terça-feira, 10 de maio de 2022

São Paulo: locomotiva puxando vagões vazios ou economia autônoma que se desenvolve às custas do atraso do resto do país?

 

O Brasil contemporâneo se formou sobre uma lenda que diz que o Estado de São Paulo seria uma locomotiva puxando “26 vagões vazios”, representados pelos demais estados da federação[i]. Tal dito popular seria verdadeiro ou se trataria de uma forma de ideologia que esconderia uma poderosa contradição entre o desenvolvimento paulista versus o subdesenvolvimento do resto do Brasil?

         Sabe-se que no capitalismo alguns países e regiões se desenvolvem às custas de outras. Por exemplo: a revolução industrial inglesa foi realizada às custas da exploração de mão-de-obra escrava nas Américas, que terminaram por levar o algodão do sul dos EUA e todo o ouro das Minas Gerais brasileiras, sendo Portugal um reles intermediário. Os países ditos “desenvolvidos” – como os EUA e os da Europa Ocidental – assentam seu “desenvolvimento” sobre o subdesenvolvimento dos países periféricos e semicoloniais. Não por acaso precisam revalidar permanentemente a sua dominação sobre estes últimos.

         Guardadas as devidas proporções, a mesma lógica pode ser aplicada ao desenvolvimento de São Paulo em comparação ao restante do Brasil. O seu desenvolvimento está assentado sobre o subdesenvolvimento dos demais Estados periféricos do país – quanto mais afastados do sudeste, mais pobres, miseráveis e dependentes. A elite paulista e brasileira criaram a ideologia de que o povo do sudeste é trabalhador e comedido – uma suposta qualidade herdada dos bandeirantes, que na verdade eram saqueadores e escravizadores de povos –, enquanto que o restante – sobretudo o povo do nordeste – seria preguiçoso e esbanjador.

         Se observarmos com cuidado a história recente do país, poderemos constatar que a glorificação que a elite paulistana – a mais poderosa do Brasil – faz da [contra] revolução constitucionalista de 1932 é parte desta estratégia ideológica. Suas datas foram transformadas em feriados, monumentos públicos; seus soldados glorificados como heróis estaduais. No entanto, a história da cidade “que não é conduzida, mas conduz”, precisa ser passada a limpo.

 

A gênese do poderio econômico de São Paulo em detrimento do Brasil: a República Velha (1889-1930)

         A burguesia brasileira nasceu no campo, não na cidade. A produção agrícola colonial – baseada no trabalho escravo africano – foi destinada desde o começo aos mercados externos. O Brasil teve dois eixos coloniais: Bahia-Pernambuco, durante o período açucareiro; e São Paulo-Rio de Janeiro durante o período cafeeiro (com um breve intervalo entre um e outro quando da exploração do ouro em Minas Gerais, que foi a região responsável por este deslocamento do eixo econômico do nordeste para o sudeste)[ii].

         A cultura do café começou relativamente tarde, nas regiões montanhosas vizinhas do Rio de Janeiro, durante a vigência do império (1822-1889); se estendendo por todo o período conhecido como República Velha (1899-1930), Primeira República ou República do Café com Leite. Este regime político foi imposto ao Brasil pela burguesia cafeeira de São Paulo, que, com isso, consolidou sua hegemonia sobre toda federação[iii].

         Certas particularidades nacionais concorreram para facilitar e consolidar esta imposição: a extensão territorial do país, a fraca densidade populacional do final do século XIX e início do XX; a agricultura industrializada de São Paulo, em comparação com a agricultura rudimentar do restante do país; até 1930 a ausência de renda fundiária, que ocasionava a confusão entre o proprietário da terra e o proprietário da exploração agrícola; o desenvolvimento desigual do capitalismo; a divisão política frouxa, que legaliza a supremacia dos estados mais fortes economicamente sobre os mais fracos, e que se estende até os dias de hoje; o impulso industrial progressivo e a pressão imperialista.

         A proclamação da República em 1889 e a Constituição de 1891 consagraram a hegemonia definitiva de São Paulo sobre os demais estados da federação. A aceitação por parte da elite nacional do eixo econômico centrado nas lavouras cafeeiras paulistas asfixiou direta ou indiretamente o desenvolvimento econômico do restante do país, selando o pacto com o imperialismo inglês. Assim iniciou a ascensão política e econômica do Estado mais rico da federação, que procurava respaldar-se na disseminação de ideologias como a da “locomotiva” puxando vagões vazios!

         Durante toda a República Velha a produção cafeeira paulista foi a “menina” dos olhos do governo federal, sacrificando o resto da economia do país para protegê-la. Os fazendeiros de café recebiam dinheiro adiantado do Estado, garantindo, assim, sua safra com preços elevados. O Convênio de Taubaté, de 1906, foi o exemplo mais triste e ilustrativo: a partir da busca de empréstimos internacionais, o Estado brasileiro subsidiou o preço elevado do café de São Paulo, protegido previamente de qualquer prejuízo e, portanto, tendo seus lucros assegurados de antemão. A burguesia paulista pôde, então, combinar elementos de acumulação primitiva com os processos de acumulação capitalista que só “a força concentrada da sociedade”, isto é, o poder do Estado [nacional] – agora “republicano”! –, permite sistematizar: a dívida pública, o sistema tributário e o protecionismo. A política econômica da burguesia paulista imposta ao governo federal ia no sentido da manutenção do monopólio da produção cafeeira no mercado mundial[iv] – o que comprometeu todo o restante da economia nacional.

         Da riqueza estrondosa dos barões do café foram sendo erguidos os mausoléus da futura Avenida Paulista. Os arranha-céus de hoje, que abrigam o corrupto e fraudulento sistema financeiro nacional, inspirado no internacional, são os herdeiros diretos deste período de grande “prosperidade meritocrática” e “empreendedora” dos cafeicultores e empresários paulistas – e o Estado brasileiro o seu principal fiador!

 

A Revolução de 1930 e a “Revolução” Constitucionalista de 1932: revolução e contrarrevolução na formação do Brasil contemporâneo

         A riqueza descomunal do Estado de São Paulo em comparação ao restante do Brasil é um dos epicentros da disputa desencadeada com a chamada Revolução de 1930. Portanto, é bastante natural que a burguesia de São Paulo se colocasse como principal defensora do antigo regime “republicano” e da Constituição de 1891, que lhe garantia folgada margem de manobra econômica dentro daquele tipo de “federalismo”. O mote da “Revolução” Constitucionalista de 1932 (na verdade, uma contrarrevolução) foi a luta desencadeada pela elite paulistana contra a centralização federativa em torno do projeto nacional do Estado varguista, que ameaçava diretamente a hegemonia econômica e política de São Paulo sobre a federação.

         O projeto varguista estava baseado em outros eixos econômicos e “desenvolvimentistas” que entravam em conflito direto com os interesses da elite paulistana. Com o lento desenvolvimento capitalista dos demais estados do Brasil, tornava-se natural que suas elites regionais, através dos “Partidos Republicanos” estaduais, almejassem participar cada vez mais – e em pé de igualdade – da gestão do aparelho do governo federal[v].

         Se a indústria de São Paulo carecia de mercados, a indústria nascente e o caráter policultor do Rio Grande do Sul exigiam uma proteção mais atenciosa do governo federal, que não ocorria, uma vez que estava todo absorto pelos interesses da cafeicultura. A produção variada de Minas Gerais e suas perspectivas de desenvolvimento da indústria pesada reclamavam participação maior no poder central, além dos motivos políticos do seu levante, que se expressam no rompimento da aliança tradicional com São Paulo. O nordeste exige uma intervenção política e econômica menos precária da União, a fim de resolver mais sistematicamente os problemas fundamentais de sua economia, para tornar possível um desenvolvimento mais regular[vi].

         A necessidade de recorrer sempre ao crédito para cobrir a dívida anterior – processo clássico da acumulação imperialista –, geralmente como necessidades da produção cafeeira, teve como consequências: 1) resolver os problemas da burguesia cafeicultora paulista, tal como ficou evidenciado no Convênio de Taubaté, sem nenhum retorno para o restante do país que não o declínio, a dependência ou mesmo a ruína das demais economias estaduais; e 2) o aumento progressivo dos impostos e, a seguir, a expropriação das classes rurais e proletárias.

         A origem do nosso país deve-se mais às correntes imigratórias estrangeiras do que às velhas populações rurais brasileiras; e seus interesses, por sua própria natureza, são regionais. Como a economia nacional sempre esteve voltada para atender os interesses do mercado mundial – geralmente fornecendo matérias-primas –, havia uma contradição evidente entre os interesses das burguesias locais, que estavam interessadas na criação de um mercado interno dinâmico; e os interesses da burguesia de São Paulo e Rio de Janeiro, interessadas em manter a economia brasileira voltada à exportação de produtos primários, no caso o café, para o mercado mundial, em estreita dependência e ligação com o imperialismo inglês e estadunidense.

         Ao longo da primeira metade do século XX, o Brasil havia passado por algumas transformações: a sociedade urbana cresceu, a indústria secundária ampliou seu espaço na economia nacional, levando a um aumento do poder das burguesias das cidades sobre as tradicionais oligarquias agrárias; a classe média e o operariado cresceram e aumentaram seu peso social, exigindo uma representação política correspondente. A formação de uma classe média de pequenos proprietários, funcionários públicos e profissionais liberais nas cidades encontrou eco na intensificação das manifestações políticas do chamado Tenentismo, movimento interno ao exército que incentivou diversas mobilizações no Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul (de onde surgiram quadros políticos como Luís Carlos Prestes, Siqueira Campos e Juarez Távora).

         O movimento dos tenentes no seio do exército brasileiro da época – um tanto diferente do que é hoje –, por ser de baixa patente, encontrava-se mais sujeito às pressões populares, e exigia uma mudança de regime político que liquidasse com as aberrações do voto a cabresto e da indicação de presidentes pela tradicional política do café com leite. A elite gaúcha, mineira e paraibana, por sua vez, canalizaram este descontentamento e galvanizaram um movimento armado, que encontrava certo respaldo popular, confuso e contraditório, dado a ausência de uma política revolucionária coerente que a desmascarasse e a disputasse.

         A Aliança Liberal, liderada por Getúlio Vargas e Osvaldo Aranha, toma o poder em outubro de 1930, realizando diversas mudanças no aparelho administrativo estatal. Nomearam interventores nos Estados alinhados à nova política “revolucionária”, de caráter centralizador. Muitos deles eram figuras ligadas ao movimento Tenentista – inimigos declarados da estrutura da República Velha e, portanto, inimigos indiretos dos interesses da burguesia de São Paulo, que necessitava do antigo regime “federalista” baseado na Constituição de 1891.

         Aos gritos de “golpe” e de “ditadura”, a elite paulistana desencadeia um movimento de contrarrevolução – chamada eufemisticamente de “Revolução Constitucionalista” –, cuja organização central coube à FIESP e à Associação Comercial paulista, objetivando incitar as demais elites locais contra o “novo” governo liderado por Getúlio Vargas, revogando todas as medidas possíveis que a guerra civil de 1930 tinha instituído a partir do novo governo. O que a burguesia paulista queria, em síntese, era “forçar a volta do Brasil ao império da lei”, isto é: voltar à Constituição de 1891, uma vez que “ficara sem Carta Magna com a Revolução de 1930; e transformara-se em ditadura opressiva, sem lei, mas especialmente voltada contra o nosso Estado e a nossa riqueza”[vii]. Para a historiadora Vavy Pacheco Borges, com a Revolução de 1930, “São Paulo estava perdendo a hegemonia que desfrutava na República Velha. Getúlio estava tirando a gestão do negócio do café da mão dos paulistas”[viii].

         A grande preocupação, como se vê, não é com a “ditadura” ou a suposta “ausência de democracia e de lei”, mas com a “nova lei” e o “novo estado de coisas” que tinha como finalidade supostamente “se voltar contra a riqueza do Estado de São Paulo”. E isso por uma razão óbvia: a essência da contrarrevolução constitucionalista de 1932 se deveu ao fato de que a “ditadura varguista” tentou se utilizar da “riqueza paulista” – acumulada a partir dos vários “convênios de Taubaté”, diga-se de passagem – para desenvolver a indústria nacional e a economia do país. Ainda que o projeto varguista de governo tenha sido extremamente limitado aos marcos democrático-burgueses, enfrentou uma resistência encarniçada da elite paulista que, de certo modo, dura até hoje. É este tipo de projeto nacional que ela entende como “roubo de sua riqueza”. 


Qual lema vale: Pro Brasilia fiant eximiá ou Nom Ducor Duco?

         A contrarrevolução constitucionalista de 1932 levantava um lema em latim, intitulado: Pro Brasilia fiant eximiá (pelo Brasil façam-se grandes coisas). Contudo, ele está em frontal contradição com o lema presente no brasão da cidade, criado, não casualmente, em 1917, no auge da República Velha: Nom Ducor Duco (Não sou conduzido, conduzo). O lema das “grandes coisas pelo Brasil” foi um disfarce ao “Nom Ducor Duco”, que resume toda a prática de São Paulo até os dias atuais. Conduzir o Brasil segundo os seus interesses, segundo a concepção da sua elite, é vendido como “fazer grandes coisas por ele”.

         Mesmo que a contrarrevolução de 1932 tenha sido derrotada militarmente, ela atingiu um equilíbrio de forças que lhe interessava, dado que o colégio eleitoral paulista na assembleia constituinte de 1934 era o maior da federação, levando Getúlio Vargas a procurar – como sempre – uma conciliação possível, tolerando e acomodando grande parte das reivindicações da elite paulistana, e dando destaque e preferência para o sudeste no recebimento de investimentos para o desenvolvimento industrial. Assim, Vargas “foi conduzido” a um novo equilíbrio, embora seu poder tenha sido contestado direta ou indiretamente pela elite paulistana até sua renúncia total em 1945 e a imposição do isolamento político após sua eleição em 1950.

Assim, o resultado do embate entre as forças paulistas e o governo varguista, a despeito das várias mortes, foi considerado uma “vitória moral”[ix], conseguindo reequilibrar sua hegemonia, mantendo-se não apenas como o centro industrial hegemônico do país, mas como o principal destino dos investimentos internacionais e nacionais. Os ideólogos da contrarrevolução de 1932 sustentam que “não teria havido redemocratização no Brasil sem o Movimento Constitucionalista de 1932”[x]; e conclamam que “a derrota militar acabou se transformando em vitória política. Em 3 de maio de 1933, foram realizadas eleições para a Assembleia Constituinte. Foi quando a mulher votou pela primeira vez no Brasil, em eleições nacionais”[xi]. Segundo eles, “graças à criação da Justiça Eleitoral, as fraudes deixaram de ser rotina nas eleições brasileiras”[xii].

Ora, os “avanços” referentes à democracia burguesa (como a Justiça Eleitoral, o voto feminino, etc.) foram resultados mais ou menos diretos da Revolução de 1930, sem a qual, São Paulo nunca proporia tocar na estrutura política da República Velha. Cabe perguntar simplesmente: se não fossem as comoções ocasionados pela Revolução de 1930, a elite de São Paulo teria proposto uma “nova” Constituição? Se sim, por que então ela continuou exigindo até 1932 a manutenção da legalidade de 1891 e lutou com unhas e dentes contra a Aliança Liberal, cujo epicentro da campanha era a luta contra a estrutura política brasileira?

Surgiu, então, “Justiça Eleitoral” e o “voto feminino” – contra a sua vontade inicial –, mas manteve-se e modernizou-se a hegemonia paulista sobre e federação.

***

Já nas décadas de 1980-1990, São Paulo consolidou-se como um centro de especulação financeira, cujo epicentro são os “arranha-céus” da Avenida Paulista e da Faria Lima. É por este canal que o imperialismo estadunidense controla todo o restante do país.

         O Chile não é a única cobaia neoliberal da América Latina. Os governos do Estado, hegemonizados pelo PSDB há décadas, fazem de São Paulo, a mando da Escola de Chicago, o seu laboratório de experiências neoliberais a serem seguidas pelos demais estados do Brasil e da própria América Latina, que não pode ser indiferente ao que acontece na sua cidade mais populosa.

***

         Octavio Frias de Oliveira, o jornalista fundador da Folha de S.Paulo, que tinha completado 20 anos de idade durante a contrarrevolução constitucionalista de 1932, afirmou que “foi uma histeria coletiva em São Paulo, todo mundo se alistou. Eu não acreditava naquela ‘revolução’, achava que nós íamos perder, mas a pressão era tão grande que resolvi me alistar também”[xiii].

         Já para Alfredo Ellis Jr., que lutara nas trincheiras de 1932, “a maioria dos que se bateram bravamente nas fileiras rebeldes se viu arrastada pela enganadora propaganda dos políticos ambiciosos, que foram os principais responsáveis pelo desencadeamento da guerra civil”[xiv]. Outro líder militar da guerra paulista, Pedro de Toledo, fazendo apontamentos que marcaram o conflito em São Paulo, notou que o povo era “facilmente sugestionável”[xv]. Impressão semelhante a do escritor modernista Mário de Andrade, que teceu observações acerca do “mimetismo das classes incultas, mais sujeitas à pressão do coletivismo”[xvi].

         Tais depoimentos, insuspeitos, dado que provém das próprias fileiras do movimento de 1932, não deixam dúvidas quanto ao caráter desta “revolução” e quanto as “grandes coisas pelo Brasil” nada mais serem do que garantir que a elite paulista “não fosse conduzida, mas conduzisse”.

         Em relação ao operariado, a “iniciativa” da criação das suas milícias coube a ninguém menos do que a FIESP, já que “havia desconfiança de que os operários fossem mais simpáticos a Vargas do que à causa constitucionalista, (...) cuja tarefa era evitar e reprimir eventuais sabotagens”[xvii].

 

Se São Paulo é a locomotiva, quem é o seu carvão?

Em 2010, “o governador Geraldo Alckmin postou o endereço do blog tudoporsaopaulo1932.blogspot.com em seu próprio twitter. Toda a mídia respaldou sua iniciativa e já em maio de 2010 ele seria agraciado com a medalha MMDC, outorgada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo e pela Sociedade Veteranos de 32 MMDC”[xviii].

A elite paulista vende a disparidade entre a economia de São Paulo e a do restante do Brasil como algo inevitável, natural, progressista e positivo. O atual governador do Estado, João Dória (PSDB), utiliza os dados econômicos da supremacia de São Paulo sobre o Brasil como forma de propaganda do “acerto” de sua política e de seu governo[xix] em comparação à política de Bolsonaro (sendo que ambos aplicam exatamente a mesma política econômica neoliberal), tentando capitalizar o seu desgaste político para a chapa presidencial tucana.

Contudo, Dória não tem nenhum mérito nesta “vantagem” de São Paulo sobre o Brasil, dado que ela é, como vimos, parte da realidade histórica do país. “Houve um aumento de 7,5% na atividade econômica em São Paulo em três anos, contra 1,5% no Brasil neste mesmo período [de 2019 ao final de 2021][xx], afirmou Doria, sintetizando e confirmando a ideia central deste artigo.

O governo paulista ainda afirma, com orgulho, que “São Paulo é a 21ª maior economia do mundo”: “o PIB paulista é maior que o de países como Polônia, Suécia, Bélgica, Argentina, Áustria, Noruega, Irlanda, Singapura e Dinamarca. Com o PIB na casa dos U$ 603,4 bilhões, São Paulo é a terceira maior economia e o terceiro maior mercado consumidor da América Latina”[xxi].

Como centro econômico e financeiro do país, São Paulo promove a farra da especulação financeira e do investimento nacional e internacional sem retorno para o desenvolvimento do restante do Brasil[xxii]. Busca investimento internacional para centrar-se na consolidação de seu poder econômico autônomo, quase como uma “zona econômica especial”, tipo Hong Kong. Em seu livro 21: o século da Ásia, o jornalista Pepe Escobar cita um estudo que enumera uma série de desdobramentos do crescimento das transnacionais sobre o mercado mundial e a relação entre os países: “1) enfraquecimento da Nação-Estado; 2) emergência de organismos supranacionais, como a União Europeia, a APEC, a ASEAN, o Mercosul; 3) emergência de poderes regionais em detrimento do poder central, como, por exemplo, Sul da China, Catalunha, norte da Itália, o Estado de São Paulo; 4) mercados financeiros determinando política fiscal e monetária para quase todos os países do mundo...”[xxiii].

Hoje não é mais a economia cafeeira que dá a tônica da hegemonia de São Paulo sobre o Brasil, mas a sua estreita ligação com o mercado financeiro. Esta é a porta de entrada para a venda das commodities do resto do país em colaboração com o agronegócio da região sul e centro-oeste (além do próprio interior paulista[xxiv]), que tende a subjugar e a atrofiar a economia do resto do país.

O desenvolvimento econômico e social do Brasil pressupõe o enfrentamento a esta disparidade. Um modelo possível para isso foi o aplicado por Tito na Iugoslávia, que teve como resultado a contenção das disputas xenofóbicas e nacionalistas na região dos Balcãs por mais de 20 anos[xxv]. Ele consistia basicamente na rotatividade de poder deliberativo entre as diversas nacionalidades, partindo da premissa de que as regiões mais ricas deveriam investir nas mais atrasadas e pobres, afim de que as disparidades fossem superadas gradativamente, possibilitando um desenvolvimento mais equilibrado e igualitário. Não casualmente, quando se desencadeou o processo de restauração do capitalismo, na década de 1990, o imperialismo estadunidense e a OTAN incitaram as elites locais a destruírem este tipo de governo, levando os “nacionalistas iugoslavos”, que lideraram a restauração capitalista, “a se desembaraçar das regiões mais pobres e atrasadas”[xxvi], reforçando o discurso ufanista e lançando a região de volta às velhas disputas chauvinistas e divisionistas.

Para haver uma superação desta condição subalterna do Brasil em relação a São Paulo, certamente teremos que passar por um processo revolucionário que tenha uma intervenção política e econômica consciente. À revolução de 1930, por exemplo, nós teremos que somar a experiência iugoslava.

 Portanto, podemos afirmar que se São Paulo é uma locomotiva, os 26 estados são, na realidade, o seu carvão; isto é, o seu combustível! Rever todas as ideologias referentes à contrarrevolução paulista de 1932 é um importante primeiro passo para repensarmos uma estratégia revolucionária e de desenvolvimento econômico para o país.



Referências


[i] Ver, por exemplo: https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/sao-paulo-e-o-21o-colocado-no-ranking-das-maiores-economias-do-mundo/ Hoje houve uma mudança nesta ideologia: o governo de São Paulo ainda se autoproclama como uma locomotiva, omitindo os “vagões vazios”.

[ii] ABRAMO, Fulvio & KAREPOVS, Dainis (Orgs.). Na contracorrente da história – documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940. Editora Sundermann, São Paulo, 2015 (páginas 64 e 65).

[iii] Idem (página 70).

[iv] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2016/07/o-desenvolvimento-do-capitalismo-no.html

[v] ABRAMO, Fulvio & KAREPOVS, Dainis (Orgs.). Na contracorrente da história – documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940. Editora Sundermann, São Paulo, 2015 (página 71).

[vi] Idem (página 73).

[vii] Centro de Estudo “Roberto Mange”. Revolução Constitucionalista, subsídio organizado pelo professor Antonio d’Ávila – 1965 (páginas 3 e 4).

[viii] Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 7, Nº82, julho de 2012 (página 45)

[ix] Idem (página 18).

[x] Revista “A revolução constitucionalista 1932” – Brasil histórico. Editora Minuano, www.edminuano.com.br , 2012 (página 73 – grifos nossos).

[xi] Idem.

[xii] Idem (página 74).

[xiii] Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 7, Nº82, julho de 2012 (página 4).

[xiv] Idem.

[xv] Idem.

[xvi] Idem.

[xvii] Revista “A revolução constitucionalista 1932” – Brasil histórico. Editora Minuano, www.edminuano.com.br , 2012 (página 38).

[xviii] Idem (páginas 80 e 81). O blog atualmente está fora do ar, mas já foi analisado pela referida revista e pela grande mídia burguesa: https://www.dgabc.com.br/Noticia/467105/simbolo-do-orgulho-paulista-revolucao-de-1932-faz-81-anos

[xix] Ver: https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/pib-de-sp-cresce-5-vezes-mais-que-o-do-brasil-em-3-anos-aponta-seade-2/#:~:text=O%20Governador%20Jo%C3%A3o%20Doria%20anunciou,2021%2C%20segundo%20a%20Funda%C3%A7%C3%A3o%20Seade (acesso em 14 de abril de 2022).

[xx] Idem.

[xxi] http://www.casacivil.sp.gov.br/sao-paulo-e-a-21a-maior-economia-do-mundo/ (acesso em 14 de abril de 2022).

[xxii] Ver: https://www.investe.sp.gov.br/por-que-sp/ (acesso em 14 de abril de 2022).

[xxiii] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/12/comparacoes-de-analises-sobre-as.html (acesso em 14 de abril de 2022 – grifos nossos).

[xxiv] Ver: http://www.iea.agricultura.sp.gov.br/out/TerTexto.php?codTexto=16008 (acesso em 14 de abril de 2022).

[xxv] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2018/08/tito-um-grande-estadista-proletario.html (acesso em 14 de abril de 2022).

[xxvi] Idem.

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