quarta-feira, 4 de setembro de 2024

A suja “arte da guerra” de Pablo Marçal


Quem luta com monstros deve cuidar
para que, ao fazê-lo,
não se transforme em um
(Nietzsche)

As eleições municipais de São Paulo prenunciam o possível futuro eleitoral do país.

Nas últimas eleições municipais Guilherme Boulos (Psol) foi ao segundo turno quase derrotando o tradicional partido da burguesia paulistana, o PSDB; e desde o início deste ano lidera as pesquisas eleitorais para a prefeitura. Sempre pensando à frente, o empresariado paulista não quer pagar pra ver.

O capitalismo tende a transformar tudo em um grande cassino. A democracia burguesa é uma espécie de hipódromo, onde os grandes capitalistas podem apostar nos cavalos que têm maior chance de vencer e de defender a sua pauta ou trocar de aposta antes, durante ou depois, de acordo com o seu “pragmatismo empresarial”.

Não que a candidatura de Boulos e do Psol represente uma grande ameaça ao capital, mas sempre coloca o problema da disputa pelo orçamento com o empresariado, que quer o tesouro público como fiador do lucro privado; além de trazer pautas que são desagradáveis para as elites e a classe média mais reacionária.

A direita e o empresariado paulista não podem perder o controle direto sobre a maior cidade do país, que serve de vitrine não só para o Brasil, mas para a América Latina inteira. Os tucanos serviram bem durante muitos anos, mas agora não servem mais. O grande capital tende a apoiar todo candidato direitista que dispute com a suposta “esquerda” e a migrar com peso para as candidaturas com maior chance de vencer Boulos.

O empresário e “coach” Pablo Marçal, sabendo como funciona as engrenagens do sistema, apostou tudo e se lançou na disputa para se tornar o capitalizador dos investimentos do empresariado paulista, preocupado com a possibilidade de eleição de Boulos, visando se tornar o candidato preferencial do grande capital (basta ver, por exemplo, a ampla cobertura que a CNN faz do candidato). Para isso, comprou a sua vaga no PRTB, um partido que supostamente tinha raízes trabalhistas, mas que não passa de mais uma legenda de aluguel.


Marçal aprofunda as táticas bolsonaristas

Num momento em que o bolsonarismo vive uma pequena crise, Marçal avança nas táticas e na estratégia bolsonarista, que foi inspirada por Donald Trump, Steve Banon e Olavo de Carvalho. Porém, de um modo nada ortodoxo. Pelo visto, pretende superar os mestres no quesito de sujeira, distorções e mentiras.

A começar que Marçal aposta as suas fichas na provocação direta, na massificação da manipulação midiática e da psicologia de massas, via redes sociais, e usa sua fortuna como instrumento de luta política, tal como preconiza a principal liderança neofascista, Donald Trump.

Contudo, Marçal não para por aí. Ele introduz sua própria marca a partir da utilização de provocações baixas e histriônicas. Mesmo Bolsonaro e Trump mantém uma certa “postura de cavalheiros” durante os debates — ainda que vomitem ofensas e absurdos nas suas falas.

Marçal não. Ele provoca, performatiza, gesticula, agride com palavras baixas e gestos os oponentes no meio do debate ou em entrevistas. Não espera seus robôs atuarem. Faz antes do que eles e visa atingir muita gente que pensa que fazer isso “é ser contra o sistema” e a política tradicional.


A mentalidade popular que tende a idolatrar milionários e coachs

A sua tarefa de deslocar as intenções de voto para si a partir de distorções escandalosas, provocações baratas e declarações histriônicas, infelizmente encontra eco entre grande parte da população pobre, que tende a idolatrar milionários e coachs — ainda mais em São Paulo, a autointitulada “terra do empreendedorismo”. 

Este tem sido um tema impenetrável para a “esquerda”: a psicologia de massas! Mas não é nenhum pouco desprezível por parte da direita e dos grandes empresários, que a observam atentamente.

Grande parte da população, mesmo a mais pobre e miserável, detém-se respeitosamente diante da tradição, do “acúmulo da fortuna” e da propriedade privada. A doutrinação burguesa do empreendedorismo e do “suor do trabalho” lhe calou fundo e serve como armadilha contra si mesma.

Por que isso acontece? Ninguém conseguiu explicar bem, embora todas as correntes de esquerda prefiram ignorar o tema e continuar acreditando nos votos ou numa redenção miraculosa a partir de uma explosão popular que fica cada vez mais distante, já que quem tem conseguido capitalizar as mobilizações de rua é a própria direita.

Os milionários, como o próprio Marçal, conseguem se tornar ícones políticos, enquanto que a “esquerda” atola-se na mesmice ou no brutal isolamento. Parte da sua tática é usar a carteira de trabalho como um estandarte, quando na realidade ele não tem nem ideia do que é viver do próprio trabalho e não está nem aí para a realidade cotidiana da classe trabalhadora — sobretudo aquela precarizada, que não tem carteira assinada.

Como ele consegue criar essa confusão e ainda por cima “convencer” a maioria da população usando um truque barato como esse senão a partir dessa mentira que a população mais pobre gosta de acreditar de que os milionários enriqueceram a partir do próprio trabalho?


Quem “sequestra emocionalmente” a cidade e os debates?

Por não entender as estratégias neofascistas baseadas em manipulações da psicologia de massas, a esquerda perde terreno, palmo a palmo, e enreda-se na sua falta de resposta e compreensão. Marçal acusa Boulos do crime que comete — “sequestrar emocionalmente” a cidade — e fica tudo por isso mesmo!

É exatamente a campanha de Marçal, de Bolsonaro e do neofascismo em geral que “sequestra emocionalmente” o debate, prendendo-o em enredos sádicos, conspiratórios, fake news e nas picuinhas pessoais mais escabrosas. Não há possibilidade de debate político, programático, racional; mas apenas pequenos factóides, em sua maioria, irreais, baseados em ataques pessoais. Colocando este tipo de bloqueio emocional nas discussões, se cria ambientes para “lacrar” e evitar qualquer discussão real.

Os motivos egotistas que levam Marçal a se candidatar exerce um certo fascínio sobre o eleitorado de classe média e baixa, e mesmo sobre parte da classe trabalhadora — isto é, pessoas cuja vida dura e cujas frustrações as tornam presas fáceis de objetivos ilusórios simples, carregados de emoção. Quanto menos claro e concreto o programa de governo escondido atrás de frases histriônicas e “lacradoras”, mais aumenta o fascínio em torno da violência simbólica e real.

Ninguém com poder procura deter isso: grande imprensa, judiciário ou classe média; a própria esquerda (seja a reformista ou mesmo a “revolucionária”) fica paralisada ou falando disparates, sem se preocupar com as causas ou com a tentativa de relembrar as manipulações do passado. Todos órgãos oficiais e a grande imprensa “democrática” julgam ser um debate absolutamente normal e legítimo.


Uma democracia à base de enganação e do esquecimento

Marçal ataca a “ditadura” da Venezuela e condena a decisão do STF de tirar do ar o twitter (X) como uma censura, tomando estas bandeiras da grande mídia, que passa a vê-lo com uma simpatia não declarada — ainda que tenha que fingir certo horror quanto a alguns de seus métodos (o mesmo que fazia com Bolsonaro).

A “democracia” burguesa brasileira baseia-se na enganação e no esquecimento. Permite todo o tipo de método anti-debate, inclusive ataques pessoais infundados que destroem e distorcem campanhas inteiras. Nunca cobra retratação, nem punição, para que o método siga livre e em funcionamento.

Marçal é o herdeiro de uma longa tradição “democrática” brasileira. Em 1989, a elite nacional autorizou uma campanha de difamação contra Lula para evitar a sua possível eleição. Desde a manipulação do debate eleitoral pela Rede Globo, até o lançamento de panfletos supostamente anônimos que afirmavam que Lula iria colocar mendigos para morar dentro dos apartamentos de classe média. Nenhuma autocrítica foi feita pela grande mídia ou pela justiça. Tampouco o petismo relembra tais temas em suas peças publicitárias e campanhas atuais. Acaba sendo parte do “esquecimento”.

Em eleições recentes o mesmo método foi utilizado contra o PT, como a mentirosa afirmação de que se Lula vencesse em 2022 ele fecharia as igrejas evangélicas. Nada foi feito para inibir esse tipo de distorção novamente, tampouco um grande esclarecimento público oficial pela grande mídia, justiça e o próprio PT. Quando algo é feito para coibir a direita — que é campeã da prática da censura no Brasil e de reclamar dela em outros países — se levanta e acusa este regramento de “censura”, no que é apoiada por parte da população e pelo silêncio da grande mídia!

A destruição da reputação de alguém ou de uma campanha com base em mentiras, inviabiliza o debate, o esclarecimento público e a própria democracia. É a legalização tácita da má fé. 

O mesmo está sendo feito agora por Marçal na disputa pela prefeitura de São Paulo, não encontrando resistência à altura por parte de Boulos e do Psol — no que repetem o PT mais uma vez. A direita e seus marqueteiros têm plena consciência da impunidade quanto a utilização deste jogo sujo e baseiam seus dividendos eleitorais em cima desta tática.

Se não há punição, retratação ou denúncia por parte da grande mídia, da justiça e dos próprios partidos de “esquerda”, tanto das distorções e calúnias do passado quanto das feitas no presente, com a finalidade de desencorajar e desmentir esse tipo de jogo sujo, então, não haverá enriquecimento do debate público nacional, nem debate democrático algum. Não haverá, portanto, a menor possibilidade de enriquecer e elevar o nível da opinião pública nacional e viveremos de picuinhas e calúnias, chafurdando no mesmo círculo vicioso para que o povo e o país não avancem 1 centímetro.

É precisamente isto que a direita entende por “liberdade de expressão” e “democracia”. É este “sequestro emocional” do debate público que precisamos entender e desmascarar o mais amplamente possível. Quando lhe limitam ou lhe tiram este “direito de jogar sujo” ela grita contra a “censura”.

Nesta hipocrisia, lamentavelmente, ela tem contado com o apoio — ou pelo menos o silêncio conivente — de grande parte do povo.


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