a humanidade, que tem tão
vasta cultura técnica e científica, pelo menos se comparado com os outros seres
vivos, adquire conhecimento? Qual é a sua base e fundamentação?
– São questões profundas e
interessantes – disse o idealista –; sem dúvida nos encontraremos em campos
opostos!
– Me diga, então, caro opositor,
como a humanidade adquire conhecimento? – indagou rapidamente o materialista –
A humanidade pensa antes de agir ou age e depois pensa, tal como dizia o
Evangelho de são João, que “no início era o verbo”? Ou, dito de outra forma: a
humanidade teoriza primeiro e depois pratica, ou pratica e depois teoriza?
– Nós partimos da compreensão da
doutrina das ideias inatas, ou “inatismo”, se preferir, que sustenta que o
homem nasce com determinadas crenças verdadeiras e já possui, em germe, o
verdadeiro conhecimento racional. Os filósofos que sustentavam tal concepção,
justamente por isso, ficaram conhecidos como “racionalistas”. Segundo eles, a
alma humana teria uma espécie de repositório de informações conferidas por Deus
ou pela ideia absoluta, e isso validaria as certezas sobre as coisas do mundo,
que, em última instância, são criadas por estes seres superiores.
– Estes “racionalistas” partem da
mesma compreensão que vocês; qual seja: que a ideia determina e cria o
universo, o mundo e a natureza a nossa volta, certo? – indagou o “materialista
envergonhado”.
– Exatamente! – confirmou o
idealista – Sendo assim, para nós, São João estava correto: no princípio era o
verbo! O pensamento precede a ação; logo, a teoria precede a prática. E a vossa
concepção sobre o conhecimento, qual seria?
– Partimos do pressuposto que ao
nascermos somos como um papel em branco, uma “tábula rasa”, diziam os filósofos
empiristas, que é escrita e marcada na medida em que vivemos e temos
experiências de mundo.
– Suponhamos, pois – disse o idealista –, que a mente
é, como você disse, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem
quaisquer ideias; como ela é suprida? De onde lhe provém este vasto estoque,
que a ativa e que a ilimitada fantasia do ser humano pintou nela com uma
variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do
conhecimento?
– A isso respondemos, numa palavra: da experiência
prática! – disse categoricamente o materialista – Todo o nosso conhecimento
está fundado nela; e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. É por
isso que, para nós, no início era a ação, ação e mais ação, baseada no
espontaneísmo das necessidades. Primeiro se pratica e, no decurso deste
processo, se tira algumas conclusões que se transformam em teoria, que pode ser
passada adiante para as gerações seguintes.
O filósofo “materialista envergonhado” interrompeu:
– Estas gerações futuras podem pensar em cima de “teorias”
sistematizadas em forma de conhecimento e recebidas do passado, porém, não
sabem que se trata de um conhecimento baseado em uma prática inicial, fruto de
alguma necessidade humana. A nossa filosofia tenta ajudá-las a tirar estas
conclusões.
– Muito interessante! – disse o idealista – Mas
parece que falta alguma coisa. Vocês poderiam me dar algum exemplo para ilustrar?
– Com prazer! – assentiu o filósofo materialista –
Imaginemos que estamos na pré-história, quando a humanidade ainda não dominava
a indústria da produção de lenha. Como ela fazia para alimentar o fogo,
essencial para a sobrevivência dos bandos nômades? Logo após o descobrimento da
utilidade do fogo e o seu domínio, entendeu-se que ele precisava ser alimentado
permanentemente. Os seres humanos pré-históricos tentaram queimar vários
objetos, alguns soltavam muita fumaça, tendo baixo custo-benefício; outros não
queimavam, como as pedras; a madeira proveniente das árvores foi a solução
ideal e lógica. Como chegamos à fabricação dos machados e das serras elétricas
modernas para cortar árvores?
– Certamente surgiu de algum cérebro privilegiado,
que o projetou a partir da idealização inata de sua capacidade racional –
respondeu o filósofo idealista.
– Não! – contestou o filósofo
materialista – No início se pegava os gravetos e pedaços de madeira caídos no
chão; depois, passaram a cortar os galhos com as mãos, com o peso do corpo, na
base de muito esforço físico. Pensem no cansaço, no desgaste, nos ferimentos
resultantes, no dispêndio de energia para o pouco resultado efetivo. A
experiência levou a conclusão da necessidade de se utilizar um intermediário entre
as mãos e a árvore, ou seja, algum meio. No início foram as pedras lascadas, os
machadinhos de sílex (no caso de algumas tribos) e, finalmente, após o domínio
da metalurgia, o machado de lâmina de ferro. O surgimento do machado de ferro é
impensável sem toda esta experiência prática prévia.
– Vocês invertem a lógica –
contestou o idealista –, isto é um contra senso! Platão, no diálogo Fédon, diz
que conhecer é recordar-se daquilo que nossas almas imortais, que habitavam o “mundo
das ideias”, já sabiam, mas, que ao nascer, esquecemos. Logo, o surgimento do
machado de ferro no mundo sensível é um reflexo da ideia de machado, que já
existia no “mundo das ideias”.
– Você tinha razão quando disse que estaríamos
em campos opostos – falou o “materialista envergonhado”.
– Após este processo – retomou o
materialista –, quando a humanidade começou a produzir machados de ferro e
transformou a produção de lenha num ofício, a experiência diária dos lenhadores
foi levando ao aperfeiçoamento seus instrumentos de trabalho, isto é, os
machados. Cada vez mais sua aerodinâmica vai se modificando para facilitar os
movimentos e melhorar o desempenho. Todas essas modificações não surgiram
primordialmente da mente humana, do mundo das ideias ou de uma suposta razão
pura, mas surgiram como reflexo da experiência da prática social, representada,
sobretudo, pelo trabalho. Sendo assim, as ideias surgem na mente humana não “do
além”, mas da sua atividade prática. Poderíamos dar o mesmo exemplo sobre a
“descoberta” do fogo, da roda, da medicina, do surgimento das demais
indústrias. Como já foi dito, uma vez que a ação e a experiência levam a uma
conclusão, a uma teoria, esta é passada para as gerações futuras, que podem
pensar a partir dela, sem ter passado pela experiência inicial. Isso dá a plena
impressão de que as ideias se formam do nada, que teorizamos antes de praticar,
que o conhecimento humano provém de uma espécie de “razão pura”. Mas isto é um
engano. As ideias, as teorias e os pensamentos são uma reprodução mais ou menos
exata do que a realidade projeta sobre os nossos sentidos.
– Como vocês são reducionistas! –
afirmou o idealista se colocando de pé e ajeitando o seu sobretudo – Rejeitamos
o conhecimento objetivo que vocês defendem! Rejeitamos que o espaço e o tempo
existam realmente fora de nós! Rejeitamos que na experiência exista
necessidade, casualidade, força! Não se pode atribuir realidade fora de nossas
representações! Que vocação para menosprezar o poder das ideias e da razão
humana; para rebaixar o ser humano a um nível inferior!
– Não se trata disso – retomou a
palavra o materialista –, mas de visões de mundo opostas, que resultam em
caminhos completamente diferentes.
– Mesmo entre vocês existem
divergências profundas! – falou o idealista, de pé, apontando para os
materialistas.
– Como assim? – perguntou admirado o
“materialista envergonhado”.
– Muitos de vocês não descartam a
ideia de Deus, de um criador; outros colocam em dúvida a possibilidade de se
conhecer a própria essência da matéria; outros, dizem que o conhecimento provém
da experiência sensível, mas não reconhecem a possibilidade de que os sentidos
estejam em contato com uma realidade que exista realmente; outros tentam fazer
uma junção entre o materialismo e o idealismo, sem se definir pela preponderância
de nenhum. Ou seja, existem muitas posições filosóficas entre vocês, cujo traço
fundamental é a conciliação entre o materialismo e o idealismo, o compromisso
entre um e outro, a combinação num só sistema de correntes filosóficas
heterogêneas e opostas – disse, bufando, o idealista.
– Realmente; não o nego! – afirmou o
filósofo materialista – Penso que isto seja um equívoco por parte dos filósofos
que você citou. Deve-se notar que as proposições básicas de ambos os tipos de
pensamento se opõem absolutamente. Um deve estar correto e o outro errado. Não
podem ser ambos corretos! Quem sustenta consequentemente as posições de um,
inevitavelmente chega a conclusões absolutamente opostas às do outro. De fato a
história da filosofia exibe muitas combinações de ideias e métodos que ocupam
todo um espectro de posições entre ambos os extremos. Ainda que estas matizes
do pensamento não possam se agrupar incondicionalmente sob nenhuma das duas
categorias claramente definidas, só podem ser entendidas referindo-se a elas.
Só seremos capazes de analisar e compreender todas estas formações complexas e
contraditórias da história da filosofia se captarmos a fundo as ideias que
caracterizam os dois oponentes principais. Com eles não se esgota o campo da
filosofia, mas o dominam. Determinam as tendências principais de sua evolução e
as posições reais das escolas que oscilam entre ambos. Constituem o guia que
nos permite orientarmo-nos firmemente e sem nos perder no labirinto das
opiniões e controvérsias filosóficas.
O “materialista envergonhado” corou
e desviou o olhar para o chão.
– Porém – prosseguiu o materialista
–, é preciso dizer que, apesar dos erros inevitáveis, cada uma das grandes
escolas filosóficas materialistas trouxe à luz, à sua maneira e de acordo com
as condições de sua época, novos aspectos do pensamento materialista. Cada um
contribuiu com elementos essenciais da criação do todo, aprofundando a
compreensão da natureza, da sociedade, da mente humana e das relações entre
todos estes elementos, mesmo que de forma contraditória e híbrida. A filosofia
materialista não só mudava formalmente em cada etapa do seu desenvolvimento,
mas também se diversificava consideravelmente e ampliava a sua perspectiva.
Deste modo, se penetrava cada vez mais na realidade e na essência da matéria.
– Mentira! – bradou o idealista –
Este filósofo ao seu lado acha que não é possível penetrar na realidade; ou
seja, não se pode conhecer a essência da matéria. Eu conheço muito bem a sua
concepção! – enquanto gritava, o idealista olhava fixamente para o
“materialista envergonhado”.
Extremamente constrangido e
contrariado, o “materialista envergonhado” tomou a palavra:
– Sou levado a concluir que nossas
percepções sensoriais realmente se baseiam em “coisas em si”, ou seja, que
estão objetivamente fora de nós.
– Sim, neste caso estamos em pleno
acordo! – interrompeu o materialista.
– Mas o eixo da questão não está aí!
Conclua o seu raciocínio – ordenou o idealista.
– Er... a “coisa em si” existe
realmente fora de nós – prosseguiu o “materialista envergonhado” –, mas ela é
incognoscível!
– Ha ha ha! – riu o idealista – Aí
está a contradição! Para alguns de vocês – enquanto falava ele apontava para o
“materialista envergonhado” – a matéria é incognoscível, impenetrável, o pensamento
e o conhecimento humano nunca serão capazes de desvendá-la!
– Er... me desculpem, mas como é que
podemos saber se os nossos sentidos, que nos trazem sensações subjetivas, podem
nos fornecer uma sensação correta? Passar do fenômeno, isto é, das nossas
sensações, percepções, etc., à coisa existente fora da nossa percepção
sensorial é um contra senso; e admitimos esse contra senso não para o
conhecimento, mas apenas para a fé – falou outra vez extremamente constrangido
o “materialista envergonhado”.
– Aí está! Aí está! – disse,
triunfalmente, o filósofo idealista – Todos os caminhos levam à nossa
filosofia; vocês estão derrotados!
– Ledo engano, caro amigo! – retomou
a palavra o materialista – Este filósofo não passa de um idealista disfarçado
com uma máscara de materialismo. O seu pensamento é de um autêntico
“materialista envergonhado”. Tirou inúmeras conclusões materialistas, como por
exemplo, o fato da realidade existir fora de nós, objetivamente, mas faz um
lamaçal confuso a partir destas conclusões. Qualquer diferença misteriosa,
engenhosa e sutil entre o fenômeno e “a coisa em si”, isto é, os objetos
materiais e a própria materialidade da natureza que nos cerca, é um completo
disparate filosófico. Na realidade, cada ser humano já observou milhões de
vezes a transformação simples e evidente da “coisa em si” em fenômeno, em
“coisa para nós”. Esta transformação é precisamente o conhecimento construído
pela humanidade.
– Não existe um conhecimento
construído pela humanidade, mas apenas o conhecimento concedido pela graça de
Deus ou da Ideia Absoluta! – redargüiu o idealista – A conclusão do pensamento
deste filósofo – o idealista apontava para o “materialista envergonhado” –, a
coroação do seu sistema, é a mesma que a minha; a saber: se não podemos
conhecer a matéria, chegar na essência da realidade, conhecer a “coisa em si”,
então caímos inevitavelmente na conclusão de que a origem do ser humano, do
planeta, do universo, da natureza, enfim, da matéria, seguem sendo tão misteriosos
quanto sempre o foram! Somente o divino e o superior a releva para nós.
– A natureza e suas manifestações
são a tradução do que é “deus” – disse o “materialista envergonhado” – Não acho
que deus ou uma “ideia absoluta” criaram a natureza e a regem, mas são
idênticos à ela, são a mesma coisa. Nunca conseguiremos penetrar nos meandros
dessa natureza, dessa realidade, de sua matéria, e, por isso mesmo, chegar à “verdade”
é impossível.
– Discordamos! – falaram em uníssono
o materialista e o idealista.
– Discordam? – horrorizou-se o
“materialista envergonhado”.
– Sim! Totalmente! – começou o
idealista – É evidente que existe uma “verdade” e esta se encontra em Deus, na
Ideia Absoluta, nas revelações divinas e filosóficas sobre a preponderância da
ideia sobre a matéria. Quando chegamos a esta consciência plena a verdade
absoluta se revela para nós em toda a sua plenitude – concluiu o filósofo
idealista erguendo suas mãos aos céus.
– Discordo de você – disse o
materialista apontando para o “materialista envergonhado” – e de você também! –
apontou para o idealista.
– Naturalmente! – disparou o último
com uma expressão de desdém.
– Podemos sim conhecer a realidade,
a natureza, a matéria – disse o materialista –, mas isso nada tem a ver com
uma verdade absoluta, eterna, divina.
– Se a “verdade” é uma forma da
experiência humana – levantou-se o “materialista envergonhado” –, não pode
haver “verdade” independente da humanidade, não pode haver “verdade objetiva”.
– Bravo! – gritou o idealista –
Nesse ponto estamos de acordo! Se a “verdade” é uma forma organizadora da
experiência humana, não pode ser verdadeira a afirmação da existência da Terra
fora de toda a experiência humana. A verdade é relativa e imaterial; ela só se
torna absoluta e eterna em Deus, ou na Ideia Absoluta, se preferir!
– Vocês estão equivocados, caros
amigos! – disse o materialista abrindo os braços – A questão de saber se ao
pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas
uma questão prática. É na prática que o ser humano tem de comprovar a verdade,
isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa
sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da prática é
uma questão puramente escolástica, metafísica, abstrata e ilusória[14]!
– Ousa menosprezar outra vez a força
da racionalidade humana! – disse o idealista, indignado – Não se trata de falar
sobre “realidade”!
– Não é possível conhecer a
“verdade” e nem a realidade objetiva – concluiu o “materialista envergonhado” –
Isso tudo é perda de tempo!
– De qualquer forma, gostaria de
ouvir os disparates finais do caro filósofo – disse o idealista olhando para o
materialista.
– Claro que sim! Será um prazer –
disse, sorrindo, o filósofo materialista – O ponto de vista da vida, da
prática, deve ser o ponto de vista primeiro e fundamental da teoria do
conhecimento. E ele conduz inevitavelmente ao materialismo, afastando desde o
princípio as invencionices intermináveis da escolástica professoral idealista.
Naturalmente, não se deve esquecer que o critério da prática nunca pode, no
fundo, confirmar ou refutar completamente uma representação humana, qualquer
que seja. Este critério é também suficientemente “indeterminado” para não
permitir que os conhecimentos do homem se transformem num “absoluto”, e, ao
mesmo tempo, suficientemente determinado para conduzir uma luta implacável
contra todas as variedades de idealismo e agnosticismo, aos quais vocês
representam. Se aquilo que a nossa prática confirma é a única e última verdade
objetiva, daí decorre o reconhecimento de que o único caminho para esta verdade
é o caminho de que a ciência assente no ponto de vista materialista. A única
conclusão a tirar da opinião partilhada pelos materialistas consiste no
seguinte: seguindo pelo caminho da filosofia materialista, nos aproximaremos
cada vez mais da “verdade objetiva”, sem nunca a esgotar; mas, seguindo por
qualquer outro caminho, não podemos chegar senão à confusão e à mentira[15].
– Que absurdo! – bradaram o
idealista e o “materialista envergonhado” em uníssono.
– Eu ainda não terminei! – prosseguiu
o materialista – O avanço da ciência moderna tem decidido definitivamente a
questão em favor do materialismo. Por exemplo: as ciências da natureza não
permitem duvidar de sua afirmação de que existência da Terra antes da humanidade
é uma verdade. Isto é perfeitamente compatível com a teoria materialista do
conhecimento: a existência do que é refletido na mente humana, independentemente
daquilo que reflete, é a premissa fundamental do materialismo. Ou seja, a
independência do mundo exterior em relação à consciência. A afirmação das
ciências da natureza de que a Terra existia antes da humanidade é uma verdade
objetiva. Esta tese das ciências da natureza é incompatível com a filosofia
idealista ou agnóstica; sobretudo com a doutrina da “verdade” de ambas as
filosofias. Indo mais além, é possível afirmar que não conhecemos a “verdade”
na questão da forma da Terra? Durante séculos se sustentou erroneamente que a
Terra era plana. Passadas inúmeras gerações de pensadores que foram mortos pela
Igreja por sustentaram concepções opostas, as grandes navegações, o surgimento
dos aviões, dos satélites e dos avanços da ciência moderna, é possível negar
que a Terra seja esférica?; que essa conclusão seja uma “verdade”
inquestionável, conquistada pela prática e pelo avanço tecnológico e científico
humano?
– Sabemos que existe uma série de outros filósofos
que negam a possibilidade de se conhecer o mundo, ou, pelo menos, de conhecê-lo
de modo completo – interviu o “materialista envergonhado” – Entre os mais
modernos encontramos David Hume e Kant, que desempenharam um papel muito
importante no desenvolvimento da filosofia.
– Em refutação aos seus pontos de vistas – prosseguiu
o materialista –, os argumentos decisivos já foram dados por Hegel na medida em
que isso podia ser feito de uma perspectiva idealista. A refutação mais
contundente dessas noções filosóficas é, como eu já disse, a prática, principalmente
a experimentação e a indústria. Se podemos demonstrar a exatidão de nossa
maneira de conceber um processo natural, por exemplo, reproduzindo-o nós
mesmos, criando-o a partir de suas condições próprias; e se, além disso, o
colocamos a serviço de nossos próprios objetivos, então acabamos com a “coisa
em si” inacessível de Kant. As substâncias químicas produzidas no mundo
vegetal, mineral e animal continuaram sendo “coisas em si” inacessíveis, até
que a indústria química começou a produzi-las, uma após a outra; com isso, a
“coisa em si” converteu-se em coisa para nós, como por exemplo, a matéria
corante de garança[16], a
alizarina, que já hoje não se extrai da raiz daquela planta, mas obtém-se do
alcatrão de hulha, por um processo muito mais barato e mais simples. A química
e a física quântica, penetrando cada vez mais na essência da matéria, nos
desmistificam a sua composição. Se, apesar de tudo isso, vocês idealistas,
agnósticos e “neo-kantianos”, tentam nos fazer crer que não podemos conhecer a
essência da realidade, da matéria, bem como nos negam a possibilidade da
existência de uma “verdade objetiva”, então, essas tentativas, agora que suas
doutrinas filosóficas estão refutadas prática e teoricamente, defendê-las somente
pode ser encarado como um retrocesso científico e, na prática, nada mais do que
uma forma vergonhosa de aceitar o materialismo às escondidas e de renegá-lo em
público[17].
O filósofo “materialista
envergonhado” levantou-se, ultrajado, e retirou-se da sala.
– Veja só o que fez! – falou o
idealista apontando para a porta – Este é o resultado de sua filosofia, o
afastamento das pessoas. Vocês são sectários, querem impor sua opinião sobre os
demais! E o pior de tudo, caem numa contradição, pois a sua “filosofia
materialista” não passa de um conjunto de ideias, logo, voltamos ao início.
– Que grandes mestres da confusão,
do labirinto sem saída, da enrolação! – disse o materialista erguendo o braço,
indignado – Vocês não conseguem achar uma resposta plausível e aí apelam para o
emocional, para o lado individual, declaram-se ofendidos pessoalmente. Isto não
faz parte do debate científico e filosófico!
– Pois então me responda! – disse o
idealista, também indignado – A filosofia materialista não é um conjunto de
ideias, portanto, demonstrando, na prática, a preponderância das ideias sobre a
matéria?
– Caro opositor, esta forma de
colocar a questão apenas obscurece o debate. O fato da filosofia materialista
se expressar através de uma doutrina de ideias não demonstra em nada a supremacia
das ideias sobre a matéria na questão fundamental da filosofia, que pretende desvendar
o que determina primordialmente a realidade e qual a fonte real do nosso
conhecimento. O materialismo não nega a existência das ideias, apenas nega que
as ideias possam existir sem a matéria, andando soltas pelo ar. Expressamos a
nossa concepção filosófica através de um conjunto de ideias, que são o
resultado da evolução da técnica, da ciência e da prática social, isto é, do
trabalho, de mais de 3 mil anos de história, pelo menos. Estas conclusões não
surgiram do além, como você dá a entender, mas desta evolução social, econômica
e cultural.
Já aflito e nervoso, o idealista
dispara:
– Mas de onde surgiu essa cadeira
que estamos sentados senão da mente humana, que a idealizou, pensou, projetou e
a fez surgir?
– Este tipo de pensamento em nada
apaga o que já foi dito: o fato de uma cadeira ser pensada antes de ser
produzida, tal como o arquiteto que idealiza e calcula a construção de um edifício
no papel, não significa que ela surja com o poder da mente, mas apenas através
do trabalho conjugado de pedreiros e engenheiros, bem como de todas as matérias
primas e os meios de produção necessários. O ofício de marceneiro e arquiteto,
que idealizam e pensam os móveis e as construções, é, como já foi dito, o
resultado da evolução social, sobretudo da experiência de séculos de construção
de casas e utensílios domésticos, que foram aperfeiçoados a partir desta experiência.
Esta é apenas uma das confusões envolvendo o termo “materialismo” e
“idealismo”, que vocês ajudam a propagar. Existe ainda aquele outro senso comum
que entende por “materialismo” o comer e beber sem medida, a cobiça, o prazer
da carne, a vida esbanjadora, a avareza, a ânsia de dinheiro e de lucro; e por
“idealismo” a fé na virtude, no amor ao próximo, num mundo melhor ou numa
“causa” justa. Há que se cuidar destes dois erros semânticos que levam a
conteúdos completamente diferentes. Não podemos confundir a concepção
filosófica de tais palavras com a concepção do senso comum! Os malabarismos
semânticos e etimológicos constituem o último recurso da filosofia idealista.
– Vocês se acham os donos da verdade
– choramingou o idealista –, tem respostas prontas para tudo!
– A questão é simplesmente a
seguinte – retrucou o materialista –: temos uma concepção de mundo que nos faz
mais sentido; e é, em tudo, oposta à vossa. Não somos donos de uma suposta
“verdade”. Ela está em movimento, bem como a realidade. Justamente por isso não
pode ser eterna, imutável, absoluta; ela também não tem suas raízes no ar, mas
na realidade material. Sabemos que existem inúmeras lacunas na nossa concepção filosófica,
que cremos ser a base para a evolução do pensamento científico, mas isso não
significa que a concepção idealista ou religiosa consiga preencher essas
lacunas. Apenas o esforço honesto e incansável desta geração e das futuras será
capaz de ir, gradativamente, preenchendo-as. Nos esforçamos para isso.
4
Os filósofos materialista e
idealista já usavam ternos e gravatas dos séculos 19 e 20 quando chegaram ao
diálogo que segue:
– Como não poderia deixar de ser –
iniciou o materialista –, cada uma das concepções filosóficas apresentadas tem
uma visão sobre a sociedade.
– Naturalmente! – assentiu o
idealista.
– Portanto – prosseguiu o primeiro
–, acabam tendo e apoiando, de uma forma ou outra, uma posição política.
– Provavelmente sim – disse o idealista
–, mas quero que me explique melhor aonde quer chegar com isso.
– Com prazer, caro amigo! – falou o
materialista, sorrindo. Ele pigarreou, ajeitou-se melhor na cadeira, e disse:
– Agora é preciso encontrar as forças que movem a
sociedade, suas raízes e alicerces. Segundo a sua concepção filosófica, onde
predomina a explicação da história pela vontade de deus, se tenta explicar as
transformações históricas pela evolução dos costumes e das ideias. Seus representantes
mais destacados foram os apologistas do capitalismo dos séculos 18 e 19:
Voltaire, Saint-Simon, Montesquieu; a escola filosófica alemã, Hegel, Schelling,
etc.
– Hegel foi um dos primeiros filósofos a buscar uma
explicação para a história. Ele pertence ao nosso campo filosófico – disse o idealista,
orgulhoso.
O materialista calou-se, ouvindo o que o oponente
dizia:
– Como eminente pensador idealista dialético, Hegel considerava
que a história estava sujeita à leis, mas essas leis seriam a expressão da “Ideia
Absoluta”. Para ele, a razão governa a sociedade. O espírito, que ele não
entendia como sendo “Deus”, mas a “Ideia Absoluta”, era a base da história. A “razão”
seria a expressão da natureza humana. Fora dela só existiria o absurdo.
– Sim, já falamos sobre isso – disse
o materialista, olhando fixamente para o adversário – Seguindo a lógica de suas
explanações anteriores, podemos concluir que, para vocês, a história não é
explicada pela prática social, mas pela evolução das ideias, pela natureza
humana ou pela vontade de “deus”. Dessa forma, a história orientaria-se para um
objetivo ideal, fixado antecipadamente; segundo Hegel, para a realização da “Ideia
Absoluta”. Não negamos que as ideias e os costumes são elementos importantes da
realidade. Nesse sentido, o idealismo encerra uma parte da verdade. O seu erro
não consiste em sublinhar a importância da ideia ou da razão, mas considerá-la
como causa primeira ou mais profunda da história e da evolução social. Não
seria a “ideia” governada, por sua vez, por outras causas?
– É claro que não – disse,
convictamente, o idealista –, ela se basta a si mesma! É a causa de tudo.
– Para nós isso é um contra senso! –
prosseguiu o materialista – É claro que as ideais são governadas por outras
causas, como já defendemos antes. Na procura dessas causas, muitos filósofos
avançaram no sentido do materialismo, mas sem superar o idealismo totalmente.
John Locke afirma que as ideias têm origem na experiência. Saint-Simon procura
sentar as bases de uma história científica elaborando uma teoria da luta de
classes: a luta do terceiro estado (a burguesia) contra a aristocracia (o
feudalismo). A Revolução Francesa era para Saint-Simon apenas um episódio da
grande luta multissecular entre os industriais e os nobres. A luta de classes
seria uma luta entre interesses opostos e geraria as ideologias correspondentes.
No entanto, como ideólogo burguês, via nos interesses da burguesia, então
progressivos, a culminância do desenvolvimento social e histórico. Para os
filósofos idealistas do passado, as massas ou as classes não existiam. A história
era obra dos grandes homens (guerreiros, generais, sacerdotes, reis,
imperadores) ou dos deuses. Mas, diante da grande Revolução Francesa, resultava
impossível não reconhecer o papel das massas populares. Assim, vemos que essa
revolução, manifestação da luta de classes por excelência, provoca uma
revolução paralela no mundo das ideias dominantes.
– Você está me dizendo que a luta de
classes é a causa que governaria as ideias e as ideologias? – indagou o
idealista.
– Sim, é uma parte importante destas
causas.
– Que blasfêmia! – indignou-se o
idealista – Vocês continuam querendo menosprezar as ideias e a racionalidade
humana!
– Evidentemente que a luta de
classes também tem as suas causas materiais – complementou rapidamente o materialista.
– E quais seriam? – perguntou o
idealista, curioso.
– A economia, as relações de
produção entre os seres humanos e a base material sobre a qual se ergue os
pilares da sociedade, bem como as suas ideias e ideologias correspondentes.
– Mas a economia é uma concepção do
ser humano – disse o idealista –, foi criada por ele, da mesma forma que a sociedade,
que é composta por seres humanos, que pensam, que criam.
O materialista respirou fundo, como
que cansado de explicar para quem não quer entender; olhou para o seu oponente
e disse:
– Não são os objetivos isolados que explicam os
fenômenos sociais e históricos, mas as leis econômicas imanentes. Somente essas
leis podem explicar os grandes acontecimentos e ações de massas: as guerras, as
revoluções, a queda dos impérios, etc. Essas leis são a causa determinante que
se reflete na consciência das massas e de seus líderes, os que foram chamados
de “grandes homens” pela historiografia antiga. Os processos que ocorrem na
consciência das massas não são independentes da realidade material. As causas
primeiras das grandes transformações sociais não devem ser procuradas na cabeça
dos homens, mas nas transformações operadas no modo de produção, isto é, na
economia. Não é a consciência que determina o ser, mas o ser social que determina
a sua consciência.
– Absurdo! – gritou enfaticamente o idealista – Para
nós o que importa é a índole humana, as suas ideias inatas. A economia é
determinada pelas concepções do homem e deve estar de acordo com a sua
natureza, tal como o capitalismo está.
– Errado! – bradou o materialista – A nossa concepção
da história, o materialismo histórico, não concorda que apenas o capitalismo
corresponda à natureza humana. Todos os sistemas sociais que estejam de acordo
com o nível de desenvolvimento econômico também o correspondem. Não existe um
sistema social ideal. Cada forma de sociedade, cedo ou tarde, deve ceder lugar
à outra forma mais adiantada. O progresso econômico e social é a lei mais
geral. Os seres humanos não criam a história de acordo com os seus desejos e
concepções in abstractum, mas de
acordo com as condições econômicas e materiais herdadas das gerações passadas. Assim,
é o estado econômico de um povo que determina, por sua vez, seu estado
político, filosófico, científico, tecnológico e assim sucessivamente[18].
– E o estado econômico, não teria outras causas? –
indagou o idealista.
– Sem dúvida – respondeu o materialista –, como todas
as coisas do mundo têm sua causa, e esta causa, causa fundamental de toda
evolução social e, portanto, de todo movimento histórico, é a luta que o ser
humano trava com a natureza para assegurar a sua própria existência. Na produção
social da sua existência, os seres humanos entram em relações determinadas,
necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que
correspondem a um grau de desenvolvimento determinado das suas forças
produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a
estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência
social[19].
– Não, não e não! – desesperou-se o idealista – Está
na natureza humana ser competitivo, por isso o capitalismo expressa o melhor
sistema econômico que podemos criar.
– Potencialmente os seres humanos podem ser
competitivos ou não – disse o materialista – Quem acirra a competição e a luta
de todos contra todos não são os seres humanos no abstrato, descolados da
realidade material e social, mas aqueles que estão condicionados por uma sociedade
concreta, que opera segundo valores concretos, que valoriza e incentiva a
competição acima da cooperação e da solidariedade. O capitalismo é apenas um
degrau na evolução social humana, assim como o escravismo e o feudalismo também
o foram. Conforme as leis materiais que regem a evolução da natureza e do
universo (isto é, segundo o materialismo dialético), num certo estágio de
desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em
contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é apenas a sua
expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais até então
se tinham movido. Trocando em miúdos, isso quer dizer que um sistema econômico
vai ser substituído por outro através de uma revolução social, mais cedo ou
mais tarde, nem que seja através de um colapso econômico e social que ocasione
um declínio generalizado, até que as gerações humanas futuras consigam se reorganizar
para superar estes entraves. Quem pensa de forma diferente, desconsidera a dialética
da realidade, portanto, age como um reacionário, como um entrave para o
desenvolvimento político, social, econômico, filosófico e científico!
– Está nos chamando de retrógado? – indagou o
idealista, surpreso.
– E por que não? – respondeu o
materialista – É só reparar o papel cumprido por vossa filosofia ao longo da história:
a doutrina platônica das Ideias ou Formas
Eternas como causas, cumpre uma função indispensável e auxiliar na
dominação de classe. Chega a ser a base racional da aceitação das ideias
absolutas e de normas atemporais imunes à mudanças. Garantiam que os “melhores”
possuíssem o direito de governar, ou seja, os aristocratas, e que a justiça que
estes administravam estava enraizada de forma imóvel nas “verdades eternas”.
Daí advém a justificativa para a dominação escravista de uma classe sobre a
outra, afirmando que “alguns homens nasceram para pensar e governar” (os que
receberam uma “pitada de ouro” na criação) e outros “nasceram para trabalhar”
(os que receberam uma “pitada de prata e bronze”). Recobrem este absurdo com uma
aura de “eternidade” e divinizam esta conclusão, jogando suas origens para um
passado longínquo, muito longe de uma investigação imediata e de uma
verificação fácil. A filosofia idealista platônica, de uma forma ou outra,
induz a pensar que “deus” criou as desigualdades sociais, que estas se originam
de diferenças inatas que vem desde a criação dos seres humanos e que, portanto,
estão na própria natureza das coisas. Se aqueles constituídos de “metal
ordinário”, isto é, os de prata e bronze, tomarem o poder, a ordem divina será
alterada e a sociedade irá à ruína.
– Então você reduz o precioso e rico
pensamento platônico e socrático a uma forma de encobrir a dominação de uma
classe sobre a outra? Que reducionismo anacrônico! – falou com desdém o
idealista.
– A diferença essencial entre o
idealismo atual, ainda vivo e lamentavelmente infiltrado no pensamento
científico, e o antigo, é que os titãs do idealismo da antiguidade, como
Sócrates e Platão, bem como os do começo da era burguesa, como Descartes, Hume,
Kant e Hegel, contribuíram com muitos elementos valiosos ao avanço do
conhecimento, que foram incorporados ao tesouro do pensamento filosófico humano;
enquanto que os pigmeus idealistas contemporâneos, pós-modernos e afins,
repetem os velhos erros da antiguidade que atrasam o avanço da filosofia, da
ciência e, consequentemente, da sociedade. Além do que, a franqueza com que
Platão trata a questão da dominação de classe contrasta com a hipocrisia atual com
que os ideólogos e políticos modernos ocultam a influência reacionária das
instituições e ideias religiosas. O maior serviço que os idealistas prestaram à
religião e às classes dominantes é o de terem feito o sobrenatural mais
aceitável para a mente crítica, atribuindo razões lógicas para a sua existência
e supostas “atividades”. Depois vieram os teólogos e padres medievais, que, se
sustentando nas mesmas concepções platônicas, justificavam a existência de
senhores feudais e servos como “ordem divina” e “natural” do mundo. Atualmente,
os ideólogos burgueses e filósofos modernos se sustentam em supostos
“argumentos sociológicos” que tem as mesmas raízes idealistas para lutar contra
os socialistas que querem derrubar a ordem social capitalista e, assim,
libertar as amarras da economia e da ciência para que evoluam sem entraves;
pelo menos sem os entraves medievais, religiosos e místicos, que correspondem à
infância intelectual da humanidade.
– E que “argumentos sociológicos”
seriam estes? – questionou o idealista, num misto de curiosidade e horror.
– São vários! – disse o materialista
erguendo a mão – A classe dominante os dissemina por diversos meios: grande
imprensa, escolas, universidades, etc. Eles dão base para o senso comum da
sociedade capitalista atual. Vejamos um caso específico: o problema da
violência urbana! Os crimes, que aumentam assustadoramente nas grandes cidades,
seriam cometidos como um reflexo de problemas sociais ou da mentalidade
individual dos criminosos?
– Trata-se de um problema de índole
– respondeu o idealista –, ou seja, é inato; portanto, seu centro está na
mentalidade, em homens que não conseguem resistir à tentação de fazer o mal.
– Errado! – disse o materialista – A
causa da criminalidade encontra-se nas desigualdades sociais e, secundariamente,
na mentalidade humana.
– Como é possível hierarquizar e
separar a sociedade da mente humana? – disparou o idealista.
– Certamente que um fator não exclui o outro – disse,
ligeiramente, o materialista –, nem se trata de uma mera questão mecânica de
hierarquia, mas aqui precisamos encontrar as raízes principais. As classes
dominantes, sobretudo a burguesia, têm interesse em esconder as bases reais,
materiais e econômicas da sua exploração social. Enquanto luxo e ostentação se
concentram nas suas mãos, miséria, opressão e barbárie se concentram no lado
dos “de baixo”. É esta ostentação e exploração que gera a miséria, a fome, o
desemprego, a competição brutal entre os trabalhadores e a violência social.
Estes são os fatores materiais que geram o crime. Enquanto não forem
solucionados, haverá crime! As questões subjetivas, de índole, estão
subordinadas à situação objetiva geral.
– Não! – gritou o idealista – É tudo uma questão de
educação!
– Como pode ser apenas de educação? – questionou o
materialista – É mesmo possível desconsiderarmos, ou mesmo secundarizarmos,
todos aqueles graves problemas? Imaginemos hipoteticamente que duas crianças de
classes sociais distintas estudam em uma mesma escola que discute diariamente
questões de ética e moral. Uma mora na Barra da Tijuca, zona nobre do Rio de
Janeiro, e a outra na favela da Cidade de Deus. Como esperar que ambas ajam da
mesma maneira perante o crime organizado?
– Isso é um disparate! – afirmou
enfaticamente o idealista com o dedo em riste – Então como explicar o fato de
jovens de classe média caírem no crime, senão a má índole inata?
– Não podemos nunca perder a conexão
da parte com o todo, pois assim evitamos correr o risco de cair na abstração. O
que foi falado antes não invalida o fato de que todos os jovens de classe média
estão inseridos nessa mesma sociedade que se influencia mutuamente, impõem padrões,
modas, costumes, hábitos, medos e neuroses! – o materialista parou, respirou
fundo e prosseguiu – No caso da classe média, não necessariamente as causas
econômicas influenciam diretamente a ação criminosa. Muitos outros motivos, de
ordem secundária, podem levar seus membros a cometer pequenos e grandes crimes,
como por exemplo: impor medo, se auto afirmar em uma sociedade doente e
desigual, falta de perspectiva sentimental e familiar; ou mesmo doenças
psicológicas inconscientes, criadas pelo contexto social, tais como neuroses,
histerias, perversões, alívio para o vazio existencial, etc. Pensemos mais
longe ainda: o que faz a alta burguesia através da lavagem de dinheiro, pressão
nos parlamentos e nos políticos, corrupção nos mais diversos níveis, etc., senão
praticar autênticos crimes? Ela não é levada a fazer isso por necessidades
imediatas, tal como um ser humano pobre das periferias ou mesmo da classe média;
mas é movida por motivações políticas e econômicas que tem a finalidade de
sustentar a ordem social da qual depende os seus lucros e a sua faustosa
condição de vida. Ou seja, por mais que pareça, se olharmos bem, veremos que seu
crime não é uma ação proveniente de impulsos isolados de sua mente, mas é o
resultado das suas necessidades políticas e econômicas pessoais para manter
seus negócios dentro da lógica do capitalismo. Mexa nessas condições materiais
e econômicas, destrua esta lógica, e logo a alta burguesia não terá mais como
agir desta forma.
– A cada novo ponto de vista uma
nova superação! – zombou o idealista – É evidente que isto não passa de uma
nova besteira! O capitalismo se desenvolveu e se mantém porque ele é o mais
adaptado às características inatas do ser humano, que é ambicioso por natureza.
Nenhum outro sistema econômico, como o socialismo, por exemplo, pode dar certo
porque vai contra esta ambição humana. Chegamos ao ápice do desenvolvimento
social, ao fim da história! As instituições democráticas do capitalismo possuem
defeitos, mas são as melhores que os seres humanos podem construir.
– Como seria possível chegar ao fim
da história? – perguntou intrigado o materialista – Por acaso a humanidade se
acabou ou está em vias de extinção? Não haveria mais possibilidades de evolução
e de modificação do status quo?
– Do jeito que as coisas andam, só
poderemos esperar o seu fim – disse enfaticamente o idealista.
– “O jeito das coisas”, como você
fala, nada mais é do que a atual estrutura social desenvolvida pelo capitalismo
até aqui. É esta estrutura que leva a humanidade primeiro à degeneração e,
depois, à ruína. O homem não é o lobo do homem, como dizia Thomas Hobbes em tom
profético e imutável. Todo o pensamento reacionário se agarra a esta máxima de
Hobbes como um náufrago se agarra a um pedaço do navio, esquecendo que esta
disputa selvagem entre os seres humanos é um reflexo da sociedade de classe.
– Mas Thomas Hobbes não é
considerado um filósofo materialista? – indagou o idealista.
– Sim – confirmou o materialista – O
seu pensamento, apesar de conter fortes referências a deus, é próximo do
materialismo; muito embora seja um materialismo bastante contraditório. Suas
posições políticas descontextualizadas de sua época histórica (o século 17)
tornam-se visceralmente reacionárias. É isso que faz o pensamento
anti-dialético e reacionário: descontextualizar!
– Um materialista reacionário, hã? –
interrompeu o idealista – Pelo que você me falou até agora cheguei a pensar que
não existissem!
– Existem muitos materialistas
reacionários – respondeu o materialista – O pensamento mecanicista e dogmático
(anti-dialético) leva ao reacionarismo, muito embora a atuação de Hobbes na
Inglaterra do século 17 fosse progressiva. É isso que fazem aqueles que querem
blefar em filosofia ou em política: generalizam máximas escondendo seu contexto!
– Gostaria que me desse exemplos de
materialistas reacionários da contemporaneidade – questionou o idealista.
– A disputa ideológica dentro da União Soviética, no
século 20, nos deu um valioso exemplo sobre a diferença entre o materialismo
dialético e o materialismo reacionário. O trotskismo conservava a vitalidade e
a clareza do materialismo dialético, progressivo e revolucionário; enquanto que
o stalinismo nos demonstrava o “materialismo” dogmático, reacionário,
grosseiro, completamente anti-dialético.
– Para mim são dois bárbaros! –
disse com desdém o filósofo idealista.
– Enfim...! – exclamou o materialista – Já imaginava
que fosse colocar tudo no mesmo saco. O seu problema não é com o “reacionário”
ou o “revolucionário” na história, mas com o materialismo. O que eu quis lhe
dizer antes é que estamos numa permanente evolução, desde os primórdios da
humanidade, até os dias atuais.
– Nem sempre, caro filósofo! –
interrompeu o idealista – Em muitos momentos retrocedemos assombrosamente!
– A linha de desenvolvimento foi tortuosa, é verdade,
repleta de avanços e retrocessos – concordou o materialista –, mas ela anda pra
frente, apesar dos pesares. Todo o conhecimento humano, adquirido pela prática
de inúmeras sociedades ao longo dos séculos, não pode retroceder a etapas já
superadas. Todas as instituições reacionárias, geralmente ligadas à religião
(sacerdócio greco-romano, clero católico, etc.), cedo ou tarde, cedem ou são
superadas completamente. O novo luta contra o velho numa disputa ininterrupta.
O conflito é o pai de todo o desenvolvimento. Não devemos temê-lo em nenhuma
esfera da vida, mas aceitá-lo e compreendê-lo. O capitalismo é apenas um dos
sistemas econômicos desenvolvidos pela humanidade na sua longa evolução; e a
sua sociedade, a sociedade burguesa, um estágio social nesta marcha histórica. O
aguçamento das suas contradições fez soar o sinal do seu esgotamento.
– Que espécie de contradições? – perguntou o
idealista.
– As contradições de classe, que já lhe fiz
referência – respondeu o materialista, fazendo um gesto com a mão em direção ao
passado – O ascenso da grande indústria sobre bases capitalistas converteu a
pobreza e a miséria das massas trabalhadoras em condição de existência da
sociedade. O desenvolvimento tecnológico e a automatização não se traduzem mais
em bem estar social, mas em desemprego em massa. Da mesma forma que a manufatura nos
primórdios do capitalismo, ao atingir uma determinada fase de desenvolvimento,
se chocou com o regime de produção feudal, hoje, a grande indústria se choca
com o regime burguês de produção. Encadeada a essa ordem dominante, coibida
pelos limites estreitos do modo de produção capitalista, a grande indústria
cria, de um lado, uma proletarização das grandes massas do povo; e de outro
lado, uma crescente massa de produtos que não encontram saída. Superprodução e
miséria das massas, cada uma delas sendo causa da outra, eis aí a contradição
absurda da grande indústria que reclama imperiosamente a libertação das forças
produtivas mediante uma mudança do modo de produção. Sob o regime capitalista,
o desenvolvimento inaudito das forças produtivas chega a um limite, expresso
pelo excesso da oferta sobre a procura, pela superprodução e abarrotamento dos
mercados; e pelas crises que ocorrem, em média, a cada dez anos. Entra-se num
círculo vicioso: superabundância de meios de produção e de produtos de um lado
e, de outro, operários sem trabalho e sem meios de vida. Essa contradição se
aguça até converter-se em contra-senso: o modo de produção revolta-se contra a
forma de propriedade. A burguesia revela-se incapaz de continuar dirigindo as
forças sociais produtivas; da mesma forma, revela-se uma classe supérflua como,
então, a nobreza feudal se revelou: todas as suas funções sociais são
executadas agora por empregados assalariados.
– E como se resolve esta contradição? – perguntou o
idealista, nitidamente aflito – Será que você pensa em colocar os de baixo,
isto é, os trabalhadores, no poder?
– O capitalismo está num beco sem saída – prosseguiu
o materialista –, não pode solucionar essas contradições, apesar dos discursos
enganosos dos ideólogos da burguesia de que solucionará. O prolongamento da sua
existência significa uma agonia econômica e social sem precedentes; significa a
barbárie para a maioria da população mundial. Somente o proletariado,
organizado das mais diversas formas, mas, principalmente, tendo construído um
partido revolucionário, pode derrubá-lo e instaurar o poder dos trabalhadores.
Essa é a sua missão histórica. O socialismo científico (o marxismo), expressão
teórica do movimento proletário, é o instrumento programático indispensável, o
único capaz de levar à classe oprimida a consciência das condições e da natureza
da sua própria ação. Caso ele falhe, em razão de diversos motivos, sobretudo em
função do oportunismo político infiltrado no seu seio e dos teóricos burgueses
modernos, que querem requentar as velhas teorias idealistas para puxar a roda
da história para trás, aí sim poderemos falar em um eclipse da humanidade. É necessário
estabelecer novas relações sociais de produção, isto é, relações socialistas:
acabar com a propriedade privada e intelectual, que impede a elevação cultural,
teórica e econômica de toda a população e com a divisão em classes que condena
a classe dominante ao paraíso, com todo o conforto e tecnologia à disposição, e
a classe explorada, que chafurda na pré-história, na barbárie, na ignorância.
Estas são as causas materiais que geram a confusão ideológica na mente dos
seres humanos, somado à grande contribuição que vocês, idealistas, dão para
aprofundar esta confusão e ajudar a preservar a sociedade burguesa.
– Imaginem só, colocar os homens de prata e bronze no
mesmo patamar que os de ouro! Isto sim é o eclipse da humanidade! Eles só
pensam em comer, em fugir ao trabalho; são incapazes de um único pensamento
elevado! – falou o idealista, com ares de nobreza.
– Agora chegamos ao ponto alto do nosso debate,
companheiro! – falou o materialista levantando-se da cadeira – A nossa arma
teórica tem como base o materialismo, que nos coloca as relações sociais e o
seu desenvolvimento numa perspectiva correta. As classes dominantes, e a burguesia
em particular, que foi defensora do materialismo no momento de sua ascensão
histórica (nos séculos 17 e 18), hoje tornou-se partidária do idealismo
filosófico, uma vez que este lhe fornece as armas místicas e religiosas que
ajudam a dissimular as contradições de classe e a eternizar metafisicamente as
suas estruturas sociais. Não apenas as instituições democráticas da burguesia
não são as melhores, como já deram mostras de falência e inoperância para os
trabalhadores. O rechaço da grande massa da população aos políticos é o reflexo
disso: nestas instituições apenas beneficia-se a burguesia através de
negociatas e acordões espúrios. Seria obra do acaso, isto é, da “mentalidade
má” dos políticos a sua conduta na vida pública ou seria a própria estrutura
destas instituições, que não passam de um balcão de negócios, de um instrumento
da exploração do trabalho assalariado pelo capital, cujas engrenagens são
movidas por grandes somas de dinheiro, pelo suborno, pela chantagem, que fazem
com que os políticos ajam desta forma?
– Que ultrajante! Sua vileza no debate me assusta! – atacou
o idealista – Nós defendemos o que há de melhor no espírito humano: a beleza, a
bondade, a justiça, o amor! Se os políticos ou qualquer outro ser humano age de
uma forme indigna, injusta ou amoral a culpa é somente sua! É o somatório dessas
ações que cria a corrupção generalizada, os problemas das administrações
públicas.
– No abstrato vocês podem defender tudo isso – disse
o materialista olhando o oponente nos olhos –, mas na prática a sua filosofia
serve como uma luva aos interesses da exploração, da miséria, da injustiça e do
desamor. Não casualmente, a sua filosofia transformou-se numa deformadora da
realidade, para justificá-la e receber os polpudos soldos da burguesia.
– Que absurdo! Chamem a polícia! – bradou o
idealista.
– No caminho do materialismo, a filosofia torna-se
ciência! Somente os trabalhadores conscientes, em razão do seu caráter de
desapego às benesses da sociedade oficial e da imperiosa necessidade de derrubá-la
e superá-la, podem levantar a bandeira filosófica do materialismo. Foi por este
motivo que Engels afirmou que é apenas na classe operária que continua a
subsistir intacto o sentido teórico da filosofia. Aí ele é inextirpável; aí não
têm lugar quaisquer considerações de carreira, de tirar proveitos, de benevolente
proteção a partir de cima; pelo contrário, quanto mais sem transigências e sem
prevenções a ciência avançar, tanto mais se encontrará em consonância com os
interesses e as aspirações dos operários e do proletariado em geral. A nova orientação,
que reconheceu na história do desenvolvimento do trabalho a chave para o
entendimento da história, dirigiu-se de antemão preferencialmente à classe
operária e encontrou aí a receptividade que não procurou nem esperava da intelectualidade
oficial. O movimento operário é o herdeiro e o continuador da evolução
filosófica[20].
Fora dele apenas poderemos esperar mais distorções e deformações pós-modernas,
regadas com grandes somas de dinheiro, de publicidade e de apelo editorial.
O idealista largou os braços e ficou olhando para o
chão, desolado. Suas feições eram de perplexidade e desaprovação.
5
A sala histórica finalmente chegou à
contemporaneidade. Os dois filósofos estavam com roupas sociais modernas, em um
grande auditório repleto de pessoas, sentadas, em pé, todas se espremendo e
querendo acompanhar o debate de algum jeito. Entre os ouvintes estavam operários,
universitários, estudantes, professores, repórteres, religiosos, curiosos;
enfim, uma massa de indivíduos ávidos por entender o que estava em jogo nesta
grande batalha filosófica. Tudo parecia estar um pouco mais claro, mas ainda
permaneciam muitas dúvidas.
Se aproveitando delas, o filósofo
idealista pós-moderno deu o ponta pé inicial:
– Apesar de todos os seus ataques
desprezíveis, vocês, materialistas, não podem se desfazer de nós. Olhe para o
materialismo do século 17, 18 e 19! Do ponto de vista filosófico é totalmente
mecanicista, ou, como vocês gostam de rotular, metafísico!
– Não há dúvida de que sim –
concordou o materialista dialético – Trata-se de uma das formas do
materialismo, pensado e desenvolvido ainda em um ambiente influenciado pela
psicologia newtoniana, que foi muito forte naquele período histórico.
– Então – prosseguiu o idealista
pós-moderno –, logo após vieram os idealistas, com Hegel à cabeça, e resolveram
a contradição: resgataram a dialética, reelaboraram-na e libertaram o pensamento
filosófico para perceber as contradições, a evolução e o movimento da
realidade, que é um só!
– É verdade! – concordou o
materialista dialético.
– Viram? – perguntou o idealista
pós-moderno ao oponente, mas olhando para todo o auditório – Vocês precisam de
nós. Se não fosse uma mente idealista brilhante, como a de Hegel, vocês
estariam chafurdando eternamente numa concepção materialista mecanicista.
– Não há dúvida de que o pensamento
hegeliano é brilhante! – assentiu o materialista dialético – Contudo, não
podemos esquecer que seu pensamento estava imerso em contradições insolucionáveis;
e que a dialética só conseguiu se desvencilhar deste labirinto e se desenvolver
plenamente quando foi reformulada através do materialismo de Marx e Engels.
– Mentira! – pulou do seu assento o
idealista pós-moderno – Toda a dialética já estava presente no pensamento de
Hegel! Ele resolveu a contradição da lógica aristotélica ao colocar o debate em
outro nível, demonstrando que não existem apenas objetos fixos, imóveis,
observados um após o outro, cada qual independente do outro, como algo
determinado e eterno; em suma, como uma série de antíteses desconexas, mas
demonstrou que uma coisa pode ser, ao mesmo tempo, o que é e outra coisa
distinta.
– Sim, isso está correto! – disse o
materialista dialético – Mas a dialética de Hegel estava formulada dentro de
uma casca contraditória de idealismo!
– Que contradição se refere você? –
perguntou o idealista pós-moderno sob os olhares atento dos ouvintes. O
materialista dialético prontamente respondeu:
– Como sintetizador do método
dialético, Hegel deve ser considerado o fundador da lógica moderna, nisso
estamos em pleno acordo! Porém, em Hegel, a dialética é apenas o auto desenvolvimento
do conceito, pois não a reconhece como uma força na própria natureza. A
dialética de Hegel era o reflexo da “Ideia absoluta” (a coroação do sistema
hegeliano) que se “exterioriza” ao converter-se na natureza, o que equivalia a
converter a dialética num produto cerebral. Sendo assim, ela convertia-se num
labirinto sem saída, Era necessário retirar-lhe a couraça mística de idealismo
e dar-lhe um conteúdo materialista.
– Lá vem você com o seu dogmatismo
do século 19 – disse com desdém o idealista pós-moderno.
– Quem começou falando de Hegel foi
você – falou o materialista dialético, apontando para o oponente – Eu apenas
estava me referindo a como o seu pensamento foi superado.
– Que empáfia! – disse o idealista
pós-moderno, se sentindo ultrajado – Vocês viram? – perguntou para a platéia.
– Como eu dizia – prosseguiu o
materialista ignorando as provocações –, o método do materialismo dialético,
por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto.
Para Hegel, o processo de pensamento, que ele transforma em sujeito autônomo
sob o nome de ideia, é o criador do real, e o real é apenas a sua manifestação
externa. Para Marx e Engels, ao contrário, o ideal não é mais que o material transposto
para a cabeça do ser humano e por ela interpretado. A mistificação por que
passa a dialética nas mãos de Hegel não o impediu de ser o primeiro a
apresentar as formas gerais de seu movimento de maneira ampla e consciente. Nos
escritos de Hegel, a dialética está de cabeça pra baixo. Era necessário pô-la
de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional dentro do
invólucro místico[21].
Marx e Engels resgataram conscientemente a dialética da filosofia alemã e
aplicaram-na à concepção materialista da natureza e da história[22].
Resumidamente podemos dizer que o marxismo tirou a couraça idealista da
dialética de Hegel e corrigiu as distorções metafísicas do materialismo de
Feuerbach. Transformou a dialética em materialista e o materialismo em dialético.
– E como ficou esta fusão estranha?
– indagou o idealista pós-moderno.
– Em primeiro lugar – começou a
explicar o materialista dialético –, é preciso dizer que a forma de existência
da matéria é o movimento. A matéria só existe através do movimento. É por meio
dele que ela se manifesta e se revela. Disto nos convencemos pelos fatos
cotidianos, pelo desenvolvimento da ciência, pela prática. Esta conclusão só
foi possível após superarmos as antigas concepções materialistas da filosofia
do século 17, 18 e 19, de pensadores como John Locke, La Mettrie , Ludwig Feuerbach,
dentre outros.
– Lá vem você querendo valer-se da
ciência para nos desmerecer! Só o seu método é o correto; o nosso é sempre
errado e anti-científico! Pra que limitar o debate nesta dicotomia absurda? –
disse o idealista pós-moderno erguendo os braços.
– Deixe-me lhes explicar usando como
exemplo o átomo – falou o materialista dialético – Como um determinado corpo
material, ele existe porque as partículas “elementares” que o formam se movem
continuamente. Sem movimento, essas partículas do átomo não poderiam existir,
como não poderia existir sem movimento nenhum outro corpo. Graças ao movimento
é que os corpos materiais se manifestam, atuam em nossos órgãos dos sentidos. O
sol, por exemplo, irradia continuamente no espaço cósmico uma quantidade
inumerável de partículas em
movimento. Ao atingirem a Terra, estas partículas atuam sobre
os nossos órgãos dos sentidos e nos dão a percepção da existência do Sol e de
inúmeros outros fenômenos vinculados a ele. Assim, também, todos os outros corpos
materiais existem e se manifestam apenas em movimento. Movem-se
não somente as partículas “elementares” nos átomos, mas também os átomos nas
moléculas, as moléculas nos corpos. Move-se toda a massa incontável de corpos
terrestres e cósmicos. Modificam-se os organismos vivos, a vida social, e as
ideias e noções vinculadas aos primeiros. É impossível achar uma partícula que
seja do mundo material que não se encontre em movimento, em mutação. O movimento da
matéria é absoluto e eterno, não pode ser criado nem destruído, tal como nos
disse Lavoisier. Isto é confirmado pela lei da conservação e transformação da
energia, que afirma que o movimento da matéria não desaparece e não surge
novamente, mas apenas muda de aspecto, ou seja, se transforma.
– Mas se o movimento é eterno,
absoluto, como é possível falar em repouso? – perguntou o idealista
pós-moderno.
– No fluxo geral de transformações
da matéria há também momentos de equilíbrio, de repouso relativo. Mas estes se
relacionam não com a matéria em seu conjunto; apenas com um ou outro objeto e
processo, tomado separadamente. O caráter absoluto do movimento pressupõe obrigatoriamente
o repouso, pois este é uma condição necessária do desenvolvimento do mundo. Não
se deve compreender o repouso como um estado inerte, estagnado. Um corpo só pode
estar em repouso em relação a algum outro corpo, mas participa obrigatoriamente
do movimento universal da matéria.
– E o que nos explica o materialismo
mecanicista? – indagou novamente o idealista pós-moderno.
– Os materialistas antigos também
reconheciam o caráter universal do movimento da matéria, mas o compreendiam de
maneira limitada, metafísica, unilateral. Não relacionavam o movimento com a
transformação, com o desenvolvimento dos corpos e, frequentemente, o
representavam apenas como o deslocamento mecânico no espaço. O materialismo
dialético não reduz as diversas formas de movimento apenas à mecânica ou a
qualquer outra forma que seja, mas relaciona o movimento com a transformação,
com o desenvolvimento dos corpos, com o surgimento do novo e o perecimento do
velho. O movimento é entendido pelo materialismo dialético de modo amplo, como
qualquer mudança, como a transformação em geral, que abrange todos os processos
em curso no universo, podendo ser ele movimento mecânico, físico, químico,
biológico ou social (incluso o psicológico)[23].
– Concepções ultrapassadas,
anacrônicas! – disse desdenhosamente o filósofo pós-moderno.
– Como pode ser ultrapassada uma
concepção filosófica que se baseia no movimento? – devolveu-lhe a pergunta o
materialista dialético.
– Limitar a complexidade da
filosofia e da realidade a uma dicotomia entre o materialismo e o idealismo,
como vocês querem, é anti-dialético! – rebateu o idealista pós-moderno – A
dialética não reconhece apenas o “preto” e o “branco”.
– Entendemos que a dialética sem uma base na
realidade torna-se abstrata e relativista; isto é, não chega a lugar algum. Ela
reconhece os absolutos, muito embora saiba que os absolutos possuem limites. É
preciso que a dialética entre em contato com a realidade concreta, com a natureza,
caso contrário ela não passará de um exercício de escolástica, de viver
relativizando todos os fenômenos, o que seria um grave erro. Para vocês, que se
escondem atrás dessa relativização absoluta, isso é dicotômico; para nós, trata-se
de uma necessidade de método para o conhecimento humano avançar.
– Vivemos uma época em que a ampla
maioria das universidades do mundo questionam a existência da matéria, das
classes sociais; em suma, das concepções antiquadas, dicotômicas, sustentadas
por vocês. O momento exige que não limitemos o debate como vocês querem. Para
quê limitarmo-nos e rotularmos? – questionou o idealista pós-moderno.
– Este é, na verdade, o impasse que
vivemos no momento, fruto dos retrocessos políticos, econômicos e sociais do
final do século 20 e início do 21 – respondeu o materialista dialético – Os
idealistas “líquidos” dos mais diferentes matizes, quanto mais distorções fazem
nas teorias, na filosofia e na ciência, mais incentivos financeiros e
editoriais recebem da alta burguesia. Eles alegam que a verdade não existe; o
que existiria seriam apenas interpretações, pontos de vista particulares,
saberes, todos igualmente válidos. E que qualquer tentativa de conhecer a
verdade não passaria de pura arrogância e pretensão daqueles que buscam
aprisionar a complexidade de nossa existência dentro de limites
autoritariamente impostos por uma abordagem determinista qualquer. Acusam os
que procedem desta forma de querer retornar ao século 19! Eles, supostamente,
representariam “o futuro”. Baseiam-se na filosofia do pragmatismo norte
americano, onde todos os conceitos, inclusive os religiosos, são verdadeiros na
medida em que são úteis de alguma forma para a obtenção de vantagens e êxitos
imediatos. Buscam esconder que esta ideologia de relativização absoluta não
representa mais do que o retorno às velhas ideologias do passado, já superadas
pelo avanço atual da concepção materialista, e está a serviço dos interesses
das elites. Sendo assim, querem confundir a vanguarda do proletariado na sua
missão histórica de fazer a revolução socialista e, consequentemente, de
popularizar a ciência.
– Que reducionismo! Que atraso! – disse o idealista
pós-moderno com a mão na testa – Ainda fala em proletariado, em revolução
socialista?!
– Sempre o desmerecimento sem conteúdo! – respondeu o
materialista dialético olhando para o auditório lotado – As pessoas aqui
presentes podem julgar por si mesmas os argumentos e a prática dos seguidores
de cada filosofia.
– Como levar a sério uma filosofia que não considera
importante a individualidade, a subjetividade de cada um, e que joga tudo para
as raízes econômicas ou materiais? – indagou o idealista pós-moderno, também
olhando para o auditório.
– Este reducionismo é feito por vocês, idealistas! –
contra atacou o materialista dialético – Somente aqueles que não conhecem a
filosofia materialista ou os enganadores conscientes podem interpretar e
resumir o materialismo a essa caricatura. A nossa filosofia compreende perfeitamente
o papel do indivíduo na história e na sociedade. Buscamos a compreensão da
psicologia e da “subjetividade” pessoal dentro deste contexto, afinal de
contas, não somos seres isolados, mas influenciados pelo meio em que vivemos.
Desde a linguagem, que “coloniza” o nosso pensamento individual, até o
trabalho, o comércio, as artes, as relações humanas, a necessidade de amizade,
do desabafo, etc., somos influenciados pela sociedade.
– Mas vocês colocam os indivíduos como seres passivos
perante o social – interrompeu o idealista pós-moderno –, vocês invertem a
lógica!
– Não, caro opositor, quem inverte a lógica são
vocês! – respondeu rapidamente o materialista dialético – Reflitamos sobre o
seguinte: os indivíduos, graças a determinadas particularidades do seu caráter,
podem influir nos destinos da sociedade. A filosofia idealista contraria esta
conclusão jogando o protagonismo para os céus, para deus, para a ideia absoluta
ou seja lá para quem for. Nós acreditamos que sim, o indivíduo não apenas pode
influenciar a sociedade como esta influência é a base do que chamamos de “história”.
Por vezes esta influência pode ser considerável, mas tanto a própria
possibilidade desta influência como suas proporções são determinadas pela organização
da sociedade, pela correlação das forças que nela atuam. O caráter do indivíduo
constitui “fator” do desenvolvimento social ou do seu retrocesso somente onde o
permitem as relações sociais.
– Errado! – bradou o idealista pós-moderno – Este
grau depende, sobretudo, da influência e do talento do indivíduo!
– Estamos de acordo sobre isso – respondeu o
materialista dialético –, mas o indivíduo não pode manifestar seu talento senão
quando ocupa na sociedade a situação necessária para poder fazê-lo.
– Desta forma andamos em círculos! – debochou o
idealista pós-moderno – Vá direto ao ponto!
– Ok! Vejamos um exemplo! – disse o materialista
dialético – É conhecido o caso do fracasso francês na guerra dos sete anos[24],
onde a influência pessoal da marquesa de Pompadour
sobre Luís XV, rei da França, selou a sua derrota. A nobreza feudal francesa
estava em decadência histórica e, não obstante, ocupava todos os altos postos
no exército. Um general desta nobreza foi um desencadeador do fracasso militar
francês. Ele estava nesta posição porque era um protegido pessoal da marquesa
de Pompadour. A força dela não
residia em si própria, mas no poder do rei, que se submetia aos seus caprichos.
E o poder pessoal do rei estava submetido a uma estrutura social histórica. É
forçoso reconhecer que a vaidosa marquesa foi um dos fatores que acentuou
consideravelmente a influência desfavorável das causas gerais sobre a França
durante a guerra dos sete anos. Aqui é necessário assinalar que a possibilidade
de o indivíduo influir sobre a sociedade abre as portas à influência das
chamadas “casualidades” sobre o destino histórico dos povos. A luxúria de Luís
XV era uma conseqüência necessária do estado de seu organismo. Porém, no que se
refere ao curso geral do desenvolvimento da França, este estado que era casual,
não deixou de exercer sua influência sobre o ulterior destino militar francês,
passando a fazer parte das causas que determinaram este destino. Como se vê,
nossa concepção filosófica e histórica não exclui em nada a individualidade e a
subjetividade na sua explicação. Pelo contrário, lhes dá uma lucidez e precisão
muito mais profundas do que a concepção idealista.
– Isto é conversa! – retrucou o idealista pós-moderno
– Pra vocês tudo sempre termina remetendo à economia e às “forças objetivas”!
– Você continua a caricaturizar nossa concepção! –
respondeu o materialista dialético – Para nós, é no estado das forças
produtivas que se encontra a causa determinante das relações sociais. Esse
estado depende do somatório das particularidades individuais de diferentes
pessoas, no sentido de uma menor ou maior capacidade de tais indivíduos para
impulsionar os aperfeiçoamentos técnicos, as descobertas e invenções, que
imprimem novo sentido e dinâmica para a sociedade. Nenhuma outra particularidade
garante a pessoas isoladas o exercício de uma influência direta sobre o estado
das forças produtivas e, por conseguinte, sobre as relações sociais por elas
condicionadas, isto é, as relações econômicas. Um dado indivíduo, quaisquer que
sejam suas particularidades e talentos, não pode eliminar determinadas relações
econômicas quando estas correspondem a um específico estágio das forças
produtivas. No entanto, as particularidades individuais da personalidade
tornam-na mais ou menos apta a satisfazer as necessidades sociais que surgem em
virtude de relações econômicas determinadas ou para opor-se a elas[25].
– Pare de conversa fiada! Vamos direto ao ponto: como
é possível explicar personalidades emblemáticas, como a de Hitler? – indagou o
idealista pós-moderno, consternado – Está bastante claro que outro indivíduo
não poderia cumprir o mesmo papel que o führer!
Sua maldade era um desígnio inato de seu ser que serviu de base para aquela
monstruosidade.
–Você está equivocado! – falou o materialista
dialético sob um urro de surpresa do auditório – Suponhamos que Hitler tivesse
morrido nas trincheiras da 1ª Guerra Mundial em 1918 ou num acidente de avião
em 1933; seu posto teria sido ocupado, naturalmente, por outro, e embora esse
outro tivesse sido inferior a ele em seus “talentos” de führer, os acontecimentos, apesar de tudo, provavelmente teriam
tomado o mesmo rumo que tomaram com Hitler, num ritmo maior ou menor. O que
estava em jogo era o destino do imperialismo alemão e do regime político criado
por ele, cuja solução só poderia ser dada com a guerra, que aconteceria com ou
sem Hitler. Era a questão da supremacia dos imperialismos em guerra que
precisava ser resolvida. O condicionamento social já estava dado pelas forças
produtivas alemãs, que necessitavam se desenvolver e disputar o seu lugar no
mercado mundial. Hitler, apesar de aparecer como o criador de um regime
nefasto, foi, dialeticamente, seu criador e, ao mesmo tempo, instrumento
histórico de uma classe.
– Mas como é possível que Hitler represente um avanço
das forças produtivas? – perguntou o idealista pós-moderno, meio confuso, sob o
olhar atento do plenário.
– Na verdade, como representante do imperialismo
alemão, Hitler estava se opondo ao avanço das forças produtivas – respondeu o
materialista dialético – Lutou com unhas e dentes para manter o capitalismo,
apoiando-se no capital financeiro alemão, esmagando o forte movimento operário da
Alemanha, investindo e intensificando a produção bélica (que representa as
forças destrutivas), invadindo a URSS e outros países. Mas isso não invalida o
que falei antes.
– Não? – indagou o idealista pós-moderno, ainda
confuso.
– Não! – confirmou o materialista dialético – No lado
oposto ao de Hitler, e também cumprindo um papel histórico consciente, estava
Lenin, que liderou a Revolução Russa de 1917. É conhecida a sua atuação neste
processo revolucionário, o que demonstra, na prática, a dinâmica do papel do
indivíduo na história segundo a nossa concepção. Lenin representava as forças
históricas progressivas, isto é, o proletariado em ascensão, que lutava contra
a guerra imperialista de rapina e na direção da superação do capitalismo; portanto,
servia como um elo para o destravamento das forças produtivas; ao contrário de
Hitler, que queria aprofundar as amarras do regime capitalista, agora sob o seu
domínio imperialista, e representava a alta burguesia alemã, retrógrada. Os momentos
decisivos da revolução foram cumpridos positivamente por Lenin, que trabalhou
para tencionar o partido bolchevique a superar os entraves políticos através da
independência de classe do proletariado, que respondeu mostrando toda a sua
força e potencialidade possíveis dentro do contexto histórico russo. Apesar de
tudo isso, mesmo que Lenin não tivesse morrido prematuramente, em janeiro de
1924, ele provavelmente não conseguiria deter a ascensão da burocracia
stalinista, uma vez que esta era uma expressão objetiva do isolamento
internacional da revolução russa, da derrota da revolução européia (sobretudo
da alemã), do atraso interno da própria Rússia, do seu baixo nível econômico e
cultural. Certamente que a ascensão da burocracia stalinista encontraria sérios
problemas se Lenin estivesse vivo, mas o refluxo revolucionário e a reação
política já estavam em curso no final de sua vida. Compreendendo a dialética da
história e o seu papel nela, ele teria contribuído para levantar novas tarefas
e consignas que preparariam a luta do proletariado em um novo contexto,
provavelmente de enfrentamento à burocracia stalinista, como toda a sua atuação
imediatamente anterior a sua morte atesta. Mas falar sobre isso agora é apenas
um exercício de hipóteses... O caso de Robespierre, Napoleão, Zumbi, Abraham
Lincoln, Gandhi, Getúlio Vargas, Stálin e Trotsky também poderiam servir de
exemplos sobre o papel do indivíduo na história e na sociedade.
– Hmmm... Interessante, mas o que você nos apresentou
ainda não me convence! Se tudo o que fala é certo e “científico”, então porque
a nossa filosofia pode ter tantos adeptos? – insistiu o idealista pós-moderno
com ares triunfais.
– É estranho você atribuir a coerência de sua
filosofia ao número de adeptos – respondeu o materialista dialético sob um
burburinho do auditório.
– Como não proceder assim? – falou o idealista
pós-moderno erguendo os ombros e as mãos – O número de nossos adeptos demonstra
que temos razão, que nosso pensamento corresponde ao pensamento de milhares de
pessoas; isto é, o idealismo encontra eco na maneira de pensar e de conceber o
mundo de centenas de milhares de pessoas, logo, é compreendido e apoiado pela
racionalidade humana natural. Já vocês, encontram-se em minoria. São como
seitas!
– Esta é uma interpretação equivocada – disse o
materialista dialético – Acho que os argumentos apresentados até aqui são
suficientes para demonstrar que o idealismo filosófico, seja em que vertente for,
é um engodo, uma invencionice, um erro, uma ilusão que custa muito caro ao desenvolvimento
intelectual, cultural, econômico e social da humanidade.
– Então me diga – gritou o idealista pós-moderno para
inflamar todos os presentes –: como uma concepção filosófica, que segundo você,
baseia-se em um disparate, pode ter tanta força e tantos adeptos?
– Penso que não existe uma única causa para uma
pessoa ser partidária do idealismo filosófico ou de uma religião, mas podemos
arriscar algumas sugestões – respondeu o materialista dialético num tom de voz
suave, tentando acalmar o zumzumzum
que vinha do auditório –: em primeiro lugar, não há dúvida que a grande adesão
à filosofia idealista se dá em razão do seu patrocínio pela classe dominante,
que a propaga de diversas formas, sutis ou escancaradas, através da grande
mídia, das universidades, escolas, igrejas; do seu milionário mercado editorial
e da sua indústria cultural, que divulga majoritariamente os pensadores dessa
vertente filosófica, apesar de se dizer “imparcial”.
– Calúnia! – gritou novamente o idealista pós-moderno
– Ele não quer reconhecer o nosso mérito! Somos reconhecidos pelas nossas
grandes contribuições ao avanço científico! É daí, e somente daí, que vem todo
este destaque! As pessoas buscam as nossas explicações; se apóiam em nós pois
reconhecem nossa força intelectual e ontológica!
– Será mesmo? – indagou o materialista dialético –
Cada nova descoberta e avanço científico sentam um novo golpe, quase fatal, nas
antigas concepções e crenças religiosas e, por conseguinte, na concepção
filosófica idealista.
– O que você está querendo dizer com isso? –
perguntou o idealista pós-moderno.
– Quero dizer que se a religião e o idealismo não
foram superados ainda é porque existem causas inconscientes que os fazem
subsistir, tanto do ponto de vista objetivo, econômico; quanto do ponto de
vista subjetivo, psicológico.
– Não é possível! – indignou-se o idealista
pós-moderno, suando frio – Ele acha que nós seremos superados! Ha ha ha! Isso
só pode ser uma piada!
– De maneira alguma – retomou o materialista
dialético – Baseando-nos na psicanálise, podemos concluir que realmente existem
brechas por onde o pensamento religioso e idealista penetra inconscientemente
na grande massa humana. Freud dizia que a religião é “a neurose obsessiva da
humanidade”, no que está em pleno acordo com a nossa concepção filosófica. Eu
diria que esta crença religiosa e adesão à filosofia idealista correspondem a
sentimentos infantis não resolvidos, sendo este um dos principais motivos para a
atrofia intelectual da maior parte dos seres humanos. Esta atrofia intelectual
leva à pusilanimidade, à covardia intelectual, ao seguidismo, à transformação
de uma massa humana em massa de manobra. As ilusões idealistas e, por
conseguinte, as religiosas, só podem se manter em razão dos medos emocionais
humanos inconscientes e do desamparo frente aos perigos da natureza, sobretudo
ao “perigo” da morte. É por isso que o ser humano transforma as forças da natureza
em outros “seres humanos superiores” (deuses ou deus) com os quais pode se
relacionar como faz com os seus iguais, bem como lhes confere um caráter paterno.
Nisso, não apenas segue um modelo infantil, mas, também, um modelo filogenético.
Os deuses-pais (ideias absolutas, forças superioras, deuses, etc.) teriam uma
tarefa tripla: afastar os pavores da natureza, reconciliar os seres humanos com
a crueldade do destino, em especial como ela se mostra na morte, e
recompensá-los pelos sofrimentos e privações que a convivência na sociedade
lhes impõe[26].
É daí que provém a semelhança desagradável entre o idealismo, a religião e as
produções espirituais e místicas dos povos primitivos.
– As suas conclusões resumem-se a ataques
anti-religosos! – interrompeu o idealista pós-moderno ao mesmo tempo em que se ouvia
um burburinho que vinha de diferentes cantos do auditório.
– Não há diferença fundamental entre as concepções
idealistas, religiosas e místicas – respondeu imediatamente o materialista
dialético –, pois, apesar de diferentes na aparência e no modo de colocar as
questões, elas bebem na mesma fonte. Além do que, mesmo para o ser humano
atual, argumentos puramente racionais contam muito pouco quando confrontados a
ímpetos passionais; sobretudo quando as suas convicções mais íntimas e
reconfortantes são questionadas. A realidade se sobrepõe aos nossos desejos e
anseios. É preciso olhá-la de frente e não procurar subterfúgios! Quanto mais
educarmos as futuras gerações nesta perspectiva, mais chances teremos de
efetivamente vencer os desafios colocados à humanidade pela natureza. A nossa
concepção filosófica apenas tenta olhar a realidade de frente para tirar
conclusões óbvias, porém, que estão em frontal contradição com as crenças
místicas e religiosas milenares da humanidade. É por isso que todos aqueles que
defendem a nossa concepção de modo dogmático não representam o nosso pensamento
filosófico e as intenções de nosso movimento.
– Vocês se acham perfeitos; os guias geniais dos
povos! – ironizou o idealista pós-moderno.
– Não nos achamos melhores por defender tal
filosofia, muito menos infalíveis; apenas procuramos não negar as evidências e
indícios que nos saltam aos olhos e que as ilusões religiosas, nas quais todos
nós fomos criados, querem nos impedir de ver. Estamos sempre abertos a auto
crítica. Só não a faremos sem compreender que realmente estamos equivocados.
– Mentira! – pulou do seu assento o idealista
pós-moderno – Vocês querem reduzir o debate a nada, querem impor suas
concepções, são reducionistas e rotuladores! Não estão abertos ao diálogo! Por
acaso também não temem a morte?
– Caro opositor, simplesmente procuramos olhar a
realidade sem máscaras e sem uma lente que seja agradável às nossas certezas
reconfortantes – disse calmamente o materialista dialético – É evidente que
tememos a morte, o não-existir, o fim da existência e da vida! Pensar nisso é extremamente
penoso, ainda mais quando nos deparamos com a certeza dela. A realidade é muito
dura, nós sabemos; mas dourar a pílula é muito pior! A cada ilusão desfeita por
um golpe da realidade, que sempre se impõe, a desilusão é muito maior e talvez
possa se tornar fonte de desestímulos fatais para o gênero humano. Precisamos
colocar o debate filosófico e científico na perspectiva correta. No caminho do
idealismo, a filosofia retrocede ao misticismo, à mitologia e à religião, isto
é, converte-se em um labirinto sem saída. Para superar a atrofia intelectual, o
ser humano do futuro precisa construir seus alicerces intelectuais no terreno
do materialismo.
– E na nossa concepção filosófica não haveria, por
exemplo, contribuições importantes até mesmo para o materialismo, como a
questão da intuição humana no conhecimento? – questionou o idealista
pós-moderno.
– Em nome de uma suposta contribuição intuitiva do
idealismo – disse o materialista dialético – não podemos desprezar tudo o que
ele traz de contrabando, inclusive o suporte que ele dá para a hipocrisia
social e política que rege o mundo dominado pelo imperialismo capitalista. Não
desconsideramos a intuição. Existem vários tipos dela. Concordamos com a
“intuição” presente no trabalho científico de Einstein, que não transcende o
humano e lhe abre novos horizontes; mas discordamos da suposta “intuição
divina”, de filósofos como Santo Agostinho.
– Se vocês matarem a ideia de Deus
estarão abrindo um precedente para a destruição da sociedade, das relações
sociais, da própria humanidade! – desesperou-se o idealista pós-moderno.
– Não seria uma vantagem indubitável
deixar deus completamente fora do jogo e reconhecer de forma honesta a origem
puramente humana de todas as instituições sociais e preceitos culturais? –
perguntou o materialista dialético para o seu oponente e para o plenário – Além
da pretendida santidade, também cairiam por terra a rigidez e a imutabilidade
destes mandamentos, leis e concepções. Restaria o humano, o real, o concreto! O
que é a manutenção da ideia de deus senão uma forma de submeter a sociedade às
forças cegas (seja da economia, da dominação política, do senso comum, etc.)
para conduzir a sociedade, a economia e as próprias vidas individuais para onde
quer a classe dominante? Sabemos que andar com as próprias pernas é muito
difícil, mas não nos restam dúvidas de que nos habituar a encarar a realidade
de frente nos dará uma força e uma coragem até então desconhecidas. Superamos a
fase dos deuses: já descobrimos como fazer fogo, a metalurgia, a eletricidade,
os átomos, a célula, o superego! O momento agora é de fazermos uma intervenção
cirúrgica sobre o que toleraremos como superego social e o que combateremos.
Criaremos a base para uma nova moral, mais elevada; até que um dia seja
possível dispensar qualquer forma de moral, guiando-nos única e exclusivamente
pela riqueza cultural, científica; pelo conhecimento conquistado e por relações
sociais verdadeiramente humanas!
– Que delírio! – exclamou o
idealista pós-moderno.
– Não cremos na moral eterna e
denunciamos o embuste de todas as fábulas a respeito da moral – respondeu o materialista
dialético – A moral deve servir para que a sociedade humana se eleve a maior
altura possível, para que se liberte da exploração do trabalho. Nós a negamos
no sentido em que a pregou a burguesia, baseando-se em mandamentos divinos.
Sabemos muito bem que o clero, os escravistas e a burguesia falavam em nome de
deus para defender seus interesses de exploradores. Ou então, em lugar de
inferir esta moral dos preceitos da ética, dos mandamentos de deus, deduziam-na
de frases idealistas ou semi-idealistas que, decididamente, se pareciam muito
com os mandamentos divinos. Nós, os materialistas dialéticos, dizemos que a nossa
“moral” está subordinada inteiramente aos interesses da luta de classe do
proletariado por sua libertação.
– O que você propõe? Que a filosofia se resuma ao que
vocês querem? – indagou num último esforço o idealista pós-moderno.
– Queremos que a filosofia supere definitivamente o
idealismo filosófico e religioso, colocando-o no seu lugar; isto é, no museu de
curiosidades humanas, junto com a roda, o arco e flecha e o Estado. A dialética
materialista transforma a filosofia em ciência e a desmistifica. Tira-a do
campo meramente especulativo e a transforma numa base para a interconexão das
diversas ciências e, portanto, num ponto de apoio para a evolução do pensamento
humano. Nos nossos dias a forma mais alta de pensamento e de inteligência é
guiada pelo método do materialismo dialético. Num futuro, quando as forças
produtivas se desenvolverem qualitativamente e novas condições materiais surgirem,
certamente ele dará lugar a uma forma de pensamento mais elevada; todavia,
hoje, ela representa o ápice do pensamento humano. No campo político é preciso
superar o pensamento materialista de tipo stalinista, que ainda impera na
vanguarda brasileira e mundial. É preciso resgatar e fazer reflorescer a
dialética materialista expressa no materialismo trotskista. Dentro do campo
político e da luta dos trabalhadores é a nossa única chance de termos um
futuro.
– Que blasfêmia! Que ultraje! –
disse o idealista pós-moderno, de braços cruzados – Você é sectário,
ultrapassado, anacrônico! Quer que a massa seja protagonista, mas como se a
maior parte dela é ignorante e egoísta?
– Como uma filosofia da práxis
(prática), o materialismo marxista (que vive no pensamento trotskista e é o
marxismo do nosso tempo), pode ajudar as massas a se tornarem protagonistas da
história, na medida em que um número cada vez maior de membros da classe
subalterna venha a adquirir conhecimentos especializados, desenvolvendo a
possibilidade de uma atividade intelectual crítica e uma visão de mundo
coerente!
– Isso é impossível! – grunhiu o
idealista pós moderno, no seu último esforço.
– Diante de tudo o que foi exposto, não é possível
ser um simples observador – disse o materialista dialético olhando para o
auditório – É preciso tomar partido! É importante que cada um de nós (sobretudo
os trabalhadores conscientes) seja um elemento atuante na luta pelo progresso
da filosofia e da ciência. Não podemos tolerar mais uma sociedade que faz uma
ode ao pensamento religioso e idiotizante. Quando colocarmos para nossa nação e
para o mundo a perspectiva de um esforço hercúleo visando superar a
pré-história intelectual humana, seremos não apenas capazes de explicar o universo
em que vivemos e somos parte, mas superaremos definitivamente o medo que ele
nos inspira e criaremos as condições para entrar numa comunhão de progresso
ininterrupto com ele.
***
Sob o olhar atônito do idealista pós-moderno, a maior
parte do auditório ovacionou o inflamado orador. Apesar das ervas daninhas e
das pedras, uma semente fértil foi lançada ao solo. Agora é preciso regá-la...
Notas
[1] Adaptado de “Sobre o papel do trabalho na transformação
do macaco em homem”, de F. Engels.
[2] Adaptado de “Cosmos”, de Carl Sagan.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] Adaptado de “As origens do materialismo”, de George
Novack
[6] Idem.
[7] Adaptado de “Cosmos”, de Carl Sagan.
[8] Adaptado de “As origens do materialismo”, de George
Novack
[9] O sofista, Platão.
[10] Adaptado de “Materialismo e empiriocriticismo”, de
Lenin.
[11] Adaptado da Bíblia Sagrada, Edições Paulinas.
[12] Adaptado das “Obras psicológicas completas”, Volume XIX
(1923-1925), de Sigmund Freud.
[13] Adaptado de “A essência do cristianismo”, de Ludwig
Feuerbach.
[14] Adaptado da 2ª tese “à Feuerbach”, de Karl Marx.
[15] Vários trechos das posições materialistas deste diálogo
foram adaptados de “Materialismo e empiriocriticismo”, de Lenin.
[16] Trata-se de uma planta rubiácea.
[17] Adaptado de “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã”, de F. Engels.
[18] Adaptado de “Uma breve exposição sobre o materialismo
histórico”, texto de formação da Luta Marxista.
[19] Adaptado do “Prefácio à Contribuição para a crítica da
economia política”, de Karl Marx.
[20] Adaptado de “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã”, de F. Engels.
[21] Adaptado de “O Capital”, de Karl Marx.
[22] Adaptado de “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã”, de F. Engels.
[23] Adaptado de “Filosofia marxista”, de V.G. Afanassiev.
[24] A Guerra dos Sete Anos foi uma série de conflitos
internacionais que ocorreram entre 1756 e 1763, durante o reinado de Luís XV,
entre França, Áustria e seus aliados (Saxônia, Rússia, Suécia e Espanha) de um
lado, e Inglaterra, Portugal, Prússia e Hanôver, de outro. O conflito terminou
com a vitória da Inglaterra e de seus aliados.
[25] Adaptado de “O papel do indivíduo na História”, de G.
Plekhanov.
[26] Adaptado de “O futuro de uma ilusão”, de Sigmund Freud.
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