O relógio público marca 23h e 3°C. Ele prepara a sua “cama”
em frente a uma loja fechada, entre uma parede de concreto, a loja, e um vão,
por onde passa um ventinho gelado cortante. Às 23h10min já está deitado ao lado
de seus “pertences”: um carrinho de supermercado enferrujado, panos, sacolas e
papelões, e um filhote de cachorro. Meus pés calçados congelam só de caminhar.
O
frio do sul, cantado em verso e prosa por colunistas, repórteres, escritores e bon vivants de todas matizes, é o mesmo
frio que penetra na carne dele como navalha afiada. O inverno deste ano já nos
castiga rigorosamente há duas semanas e, quando o relógio bate 23h, lá está ele
iniciando o seu ritual. Não sei aonde ele vai durante o dia, se tomar sol na
Redenção ou em outro lugar, mas a noite é ali que ele mora. Na verdade são “eles”,
porque num único quarteirão se vê quatro ou cinco “camas” como esta, muito
embora os outros não sejam tão regulares quanto ele.
Não
posso ver esta cena sem me sentir profundamente envergonhado e, ao mesmo tempo,
furioso. Afinal, o “bicho” – recordando Manuel Bandeira – não é um pingüim ou
um urso polar! Continua sendo um homem! Um ser humano! Infelizmente, em pleno
século 21, a
cena ainda não é capaz de esquentar os mais sombrios corações gelados pelo
calor da vergonha; nem sequer é capaz de desencadear uma reflexão pessoal e
social, em razão da censura alienante da grande mídia. Pelo contrário, os
espasmos encolerizados da reação mais atrasada trovejam para naturalizar o
desumano: “tá ali porque quer”, “porque não vai pra um albergue?”, “é um
vagabundo que não quer trabalhar!”. Como se não houvesse causas mais profundas
para os fatos. Ou então é a indiferença, não menos desumana e não menos fria.
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Os carros importados convivem com a barbárie |
A
degradação de vidas pela fome, pela miséria, pelo frio, também é destruição da
natureza; a miséria também causa prejuízos econômicos para toda a sociedade!
São vidas perdidas; potencialidades humanas escorrendo pela latrina;
humanidades regressando à selvageria. É sempre mais fácil acusar do que
procurar as causas mais profundas. Para estes setores a mudança é impensável
porque significa sair da zona de conforto e/ou perder privilégios inimagináveis.
Por mais que trovejem dos céus as piores profecias reacionárias, a culpa não é
dele, mas do desemprego, que é uma mazela do sistema capitalista (e continuará
sendo, enquanto ele existir)! Depois de colocarem para fora toda a sua cólera
mal resolvida, se esquentam no calor da colcha de retalhos das ideologias
reacionárias que apenas justificam a ordem social vigente, tomam seus remédios
psicoativos em doses homeopáticas nos comprimidos dos telejornais da grande
mídia para se anestesiar de uma realidade inconveniente e dormem um sono vazio
e frio, sem sonhos e sem sentido.
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* Texto publicado no auge do inverno de 2013
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