Uma vertente marxista
da historiografia brasileira muito competente, liderada por Jacob Gorender, nos
brindou com grandes trabalhos acerca da formação econômica do Brasil. A
despeito dessas brilhantes contribuições, existem apontamentos curiosos, como,
por exemplo, interpretar a abolição da escravidão em 13 de maio de 1888 como
uma “revolução”.
Num pequeno livro,
intitulado “A burguesia brasileira”, Gorender sustenta a ideia de que a
abolição da escravidão teria sido o único processo revolucionário vitorioso da
história do Brasil.
Segundo suas
palavras: “O que me interessa ressaltar consiste em que considero a extinção
das relações de produção escravistas, no Brasil, um evento revolucionário. Ou
dito de maneira mais taxativa: a Abolição foi a única revolução social jamais
ocorrida na História de nosso país” (A burguesia brasileira - Jacob Gorender,
Editora Brasiliense, coleção primeiros passos, 1981 - página 21).
E mais adiante: “com
todas as suas limitações, a Abolição não deixou de ser uma revolução. Pela via
da luta política, deu vigoroso impulso à eliminação de formas de exploração já
esgotadas” (idem - página 22).
A natureza das mudanças sociais ocorridas no Brasil até então
O desenvolvimento do capitalismo no Brasil seguiu a “via prussiana”, o
que significa dizer que elas se deram pelo alto e sem participação popular.
O conceito de “via prussiana” foi cunhado por Lenin e desenvolvido
posteriormente pelo comunista italiano, Antonio Gramsci. Adaptado à realidade
brasileira isso significa dizer que as transformações ocorridas na história
brasileira não resultaram de autênticas revoluções (sejam elas burguesas ou
proletárias); de movimentos independentes provenientes de baixo para cima,
envolvendo o conjunto da população e abrindo o caminho para o capitalismo (no
caso do fim da escravidão); mas se processaram através de acordos de bastidores
entre as elites, de uma conciliação entre os representantes de grupos
opositores dominantes economicamente. Conciliação esta que se expressa sob a
figura política das “reformas pelo alto”.
Esta conciliação pelo alto jamais escondeu a intenção de manter
marginalizadas e reprimidas as classes e camadas sociais “de baixo”. O conceito
de “revolução passiva”, adotado por Gramsci para explicar o desenvolvimento do
capitalismo na Itália, expressa o mesmo conteúdo que pretende sintetizar a
ausência de participação popular nestas decisões políticas.
Ao longo da história do Brasil podemos constatar uma “revolução passiva”
— isto é, uma “modernização conservadora — não apenas na questão da abolição da
escravidão, mas, também, na proclamação da “independência”, em 1822, e da
República, em 1889. Gorender reconhece que a abolição apenas eliminou “formas
de exploração já esgotadas”. A elite cafeicultora e escravocrata somente
acelerou o pacto pelo fim da escravidão por perceber o esgotamento de um modelo
econômico. Isso foi feito, em parte, a contragosto, mas sem perder o controle
do processo em nenhum momento.
Na medida em que a revolução industrial consolida-se no mundo, o
capitalismo começa a firmar-se no Brasil no final do Segundo Reinado
(1840-1889) e o sistema escravista acelera a sua deterioração — não por ação
revolucionária do povo, mas pelas próprias mudanças econômicas. Assim, a elite
“moderniza-se” para conservar seu poder. Quando essa transformação para o
modelo capitalista industrial se completa no mundo, o escravismo brasileiro
fica definitivamente condenado e, por isso, se fez necessário mudar, mesmo a
contragosto da elite nacional.
Cabe destacar ainda que reconhecer essas limitações nas mudanças sociais
do Brasil não significa que não possam ser diferentes no futuro, nem que não
tenha havido pressão popular em muitos níveis. Porém, tais pressões não se
transformaram em um processo revolucionário vitorioso por várias razões.
A luta dos escravizados e o 13 de maio de 1888
Reconhecer que as
mudanças sociais no Brasil se deram a partir de modernizações conservadoras,
controladas e pactuadas pela elite nacional, em nada significa se contrapor ao
fato trazido por Gorender e outros historiadores, de que houve muita luta dos
trabalhadores escravizados — seja através dos quilombos espalhados pelo
território nacional, seja através dos ativistas do abolicionismo ao longo do
século XIX.
Contudo, para nos
aproximarmos mais da realidade histórica, há que se reconhecer, forçosamente,
que estas lutas não conseguiram se transformar em uma revolução social capaz de
liquidar o regime de exclusão e exploração imposto pela elite nacional, que
teve a empáfia e a capacidade de vender a sua versão do liberalismo econômico
como algo compatível com a escravidão.
É verdade que, a partir
de 1880, quando a campanha abolicionista se fortaleceu, as ações de resistência
dos escravos foram acelerando o processo político e econômico de abolição:
fugas em massa, invasão de propriedades para libertar outros cativos, recusa em
trabalhar, desobediência civil, até o assassinato de alguns senhores foram
meios de luta durante a agonia final do regime escravocrata brasileiro.
Contudo, mesmo momentaneamente acuada, a elite nacional antecipou-se e pactuou
a abolição, de forma gradual, controlada e exigindo indenização, para evitar os
riscos de um levante social de maiores proporções. Sua estratégia deu certo.
Basta comparar a
abolição da escravidão brasileira com a haitiana. No Haiti, entre 1791-1804,
houve um processo revolucionário que levou à abolição da escravatura através da
derrubada do governo colonial. É visível a diferença entre a abolição da
escravidão no Haiti e no Brasil — e esta diferença deve ser o nosso norte para
diferenciar uma revolução social de uma “revolução passiva” (ou modernização
conservadora).
Ainda que se possa
questionar a revolução haitiana, afirmando se tratar de uma insurreição popular
e não de uma revolução; ou que ela terminou derrotada em razão do embargo
econômico e asfixiamento por parte da Espanha e dos EUA, houve sim uma
articulação política dos escravizados e um desfecho que significou uma ruptura
que nem de perto vimos no Brasil.
Aqui, ao contrário,
os escravos não desempenharam o papel de uma classe revolucionária e não se
pode, a despeito das várias e isoladas insurreições escravas, falar em uma
“revolução de escravizados”. A nova ordem não foi imposta pelos escravos a
partir de uma posição dominante. Houveram fugas e levantes locais, mas sem o
“perigo” de insurreição geral. Em resumo: os oprimidos e os explorados não
promoveram um reordenamento geral da sociedade de acordo com seus interesses e
suas necessidades.
O historiador gaúcho
Décio Freitas, um destacado estudioso da escravidão brasileira, aponta que “é
inadequado classificar como revolução uma mudança lenta, pacífica e legal, sem
comoções sociais ou confrontos dramáticos entre as classes. De maneira
especial, esta mudança não corresponde ao conceito de revolução social
prevalecente na historiografia marxista” (Décio Freitas in O escravismo
brasileiro. Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 1982 - página 140).
Uma abolição com indenização?
Quem dirigiu o
processo social de lutas, fugas e levantes isolados foi, incontestavelmente, o
movimento abolicionista, composto por ex-escravos, poetas, jornalistas e
políticos republicanos.
Este movimento surgiu quando a escravidão já estava moribunda, em franco
processo de desagregação, dadas as inúmeras proibições e pressões
internacionais, sobretudo do imperialismo inglês. Os abolicionistas nunca
formularam uma crítica sistemática, radical e profunda da sociedade brasileira,
apenas pontualmente da questão da escravidão e da monarquia.
É fora de questão que
cumpriram um papel progressivo ao pressionar e a concretizar a lei áurea,
contudo, tratou-se, como assinalou Décio Freitas, de uma lei de proprietários
de escravos para proprietários de escravos, que se proporcionavam a si próprios
um generoso presente às custas de toda a população. A abolição foi precedida
por acaloradas discussões acerca de um “fundo de emancipação” que teria
finalidades de indenização aos proprietários de escravos para “evitar que o
país e a economia quebrassem” — argumento sempre evocado pela elite
brasileira em distintas épocas históricas.
Este fundo recebeu
maciço apoio dos cafeicultores de São Paulo, já que receberiam estímulos para
repor a mão de obra dos cafezais, a começar pelo incentivo à imigração europeia
e da indenização indireta através dos chamados “auxílios à lavoura”. Isso
resultou não apenas na abolição da escravidão pelo alto, como também serviu de
base para a dominação política e econômica paulista ao longo da República
Velha.
Não houve indenização, mas os cafeicultores chegaram muito próximo disso, de forma
indireta, conseguindo diversos incentivos. A começar pela própria proclamação
da República: os cafeicultores perderam a indenização direta, mas ganharam o
poder político e o Estado nacional.
Reconhecer os limites do abolicionismo é capitular ao identitarismo
burguês?
Existe uma corrente política internacional hegemonizada pelo partido democrata estadunidense que professa o identitarismo burguês, onde apenas alguns negros e negras, bem como mulheres e LGBTs seriam incorporados à cúpula do sistema (ou à sua classe média), como uma suposta forma de reparação, em detrimento da massa da população, que continuaria oprimida no dia a dia e sofrendo os piores tipos de preconceitos. É este movimento internacional que acaba por dar as diretrizes que influenciam os principais movimentos de massas de “esquerda” no Brasil atualmente.
Por acaso o
identitarismo teria influenciado a visão historiográfica que define a abolição
da escravidão no Brasil como “passiva” e não revolucionária? Julgo que não.
Certamente existem
tendências aburguesadoras no movimento negro, que o deixam refém da
institucionalidade capitalista, acabando por ver nisso um fim em si mesmo.
Contudo, é equivocado não demonstrar os limites do 13 de maio de 1888, que são
por demais evidentes — e considerar quem o faz de “identitário”.
Mesmo que a elite cafeicultora imperial tenha se oposto à abolição e aderido à ela a contragosto, se voltando posteriormente contra o próprio Dom Pedro II e o Império, isso não significou, em nenhum momento, a perda do poder político estatal e social. Tampouco significou o fim da miséria, da fome e da dependência política e econômica da massa de ex-escravos.
A resposta a este impasse foi dada involuntariamente pelo próprio Gorender, que reconheceu que a escravidão como forma de exploração “já estava esgotada”. Isto é, o Brasil, como o último dos grandes países a abolir a escravidão, encontrava permanentes entraves para a sua continuação. Contrariada e pressionada desde o início do século XIX, tanto interna quanto externamente, a elite escravocrata se viu obrigada a dar esse passo decisivo, que pode ser encarada como uma “concessão providencial”, mas, jamais, como uma revolução.