sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

O depósito de crianças

 

Muitas vezes me pegava pensando no que fazíamos de errado na escola pública.
Qual pedagogia utilizar? Como melhorar nossa relação com os alunos? Então, era massacrado em uma aula para os pequenos, onde acabávamos muitas vezes como inimigos, sem nos entender.
Onde estava o erro? Onde era preciso melhorar?
Certamente não se tratava apenas de um erro, mas de vários. No entanto, começou a ficar consciente em mim a precariedade das nossas salas de aula perante o clima e o fardo que é carregar tudo isso "em nome dos governos", sendo atormentado por eles permanentemente com descontos e demissão.
Dar aula para o Ensino Fundamental num calor como esse, em salas que não estão preparadas, é um crime lesa pátria. Só o fato de entrar numa sala que parece um forno de 45°C é deseducativo! Não estamos educando os alunos, mas formatando-os para aceitar qualquer coisa, assim como nós, professores, aceitamos.
Para a prefeitura de Porto Alegre (e em muitos casos, no Estado também) lhes interessa apenas o serviço de creche. Ou seja, se seguramos os alunos durante o turno da matrícula, custe o que custar! Não interessam as condições, não interessa o calor insuportável, não interessa o que se passa e o que fica!
Interessa vender a ideia para os pais que os filhos estão em sala de aula e "seguros". É por isso que em grande parte o "debate eleitoral" se resume a propor "escola em tempo integral", para consolidar e piorar a condição da escola municipal (e de algumas estaduais) como creche. É por usar as escolas como creches, sem se preocupar com qualidade, que os governos de norte a sul encurtam as férias docentes e usam como dogma a inviolabilidade dos 200 dias letivos.
Eu não aceito essa condição. E luto contra ela. Os alunos, sentindo-se numa prisão sem sentido, não entendem, e passam, então, a odiar os professores, consciente ou inconscientemente, e a "negociar". E se "negocia" com eles para formatá-los, já que a sua arma é a indisciplina e a bagunça. Ah, como se negocia!
Muito me indisponho com alunos, colegas e direções, que direta ou indiretamente, aceitam essa condição. Luto, sobretudo, contra a orientação política e econômica dos governos que criam escolas cuja finalidade principal é fingir que ensina algo, quando, na realidade, só funciona como uma creche bem pobre.
Esta é a engrenagem do sistema que cabe à escola pública. É precisamente esta engrenagem que precisamos mudar se queremos, de fato, mudar a escola pública pra melhor.

Carta ao prefeito de Porto Alegre e à sua Secretaria de Educação

Cartaz do sindicato dos professores do RJ com uma campanha
que deveria ser adotado pelos sindicatos do magistério público do RS

 

Porto Alegre, 25 de fevereiro de 2025
36°C

Caro prefeito de Porto Alegre e meus colegas na Secretaria de Educação, eu me chamo Lucas e sou professor na rede municipal de ensino desde 2023.
Trabalho na EMEF Heitor Villa-Lobos, que fica na Lomba do Pinheiro. A nossa escola tem uma infraestrutura bem defasada e quando faz muito calor, como que tem feito em fevereiro, março e dezembro, fica insuportável trabalhar e, até certo ponto, impossível ensinar e aprender, pois o nosso cérebro diminui a capacidade de raciocínio. Em situações de calor extremo o cérebro tira energia do que considera supérfluo, como concentração e raciocínio, para tentar aliviar o desconforto. O nível de estresse das turmas aumenta muito e fica impossível estudar. Não há como atender a nenhuma exigência de aprendizagem e o nível do IDEB inevitavelmente cai.
Nossas escolas são extremamente desconfortáveis. Elas não estão preparadas para o nível de calor que faz atualmente. Os ventiladores não dão conta. Por que existem condições nos shoppings, nos bancos, nos tribunais, e nas prefeituras, mas não na escola pública?
A maioria dos alunos tem origem humilde. São queridos e gente muito boa. Eles e nós estamos sendo torturados e massacrados em dias como estes. É desumano! É uma afronta aos direitos humanos!
Se não tivermos condições de ter ar condicionado, então as aulas precisam ser suspensas até que as condições climáticas se tornem mais amenas.
Todos os meus alunos pedem para o prefeito e o secretário de educação virem ter a experiência de passar um turno da tarde num dia quente como o que estamos acostumados a suportar.
Sejam mais humanos!
Sejam mais empáticos!
Obrigado pela atenção e lhes aguardamos com as portas abertas para que entendam na pele qual é a nossa real situação!

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

A ditadura invisível

A “democracia” capitalista esconde ditaduras nos locais de trabalho


Como está a democracia no teu local de trabalho?

Te escutam? 

Levam em consideração as tuas demandas e sentimentos ou só te dão mais trabalho e metas, com um olhar intimidador para te deixar quieto e submisso?

Que tipo de autoritarismo não reconhecido se exerce por meio do poder econômico de comando das chefias nos locais de trabalho, estudo e moradia na nossa “sociedade democrática”?

 

         Muito se grita contra as ditaduras na grande mídia e nas redes sociais: Venezuela, Cuba, Coreia do Norte, China, Nicarágua, Irã, etc.

         Os grandes meios de comunicação comercial e seus porta-vozes nos partidos de direita não perdem uma chance de contrapor estas “terríveis” ditaduras “comunistas” às supostas democracias ocidentais, das quais eles seriam, supostamente, os mais santos representantes.

         Então, pela lógica apresentada nos noticiários, podemos quase sempre concluir que o regime político e econômico de países como o Brasil, os EUA e a Argentina seria quase perfeito. 

Para a democracia burguesa não importa se o povo tem ou não tem ingerência democrática sobre a conduta dos eleitos, os ministros, a composição dos governos, os juízes, administradores das empresas privadas, as empresas estatais e os demais funcionários públicos, bem como sobre a tirania do mercado. Não se importa também se o povo não consegue interferir em nada que mude realmente os rumos das políticas econômicas ou pedagógicas aplicadas em todo o território nacional.

 

 

E o que dizer, então, do nosso local de trabalho?

A “democracia” aplicada na maioria dos países hoje não passa de uma monarquia disfarçada: temos o direito de eleger “um rei” para um mandato específico. Nada mais!

         Depois o mercado, “anonimamente”, dita o que está certo ou errado e todos temos que nos curvar e dizer amém. É como um filho mimado: ninguém pode contrariá-lo para não zangá-lo ainda mais. Ou seria ele um deus em fúria que castiga quem o questiona?

         Seja como for, não há democracia se não podemos interferir no mercado visando melhorar as condições de vida e de trabalho da maioria das pessoas e somos levados a temer qualquer espirro que ele dê. Escondem o autoritarismo e a tirania da política atrás das “reações do mercado” e praticam um permanente terrorismo midiático em cima disso.

 

A grande pergunta que nunca deve ser esquecida é: como cada regime político trata os seus trabalhadores nos locais de trabalho, estudo e moradia?

Este é o termômetro que devemos usar para medir, de fato, a existência e a qualidade da democracia. As pessoas podem falar o que pensam nos seus locais de trabalho sem sofrer nenhum tipo de represália? Podem opinar sobre metas, escalas, horários ou qualquer outra questão que diga respeito ao seu destino profissional? Ou, se ao contrário, simplesmente são obrigados, às vezes abertamente e outras tantas vezes sutilmente, a se calar e a aceitar o que a chefia manda, baixando a cabeça com medo do desemprego?

Muitos levam esses problemas não debatidos entalados na garganta pra casa, descarregam na família, nos amigos ou nos vizinhos. Por vezes pode se transformar em alcoolismo, depressão ou outros transtornos. 

Se não há liberdade de crítica no local de trabalho, não há democracia! Nesse caso, poder escolher um presidente através do voto torna-se uma mera formalidade que não muda quase nada na realidade cotidiana de milhões de trabalhadores, assim como se assustar com as supostas “ditaduras comunistas” dos outros países serve como uma luva para esconder a ditadura no cotidiano do nosso país.

 

Saber se existe democracia real no dia a dia, nos locais de trabalho, estudo e moradia, não significa saber se podemos opinar no sentido de “não trabalhar”, isto é, de não cumprirmos o nosso dever, mas, sim, se somos ouvidos, se nossas demandas são levadas em consideração; se há discussão livre e disposição real das chefias em ouvir e tentar fazer o melhor juntos, até a preocupação verdadeira com a divisão dos lucros e resultados.

Ou se, ao contrário, tudo vira motivo para censura, repulsão, intriga, remoção, chantagens, fofoca ou demissão. Sabemos que no Brasil contemporâneo a maioria esmagadora das empresas privadas e, até mesmo das públicas, seguem este último caso. 

Como são nos outros países? Melhores?

O capitalismo se sustenta na ditadura disfarçada dos locais de trabalho. Na maioria das empresas ele precisa do assédio moral permanente, aberto ou disfarçado, e do medo como forma de funcionamento. Em geral, por serem pobres, os trabalhadores só podem se submeter a essa situação Enquanto isso, os jornais da grande mídia nos dizem que vivemos numa democracia.

Nesse sentido, não se pode apontar quase nenhuma diferença substancial no dia a dia entre “as ditaduras” da Venezuela, Cuba, China, Coréia do Norte e Irã e os “democráticos” Brasil, EUA e Argentina.

Se falamos em “liberdade individual”, então ela precisa ser plena. Não basta eu poder organizar protestos em nível de sociedade civil e ter direito formal de voto, mas sim se sou ouvido e acolhido sinceramente no meu local de trabalho, estudo e moradia. Fato que decididamente na maioria dos lugares não acontece.

Além disso, a democracia não pode ser apenas no restrito campo do voto para o poder executivo e legislativo. Ela precisa ser também uma democracia no campo econômico, com permanente socialização da riqueza e o controle sobre a tirania do mercado, para criar condições materiais mais equânimes. 

Só assim a gente pode começar a falar em democracia.

 

Criticar a democracia capitalista Ocidental não significa desconsiderar o autoritarismo das sociedades orientais.

Significa reconhecer que enquanto não houver democracia nos locais de trabalho, estudo e moradia, não há democracia real, mas autoritarismo e usurpação do direito de dispor de suas liberdades individuais em muitos níveis. O autoritarismo dos locais de trabalho desencadeia uma violência que não é obrigatoriamente física, mas, na maioria das vezes, moral e simbólica; e o fato de estar nestes campos não significa que não causem profundos transtornos psíquicos e emocionais para fazer o povo aceitar a sua miséria.

Este é o regime da escravidão assalariada! Ele nunca é levado em conta pelos meios de comunicação e o setor empresarial afirma ser impossível funcionar de outra forma.

Todas as distorções e mentiras ideológicas estão encaixadas e concatenadas para fazer o sistema funcionar.

 

A grande questão é que querem te fazer crer que vivemos no paraíso democrático da Terra se comparado às “ditaduras de outros países” que você, no geral, nem sabe realmente o que se passa; e, portanto, não precisaríamos reclamar das instituições políticas e da situação do nosso próprio país.

Ou seja, o capitalismo te domina pela ilusão de enriquecimento, pelo medo e ignorância, enquanto mantém a mais completa ditadura sobre os locais de trabalho para os ricos continuarem lucrando e os pobres “precisando trabalhar”. Assim, exaltamos nossa própria pobreza e acreditamos viver na “democracia” onde existe um autoritarismo cotidiano, que somos levados a crer que é “democracia”.

Por isso repito a pergunta do início: como está a democracia no local em que você trabalha?


Post-Scriptum: o que grandes pensadores já escreveram sobre o mesmo tema?

 

         “A versão oficial é que todos temos direitos e vivemos numa democracia. Outros desafortunados que não são livres como nós têm que viver em Estados policiais. Tais vítimas obedecem a ordens, por mais arbitrárias que sejam, ou sofrem as consequências. As autoridades as mantêm sob vigilância regular. Burocratas do Estado controlam até os menores detalhes do dia-a-dia. Os funcionários que as oprimem respondem apenas a seus superiores públicos ou particulares. De qualquer forma, a discordância e a desobediência são punidas. Informantes relatam tudo regularmente às autoridades. Tudo isso deve ser muito ruim.

E é mesmo, embora não seja nada mais do que uma descrição do local de trabalho contemporâneo. Os liberais, conservadores e libertários que lamentam pelo totalitarismo são fingidos e hipócritas. Há mais liberdade em qualquer ditadura moderadamente ‘desestalinizada’ do que num local de trabalho americano normal. Num escritório ou numa fábrica, encontra-se numa prisão ou num mosteiro. De fato, Foucault e outros demonstraram: prisões e fábricas foram criadas mais ou menos ao mesmo tempo, e seus operadores conscientemente emprestaram as técnicas de controle uns dos outros. Um trabalhador é um escravo em meio período. O chefe diz quando ele deve chegar, quando deve ir embora e o que deve fazer durante a jornada. Ele diz quanto trabalho alguém deve fazer e com que rapidez. Tem liberdade para levar seu controle a extremos humilhantes, regulamentando, se assim o desejar, o que alguém deve vestir ou com que frequência deve ir ao banheiro. Com poucas exceções, pode demitir alguém por qualquer motivo, ou sem motivo. Põe dedo-duros e supervisores para espionar as pessoas e acumula um dossiê para cada empregado. Retrucar é chamado de ‘insubordinação’, como se o trabalhador fosse uma criança malcriada, e não só leva à demissão da pessoa, como também impede que ela obtenha seguro-desemprego. (...)

O sistema de dominação humilhante que descrevi rege mais da metade das horas de vigília da maioria das mulheres e da grande maioria dos homens há décadas, durante a maior parte da sua vida. Para certos fins, não é muito enganador chamar nosso sistema de democracia, capitalismo ou — melhor ainda — industrialismo, mas seus verdadeiros nomes são fascismo de fábrica e oligarquia de escritório. Quem disser que essas pessoas são ‘livres’ está mentindo ou é burro”.

Bob Black

 

         “O trabalhador só se sente consigo mesmo fora do trabalho, enquanto que no trabalho se sente fora de si. Ele está em casa quando não trabalha, quando trabalha não está em casa. Seu trabalho, por isso, não é voluntário, mas constrangido, é trabalho forçado. Por isso, não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer necessidades exteriores a ele mesmo. A estranheza do trabalho revela sua forma pura no fato de que, desde que não exista nenhuma coerção física ou outra qualquer, foge-se dele como se fosse uma peste”.

Karl Marx

 

         “No fundo agora se sente… que um tal trabalho é a melhor polícia, pois detém qualquer um e sabe impedir fortemente o desenvolvimento da razão, da voluptuosidade e do desejo de independência”.

Friedrich Nietzsche



“Quase todo mundo passa a maior parte da sua vida vivendo em um sistema totalitário. Isso se chama ter um emprego. Quando você tem um emprego, está totalmente sob controle dos donos das empresas. Eles determinam o que você veste, quando pode ir ao banheiro, o que você faz. A simples ideia de contrato de trabalho é basicamente vender a si mesmo para a servidão. São como governos privados mais totalitários do que os governos propriamente ditos. (...) Eles não podem te matar, mas podem controlar tudo o que você faz. (...) Sua escolha é entre passar fome ou se vender para uma tirania. Muito liberal, não é?"

Noam Chomski