sexta-feira, 4 de abril de 2014

Corações gelados*

O relógio público marca 23h e 3°C. Ele prepara a sua “cama” em frente a uma loja fechada, entre uma parede de concreto, a loja, e um vão, por onde passa um ventinho gelado cortante. Às 23h10min já está deitado ao lado de seus “pertences”: um carrinho de supermercado enferrujado, panos, sacolas e papelões, e um filhote de cachorro. Meus pés calçados congelam só de caminhar.

O frio do sul, cantado em verso e prosa por colunistas, repórteres, escritores e bon vivants de todas matizes, é o mesmo frio que penetra na carne dele como navalha afiada. O inverno deste ano já nos castiga rigorosamente há duas semanas e, quando o relógio bate 23h, lá está ele iniciando o seu ritual. Não sei aonde ele vai durante o dia, se tomar sol na Redenção ou em outro lugar, mas a noite é ali que ele mora. Na verdade são “eles”, porque num único quarteirão se vê quatro ou cinco “camas” como esta, muito embora os outros não sejam tão regulares quanto ele.

Não posso ver esta cena sem me sentir profundamente envergonhado e, ao mesmo tempo, furioso. Afinal, o “bicho” – recordando Manuel Bandeira – não é um pingüim ou um urso polar! Continua sendo um homem! Um ser humano! Infelizmente, em pleno século 21, a cena ainda não é capaz de esquentar os mais sombrios corações gelados pelo calor da vergonha; nem sequer é capaz de desencadear uma reflexão pessoal e social, em razão da censura alienante da grande mídia. Pelo contrário, os espasmos encolerizados da reação mais atrasada trovejam para naturalizar o desumano: “tá ali porque quer”, “porque não vai pra um albergue?”, “é um vagabundo que não quer trabalhar!”. Como se não houvesse causas mais profundas para os fatos. Ou então é a indiferença, não menos desumana e não menos fria.


Os carros importados convivem com a barbárie
A degradação de vidas pela fome, pela miséria, pelo frio, também é destruição da natureza; a miséria também causa prejuízos econômicos para toda a sociedade! São vidas perdidas; potencialidades humanas escorrendo pela latrina; humanidades regressando à selvageria. É sempre mais fácil acusar do que procurar as causas mais profundas. Para estes setores a mudança é impensável porque significa sair da zona de conforto e/ou perder privilégios inimagináveis. Por mais que trovejem dos céus as piores profecias reacionárias, a culpa não é dele, mas do desemprego, que é uma mazela do sistema capitalista (e continuará sendo, enquanto ele existir)! Depois de colocarem para fora toda a sua cólera mal resolvida, se esquentam no calor da colcha de retalhos das ideologias reacionárias que apenas justificam a ordem social vigente, tomam seus remédios psicoativos em doses homeopáticas nos comprimidos dos telejornais da grande mídia para se anestesiar de uma realidade inconveniente e dormem um sono vazio e frio, sem sonhos e sem sentido.
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* Texto publicado no auge do inverno de 2013

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