sábado, 1 de novembro de 2025

Os méritos e os perigos da Quarta Teoria Política e do Mundo Multipolar, propostos por Alexander Dugin

 

A decadência dos EUA e do dólar frente à ascensão mundial da China, Rússia e dos BRICS, tende a tomar a centralidade do debate público e midiático do Brasil e do mundo neste início de século.

         Um dos principais estrategistas dos BRICS é o filósofo e geopolitólogo russo Alexander Dugin, que com a chamada Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar influencia tacitamente muitas das decisões tomadas pelo bloco e pelo governo russo.

         Yuval Noah Harari, um renomado historiador liberal israelense que pode ser considerado como uma espécie de “rival filosófico” de Dugin, escreveu que a Rússia de Putin ganhou quase sem combate o território estratégico da Criméia e partes da Ucrânia, infligindo medo a seus vizinhos e restabelecendo-se como uma potência mundial. Apesar disso, Yuval sustenta que, diferentemente da União Soviética, a Rússia atual carece de uma ideologia universal, pois o “putinismo” teria pouco a oferecer aos cubanos, vietnamitas ou aos intelectuais franceses (ver: 21 lições para o século 21, Cia das Letras, páginas 218, 221 e 222).

           Pois bem.

Passados poucos anos desta declaração de Yuval, agora a Rússia de Putin parece já possuir uma “ideologia universal” para oferecer ao mundo; e ela surgiu da caneta de Alexander Dugin! Por estas e outras razões, cabe uma análise crítica de suas teorias, procurando entender os pontos positivos e negativos de cada uma delas para a causa da luta da classe trabalhadora e, consequentemente, da emancipação humana.

 

A Quarta Teoria Política

         Para compreender a Teoria do Mundo Multipolar de Dugin é necessário compreender o que é a Quarta Teoria Política, a base da sua noção de multipolaridade.

         Segundo Dugin, os séculos XIX e XX formaram 3 teorias políticas que definem a compreensão de mundo e os debates políticos do século XXI: o liberalismo, o comunismo e o fascismo. 

O liberalismo, a primeira teoria política, teria surgido como resultado da evolução das posições iluministas — que dão os fundamentos da cultura ocidental e do seu tipo peculiar de racionalismo —, se tornando hegemônico no mundo, sobretudo após a restauração do capitalismo na ex-URSS e a conformação do mundo unipolar controlado pelos EUA. Dois grandes adversários políticos desafiaram esta hegemonia ao longo do século XX: o comunismo, a segunda teoria política; e o fascismo, a terceira teoria política; que por razões diferentes tentaram derrotá-lo, sem sucesso. O liberalismo se centraria no indivíduo; o comunismo na classe; e o fascismo na nação. 

Para Dugin, nenhuma das duas últimas teorias conseguiu se colocar à altura de vencer a hegemonia liberal, sendo, ao contrário, derrotadas por ela. Isso demonstraria a necessidade da “quarta teoria política”, que é proposta por Dugin no livro de mesmo nome.

 

A Teoria do Mundo Multipolar

Já no campo da teoria multipolar, Dugin defende a ideia de que    após o fim do que se convencionou chamar de “Guerra Fria”, com a restauração do capitalismo na ex-URSS e o triunfo dos EUA, se consolidou o seu poder sobre o mundo, destacando-se o domínio econômico, através do qual controla a maior parte dos países do mundo. A isto ele deu o nome de mundo unipolar, onde a hegemonia é exercida por uma única nação, os EUA.

Seus valores, a sua cultura, visão de mundo e conceitos políticos e econômicos são impostos para todos os países do globo, e quem questiona ou luta contra tudo isso é taxado como “eixo do mal”, terrorista e deve ser isolado, combatido, destruído e subjugado. A base da cultura estadunidense seria o que Dugin classifica como “cultura ocidental”, de origem europeia e, em particular, greco-romana.

         A imposição desta cultura sob distintas formas de coerção e pretextos visa se tornar “universal”, terminando por diminuir e abafar outras culturas e civilizações que são tão importantes quanto à ocidental. Assim, se faz necessário que as civilizações e países que resistem à dominação deste mundo unipolar conjuguem esforços para resistir e construir um “mundo multipolar”, onde as várias culturas e civilizações sejam respeitadas no que são, supostamente combatendo os hegemonismos de pretensão universalizadora.

         Segundo a teoria do mundo multipolar não existe apenas uma civilização, mas várias civilizações independentes cujo desenvolvimento não é comparável. Sendo assim, a globalização imposta pelos EUA, com suas ramificações econômicas e instituições políticas hegemonistas seriam um perigo para um mundo plural. A multipolaridade refletiria adequadamente a diversidade humana, enquanto que a unipolaridade seria uma fonte permanente de conflitos e caos para as periferias que viveriam subordinadas ao centro — os EUA e seus aliados, como a Europa ocidental e a OTAN.

         A lógica teórica de Dugin, que reverbera o pensamento de Carl Schmitt, expressa a disputa entre os supostos “impérios do mar”, as talassocracias, e os “impérios da terra”, telurocracias. Segundo ele, em todas as épocas históricas podemos encontrar exemplos marcantes de potências que materializariam esse dualismo político, indo desde Roma versus Cartago, até a Federação Russa versus os EUA-OTAN. O mar, como água, seria fluído, inconstante e disforme. A terra, por sua vez, sólida e constante.

         Para Dugin há mensagens de teor político, filosófico e social implícitas nesse dualismo: o mar traz consigo valores modernos, o liberalismo, o livre-mercado, o materialismo e a democracia; enquanto que a terra apontaria na direção do militarismo, do conservadorismo, da religião e do autocratismo. Dugin vê nesse confronto místico a disputa entre o Ocidente e a Eurásia em tudo o que essas regiões representam ideológica e materialmente.

         A Teoria do Mundo Multipolar também aponta divisões das regiões do mundo a partir das principais civilizações e culturas de cada localidade, que gerariam “grandes espaços”, como o norte-americano, centro-americano, sul-americano, europeu, árabe-islâmico, transaariano, russo-euroasiático, hindu, chinês, japonês e neo-pacífico. Cada um desses grandes espaços teria uma civilização e/ou país de referência que seria o seu ponto central. O Brasil, por exemplo, seria a civilização central do “grande espaço” ibero-sul-americano; a Rússia, do “grande espaço” eurasiático.

Dugin aponta que “a globalização moderna está construída com base na ‘primeira teoria política’, mas elevada a sua matriz paradigmática de civilização, expressão pura da ‘civilização do mar’. A globalização implica, portanto, a transformação do liberalismo em uma estrutura mais geral: de uma ideologia clássica ou teoria política, o liberalismo (mais precisamente, o neoliberalismo) se transforma em uma metaideologia planetária que, por um lado, se funde com a própria matriz sociológica do ‘mar’ (atlanticismo) e, por outro, passa do nível das ideias para o nível das coisas, entrando nas próprias coisas do mundo globalizado circundante. Os portadores desta metaideologia não são mais tanto intelectuais, figuras públicas e partidárias, ou meios de comunicação de massa, como as próprias tecnologias, formas de transação financeira, números eletrônicos individuais, redes comerciais, marcas da moda ou eletrodomésticos. Seria difícil pensar em um melhor promotor da ideologia neoliberal do que o McDonald’s, o sistema operacional Windows, o navegador google, os cartões de crédito, os laptops e os telefones celulares. Todos esses objetos e tecnologias irradiam energia ideológica, exigindo ‘conexão’, ‘seguir a maré’, ‘seguir as últimas tendências’, etc. A metaideologia do liberalismo não persuade, discute ou prova sua validade e consistência, ela captura nas redes globais de práticas cotidianas que se tornam necessárias e depois se instala como um programa de computador no hardware” (Teoria do Mundo Multipolar, A. Dugin, editora ARS Regia, página 402 e 403).

A roda da vida e da globalização liberal

Como contraposição a este avanço, Dugin afirma que “um mundo multipolar deve se assentar sobre uma base ideológica ou uma teoria política que se oponha de forma convincente ao neoliberalismo, e que também representa uma metaideologia apta a refletir o paradigma sociológico da terra. Como metaideologia, a teoria política da multipolaridade deve ser extremamente geral, flexível e capaz de incorporar uma variedade de sistemas de ideias às vezes contraditórios. Além disso, por sua própria natureza, a multipolaridade pressupõe a diversidade e a diferença como fenômenos positivos, o que significa que a nova metaideologia não pode ser dogmática ou rigidamente enquadrada. Sua principal característica será precisamente a oposição à uniformidade liberal e à padronização de uma humanidade globalizada a partir de uma ampla gama de possibilidades locais e regionais distintas: de caráter econômico, sociológico, político e cultural. Como a ‘segunda’ e a ‘terceira teoria política’, que existiram em diferentes contextos históricos, são agora inaceitáveis e ineficazes, é necessário levantar a questão do desenvolvimento de uma ‘quarta teoria política’” (idem, páginas 403 e 404).

Para Dugin, esta seria a direção que sociólogos, geopolitólogos e filósofos russos e alguns continentalistas europeus estariam tomando agora, neste princípio de século XXI. Ele escreve que “a ‘quarta teoria política’, em sua forma mais genérica se fundamenta sobre: o princípio central da liberdade de toda sociedade de seguir seu caminho histórico em qualquer direção e de criar qualquer forma sociopolítica e sociocultural; a afirmação da pluralidade de tempos, junto com o tempo linear e o ‘progresso’, que são fenômenos sociológicos locais aceitáveis apenas dentro da civilização ocidental; a reafirmação da equivalência absoluta entre ‘ocidental’ e ‘oriental’, entre ‘moderno’ e ‘arcaico’, entre os povos ‘tecnológica e economicamente avançados’ e os chamados ‘povos atrasados’; a rejeição de todas as formas de racismo (explícito ou implícito), incluindo racismos culturais, econômicos, tecnológicos, civilizacionais, etc.); o reconhecimento do direito das sociedades de desenvolver sistemas políticos religiosos e seculares ou de não desenvolver nenhum; a teologia e o dogma (e até mesmo a mitologia) podem ser uma base tão séria para a tomada de decisões políticas quanto a lógica secular e os interesses racionais; a vinculação obrigatória das formas sociopolíticas e culturais ao espaço e à história como um campo semântico fora do qual elas não têm sentido; a quarta teoria política destaca o Dasein [conceito do filósofo alemão M. Heidegger] como ‘ator de base’, diferente entre representantes diferentes sociedades; o reconhecimento da pluralidade e da diferença como os valores supremos da vida, que, especialmente em escala global, devem ser amparados por todas as instâncias políticas e estratégicas que reconheçam a quarta teoria política e a ordem mundial multipolar” (idem, páginas 405 e 406).

Estes são os pilares da filosofia e do pensamento duginista que dão base não apenas à Quarta Teoria Política e à Teoria do Mundo Multipolar, mas, também, aos BRICS. O imperialismo norte-americano, por sua vez, se contrapõe ao bloco e à Teoria do Mundo Multipolar com o seu tradicional big stick, os empréstimos draconianos do FMI, as calúnias midiáticas, os embargos econômicos e comerciais, as sabotagens institucionais, os golpes de Estado, bombardeios e intervenções militares nos países que não aceitam suas ordens.

Quanto mais decadente e agressivo os EUA tem se demonstrado, mais os BRICS e a ideia da multipolaridade têm se sobressaído aos olhos dos outros países do mundo como uma possível alternativa. A realidade parece dar razão a Dugin, Putin e outros “profetas” na questão da inevitabilidade de um mundo multipolar.

 

Análise dos méritos e dos perigos das teorias de Dugin

         Cabe, agora, analisar os pontos positivos e negativos da Quarta Teoria Política e da Teoria do Mundo Multipolar, vendo no sentido geral em que apontam o que se pode extrair de melhor delas e destacar seus problemas e perigos.

 

Os méritos

         > Combate sem tréguas à ideologia liberal 

Dugin aponta que o liberalismo (ou a sua versão atual, o neoliberalismo), quando vira a doutrina econômica e política hegemônica no mundo através da globalização imposta pela Europa e, sobretudo, pelos EUA, torna-se totalitária. Porém, faz isso de uma forma diferente das suas rivais, mais sutilmente, por intermédio de inúmeras indústrias culturais, sendo, segundo Dugin, mais conciliadora e tolerante em relação à repressão diurna do inconsciente noturno, o que dá uma aparência de maior “liberdade” e lhe confere grande poder de sedução. 

Quando não consegue impor sua vontade pelas vias políticas institucionais e midiáticas tradicionais, apela para a força militar. Neste permanente esforço de padronização, o liberalismo ceifa outras culturas e civilizações, obrigando-as a se enquadrarem nos seus estreitos limites e vendendo-os como os únicos possíveis.

         O liberalismo esconde, portanto, um profundo autoritarismo totalitário padronizador por trás de uma fachada democrática. As instituições internacionais, como a ONU, estariam imbuídas deste mesmo espírito. Não podendo conviver com oposições permanentes, sejam elas de culturas, valores ou governos diferentes que não se enquadrem em sua lógica política e econômica padronizadora, o “liberalismo” ianque cria permanentemente “eixos do mal”, “ameaças terroristas”, fixação contra “ditadores”, “sistemas opressores” e inúmeras formas narrativas políticas para demonizar quem foge ao padrão liberal, maquiando ou mesmo asfixiando as denúncias das mazelas que existem nas sociedades liberais ocidentais, como a absurda concentração de riqueza nas mãos de uns poucos bilionários; fome, desemprego, miséria, criminalização da pobreza e de quem luta contra este estado de coisas para a imensa “maioria global”. A ditadura do cotidiano nos locais de trabalho, estudo e moradia é escondida por uma grande mídia subserviente, que vende um mundo colorido em que ser cidadão é trabalhar e ganhar salários medíocres para sobreviver e consumir; ou mesmo pela chantagem do desemprego ou da repressão militar.

         Assim, o liberalismo estadunidense padroniza tudo como um rolo compressor, procurando associar permanentemente a sua imagem à “liberdade”, “progresso”, “alto desenvolvimento tecnológico”. Tudo o que se oponha a este mundo miserável e empobrecedor é taxado de “atrasado” e “opressor”, digno de ser menosprezado.

Foi com esta estratégia que os EUA consolidaram-se como potência hegemônica na atual ordem mundial unipolar em que vivemos. Por tudo isso, Dugin propõe um combate sem tréguas ao liberalismo, visto por ele como o cavalo de Tróia que esconde a dominação mundial estadunidense, usando como abre-alas o porrete da “liberdade” e da “democracia”.

O liberalismo é o pior vírus mental
que você pode imaginar

         > Crítica às revoluções coloridas made in CIA e às “mudanças de regime”

Para obrigar os países do mundo a dançar conforme a sua música, os EUA atacam e derrubam governos que criam empecilhos à sua dominação mundial através de inúmeros mecanismos de espionagem, sabotagem e guerra. Utiliza desde bombardeios e guerras, até o fomento de “revoluções coloridas”, financiando ONGs e associações “apolíticas” para mobilizar o povo com suas pautas reacionárias escondidas atrás de slogans supostamente “revolucionários” e “democráticos”. Foi assim em inúmeros episódios deste início do século XXI, como muitos países da primavera árabe, a Ucrânia em 2014, o Brasil em 2016 (Fora Dilma), etc.

         Dugin é um severo crítico das “revoluções coloridas” e das “mudanças de regime” que apenas consolidam a dominação geopolítica liberal dos EUA onde as guerras diretas não são possíveis ou desejáveis.

 

> Valorização de outras tradições filosóficas, culturais e religiosas para além do liberalismo ocidental

Em sua Teoria do Mundo Multipolar, Dugin propõe que não exista uma única referência filosófica, cultural ou religiosa para o mundo. Todas as culturas humanas devem entrar em diálogo. Até este momento, a história sempre nos trouxe exemplos de como uma cultura se impôs sobre as outras, chegando até mesmo a apagar algumas. É o que continua fazendo o liberalismo triunfante, que procura uniformizar tudo e garantir a hegemonia estadunidense sobre o planeta. 

Assim, para a construção de um mundo multipolar seria fundamental conhecer e valorizar outras tradições filosóficas, culturais e religiosas como tesouros da humanidade que não podem ser inferiorizados, mas tratados sempre em pé de igualdade.

Nesta busca pela valorização de outras tradições para além do liberalismo e da cultura ocidental, Dugin sugere — tal como outros filósofos e pensadores já sugeriram antes dele — ir além do racionalismo grego, que é uma das bases da visão de mundo do Ocidente e, portanto, do liberalismo. Há outras possibilidades importantes de serem consideradas e exploradas como o caos, do qual a racionalidade ocidental foge e renega.

Segundo ele, “o conceito mitológico de ‘caos’ como um estado em oposição à ‘ordem’ é um produto de uma cultura predominantemente grega (isto é, europeia). [...] o caos tornou-se um conceito puramente negativo, um sinônimo de irracionalidade, escuridão e falta de sentido” (idem, página 488).

Mas também é possível ver de outro ângulo “e então o caos se revelará para nós como uma instância que não se opõe à ordem, mas precede sua expressão lógica agravada. O caos não é um sem sentido, mas a matriz da qual emerge o sentido. Na cultura da Europa Ocidental, o ‘caos é inequivocamente ‘maligno’. Em outras culturas, não é. A multipolaridade se recusa a considerar a cultura europeia ocidental como universal. [...] A multipolaridade não raciocina em termos de ‘caos’ ou ‘ordem’, mas exige toda vez uma explicação do que é ‘caos’ e do que é ‘ordem’ e qual é o significado de ambos os termos em uma determinada cultura” (idem).

 

> Crítica ao marxismo como um “dogma religioso” e, muitas vezes, eurocentrado 

Ainda que reconheça a importância da crítica econômica marxista ao liberalismo, Dugin renega o que considera ser excessos “racionalistas”, transformados em dogmas e, sobretudo, sua visão antirreligiosa e predominantemente eurocêntrica — o que, segundo ele, abriria flancos para que fosse utilizado pelos próprios liberais na sua lógica de dominação mundial. Por exemplo: para chegar ao capitalismo, todos os países do mundo deveriam vivenciar e superar as etapas do desenvolvimento civilizacional europeu. A Europa, seria, portanto, o molde universal ao qual os “países mais atrasados” deveriam se enquadrar.

Podemos e devemos questionar muitos dos apontamentos duginianos em relação ao marxismo, no entanto, é importante primeiro refletir sobre eles, pois possuem relevância crítica.

Para Dugin, a teoria marxista se fundamenta no mesmo universalismo ocidental, portanto, de alguma forma, paga tributos à cultura e ao racionalismo europeu e grego. Além disso, aponta que ela reconhece uma única lógica histórica para todas as sociedades — e que esta lógica estaria baseada exclusivamente no desenvolvimento europeu. Assim, a teoria marxista justificaria direta ou indiretamente o capitalismo e a ordem burguesa — europeia — como uma fase necessária do desenvolvimento social, sem a qual é impossível fazer uma revolução ou construir o comunismo, o que obrigaria as forças progressistas do mundo a defender direta ou indiretamente a hegemonia liberal e ocidental. Por fim, o marxismo transformaria a defesa disso tudo em algo fatalista, bem ao estilo da teleologia religiosa.

Há também críticas ao marxismo no que diz respeito às suas influências não admitidas, como a positivista, tecnologicista, teleológica e em relação ao seu menosprezo às tradições religiosas humanas, buscando igualá-las e jogá-las fora para uniformizar os desenvolvimentos sociais, sempre tendo como modelo as civilizações burguesas europeias. 

 

Os perigos

         > A Quarta Teoria Política e a Teoria do Mundo Multipolar servem, sobretudo, aos interesses da grã-Rússia 

O sentido que o conjunto das duas teorias de Dugin aponta é a justificação dos interesses da grã-Rússia. Aqui residem os seus maiores perigos. Assim como o liberalismo e a cultura ocidental escondem os interesses geopolíticos e econômicos dos EUA e dos principais países da Europa Ocidental, as teorias de Dugin expressam os interesses da grã-Rússia, antes escondidos sob o “comunismo” na versão soviética de Stalin, hoje, tais disfarces se reciclaram na “quarta teoria política” e na “multipolaridade” para continuar cumprindo os mesmos objetivos.

         Podemos começar pela centralidade que a Rússia possui nelas: o país de Dugin é considerado nada mais nada menos do que o “coração da Terra”, o centro do “império terrestre” em contraposição ao “império do mar”. Segundo ele, “a multipolaridade nada mais é do que uma extensão da geopolítica telurocrática em um novo ambiente caracterizado pelo advento do globalismo (como atlantismo) [...] A multipolaridade simplesmente não pode ter nenhum outro significado” (Idem, página 351). Aqui há uma contradição flagrante com a ideia de multipolaridade, de respeito às distintintas formações culturais e civilizacionais. 

Todo o princípio de multipolaridade, pluralidade, não-universalidade e diferenciação estariam “enraizados” na “geopolítica terrestre”, mas ele não apresenta nenhum argumento do porquê isso não poderia existir também em um “império do mar”. Fica explícito em seu pensamento que a Rússia teria esse papel civilizatório multipolar exclusivo, quase como uma reprodução messiânica de muitas outras teorias e religiões humanas.

Ele escreveu: “toda a história russa é um debate dialético com o Ocidente e contra a cultura ocidental, a luta por sustentar a nossa própria verdade russa (usualmente apreendida apenas intuitivamente), nossa própria ideia messiânica, e nossa própria visão do ‘fim da história’, independentemente de como ela seja expressada — através da ortodoxia moscovita, do império secular petrino ou da revolução comunista mundial” (A Quarta Teoria Política, editora ARS Régia, página 52).

Mapa extraído das redes sociais de Dugin sobre
como a Rússia é cercada pela geopolítica estadunidense

A multipolaridade duginista sustenta que cada polo tem uma civilização central, que seria o epicentro regional. Como vimos, cada polo é chamado de “grande espaço”, unido pela filosofia, cultura, modo de pensar, por uma terminologia baseada em uma ou mais línguas, em alguns casos pela religião ou culto, mas que carece de unidade estratégica e governança centralizada. Dentro desses “grandes espaços”, uma civilização ou país poderá e deverá exercer livremente a sua hegemonia. Então, por exemplo, no “grande-espaço” russo-euroasiático, a grã-Rússia estaria legitimada para exercer o seu domínio sobre as regiões adjacentes de “autonomia relativa”. Caso algum país ou região queira se aproximar de outra cultura que não seja a referência do seu “grande espaço”, então isso autorizaria o uso da força militar. Fica evidente que as culturas e os “grandes espaços” seriam ilhas propensas a se fecharem em si mesmas, evitando a influência de outras culturas, filosofias, línguas, cultos, religiões, etc, ou até mesmo pontos em comum que poderiam tender a um universalismo humano real e autêntico, não imposto. Em última análise, evitaria um dos principais pontos positivos da humanidade que seria a assimilação e a integração cultural.

Estar aberto a outras culturas e deixá-las transitar livremente por entre os “grandes espaços” do mundo nada tem a ver com a imposição neoliberal feita pelo imperialismo estadunidense, que é muito bem criticada por Dugin e outros autores. Sem dúvida é necessário superar o mundo unipolar de visão dogmática única, geralmente imposta pela força militar norte-americana visando desmerecer, subjugar ou mesmo apagar outras culturas. No entanto, o mundo multipolar não pode ser tão frágil e engessado em si mesmo, como propõe Dugin, que parece querer cristalizar as culturas em um tradicionalismo obtuso e muitas vezes reacionário.

Há na Quarta Teoria Política e na Teoria do Mundo Multipolar contradições flagrantes: se busca a multipolaridade, embora não se questione o capitalismo. Um “grande espaço” pode viver sob a “democracia liberal”, outro sob uma autocracia, e ainda outro sob uma monarquia, embora nenhuma delas necessariamente questione os fundamentos do capitalismo.

         As contradições das teorias de Dugin tendem a anular a sua importância geopolítica e as boas contribuições que trazem em seu cerne para pensarmos caminhos alternativos para a emancipação dos povos do mundo do jugo imperialista. A evolução humana pressupõe a troca e assimilação cultural, o que inevitavelmente significa modificar e integrar as culturas existentes, sem necessariamente apagá-las ou negá-las. 

E isso, inevitavelmente, pressupõe o enfrentamento ao capitalismo, que é por natureza padronizador e hegemonista.

 

         > Dugin entende comunismo estritamente como stalinismo 

É bastante precipitada a declaração da falência e superação do comunismo como “segunda teoria política”. Nesta questão, ele reproduz quase que com as mesmas palavras e intenções a propaganda liberal ocidental contra o “comunismo”.

         Uma das possíveis explicações para isso é o fato de que Dugin relaciona “comunismo” com o que foram os regimes stalinistas, em especial, o soviético, o qual vivenciou pessoalmente. Para ele, tudo o que o comunismo engendra se resume ao que foram os regimes stalinistas. Ignora as experiências dos primeiros anos da revolução russa (1917-1925), a iugoslava e chinesa. Além disso, ignora o pensamento de Trotski, de quem é um adversário ferrenho, reproduzindo quase que totalmente a propaganda stalinista e liberal. O que lhe interessa no “comunismo” soviético é justamente o renascimento grão-russo escondido sob o culto do regime de Stálin, rechaçando e reprimindo junto com ele a riqueza teórica expressa na crítica trotskista.

         Olhando o “comunismo” de uma perspectiva tão estreita e pobre, só resta declarar a sua “falência” e a necessidade de uma nova teoria política — a Quarta —, que serve tão bem às finalidades geopolíticas da grã-Rússia, outrora travestida com a gramática do “comunismo stalinista”. Neste quesito, a sua teoria é tão velha quanto as propagandas liberais e stalinista, cheirando à naftalina vintage.

         No entanto, o comunismo — sob o viés de Marx, Engels, Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo e tantos outros — sempre foi uma teoria aberta à renovação científica e dos tempos. Todos os seus principais teóricos foram enfáticos sobre isso. Enriquecê-lo com a multipolaridade é essencial para pensarmos e repensarmos formas de renovação e aplicação prática antes de decretarmos sua falência, tal como fazem insistentemente todos os teóricos liberais do mundo — e, neste caso, também Dugin.

         Certamente existem muitos pontos dogmáticos no comunismo — seja de que vertente for, mas, em especial, na versão stalinista — que, sem dúvida, precisam ser superados, sobretudo pela experiência prática. Entretanto, para quem quer continuar pensando sobre o povo pobre, explorado, humilhado e ofendido; e, principalmente, sobre a emancipação humana, jamais poderá descartar ou declarar como superado o comunismo em si mesmo.

 

         > Há algo de bom no fascismo? 

Dugin também vê o fascismo como uma doutrina derrotada pelo liberalismo. Porém, não percebe — ou não quer perceber — que o fascismo se recicla e ainda vive nos corações e mentes de muitos povos ao redor do mundo, sendo incentivado e tolerado pelos próprios liberais disfarçadamente quando lhes convém. 

Dugin condena corretamente o neonazismo ucraniano em guerra contra a Rússia nos dias atuais, protagonizando inúmeros atos de terrorismo — que inclusive ceifaram a vida de sua filha, Daria —, mas olha com indisfarçável simpatia para Trump, que lidera o movimento neofascista internacional, ao qual glorifica como uma saudável “revolução conservadora”, ainda que não o reconheça como uma forma de fascismo.

Para tentar embelezar este argumento e torná-lo mais tragável, Dugin afirma que com suas medidas de governo, o trumpismo termina por acelerar contra a sua vontade a implementação de um mundo multipolar. Isto encerra uma parte da verdade, mas endossa os estragos ideológicos, políticos, econômicos e religiosos do neofascismo contra todos os povos do mundo, em particular, quando exalta a figura de Charlie Kirk como uma “grande liderança” que representa o “bem” contra o “mal” e, por isso, sofreria a perseguição diabólica das “forças liberais globalistas”. Não vê nenhum problema no culto às armas feito por Trump e Kirk, onde ambos foram suas vítimas, sendo o último de forma fatal.

MAGA, movimento neofascista liderado por Donald Trump,
e Charlie Kirk, brutalmente assassinado pelos atiradores
tão defendido e exaltados por eles

         Mesmo declarando que rejeita todas as formas de racismo, Dugin julga como positivo o “culto à tradição”, ao conservadorismo e ao passado que o fascismo propõe. Este foi o curioso “ponto positivo” encontrado por ele na terceira teoria política para ser integrada à quarta. 

No entanto, ainda que diga combater todas as formas de racismo, o tradicionalismo e o culto ao passado são fontes permanentes de criação de novos e piores racismos que segregam e matam seres humanos e esmagam outras culturas. É muito difícil e perigoso “cultuar uma tradição”, pois isso geralmente termina por julgá-la superior às demais, além de dividir permanentemente a humanidade. A Alemanha nazista combatia a “modernização liberal” porque via nela uma ameaça. Como identificava-se como uma “raça superiora”, plenamente identificada com os valores culturais “elevados” do espírito e contra “o materialismo da civilização ocidental”, percebido como destruidor da vida virtuosa da religião, da família e dos bons costumes.

Dugin, assim como a Alemanha nazista, vê na exaltação dos valores tradicionais a única forma de proteger as culturas puras, decentes, que merecem ser defendidas contra a degeneração e a decadência expressa pela política dos “globalistas neocons”.

         Este estranho e preocupante flerte com o fascismo é utilizado pela grande mídia ocidental para demonizar o pensamento de Dugin e jogá-lo integralmente fora. Na teoria de Dugin, a defesa da tradição e do passado pode ser entendida, em essência, como ecos dos antigos valores da grã-Rússia aristocrática e predestinada a “dominar o mundo”.

 

         > Misticismo, tradição e valores conservadores

         Dugin e seu movimento internacional baseiam-se na tradição conservadora europeia e russa, se insurgindo contra a modernidade, vista como a base teórica e política do liberalismo ocidental. Os valores conservadores podem assumir formas místicas que, ainda assim, segundo Dugin, devem continuar sendo defendidos contra as “inovações” modernas e pós-modernas introduzidas pelas sociedades iluministas e liberais do “Ocidente coletivo”. Segundo seu pensamento teórico, todo o mal se concentraria no liberalismo e nas suas propostas de modernidade; e todo o bem se concentraria no conservadorismo, atacado sem tréguas pelo primeiro.

         Dugin defende “o reconhecimento do direito das sociedades de desenvolver sistemas políticos religiosos e seculares ou de não desenvolver nenhum; a teologia e o dogma (e até mesmo a mitologia) podem ser uma base tão séria para tomada de decisões quanto a lógica secular e os interesses racionais” (Teoria do Mundo Multipolar, Editora ARS Regia, página 405).

         Certamente é muito importante respeitar e dialogar com tradições culturais e religiosas humanas de distintas civilizações ao redor do mundo, embora isso não deva ser confundido com se submeter cegamente a elas. Tampouco se pode ignorar o fato de que as forças conservadoras desencadeiam movimentos repressivos tão violentos e hemegemonistas quanto as forças imperialistas liberais. Ser conservador e defender valores religiosos e morais que, atualmente, podem soar como machistas e homofóbicos — isto é, anti-identitários — é um cavalo de batalha de Dugin, ao ponto de convocar e defender a suposta “revolução conservadora” exposta nos slogans e ações do governo Trump, Charlie Kirk e o partido republicano norte-americano.

         Sabemos que o identitarismo liberal-burguês vem fazendo inúmeros estragos ideológicos e sociais, sobretudo no campo da “esquerda” mundial, terminando por jogar fora muito da tradição europeia e ocidental, vista exclusivamente como machista, racista e homofóbica. A chamada ideologia woke tende a gerar tipos inumanos de militantes, fanatizados e escondendo suas sombras nos seus oponentes, como se tudo de bom estivesse em si mesmo e tudo de ruim nos inimigos. Os argumentos apresentados pelos militantes woke e identitários no seio da “esquerda” muitas vezes negam elementos da realidade material e da própria biologia, o que termina por dar uma aparência de força aos argumentos de Dugin e ao próprio movimento conservador. Trump e o neofascismo tiram partido desses flagrantes exageros identitários.

No entanto, se é certo que devemos saber dialogar com os valores tradicionais, não cabe aos conservadores reacionários do partido de Trump, bem como aos oligarcas do cristianismo ortodoxo russo, a “renovação” social necessária para o mundo, mas sim, aos ativistas comprometidos com a causa socialista e, consequentemente, da emancipação humana, procurando evitar todo o tipo de fanatismos. Ao contrário do que prega Dugin, os valores conservadores tendem a abrir caixas de Pandora que podem ser focos de intolerância que terminem por desrespeitar e reprimir as orientações sexuais individuais, bem como culminar em guerras religiosas de triste memória, como as ocorridas na Europa do século XVII.

         Facilmente se escondem posições extremistas, reacionárias e opressivas nas tradições religiosas conservadoras, sustentadas por cleros muitas vezes imbuídos de descomunal poder político e econômico. A obra de Carl G. Jung demonstra como o iluminismo europeu deixou um vácuo perigoso na psiquê coletiva em relação à supressão total do sentimento religioso e numinoso que não foi bem compreendida pelo ateísmo materialista e cientificista. Dugin e seus seguidores compreenderam isso; os ativistas de “esquerda”, não. As religiões da humanidade, bem como suas inúmeras tradições culturais e sentimentos místicos devem ser respeitados, ainda que a base de tomada de decisões deva se manter nos limites racionais, capazes de serem debatidos, compartilhados e equilibrados democraticamente pelas diferentes percepções sociais e humanas.

         O ponto de encontro entre as pessoas é a sociedade. E esta deve ser laica, embora tal laicidade não deva se tornar uma forma de opressão, humilhação e rechaço para inúmeras práticas religiosas e culturais humanas por parte do poder político. Uma verdadeira teoria multipolar e socialista deveria respeitar as inúmeras dimensões humanas — dentre elas a religiosa —, sem, no entanto, sobrepor umas às outras, nem legitimar justificativas religiosas opressivas e violentas contra minorias, por mais arraigadas que estejam em uma determinada tradição nacional. A própria laicidade iluminista e científica não pode se tornar um dogma de valor absoluto como foi até agora.

         Porém, a evolução social e humana pressupõe a assimilação e modificação cultural humana entre civilizações, por mais que Dugin e o seu movimento não aceitem e lutem contra interferências “iluministas” e “liberais” nas tradições. O movimento identitário deve ser combatido com base no debate político e racional — incluso a racionalidade da psicologia junguiana — justamente porque é um movimento que se encontra na esfera social; e não com misticismos, fantasmas de dogmas e de intolerância das tradições religiosas, que só podem intensificar o ódio e a confusão.

         Uma cultura humana deve saber fazer conviver pacificamente comunidades de indivíduos cuja a opção sexual seja diversa com aqueles cujas tradições religiosas julgam a homossexualidade um “pecado”, baseando-se, evidententemente, na lei civil e no avanço da maior reciprocidade possível. Mesmo que o iluminismo e o liberalismo sejam usados como um instrumento de dominação totalitária pelo imperialismo estadunidense, eles não podem ser totalmente descartados, como quer Dugin, pois sempre há algo para se aprender na sua evolução histórica.

 

         > A transição para o mundo multipolar será feita pelas elites? Que tipo de mundo multipolar poderá resultar disso?

Está dito implícita ou explicitamente por Dugin e outros defensores do mundo multipolar — como Pepe Escobar — que a derrota da unipolaridade ianque será feita pelas elites dos países dos BRICS. 

Portanto, não é casual que as cúpulas do bloco só falem em business councils e partners — ou seja, fala a língua do empresariado internacional e não chega nem perto da linguagem dos trabalhadores e do povo pobre, ainda que faça demagogia com os termos “sul global” e “maioria global”. Na Quarta Teoria Política, Dugin parte das análises de Vilfredo Pareto, Robert Michels e Gaetano Mosca para sustentar que as elites são inevitáveis e insubstituíveis. Assim, caberia aos povos do “sul global” aceitar a transição para um mundo multipolar dirigida por elas. Joga-se a toalha na tentativa de construção de um mundo alternativo onde o “sul global” possa visar um poder de trabalhadores para os trabalhadores — ou seja, para a verdadeira “maioria global”.

         Ignorando a classe trabalhadora, suas necessidades imediatas e históricas, as teorias de Dugin terminam, em última instância, dando apoio político concreto às elites que estão à frente dos países dos BRICS, como os oligopólios russos; os “bilionários comunistas” chineses; o agronegócio e o sistema financeiro no Brasil; o setor agroexportador e de tecnologia na Índia; o extrativismo mineral e financeiro da África do Sul, etc. Que “novo mundo multipolar” tais elites podem criar, senão velhas formas de exploração disfarçadas sob um novo discurso de igualdade cultural e civilizatória? O linguajar e as práticas destas elites não reproduzem o linguajar e as práticas liberais?

         Além disso, grande parte do tal “comércio ganha-ganha” proposto pela China é, em síntese, a manutenção da velha condição neocolonial, onde uma parte fornece produtos de alto valor agregado, aprofundando sua industrialização e desenvolvimento tecnológico, e a outra parte — no caso, Brasil, África do Sul e o “sul global” — vende matéria-prima, talvez por um valor um pouco melhor.

         As teorias de Dugin tornam-se cínicas se só reconhecem a necessidade de igualdade no campo cultural e de “civilizações”, mas não a traduzem para o campo econômico. Sem falar no fato de que inevitavelmente a economia internacional tende ao nivelamento de culturas distintas, terminando por impor uma sobre as outras.

         Se julga possível uma transformação social apenas ou prioritariamente através das elites, Dugin deve abdicar do discurso de “sul global” ou “maioria global”. Caso contrário, trata-se apenas de estelionato ou demagogia, uma vez que não se trata apenas dos “globalistas e neocons” liberais que são totalitários e hegemonistas no seu modo de agir, mas de um sistema econômico que opera na base de tudo.

         O hegemonismo e o totalitarismo liberais são expressões da tendência capitalista de se expandir ininterruptamente, moldando o mundo à sua imagem e semelhança. Como resultado dessas tendências, o capitalismo vai se expandindo e abocanhando toda a economia mundial, incorporando e eliminando gradativamente os modos não-capitalistas de produção e, consequentemente, destruindo culturas regionais e subjugando os países periféricos. 

Como elites que, na maioria das vezes, são parte fundamental deste projeto de submissão, humilhando, esmagando e espoliando o próprio povo, poderiam criar um mundo multipolar que seja melhor do que o existente?

 

         > Nem toda a herança do imperialismo norte-americano é maldita! Algumas podem e devem ser incorporadas criticamente

Dugin dá a entender que a globalização ianque só deixou marcas negativas e perversas. O desenvolvimento tecnológico, como a internet e diversos aparelhos eletrônicos, apesar dos pesares, possuem elementos inegavelmente positivos, sendo o resultado da tortuosa e contraditória evolução das forças produtivas. As modificações realizadas na construção do seu modelo de mercado mundial também não podem ser totalmente desprezadas, como as formas de pagamento digitais, por exemplo; bem como algumas regras que foram desenvolvidas durante seu período de hegemonia mundial, como a possibilidade de intermediações comerciais através da OMC, que devem ser levadas em consideração e aprimoradas — regras do jogo que os próprios EUA pregam, mas não cumprem quando perdem.

O que necessita ser rechaçado é, portanto, a hegemonização ianque, que tende a nivelar tudo, seja pela chantagem ou pela força militar, bem como os seus valores burgueses. É daí que advém a submissão ou destruição de culturas e países inteiros, algo que, sem dúvida, deve ser inadmissível para qualquer pessoa que lute pela emancipação humana.

No entanto, na medida em que o mundo se conhece e se encontra no mercado mundial, alguns nivelamentos devem ser inevitáveis, não apenas para as trocas, mas também para o enriquecimento cultural recíproco. Assim, a grande questão passa a ser evitar a hegemonização e a imposição de uma cultura sobre a outra, fato que geralmente se dá a partir da dominação econômica.

Nem todos os nivelamentos criados pelo capitalismo internacional são necessariamente ruins. Alguns são necessários. Desde padrões e medidas até algumas linguagens econômicas — evitando-se regras impostas que simplesmente patrolam e destroem culturas nacionais e regionais. Mesmo que religiões, culturas, identidades nacionais, processos e regimes políticos diferentes devam ser respeitados ao redor do mundo, o estágio de desenvolvimento econômico atingido pela humanidade através do capitalismo e do seu mercado mundial necessita de algum tipo de padronização global, sem o quê ele se torna impossível de ser praticado e pode pôr a perder benefícios da integração econômica internacional. 

Em algum nível as culturas e civilizações regionais serão inevitavelmente alteradas para que possibilitem tal integração. A própria modificação e assimilação cultural, como já se disse, levam a mudanças civilizacionais que não devem ser temidas, mas respeitadas nos seus tempos e especificidades.

Os próprios desafios que se abrem para o século XXI são de natureza global, o que exige, necessariamente, respostas globais. O que a multipolaridade duginiana sugere é que se a globalização traz problemas e hegemonismos, deve ser simplesmente abandonada em prol de costuras entre os particularismos civilizacionais dos “grandes espaços” regionais ao invés de aperfeiçoar e equilibrar a integração global, o que exige avançar para um sistema econômico de caráter socialista e multicultural.

 

> O pensamento de Dugin ajudou a criar excrescências como Olavo de Carvalho no Brasil

É sabido que o pensamento filosófico e místico de Dugin ajudou a criar e incentivar a atuação de “pensadores” como Olavo de Carvalho, de triste memória, que foi decisivo para a expansão política e a vitória do bolsonarismo no Brasil. Mesmo havendo inúmeros pontos de intersecção entre o pensamento de Dugin e de Olavo de Carvalho, há, também, muitas diferenças.

A tradução política do misticismo de Dugin a nível internacional leva ao enfrentamento com o hegemonismo imperialista neoliberal, enquanto que no Brasil, o pensamento de Olavo de Carvalho foi a sua mais perfeita expressão, traduzindo-se como fonte “teórica” inesgotável de submissão neocolonial ao hegemonismo liberal estadunidense. Com suas confusões e bizarrices, Olavo foi o cavalo de Tróia perfeito para a disseminação do ideário neofascista no Brasil. Não é à toa que ele é idolatrado pelos bolsonaristas. O pensamento de Dugin tem uma parcela de responsabilidade na expansão deste câncer político, ajudando a dar embasamento ao seu misticismo e ao seu combate teórico ao “comunismo”.

 

Reciclar o movimento comunista e incorporar as boas contribuições da Quarta Teoria Política e da multipolaridade

Talvez um dos erros dos “marxistas” ao longo do século XX tenha sido justamente tentar destruir (ou, na melhor das hipóteses, ignorar) toda a tradição cultural anterior, e não assimilá-la no sentido de incorporar seus elementos positivos, compreender e ressignificar os negativos. 

Assim, uma proposta de multiculturalismo e multipolaridade, mesmo que incorpore alguns pontos contraditórios inicialmente, tem grande valia para o enriquecimento do marxismo e resulta na necessária renovação do comunismo como teoria de transformação social, afinal de contas, a humanidade é diversa e não será possível construir o socialismo sem levar esta diversidade em consideração.

Parte da necessária superação do modo de produção capitalista está em saber aprofundar a convivência e trocas entre culturas diferentes (fato que não ocorre no capitalismo, que cria um mercado mundial onde o pequeno centro enriquece às custas do dreno dos países periféricos, subjugando suas economias e culturas). Contrariamente ao que pretende a multipolaridade duginista, que sugere manter culturas bem definidas e separadas nos “grandes espaços”, cultuando suas tradições e valores conservadores, é importante desenvolver formas de trocas culturais em que haja assimilações propositivas, sem hegemonismos ou imposições. Isso, inevitavelmente, fará com que muitas culturas mudem — levando os conservadores ao desespero. Não devemos temer a proximidade e a troca cultural visando a criação de uma cultura humana universal, da mesma forma que um grande país, como o Brasil, a China ou a Rússia, mantém inúmeras culturas regionais sem que deixem de possuir uma unidade nacional e cultural maior.

Dugin parece temer este contato entre as culturas mundiais visando uma integração global, com a desculpa da triste experiência do mundo unipolar hegemonizado pelos EUA, ou a triste memória do “comunismo” de orientação stalinista na Rússia.

Além de ser necessário um duro balanço das experiências stalinistas, reconhecendo os equívocos e as sombras presentes no marxismo para superar a crise do movimento comunista internacional do século XX, ao invés de jogar fora a “segunda teoria política” em nome de uma “quarta”, não só duvidosa, mas estranhamente conservadora em seu flerte com a “terceira”, isto é, com o fascismo, é fundamental aprender a se tornar flexível e capaz de incorporar uma variedade de sistemas de ideias que podem ser, às vezes, contraditórios, mas que a longo prazo podem dar a base necessária para a construção socialista. 

Como uma teoria que pretende lutar pela emancipação humana — relembrando o que Marx e Engels sempre defenderam —, a renovação do comunismo deveria pressupor a diversidade e a diferença como fenômenos positivos que expressam a natureza viva da cultura humana, o que significa evitar deixá-la se tornar um sucedâneo de religião dogmática, repleta de excomunhões e de enquadramentos rígidos.

Uma das principais características da sua renovação teórica e política deve ser, precisamente, a oposição à uniformidade (neo)liberal e à padronização de uma humanidade globalizada a partir da grande gama de possibilidades locais e regionais distintas, sejam de caráter econômico, sociológico, político, cultural, religioso ou filosófico. É necessário ainda incorporar os pontos positivos do liberalismo (noções de liberdade individual), sem serem conflituosas, até onde isso é possível, com a classe (segunda teoria política, o “comunismo”) e o nacionalismo “saudável” (não o nacionalismo fascista, mas o de amor ao povo e às suas tradições populares, folclóricas e religiosas não-institucionalizadas). 

Não é mal incorporar também as boas tradições filosóficas do século XX, como o Dasein de Heidegger, levando em consideração os avanços do pensamento humano — fato sempre muito apreciado por Marx, Engels, Lenin, Trostki e Rosa Luxemburgo. Da mesma forma, as diferentes escolas de psicologia devem ser estudadas e assimiladas pelo “novo comunismo”, tal como a psicologia de massas reichiana e o inconsciente coletivo junguiano, nunca esquecendo que à toda luz corresponde uma sombra que precisa encontrar um equilíbrio. 

É imprescindível ainda estudar, debater e incorporar teoricamente formas de compreensão e superação do espírito de rebanho que acompanha a civilização humana em distintas culturas e regiões há milênios. Para uma reciclagem completa não se pode esquecer a importância de desenvolver uma teoria capaz de entrar em sintonia com a natureza e seus ciclos, onde a economia não seja um sanguessuga grudado no pescoço de Gaia, mas algo harmonioso para com ela. Nesse sentido, as inúmeras culturas indígenas sul-americanas tem muito a ensinar, relembrando as imprescindíveis tradições xamânicas e religiosas destes e de outros povos que são a mais perfeita tradução da palavra “religião” (religare), nos reconectando com o cosmos e a totalidade, sem abrir mão das conquistas científicas racionais (mas sem sobreposição dogmática ou desdém da última sobre as primeiras).

Todas estas incorporações teóricas — incluindo os pontos positivos da Quarta Teoria Política e do Mundo Multipolar duginistas — resultarão em uma nova teoria, que deverá ser a superação do comunismo e do marxismo tal como o conhecemos, gerando uma “nova teoria”, fato já previsto por Engels em seus escritos. A espinha dorsal certamente deve continuar sendo a classe, dado que é a esfera onde ocorre o ponto de encontro social entre os indivíduos humanos, suas sociedades e modos de produção, chegando à noção comum de que é absolutamente intolerável e inaceitável a existência de bilionários, oligarcas ou autocratas que explorem e comandem o mundo visando explorar o trabalho e a vida de centenas de milhares de pessoas, bem como os recursos naturais da maioria dos países do mundo que somente à coletividade humana podem pertencer.

 

A multipolaridade e os BRICS

         O bloco geopolítico que desafia a unipolaridade estadunidense é o BRICS. A sua base teórica é dada pela multipolaridade duginista. Seguidas vezes Putin e Dugin têm afirmado que a hegemonia norte-americana cede espaço cada vez maior — e contra a sua vontade — à multipolaridade proposta pelos BRICS, tal como um fenômeno da natureza que não pode ser impedido pelas ações de um presidente dos EUA.

         De fato, temos visto a decadência acelerada do imperialismo estadunidense, a despeito dos esforços desesperados da elite ianque para impedir, sendo o governo de Donald Trump o seu expoente mais destacado e o movimento internacional que ele financia e sustenta, o neofascismo, a ponta de lança que tenta “fazer a América grande de novo”.

         Para tentar relativizar ou reverter a imagem de um entusiasta do “conservadorismo”, do “tradicionalismo” e da “revolução conservadora” trumpista, Dugin afirma que Trump contribui com a formação de um mundo multipolar mesmo contra sua vontade. Ou seja, quando ele ataca a China, impõe um tarifaço à Índia e ao Brasil, ele contribui, indiretamente, para acelerar a criação de um mundo multipolar. Outro erro crasso de Dugin em relação a Trump é quando ele afirma se tratar de um líder antiliberal que apenas defende os seus “interesses nacionais”. O que Trump e o neofascismo fazem, na realidade, é dar novas armas ao totalitarismo da ordem unipolar ianque. O imperialismo e o seu deep state precisam de vários tipos de dominação geopolítica, alguns, aparentemente contraditórios, como o “liberalismo” democrata e o intervencionismo autocrático republicano, mas certamente complementares. 

Dugin, Kirk e Trump. Dugin defende e exalta a figura de Kirk
como se fosse uma luta religiosa do "bem" contra o "mal"

         Aos brasileiros pobres não cabe cultivar ilusões em relação aos BRICS. 

Se por um lado é certo que não há futuro para o nosso país fora desse bloco, pois estaríamos condenados a ser eterna periferia do mercado mundial hegemonizado pelos EUA, com suas regras draconianas e militarizadas que só os enriquecem e nos empobrecem; por outro lado, o bloco não reserva um papel muito importante para o nosso país, a não ser o de velho fornecedor de matérias-primas, só que agora à China, aceitando passivamente as propostas de industrialização e infraestrutura vinda dos “investidores chineses”. Ou seja, reforça o papel dominante do agronegócio brasileiro, que nada mais é do que a velha elite agroexportadora que sempre mandou e desmandou no nosso país desde os tempos coloniais.

         É esta “elite”, com seus business councils e trade partners dos BRICS — segundo Dugin e Pepe Escobar —, que poderá levar o nosso país ao mundo multipolar. E devemos não só ficar felizes e satisfeitos, como precisamos aplaudir!

         De qualquer maneira, a curto prazo, dado a inexistência de um movimento de massas independente no seio do povo brasileiro, que sofre a terrível manipulação do bloco neofascista através do bolsonarismo ou a limitadora atuação da “frente ampla” petista, que paralisa e deixa os sindicatos como ferramentas autoritárias e estéreis, cultivando um pavoroso espírito de rebanho, cabe apoiar criticamente a manutenção e o aprofundamento da participação do Brasil nos BRICS. Não há nada melhor oferecido pela conjuntura a curto ou médio prazo, sendo necessário, portanto, estudar o bloco e tentar explicar ao povo a necessidade de apoiá-lo da maneira mais crítica possível. Novas condições da luta de classes e de conscientização se abrem a partir do fortalecimento dos BRICS e da participação do Brasil nele, bem como maior margem de manobra para os países da periferia do mercado mundial.

         O aprofundamento da suposta “multipolaridade” a partir dos BRICS tende a acelerar o sepultamento do império norte-americano — e isso é reconhecido até mesmo por Donald Trump. Familiarizar o povo com os BRICS e com as condições um pouco melhores que o bloco pode proporcionar ao Brasil é importante. No entanto, não se pode ignorar suas visíveis limitações e contradições que geram ilusões, no mais das vezes, ignoradas ou mesmo exaltadas pelos seus defensores, desde Dugin e Pepe Escobar, até o profeta do “socialismo chinês”, Elias Jabbour, e a TV 247.

         As propostas formuladas a partir das elites de cada país da sigla para os BRICS — e, no caso brasileiro, os interesses mesquinhos e neocoloniais — não representam uma mudança substancial para os povos que compõem o bloco, o que só poderá de fato existir se houver uma mudança radical dos rumos da política econômica em direção ao capitalismo de Estado e, deste, ao socialismo. Neste caminho — e somente neste — as teorias de Dugin podem ter algum papel relevante, desde que possamos renovar e priorizar o movimento socialista e comunista, sabendo separar o joio elitista do trigo classista na Quarta Teoria Política, na Teoria do Mundo Multipolar e nos BRICS.


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