A decadência dos EUA e do dólar frente à ascensão mundial da China,
Rússia e dos BRICS, tende a tomar a centralidade do debate público e midiático
do Brasil e do mundo neste início de século.
Um dos principais
estrategistas dos BRICS é o filósofo e geopolitólogo russo Alexander Dugin, que
com a chamada Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar
influencia tacitamente muitas das decisões tomadas pelo bloco e pelo governo
russo.
Yuval Noah Harari, um
renomado historiador liberal israelense que pode ser considerado como uma
espécie de “rival filosófico” de Dugin, escreveu que a Rússia de Putin ganhou
quase sem combate o território estratégico da Criméia e partes da Ucrânia,
infligindo medo a seus vizinhos e restabelecendo-se como uma potência mundial.
Apesar disso, Yuval sustenta que, diferentemente da União Soviética, a Rússia
atual carece de uma ideologia universal, pois o “putinismo” teria pouco a
oferecer aos cubanos, vietnamitas ou aos intelectuais franceses (ver: 21 lições
para o século 21, Cia das Letras, páginas 218, 221 e 222).
Pois bem.
Passados poucos anos desta declaração de Yuval, agora a Rússia de Putin
parece já possuir uma “ideologia universal” para oferecer ao mundo; e ela
surgiu da caneta de Alexander Dugin! Por estas e outras razões, cabe uma
análise crítica de suas teorias, procurando entender os pontos positivos e
negativos de cada uma delas para a causa da luta da classe trabalhadora e,
consequentemente, da emancipação humana.
A Quarta Teoria Política
Para compreender a
Teoria do Mundo Multipolar de Dugin é necessário compreender o que é a Quarta
Teoria Política, a base da sua noção de multipolaridade.
Segundo Dugin, os
séculos XIX e XX formaram 3 teorias políticas que definem a compreensão de
mundo e os debates políticos do século XXI: o liberalismo, o comunismo e o
fascismo.
O liberalismo, a primeira teoria política, teria surgido como resultado
da evolução das posições iluministas — que dão os fundamentos da cultura
ocidental e do seu tipo peculiar de racionalismo —, se tornando hegemônico no
mundo, sobretudo após a restauração do capitalismo na ex-URSS e a conformação
do mundo unipolar controlado pelos EUA. Dois grandes adversários políticos
desafiaram esta hegemonia ao longo do século XX: o comunismo, a segunda teoria
política; e o fascismo, a terceira teoria política; que por razões diferentes
tentaram derrotá-lo, sem sucesso. O liberalismo se centraria no indivíduo; o
comunismo na classe; e o fascismo na nação.
Para Dugin, nenhuma das duas últimas teorias conseguiu se colocar à
altura de vencer a hegemonia liberal, sendo, ao contrário, derrotadas por ela.
Isso demonstraria a necessidade da “quarta teoria política”, que é proposta por
Dugin no livro de mesmo nome.
A Teoria do Mundo Multipolar
Já no campo da teoria multipolar, Dugin defende a ideia de que após o fim do que se convencionou
chamar de “Guerra Fria”, com a restauração do capitalismo na ex-URSS e o
triunfo dos EUA, se consolidou o seu poder sobre o mundo, destacando-se o
domínio econômico, através do qual controla a maior parte dos países do mundo.
A isto ele deu o nome de mundo unipolar, onde a hegemonia é exercida por uma
única nação, os EUA.
Seus valores, a sua cultura, visão de mundo e conceitos políticos e
econômicos são impostos para todos os países do globo, e quem questiona ou luta
contra tudo isso é taxado como “eixo do mal”, terrorista e deve ser isolado,
combatido, destruído e subjugado. A base da cultura estadunidense seria o que
Dugin classifica como “cultura ocidental”, de origem europeia e, em particular,
greco-romana.
A imposição desta
cultura sob distintas formas de coerção e pretextos visa se tornar “universal”,
terminando por diminuir e abafar outras culturas e civilizações que são tão
importantes quanto à ocidental. Assim, se faz necessário que as civilizações e
países que resistem à dominação deste mundo unipolar conjuguem esforços para
resistir e construir um “mundo multipolar”, onde as várias culturas e
civilizações sejam respeitadas no que são, supostamente combatendo os
hegemonismos de pretensão universalizadora.
Segundo a teoria do
mundo multipolar não existe apenas uma civilização, mas várias civilizações
independentes cujo desenvolvimento não é comparável. Sendo assim, a
globalização imposta pelos EUA, com suas ramificações econômicas e instituições
políticas hegemonistas seriam um perigo para um mundo plural. A multipolaridade
refletiria adequadamente a diversidade humana, enquanto que a unipolaridade
seria uma fonte permanente de conflitos e caos para as periferias que viveriam
subordinadas ao centro — os EUA e seus aliados, como a Europa ocidental e a
OTAN.
A lógica teórica de
Dugin, que reverbera o pensamento de Carl Schmitt, expressa a disputa entre os
supostos “impérios do mar”, as talassocracias, e os “impérios da terra”,
telurocracias. Segundo ele, em todas as épocas históricas podemos encontrar
exemplos marcantes de potências que materializariam esse dualismo político,
indo desde Roma versus Cartago, até a Federação Russa versus os
EUA-OTAN. O mar, como água, seria fluído, inconstante e disforme. A terra, por
sua vez, sólida e constante.
Para Dugin há
mensagens de teor político, filosófico e social implícitas nesse dualismo: o
mar traz consigo valores modernos, o liberalismo, o livre-mercado, o
materialismo e a democracia; enquanto que a terra apontaria na direção do
militarismo, do conservadorismo, da religião e do autocratismo. Dugin vê nesse
confronto místico a disputa entre o Ocidente e a Eurásia em tudo o que essas
regiões representam ideológica e materialmente.
A Teoria do Mundo
Multipolar também aponta divisões das regiões do mundo a partir das principais
civilizações e culturas de cada localidade, que gerariam “grandes espaços”,
como o norte-americano, centro-americano, sul-americano, europeu,
árabe-islâmico, transaariano, russo-euroasiático, hindu, chinês, japonês e
neo-pacífico. Cada um desses grandes espaços teria uma civilização e/ou país de
referência que seria o seu ponto central. O Brasil, por exemplo, seria a
civilização central do “grande espaço” ibero-sul-americano; a Rússia, do
“grande espaço” eurasiático.
Dugin aponta que “a globalização moderna está construída com base na
‘primeira teoria política’, mas elevada a sua matriz paradigmática de
civilização, expressão pura da ‘civilização do mar’. A globalização implica,
portanto, a transformação do liberalismo em uma estrutura mais geral: de uma
ideologia clássica ou teoria política, o liberalismo (mais precisamente, o
neoliberalismo) se transforma em uma metaideologia planetária que, por um lado,
se funde com a própria matriz sociológica do ‘mar’ (atlanticismo) e, por outro,
passa do nível das ideias para o nível das coisas, entrando nas próprias coisas
do mundo globalizado circundante. Os portadores desta metaideologia não são
mais tanto intelectuais, figuras públicas e partidárias, ou meios de
comunicação de massa, como as próprias tecnologias, formas de transação
financeira, números eletrônicos individuais, redes comerciais, marcas da moda
ou eletrodomésticos. Seria difícil pensar em um melhor promotor da ideologia neoliberal
do que o McDonald’s, o sistema operacional Windows, o navegador google, os
cartões de crédito, os laptops e os telefones celulares. Todos esses objetos e
tecnologias irradiam energia ideológica, exigindo ‘conexão’, ‘seguir a maré’,
‘seguir as últimas tendências’, etc. A metaideologia do liberalismo não
persuade, discute ou prova sua validade e consistência, ela captura nas redes
globais de práticas cotidianas que se tornam necessárias e depois se instala
como um programa de computador no hardware” (Teoria do Mundo Multipolar, A.
Dugin, editora ARS Regia, página 402 e 403).
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| A roda da vida e da globalização liberal |
Como contraposição a este avanço, Dugin afirma que “um mundo
multipolar deve se assentar sobre uma base ideológica ou uma teoria política
que se oponha de forma convincente ao neoliberalismo, e que também representa
uma metaideologia apta a refletir o paradigma sociológico da terra. Como
metaideologia, a teoria política da multipolaridade deve ser extremamente
geral, flexível e capaz de incorporar uma variedade de sistemas de ideias às
vezes contraditórios. Além disso, por sua própria natureza, a multipolaridade
pressupõe a diversidade e a diferença como fenômenos positivos, o que significa
que a nova metaideologia não pode ser dogmática ou rigidamente enquadrada. Sua
principal característica será precisamente a oposição à uniformidade liberal e
à padronização de uma humanidade globalizada a partir de uma ampla gama de
possibilidades locais e regionais distintas: de caráter econômico, sociológico,
político e cultural. Como a ‘segunda’ e a ‘terceira teoria política’, que
existiram em diferentes contextos históricos, são agora inaceitáveis e
ineficazes, é necessário levantar a questão do desenvolvimento de uma ‘quarta
teoria política’” (idem, páginas 403 e 404).
Para Dugin, esta seria a direção que sociólogos, geopolitólogos e
filósofos russos e alguns continentalistas europeus estariam tomando agora,
neste princípio de século XXI. Ele escreve que “a ‘quarta teoria política’,
em sua forma mais genérica se fundamenta sobre: o princípio central da
liberdade de toda sociedade de seguir seu caminho histórico em qualquer direção
e de criar qualquer forma sociopolítica e sociocultural; a afirmação da
pluralidade de tempos, junto com o tempo linear e o ‘progresso’, que são
fenômenos sociológicos locais aceitáveis apenas dentro da civilização
ocidental; a reafirmação da equivalência absoluta entre ‘ocidental’ e
‘oriental’, entre ‘moderno’ e ‘arcaico’, entre os povos ‘tecnológica e
economicamente avançados’ e os chamados ‘povos atrasados’; a rejeição de todas
as formas de racismo (explícito ou implícito), incluindo racismos culturais,
econômicos, tecnológicos, civilizacionais, etc.); o reconhecimento do direito
das sociedades de desenvolver sistemas políticos religiosos e seculares ou de
não desenvolver nenhum; a teologia e o dogma (e até mesmo a mitologia) podem
ser uma base tão séria para a tomada de decisões políticas quanto a lógica
secular e os interesses racionais; a vinculação obrigatória das formas
sociopolíticas e culturais ao espaço e à história como um campo semântico
fora do qual elas não têm sentido; a quarta teoria política destaca o Dasein [conceito
do filósofo alemão M. Heidegger] como ‘ator de base’, diferente entre
representantes diferentes sociedades; o reconhecimento da pluralidade e da
diferença como os valores supremos da vida, que, especialmente em escala
global, devem ser amparados por todas as instâncias políticas e estratégicas
que reconheçam a quarta teoria política e a ordem mundial multipolar”
(idem, páginas 405 e 406).
Estes são os pilares da filosofia e do pensamento duginista que dão base
não apenas à Quarta Teoria Política e à Teoria do Mundo Multipolar, mas,
também, aos BRICS. O imperialismo norte-americano, por sua vez, se contrapõe ao
bloco e à Teoria do Mundo Multipolar com o seu tradicional big stick, os
empréstimos draconianos do FMI, as calúnias midiáticas, os embargos econômicos
e comerciais, as sabotagens institucionais, os golpes de Estado, bombardeios e
intervenções militares nos países que não aceitam suas ordens.
Quanto mais decadente e agressivo os EUA tem se demonstrado, mais os
BRICS e a ideia da multipolaridade têm se sobressaído aos olhos dos outros
países do mundo como uma possível alternativa. A realidade parece dar razão a
Dugin, Putin e outros “profetas” na questão da inevitabilidade de um mundo
multipolar.
Análise dos méritos e dos perigos das teorias de Dugin
Cabe, agora, analisar
os pontos positivos e negativos da Quarta Teoria Política e da Teoria do Mundo
Multipolar, vendo no sentido geral em que apontam o que se pode extrair de
melhor delas e destacar seus problemas e perigos.
Os méritos
> Combate sem
tréguas à ideologia liberal
Dugin aponta que o liberalismo (ou a sua versão atual, o
neoliberalismo), quando vira a doutrina econômica e política hegemônica no
mundo através da globalização imposta pela Europa e, sobretudo, pelos EUA,
torna-se totalitária. Porém, faz isso de uma forma diferente das suas rivais,
mais sutilmente, por intermédio de inúmeras indústrias culturais, sendo,
segundo Dugin, mais conciliadora e tolerante em relação à repressão diurna do
inconsciente noturno, o que dá uma aparência de maior “liberdade” e lhe confere
grande poder de sedução.
Quando não consegue impor sua vontade pelas vias políticas
institucionais e midiáticas tradicionais, apela para a força militar. Neste
permanente esforço de padronização, o liberalismo ceifa outras culturas e
civilizações, obrigando-as a se enquadrarem nos seus estreitos limites e
vendendo-os como os únicos possíveis.
O liberalismo
esconde, portanto, um profundo autoritarismo totalitário padronizador
por trás de uma fachada democrática. As instituições internacionais, como a
ONU, estariam imbuídas deste mesmo espírito. Não podendo conviver com oposições
permanentes, sejam elas de culturas, valores ou governos diferentes que não se
enquadrem em sua lógica política e econômica padronizadora, o “liberalismo”
ianque cria permanentemente “eixos do mal”, “ameaças terroristas”, fixação
contra “ditadores”, “sistemas opressores” e inúmeras formas narrativas
políticas para demonizar quem foge ao padrão liberal, maquiando ou mesmo
asfixiando as denúncias das mazelas que existem nas sociedades liberais
ocidentais, como a absurda concentração de riqueza nas mãos de uns poucos
bilionários; fome, desemprego, miséria, criminalização da pobreza e de quem
luta contra este estado de coisas para a imensa “maioria global”. A ditadura do
cotidiano nos locais de trabalho, estudo e moradia é escondida por uma grande
mídia subserviente, que vende um mundo colorido em que ser cidadão é trabalhar
e ganhar salários medíocres para sobreviver e consumir; ou mesmo pela chantagem
do desemprego ou da repressão militar.
Assim, o liberalismo
estadunidense padroniza tudo como um rolo compressor, procurando associar
permanentemente a sua imagem à “liberdade”, “progresso”, “alto desenvolvimento
tecnológico”. Tudo o que se oponha a este mundo miserável e empobrecedor é
taxado de “atrasado” e “opressor”, digno de ser menosprezado.
Foi com esta estratégia que os EUA consolidaram-se como potência hegemônica na atual ordem mundial unipolar em que vivemos. Por tudo isso, Dugin propõe um combate sem tréguas ao liberalismo, visto por ele como o cavalo de Tróia que esconde a dominação mundial estadunidense, usando como abre-alas o porrete da “liberdade” e da “democracia”.
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| O liberalismo é o pior vírus mental que você pode imaginar |
> Crítica às
revoluções coloridas made in CIA e às “mudanças de regime”
Para obrigar os países do mundo a dançar conforme a sua música, os EUA
atacam e derrubam governos que criam empecilhos à sua dominação mundial através
de inúmeros mecanismos de espionagem, sabotagem e guerra. Utiliza desde
bombardeios e guerras, até o fomento de “revoluções coloridas”, financiando
ONGs e associações “apolíticas” para mobilizar o povo com suas pautas
reacionárias escondidas atrás de slogans supostamente “revolucionários” e
“democráticos”. Foi assim em inúmeros episódios deste início do século XXI,
como muitos países da primavera árabe, a Ucrânia em 2014, o Brasil em 2016
(Fora Dilma), etc.
Dugin é um severo
crítico das “revoluções coloridas” e das “mudanças de regime” que apenas
consolidam a dominação geopolítica liberal dos EUA onde as guerras diretas não
são possíveis ou desejáveis.
> Valorização de outras tradições filosóficas, culturais e
religiosas para além do liberalismo ocidental
Em sua Teoria do Mundo Multipolar, Dugin propõe que não exista uma única
referência filosófica, cultural ou religiosa para o mundo. Todas as culturas
humanas devem entrar em diálogo. Até este momento, a história sempre nos trouxe
exemplos de como uma cultura se impôs sobre as outras, chegando até mesmo a
apagar algumas. É o que continua fazendo o liberalismo triunfante, que procura
uniformizar tudo e garantir a hegemonia estadunidense sobre o planeta.
Assim, para a construção de um mundo multipolar seria fundamental
conhecer e valorizar outras tradições filosóficas, culturais e religiosas como
tesouros da humanidade que não podem ser inferiorizados, mas tratados sempre em
pé de igualdade.
Nesta busca pela valorização de outras tradições para além do
liberalismo e da cultura ocidental, Dugin sugere — tal como outros filósofos e
pensadores já sugeriram antes dele — ir além do racionalismo grego, que é uma
das bases da visão de mundo do Ocidente e, portanto, do liberalismo. Há outras
possibilidades importantes de serem consideradas e exploradas como o caos,
do qual a racionalidade ocidental foge e renega.
Segundo ele, “o conceito mitológico de ‘caos’ como um estado em
oposição à ‘ordem’ é um produto de uma cultura predominantemente grega (isto é,
europeia). [...] o caos tornou-se um conceito puramente negativo, um
sinônimo de irracionalidade, escuridão e falta de sentido” (idem, página
488).
Mas também é possível ver de outro ângulo “e então o caos se revelará
para nós como uma instância que não se opõe à ordem, mas precede sua expressão
lógica agravada. O caos não é um sem sentido, mas a matriz da qual emerge o sentido.
Na cultura da Europa Ocidental, o ‘caos é inequivocamente ‘maligno’. Em outras
culturas, não é. A multipolaridade se recusa a considerar a cultura europeia
ocidental como universal. [...] A multipolaridade não raciocina em
termos de ‘caos’ ou ‘ordem’, mas exige toda vez uma explicação do que é ‘caos’
e do que é ‘ordem’ e qual é o significado de ambos os termos em uma determinada
cultura” (idem).
> Crítica ao marxismo como um “dogma religioso” e, muitas vezes,
eurocentrado
Ainda que reconheça a importância da crítica econômica marxista ao
liberalismo, Dugin renega o que considera ser excessos “racionalistas”,
transformados em dogmas e, sobretudo, sua visão antirreligiosa e
predominantemente eurocêntrica — o que, segundo ele, abriria flancos para que
fosse utilizado pelos próprios liberais na sua lógica de dominação mundial. Por
exemplo: para chegar ao capitalismo, todos os países do mundo deveriam
vivenciar e superar as etapas do desenvolvimento civilizacional europeu. A
Europa, seria, portanto, o molde universal ao qual os “países mais atrasados”
deveriam se enquadrar.
Podemos e devemos questionar muitos dos apontamentos duginianos em
relação ao marxismo, no entanto, é importante primeiro refletir sobre eles,
pois possuem relevância crítica.
Para Dugin, a teoria marxista se fundamenta no mesmo universalismo
ocidental, portanto, de alguma forma, paga tributos à cultura e ao racionalismo
europeu e grego. Além disso, aponta que ela reconhece uma única lógica
histórica para todas as sociedades — e que esta lógica estaria baseada
exclusivamente no desenvolvimento europeu. Assim, a teoria marxista
justificaria direta ou indiretamente o capitalismo e a ordem burguesa —
europeia — como uma fase necessária do desenvolvimento social, sem a qual é
impossível fazer uma revolução ou construir o comunismo, o que obrigaria as
forças progressistas do mundo a defender direta ou indiretamente a hegemonia
liberal e ocidental. Por fim, o marxismo transformaria a defesa disso tudo em
algo fatalista, bem ao estilo da teleologia religiosa.
Há também críticas ao marxismo no que diz respeito às suas influências
não admitidas, como a positivista, tecnologicista, teleológica e em relação ao
seu menosprezo às tradições religiosas humanas, buscando igualá-las e jogá-las
fora para uniformizar os desenvolvimentos sociais, sempre tendo como modelo as
civilizações burguesas europeias.
Os perigos
> A Quarta
Teoria Política e a Teoria do Mundo Multipolar servem, sobretudo, aos
interesses da grã-Rússia
O sentido que o conjunto das duas teorias de Dugin aponta é a
justificação dos interesses da grã-Rússia. Aqui residem os seus maiores
perigos. Assim como o liberalismo e a cultura ocidental escondem os interesses
geopolíticos e econômicos dos EUA e dos principais países da Europa Ocidental,
as teorias de Dugin expressam os interesses da grã-Rússia, antes escondidos sob
o “comunismo” na versão soviética de Stalin, hoje, tais disfarces se reciclaram
na “quarta teoria política” e na “multipolaridade” para continuar cumprindo os
mesmos objetivos.
Podemos começar pela
centralidade que a Rússia possui nelas: o país de Dugin é considerado nada mais
nada menos do que o “coração da Terra”, o centro do “império terrestre” em
contraposição ao “império do mar”. Segundo ele, “a multipolaridade nada mais
é do que uma extensão da geopolítica telurocrática em um novo ambiente
caracterizado pelo advento do globalismo (como atlantismo) [...] A
multipolaridade simplesmente não pode ter nenhum outro significado” (Idem,
página 351). Aqui há uma contradição flagrante com a ideia de multipolaridade,
de respeito às distintintas formações culturais e civilizacionais.
Todo o princípio de multipolaridade, pluralidade, não-universalidade e
diferenciação estariam “enraizados” na “geopolítica terrestre”, mas ele não
apresenta nenhum argumento do porquê isso não poderia existir também em um
“império do mar”. Fica explícito em seu pensamento que a Rússia teria esse
papel civilizatório multipolar exclusivo, quase como uma reprodução messiânica
de muitas outras teorias e religiões humanas.
Ele escreveu: “toda a história russa é um debate dialético com o
Ocidente e contra a cultura ocidental, a luta por sustentar a nossa própria
verdade russa (usualmente apreendida apenas intuitivamente), nossa própria
ideia messiânica, e nossa própria visão do ‘fim da história’, independentemente
de como ela seja expressada — através da ortodoxia moscovita, do império
secular petrino ou da revolução comunista mundial” (A Quarta Teoria
Política, editora ARS Régia, página 52).
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| Mapa extraído das redes sociais de Dugin sobre como a Rússia é cercada pela geopolítica estadunidense |
A multipolaridade duginista sustenta que cada polo tem uma civilização
central, que seria o epicentro regional. Como vimos, cada polo é chamado de
“grande espaço”, unido pela filosofia, cultura, modo de pensar, por uma
terminologia baseada em uma ou mais línguas, em alguns casos pela religião ou
culto, mas que carece de unidade estratégica e governança centralizada. Dentro
desses “grandes espaços”, uma civilização ou país poderá e deverá exercer
livremente a sua hegemonia. Então, por exemplo, no “grande-espaço”
russo-euroasiático, a grã-Rússia estaria legitimada para exercer o seu domínio
sobre as regiões adjacentes de “autonomia relativa”. Caso algum país ou região
queira se aproximar de outra cultura que não seja a referência do seu “grande espaço”,
então isso autorizaria o uso da força militar. Fica evidente que as culturas e
os “grandes espaços” seriam ilhas propensas a se fecharem em si mesmas,
evitando a influência de outras culturas, filosofias, línguas, cultos,
religiões, etc, ou até mesmo pontos em comum que poderiam tender a um
universalismo humano real e autêntico, não imposto. Em última análise, evitaria
um dos principais pontos positivos da humanidade que seria a assimilação e a
integração cultural.
Estar aberto a outras culturas e deixá-las transitar livremente por
entre os “grandes espaços” do mundo nada tem a ver com a imposição neoliberal
feita pelo imperialismo estadunidense, que é muito bem criticada por Dugin e
outros autores. Sem dúvida é necessário superar o mundo unipolar de visão
dogmática única, geralmente imposta pela força militar norte-americana visando
desmerecer, subjugar ou mesmo apagar outras culturas. No entanto, o mundo
multipolar não pode ser tão frágil e engessado em si mesmo, como propõe Dugin,
que parece querer cristalizar as culturas em um tradicionalismo obtuso e muitas
vezes reacionário.
Há na Quarta Teoria Política e na Teoria do Mundo Multipolar
contradições flagrantes: se busca a multipolaridade, embora não se questione o
capitalismo. Um “grande espaço” pode viver sob a “democracia liberal”, outro
sob uma autocracia, e ainda outro sob uma monarquia, embora nenhuma delas
necessariamente questione os fundamentos do capitalismo.
As contradições das
teorias de Dugin tendem a anular a sua importância geopolítica e as boas
contribuições que trazem em seu cerne para pensarmos caminhos alternativos para
a emancipação dos povos do mundo do jugo imperialista. A evolução humana
pressupõe a troca e assimilação cultural, o que inevitavelmente significa
modificar e integrar as culturas existentes, sem necessariamente apagá-las ou
negá-las.
E isso, inevitavelmente, pressupõe o enfrentamento ao capitalismo, que é
por natureza padronizador e hegemonista.
> Dugin entende
comunismo estritamente como stalinismo
É bastante precipitada a declaração da falência e superação do comunismo
como “segunda teoria política”. Nesta questão, ele reproduz quase que com as
mesmas palavras e intenções a propaganda liberal ocidental contra o
“comunismo”.
Uma das possíveis
explicações para isso é o fato de que Dugin relaciona “comunismo” com o que
foram os regimes stalinistas, em especial, o soviético, o qual vivenciou
pessoalmente. Para ele, tudo o que o comunismo engendra se resume ao que foram
os regimes stalinistas. Ignora as experiências dos primeiros anos da revolução
russa (1917-1925), a iugoslava e chinesa. Além disso, ignora o pensamento de
Trotski, de quem é um adversário ferrenho, reproduzindo quase que totalmente a
propaganda stalinista e liberal. O que lhe interessa no “comunismo” soviético é
justamente o renascimento grão-russo escondido sob o culto do regime de Stálin,
rechaçando e reprimindo junto com ele a riqueza teórica expressa na crítica
trotskista.
Olhando o “comunismo”
de uma perspectiva tão estreita e pobre, só resta declarar a sua “falência” e a
necessidade de uma nova teoria política — a Quarta —, que serve tão bem às
finalidades geopolíticas da grã-Rússia, outrora travestida com a gramática do
“comunismo stalinista”. Neste quesito, a sua teoria é tão velha quanto as
propagandas liberais e stalinista, cheirando à naftalina vintage.
No entanto, o
comunismo — sob o viés de Marx, Engels, Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo e
tantos outros — sempre foi uma teoria aberta à renovação científica e dos
tempos. Todos os seus principais teóricos foram enfáticos sobre isso.
Enriquecê-lo com a multipolaridade é essencial para pensarmos e repensarmos
formas de renovação e aplicação prática antes de decretarmos sua falência, tal
como fazem insistentemente todos os teóricos liberais do mundo — e, neste caso,
também Dugin.
Certamente existem
muitos pontos dogmáticos no comunismo — seja de que vertente for, mas, em
especial, na versão stalinista — que, sem dúvida, precisam ser superados,
sobretudo pela experiência prática. Entretanto, para quem quer continuar
pensando sobre o povo pobre, explorado, humilhado e ofendido; e,
principalmente, sobre a emancipação humana, jamais poderá descartar ou declarar
como superado o comunismo em si mesmo.
> Há algo de
bom no fascismo?
Dugin também vê o fascismo como uma doutrina derrotada pelo liberalismo.
Porém, não percebe — ou não quer perceber — que o fascismo se recicla e ainda
vive nos corações e mentes de muitos povos ao redor do mundo, sendo incentivado
e tolerado pelos próprios liberais disfarçadamente quando lhes convém.
Dugin condena corretamente o neonazismo ucraniano em guerra contra a
Rússia nos dias atuais, protagonizando inúmeros atos de terrorismo — que
inclusive ceifaram a vida de sua filha, Daria —, mas olha com indisfarçável
simpatia para Trump, que lidera o movimento neofascista internacional,
ao qual glorifica como uma saudável “revolução conservadora”, ainda que não o
reconheça como uma forma de fascismo.
Para tentar embelezar este argumento e torná-lo mais tragável, Dugin
afirma que com suas medidas de governo, o trumpismo termina por acelerar contra
a sua vontade a implementação de um mundo multipolar. Isto encerra uma parte da
verdade, mas endossa os estragos ideológicos, políticos, econômicos e
religiosos do neofascismo contra todos os povos do mundo, em particular, quando
exalta a figura de Charlie Kirk como uma “grande liderança” que representa o
“bem” contra o “mal” e, por isso, sofreria a perseguição diabólica das “forças
liberais globalistas”. Não vê nenhum problema no culto às armas feito por Trump
e Kirk, onde ambos foram suas vítimas, sendo o último de forma fatal.
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| MAGA, movimento neofascista liderado por Donald Trump, e Charlie Kirk, brutalmente assassinado pelos atiradores tão defendido e exaltados por eles |
Mesmo declarando que
rejeita todas as formas de racismo, Dugin julga como positivo o “culto à
tradição”, ao conservadorismo e ao passado que o fascismo propõe. Este foi o
curioso “ponto positivo” encontrado por ele na terceira teoria política para
ser integrada à quarta.
No entanto, ainda que diga combater todas as formas de racismo, o
tradicionalismo e o culto ao passado são fontes permanentes de criação de novos
e piores racismos que segregam e matam seres humanos e esmagam outras culturas.
É muito difícil e perigoso “cultuar uma tradição”, pois isso geralmente termina
por julgá-la superior às demais, além de dividir permanentemente a humanidade.
A Alemanha nazista combatia a “modernização liberal” porque via nela uma
ameaça. Como identificava-se como uma “raça superiora”, plenamente identificada
com os valores culturais “elevados” do espírito e contra “o materialismo da
civilização ocidental”, percebido como destruidor da vida virtuosa da religião,
da família e dos bons costumes.
Dugin, assim como a Alemanha nazista, vê na exaltação dos valores
tradicionais a única forma de proteger as culturas puras, decentes, que merecem
ser defendidas contra a degeneração e a decadência expressa pela política dos
“globalistas neocons”.
Este estranho e preocupante
flerte com o fascismo é utilizado pela grande mídia ocidental para demonizar o
pensamento de Dugin e jogá-lo integralmente fora. Na teoria de Dugin, a defesa
da tradição e do passado pode ser entendida, em essência, como ecos dos antigos
valores da grã-Rússia aristocrática e predestinada a “dominar o mundo”.
> Misticismo,
tradição e valores conservadores
Dugin e seu movimento
internacional baseiam-se na tradição conservadora europeia e russa, se
insurgindo contra a modernidade, vista como a base teórica e política do
liberalismo ocidental. Os valores conservadores podem assumir formas místicas
que, ainda assim, segundo Dugin, devem continuar sendo defendidos contra as
“inovações” modernas e pós-modernas introduzidas pelas sociedades iluministas e
liberais do “Ocidente coletivo”. Segundo seu pensamento teórico, todo o mal se
concentraria no liberalismo e nas suas propostas de modernidade; e todo o bem
se concentraria no conservadorismo, atacado sem tréguas pelo primeiro.
Dugin defende “o
reconhecimento do direito das sociedades de desenvolver sistemas políticos
religiosos e seculares ou de não desenvolver nenhum; a teologia e o dogma (e
até mesmo a mitologia) podem ser uma base tão séria para tomada de decisões
quanto a lógica secular e os interesses racionais” (Teoria do Mundo
Multipolar, Editora ARS Regia, página 405).
Certamente é muito
importante respeitar e dialogar com tradições culturais e religiosas humanas de
distintas civilizações ao redor do mundo, embora isso não deva ser confundido
com se submeter cegamente a elas. Tampouco se pode ignorar o fato de que as
forças conservadoras desencadeiam movimentos repressivos tão violentos e
hemegemonistas quanto as forças imperialistas liberais. Ser conservador e
defender valores religiosos e morais que, atualmente, podem soar como machistas
e homofóbicos — isto é, anti-identitários — é um cavalo de batalha de Dugin, ao
ponto de convocar e defender a suposta “revolução conservadora” exposta nos
slogans e ações do governo Trump, Charlie Kirk e o partido republicano
norte-americano.
Sabemos que o
identitarismo liberal-burguês vem fazendo inúmeros estragos ideológicos e
sociais, sobretudo no campo da “esquerda” mundial, terminando por jogar fora
muito da tradição europeia e ocidental, vista exclusivamente como machista,
racista e homofóbica. A chamada ideologia woke tende a gerar tipos
inumanos de militantes, fanatizados e escondendo suas sombras nos seus
oponentes, como se tudo de bom estivesse em si mesmo e tudo de ruim nos
inimigos. Os argumentos apresentados pelos militantes woke e
identitários no seio da “esquerda” muitas vezes negam elementos da realidade
material e da própria biologia, o que termina por dar uma aparência de força
aos argumentos de Dugin e ao próprio movimento conservador. Trump e o neofascismo
tiram partido desses flagrantes exageros identitários.
No entanto, se é certo que devemos saber dialogar com os valores
tradicionais, não cabe aos conservadores reacionários do partido de Trump, bem
como aos oligarcas do cristianismo ortodoxo russo, a “renovação” social
necessária para o mundo, mas sim, aos ativistas comprometidos com a causa
socialista e, consequentemente, da emancipação humana, procurando evitar todo o
tipo de fanatismos. Ao contrário do que prega Dugin, os valores conservadores
tendem a abrir caixas de Pandora que podem ser focos de intolerância que
terminem por desrespeitar e reprimir as orientações sexuais individuais, bem
como culminar em guerras religiosas de triste memória, como as ocorridas na
Europa do século XVII.
Facilmente se
escondem posições extremistas, reacionárias e opressivas nas tradições
religiosas conservadoras, sustentadas por cleros muitas vezes imbuídos de
descomunal poder político e econômico. A obra de Carl G. Jung demonstra como o
iluminismo europeu deixou um vácuo perigoso na psiquê coletiva em relação à
supressão total do sentimento religioso e numinoso que não foi bem compreendida
pelo ateísmo materialista e cientificista. Dugin e seus seguidores
compreenderam isso; os ativistas de “esquerda”, não. As religiões da
humanidade, bem como suas inúmeras tradições culturais e sentimentos místicos
devem ser respeitados, ainda que a base de tomada de decisões deva se manter
nos limites racionais, capazes de serem debatidos, compartilhados e
equilibrados democraticamente pelas diferentes percepções sociais e humanas.
O ponto de encontro
entre as pessoas é a sociedade. E esta deve ser laica, embora tal laicidade não
deva se tornar uma forma de opressão, humilhação e rechaço para inúmeras
práticas religiosas e culturais humanas por parte do poder político. Uma
verdadeira teoria multipolar e socialista deveria respeitar as inúmeras
dimensões humanas — dentre elas a religiosa —, sem, no entanto, sobrepor umas
às outras, nem legitimar justificativas religiosas opressivas e violentas
contra minorias, por mais arraigadas que estejam em uma determinada tradição
nacional. A própria laicidade iluminista e científica não pode se tornar um
dogma de valor absoluto como foi até agora.
Porém, a evolução
social e humana pressupõe a assimilação e modificação cultural humana entre
civilizações, por mais que Dugin e o seu movimento não aceitem e lutem contra
interferências “iluministas” e “liberais” nas tradições. O movimento
identitário deve ser combatido com base no debate político e racional — incluso
a racionalidade da psicologia junguiana — justamente porque é um movimento que
se encontra na esfera social; e não com misticismos, fantasmas de dogmas e de
intolerância das tradições religiosas, que só podem intensificar o ódio e a
confusão.
Uma cultura humana
deve saber fazer conviver pacificamente comunidades de indivíduos cuja a opção
sexual seja diversa com aqueles cujas tradições religiosas julgam a
homossexualidade um “pecado”, baseando-se, evidententemente, na lei civil e no
avanço da maior reciprocidade possível. Mesmo que o iluminismo e o liberalismo
sejam usados como um instrumento de dominação totalitária pelo imperialismo
estadunidense, eles não podem ser totalmente descartados, como quer Dugin, pois
sempre há algo para se aprender na sua evolução histórica.
> A transição para
o mundo multipolar será feita pelas elites? Que tipo de mundo multipolar poderá
resultar disso?
Está dito implícita ou explicitamente por Dugin e outros defensores do
mundo multipolar — como Pepe Escobar — que a derrota da unipolaridade ianque
será feita pelas elites dos países dos BRICS.
Portanto, não é casual que as cúpulas do bloco só falem em business
councils e partners — ou seja, fala a língua do empresariado
internacional e não chega nem perto da linguagem dos trabalhadores e do povo
pobre, ainda que faça demagogia com os termos “sul global” e “maioria global”.
Na Quarta Teoria Política, Dugin parte das análises de Vilfredo Pareto, Robert
Michels e Gaetano Mosca para sustentar que as elites são inevitáveis e
insubstituíveis. Assim, caberia aos povos do “sul global” aceitar a transição
para um mundo multipolar dirigida por elas. Joga-se a toalha na tentativa de
construção de um mundo alternativo onde o “sul global” possa visar um poder de
trabalhadores para os trabalhadores — ou seja, para a verdadeira “maioria
global”.
Ignorando a classe
trabalhadora, suas necessidades imediatas e históricas, as teorias de Dugin
terminam, em última instância, dando apoio político concreto às elites que
estão à frente dos países dos BRICS, como os oligopólios russos; os
“bilionários comunistas” chineses; o agronegócio e o sistema financeiro no
Brasil; o setor agroexportador e de tecnologia na Índia; o extrativismo mineral
e financeiro da África do Sul, etc. Que “novo mundo multipolar” tais elites
podem criar, senão velhas formas de exploração disfarçadas sob um novo
discurso de igualdade cultural e civilizatória? O linguajar e as práticas
destas elites não reproduzem o linguajar e as práticas liberais?
Além disso, grande
parte do tal “comércio ganha-ganha” proposto pela China é, em síntese, a
manutenção da velha condição
neocolonial, onde uma parte fornece produtos de alto valor agregado,
aprofundando sua industrialização e desenvolvimento tecnológico, e a outra
parte — no caso, Brasil, África do Sul e o “sul global” — vende matéria-prima,
talvez por um valor um pouco melhor.
As teorias de Dugin
tornam-se cínicas se só reconhecem a necessidade de igualdade no campo cultural
e de “civilizações”, mas não a traduzem para o campo econômico. Sem falar no
fato de que inevitavelmente a economia internacional tende ao nivelamento de
culturas distintas, terminando por impor uma sobre as outras.
Se julga possível uma
transformação social apenas ou prioritariamente através das elites, Dugin deve
abdicar do discurso de “sul global” ou “maioria global”. Caso contrário,
trata-se apenas de estelionato ou demagogia, uma vez que não se trata apenas
dos “globalistas e neocons” liberais que são totalitários e hegemonistas no seu
modo de agir, mas de um sistema econômico que opera na base de tudo.
O hegemonismo e o
totalitarismo liberais são expressões da tendência capitalista de se expandir
ininterruptamente, moldando o mundo à sua imagem e semelhança. Como resultado
dessas tendências, o capitalismo vai se expandindo e abocanhando toda a
economia mundial, incorporando e eliminando gradativamente os modos
não-capitalistas de produção e, consequentemente, destruindo culturas regionais
e subjugando os países periféricos.
Como elites que, na maioria das vezes, são parte fundamental deste
projeto de submissão, humilhando, esmagando e espoliando o próprio povo,
poderiam criar um mundo multipolar que seja melhor do que o existente?
> Nem toda a
herança do imperialismo norte-americano é maldita! Algumas podem e devem ser
incorporadas criticamente
Dugin dá a entender que a globalização ianque só deixou marcas negativas
e perversas. O desenvolvimento tecnológico, como a internet e diversos
aparelhos eletrônicos, apesar dos pesares, possuem elementos inegavelmente
positivos, sendo o resultado da tortuosa e contraditória evolução das forças
produtivas. As modificações realizadas na construção do seu modelo de mercado
mundial também não podem ser totalmente desprezadas, como as formas de
pagamento digitais, por exemplo; bem como algumas regras que foram desenvolvidas
durante seu período de hegemonia mundial, como a possibilidade de
intermediações comerciais através da OMC, que devem ser levadas em consideração
e aprimoradas — regras do jogo que os próprios EUA pregam, mas não cumprem
quando perdem.
O que necessita ser rechaçado é, portanto, a hegemonização ianque, que
tende a nivelar tudo, seja pela chantagem ou pela força militar, bem como os
seus valores burgueses. É daí que advém a submissão ou destruição de culturas e
países inteiros, algo que, sem dúvida, deve ser inadmissível para qualquer
pessoa que lute pela emancipação humana.
No entanto, na medida em que o mundo se conhece e se encontra no mercado
mundial, alguns nivelamentos devem ser inevitáveis, não apenas para as trocas,
mas também para o enriquecimento cultural recíproco. Assim, a grande questão
passa a ser evitar a hegemonização e a imposição de uma cultura sobre a outra,
fato que geralmente se dá a partir da dominação econômica.
Nem todos os nivelamentos criados pelo capitalismo internacional são
necessariamente ruins. Alguns são necessários. Desde padrões e medidas até
algumas linguagens econômicas — evitando-se regras impostas que simplesmente
patrolam e destroem culturas nacionais e regionais. Mesmo que religiões,
culturas, identidades nacionais, processos e regimes políticos diferentes devam
ser respeitados ao redor do mundo, o estágio de desenvolvimento econômico
atingido pela humanidade através do capitalismo e do seu mercado mundial
necessita de algum tipo de padronização global, sem o quê ele se torna
impossível de ser praticado e pode pôr a perder benefícios da integração
econômica internacional.
Em algum nível as culturas e civilizações regionais serão
inevitavelmente alteradas para que possibilitem tal integração. A própria
modificação e assimilação cultural, como já se disse, levam a mudanças
civilizacionais que não devem ser temidas, mas respeitadas nos seus tempos e
especificidades.
Os próprios desafios que se abrem para o século XXI são de natureza
global, o que exige, necessariamente, respostas globais. O que a
multipolaridade duginiana sugere é que se a globalização traz problemas e
hegemonismos, deve ser simplesmente abandonada em prol de costuras entre os
particularismos civilizacionais dos “grandes espaços” regionais ao invés de
aperfeiçoar e equilibrar a integração global, o que exige avançar para um
sistema econômico de caráter socialista e multicultural.
> O pensamento de Dugin ajudou a criar excrescências como Olavo de
Carvalho no Brasil
É sabido que o pensamento filosófico e místico de Dugin ajudou a criar e
incentivar a atuação de “pensadores” como Olavo de Carvalho, de triste memória,
que foi decisivo para a expansão política e a vitória do bolsonarismo no
Brasil. Mesmo havendo inúmeros pontos de intersecção entre o pensamento de
Dugin e de Olavo de Carvalho, há, também, muitas diferenças.
A tradução política do misticismo de Dugin a nível internacional leva ao
enfrentamento com o hegemonismo imperialista neoliberal, enquanto que no
Brasil, o pensamento de Olavo de Carvalho foi a sua mais perfeita expressão,
traduzindo-se como fonte “teórica” inesgotável de submissão neocolonial ao
hegemonismo liberal estadunidense. Com suas confusões e bizarrices, Olavo foi o
cavalo de Tróia perfeito para a disseminação do ideário neofascista no
Brasil. Não é à toa que ele é idolatrado pelos bolsonaristas. O pensamento de
Dugin tem uma parcela de responsabilidade na expansão deste câncer político,
ajudando a dar embasamento ao seu misticismo e ao seu combate teórico ao
“comunismo”.
Reciclar o movimento comunista e incorporar as boas contribuições da
Quarta Teoria Política e da multipolaridade
Talvez um dos erros dos “marxistas” ao longo do século XX tenha sido
justamente tentar destruir (ou, na melhor das hipóteses, ignorar) toda a tradição
cultural anterior, e não assimilá-la no sentido de incorporar seus elementos
positivos, compreender e ressignificar os negativos.
Assim, uma proposta de multiculturalismo e multipolaridade, mesmo que
incorpore alguns pontos contraditórios inicialmente, tem grande valia para o
enriquecimento do marxismo e resulta na necessária renovação do comunismo como
teoria de transformação social, afinal de contas, a humanidade é diversa e não
será possível construir o socialismo sem levar esta diversidade em consideração.
Parte da necessária superação do modo de produção capitalista está em
saber aprofundar a convivência e trocas entre culturas diferentes (fato que não
ocorre no capitalismo, que cria um mercado mundial onde o pequeno centro
enriquece às custas do dreno dos países periféricos, subjugando suas economias
e culturas). Contrariamente ao que pretende a multipolaridade duginista, que
sugere manter culturas bem definidas e separadas nos “grandes espaços”,
cultuando suas tradições e valores conservadores, é importante desenvolver
formas de trocas culturais em que haja assimilações propositivas, sem
hegemonismos ou imposições. Isso, inevitavelmente, fará com que muitas culturas
mudem — levando os conservadores ao desespero. Não devemos temer a proximidade
e a troca cultural visando a criação de uma cultura humana universal, da mesma
forma que um grande país, como o Brasil, a China ou a Rússia, mantém inúmeras
culturas regionais sem que deixem de possuir uma unidade nacional e cultural
maior.
Dugin parece temer este contato entre as culturas mundiais visando uma
integração global, com a desculpa da triste experiência do mundo unipolar
hegemonizado pelos EUA, ou a triste memória do “comunismo” de orientação
stalinista na Rússia.
Além de ser necessário um duro balanço das experiências stalinistas,
reconhecendo os equívocos e as sombras presentes no marxismo para superar a
crise do movimento comunista internacional do século XX, ao invés de jogar fora
a “segunda teoria política” em nome de uma “quarta”, não só duvidosa, mas
estranhamente conservadora em seu flerte com a “terceira”, isto é, com o
fascismo, é fundamental aprender a se tornar flexível e capaz de incorporar uma
variedade de sistemas de ideias que podem ser, às vezes, contraditórios, mas
que a longo prazo podem dar a base necessária para a construção
socialista.
Como uma teoria que pretende lutar pela emancipação humana — relembrando
o que Marx e Engels sempre defenderam —, a renovação do comunismo deveria
pressupor a diversidade e a diferença como fenômenos positivos que expressam a
natureza viva da cultura humana, o que significa evitar deixá-la se tornar um
sucedâneo de religião dogmática, repleta de excomunhões e de enquadramentos
rígidos.
Uma das principais características da sua renovação teórica e política
deve ser, precisamente, a oposição à uniformidade (neo)liberal e à padronização
de uma humanidade globalizada a partir da grande gama de possibilidades locais
e regionais distintas, sejam de caráter econômico, sociológico, político,
cultural, religioso ou filosófico. É necessário ainda incorporar os pontos
positivos do liberalismo (noções de liberdade individual), sem serem
conflituosas, até onde isso é possível, com a classe (segunda teoria política,
o “comunismo”) e o nacionalismo “saudável” (não o nacionalismo fascista, mas o
de amor ao povo e às suas tradições populares, folclóricas e religiosas
não-institucionalizadas).
Não é mal incorporar também as boas tradições filosóficas do século XX,
como o Dasein de Heidegger, levando em consideração os avanços do
pensamento humano — fato sempre muito apreciado por Marx, Engels, Lenin,
Trostki e Rosa Luxemburgo. Da mesma forma, as diferentes escolas de psicologia
devem ser estudadas e assimiladas pelo “novo comunismo”, tal como a psicologia
de massas reichiana e o inconsciente coletivo junguiano, nunca esquecendo que à
toda luz corresponde uma sombra que precisa encontrar um equilíbrio.
É imprescindível ainda estudar, debater e incorporar teoricamente formas
de compreensão e superação do espírito de rebanho que acompanha a civilização
humana em distintas culturas e regiões há milênios. Para uma reciclagem
completa não se pode esquecer a importância de desenvolver uma teoria capaz de
entrar em sintonia com a natureza e seus ciclos, onde a economia não seja um
sanguessuga grudado no pescoço de Gaia, mas algo harmonioso para com ela. Nesse
sentido, as inúmeras culturas indígenas sul-americanas tem muito a ensinar,
relembrando as imprescindíveis tradições xamânicas e religiosas destes e de
outros povos que são a mais perfeita tradução da palavra “religião” (religare),
nos reconectando com o cosmos e a totalidade, sem abrir mão das conquistas
científicas racionais (mas sem sobreposição dogmática ou desdém da última sobre
as primeiras).
Todas estas incorporações teóricas — incluindo os pontos positivos da
Quarta Teoria Política e do Mundo Multipolar duginistas — resultarão em uma
nova teoria, que deverá ser a superação do comunismo e do marxismo tal como o
conhecemos, gerando uma “nova teoria”, fato já previsto por Engels em seus
escritos. A espinha dorsal certamente deve continuar sendo a classe, dado que é
a esfera onde ocorre o ponto de encontro social entre os indivíduos humanos,
suas sociedades e modos de produção, chegando à noção comum de que é
absolutamente intolerável e inaceitável a existência de bilionários, oligarcas
ou autocratas que explorem e comandem o mundo visando explorar o trabalho e a
vida de centenas de milhares de pessoas, bem como os recursos naturais da
maioria dos países do mundo que somente à coletividade humana podem pertencer.
A multipolaridade e os BRICS
O bloco geopolítico
que desafia a unipolaridade estadunidense é o BRICS. A sua base teórica é dada
pela multipolaridade duginista. Seguidas vezes Putin e Dugin têm afirmado que a
hegemonia norte-americana cede espaço cada vez maior — e contra a sua vontade —
à multipolaridade proposta pelos BRICS, tal como um fenômeno da natureza que
não pode ser impedido pelas ações de um presidente dos EUA.
De fato, temos visto
a decadência acelerada do imperialismo estadunidense, a despeito dos esforços
desesperados da elite ianque para impedir, sendo o governo de Donald Trump o
seu expoente mais destacado e o movimento internacional que ele financia e
sustenta, o neofascismo, a ponta de lança que tenta “fazer a América
grande de novo”.
Para tentar
relativizar ou reverter a imagem de um entusiasta do “conservadorismo”, do
“tradicionalismo” e da “revolução conservadora” trumpista, Dugin afirma que
Trump contribui com a formação de um mundo multipolar mesmo contra sua vontade.
Ou seja, quando ele ataca a China, impõe um tarifaço à Índia e ao Brasil, ele
contribui, indiretamente, para acelerar a criação de um mundo multipolar. Outro
erro crasso de Dugin em relação a Trump é quando ele afirma se tratar de um
líder antiliberal que apenas defende os seus “interesses nacionais”. O que
Trump e o neofascismo fazem, na realidade, é dar novas armas ao
totalitarismo da ordem unipolar ianque. O imperialismo e o seu deep state
precisam de vários tipos de dominação geopolítica, alguns, aparentemente
contraditórios, como o “liberalismo” democrata e o intervencionismo autocrático
republicano, mas certamente complementares.
![]() |
| Dugin, Kirk e Trump. Dugin defende e exalta a figura de Kirk como se fosse uma luta religiosa do "bem" contra o "mal" |
Aos brasileiros
pobres não cabe cultivar ilusões em relação aos BRICS.
Se por um lado é certo que não há futuro para o nosso país fora desse
bloco, pois estaríamos condenados a ser eterna periferia do mercado mundial
hegemonizado pelos EUA, com suas regras draconianas e militarizadas que só os
enriquecem e nos empobrecem; por outro lado, o bloco não reserva um papel muito
importante para o nosso país, a não ser o de velho fornecedor de
matérias-primas, só que agora à China, aceitando passivamente as propostas de
industrialização e infraestrutura vinda dos “investidores chineses”. Ou seja,
reforça o papel dominante do agronegócio brasileiro, que nada mais é do que a
velha elite agroexportadora que sempre mandou e desmandou no nosso país desde
os tempos coloniais.
É esta “elite”, com
seus business councils e trade partners dos BRICS — segundo Dugin
e Pepe Escobar —, que poderá levar o nosso país ao mundo multipolar. E devemos
não só ficar felizes e satisfeitos, como precisamos aplaudir!
De qualquer maneira,
a curto prazo, dado a inexistência de um movimento de massas independente no
seio do povo brasileiro, que sofre a terrível manipulação do bloco neofascista
através do bolsonarismo ou a limitadora atuação da “frente ampla” petista, que
paralisa e deixa os sindicatos como ferramentas autoritárias e estéreis,
cultivando um pavoroso espírito de rebanho, cabe apoiar criticamente a
manutenção e o aprofundamento da participação do Brasil nos BRICS. Não há nada
melhor oferecido pela conjuntura a curto ou médio prazo, sendo necessário,
portanto, estudar o bloco e tentar explicar ao povo a necessidade de apoiá-lo
da maneira mais crítica possível. Novas condições da luta de classes e de
conscientização se abrem a partir do fortalecimento dos BRICS e da participação
do Brasil nele, bem como maior margem de manobra para os países da periferia do
mercado mundial.
O aprofundamento da
suposta “multipolaridade” a partir dos BRICS tende a acelerar o sepultamento do
império norte-americano — e isso é reconhecido até mesmo por Donald Trump.
Familiarizar o povo com os BRICS e com as condições um pouco melhores que o
bloco pode proporcionar ao Brasil é importante. No entanto, não se pode ignorar
suas visíveis limitações e contradições que geram ilusões, no mais das vezes,
ignoradas ou mesmo exaltadas pelos seus defensores, desde Dugin e Pepe Escobar,
até o profeta do “socialismo chinês”, Elias Jabbour, e a TV 247.
As propostas
formuladas a partir das elites de cada país da sigla para os BRICS — e, no caso
brasileiro, os interesses mesquinhos e neocoloniais — não representam uma
mudança substancial para os povos que compõem o bloco, o que só poderá de fato
existir se houver uma mudança radical dos rumos da política econômica em
direção ao capitalismo de Estado e, deste, ao socialismo. Neste caminho — e
somente neste — as teorias de Dugin podem ter algum papel relevante, desde que
possamos renovar e priorizar o movimento socialista e comunista, sabendo
separar o joio elitista do trigo classista na Quarta Teoria Política, na Teoria
do Mundo Multipolar e nos BRICS.






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