Relato de uma pequena-grande viagem à
Europa
Dos 4 anos que passei na faculdade de
história eu e meus colegas estudamos mais a Europa do que o Brasil e a América
Latina. Por um lado é compreensível: a maior parte da nossa cultura, política e
economia provêm de lá (não apenas a faculdade, mas também a sociedade, os pais,
avós e amigos professam a cultura europeia); por outro lado, quando passa de
certos limites, esta idolatria significa uma submissão voluntária a um
pensamento eurocêntrico que, definitivamente, enquanto latino-americanos, temos
que superar.
Por tudo isso, viajar para a Europa significou
uma grande oportunidade pessoal e, ao mesmo tempo, a chance de olhar cara a
cara o nosso “complexo de vira-lata” (para confirmar, definitivamente, a conclusão
do samba de Jorge Aragão: “nem tudo o que é bom vem de fora”). A decisão não
foi fácil, pois significava abrir mão de economias pessoais acumuladas desde
2007 numa conjuntura nada promissora para os próximos 10 anos. A distância, o
medo do novo e a incerteza do que nos esperava causou receio. Mas, ao mesmo
tempo, que grandes possibilidades de mudanças interiores esta viagem poderia
abrir? Só esta dúvida já valia o “investimento”.
Os primeiros seis dias
Eu e T chegamos à Europa pelas
portas do aeroporto de Fiumicino, na
Itália. Lá, mesmo não havendo o vergonhoso processo de visto – como exigem EUA,
Canadá e Austrália, por exemplo – acompanhamos e vivemos um hostil processo de
migração, onde apresentamos nossas credenciais de “terceiro mundo” para poder
entrar (local de estadia, tempo de duração da viagem, passagens de volta, etc.).
Vimos uma brasileira ser constrangida porque queria visitar uma amiga em
Portugal e “não apresentou provas suficientes”. Espero o dia em que situações
constrangedoras como esta não existam mais. Pra mim, este processo de
“entrevista de migração” nada mais é que uma demonstração de que as sociedades
“desenvolvidas” são como castelos de cartas, que não podem receber imigrantes e
os tratam como inimigos porque a sua opulência e condições de vida são para
poucos (uma espécie de “cidade proibida” da China imperial).
Tanto no Canadá quanto na Europa (e
mesmo na minha tentativa de visto para os EUA) eu não tinha a menor intenção de
ficar para morar. Quero fazer o inverso do que faz a classe média: não fugir do
país e dos seus problemas, mas, a partir de uma estadia, procurar sentir, ver e
entender o que se passa lá e aqui. Contudo, nossa chegada em Roma seria apenas
uma conexão; apenas algumas horas de espera até o próximo embarque. Este pouco
tempo nos demonstrou a dimensão das conexões europeias: voos chegando e
partindo dos 4 cantos do velho continente, dos mais distintos países para as
mais distintas regiões. Apesar de profundamente cansados, estávamos curiosos e
ansiosos. As notícias da neve em Paris (após quase 5 anos sem nevar no inverno
europeu) não era das mais animadoras para quem queria desbravar a cidade a pé,
mas não arrefeceu nosso desejo de aventuras e de viver novas emoções.
Então, após um atraso de mais de uma hora,
decolamos em direção à cidade luz.
***
Ao meio dia de uma quarta feira, 7
de fevereiro, conforme o nosso planejamento, chegamos no aeroporto Charles de
Gaulle pela primeira vez. As suas dimensões são imponentes. É quase como uma
cidade à parte, tipo Versalhes, cerca de 20 minutos ao nordeste de Paris. Já no
sobrevoo pelo céu da região metropolitana pudemos ver prédios, casas, muros,
campos e árvores cobertos de neve. A longa viagem sobre o Atlântico (mais de 10
horas no primeiro avião), mais 2 horas de Roma até Paris e o choque térmico em
um país que estava abaixo de zero, nos deixou extremamente cansados, o que não
nos impediu de sair pela cidade já nos primeiros momentos.
Paris é realmente linda como dizem!
Prédios peculiares, tipicamente parisienses, com uma arquitetura que é uma
verdadeira obra de arte a céu aberto. Estátuas sobre pontes, muros, edifícios e
palácios. Sobretudo palácios; muitos palácios! O Museu do Louvre, o Museu
d’Orsay, o Palácio dos Inválidos, a Ópera Garnier e muitos outros, que antes
pertenciam à aristocracia e à monarquia francesa, e hoje estão abertos ao
público (ainda que para entrar neles tenha que se pagar caro). O Rio Sena dá a
tônica da cidade (não apenas de Paris). Foi ali que vi pela primeira vez as
aves típicas de lá, como os estorninhos, os corvos e as gaivotas, que estão em
praticamente toda a Europa. A partir do Rio Sena os pescadores fundaram a vila
que daria origem à cidade, provavelmente – até onde eu sei – estendendo-se das
suas duas ilhas principais, onde está localizada a Catedral de Notre Dame. Os reis também estabeleceram
o Palais Royal às suas margens (ainda
que séculos depois tenham construído o Château
de Versailles a alguns quilômetros de Paris). No primeiro dia
experimentamos o famoso macarron e a baba au rhum (bolo feito a base de rum)
em uma elegante “padaria”, no caminho do Museu do Louvre; o não menos famoso
crepe susete com nutella e banana iríamos
degustar somente alguns dias mais tarde.
Catedral de Notre Dame |
Em razão do frio, conseguimos chegar às ilhas
do Sena e à Catedral de Notre Dame apenas
no segundo dia, logo depois de visitar a famosa livraria Shakespeare and Company, que fica também às margens do rio e
constitui-se de uma construção bastante antiga, mas muito charmosa, repleta de
livros por todos os lados e de visitantes que chegam de vários cantos do mundo,
tiram fotos na entrada, visitam o segundo andar (onde, reza a lenda, grandes
escritores frequentaram e mesmo pernoitaram, como Ernest Hemingway) e
perambulam por todo estabelecimento, folheando ou lendo livros. Entre
prateleiras e estantes se pode ler trechos de grandes obras, como de Alice no
País das Maravilhas, por exemplo; além de máquinas de escrever como objetos de
decoração e alguns gatos de estimação. No dia que tivemos a oportunidade de
visitar o segundo andar da livraria, duas moças tocavam piano e um homem de
terno, que a despeito de fungar e grunhir, as ouvia em silêncio. A sensação era
de um ambiente peculiar e elegante, que atraía pessoas ávidas por cultura.
No primeiro dia em Paris nos
deparamos com ruas cobertas de neve e um chão bastante escorregadio (caímos um
tombo homérico na esquina da Ponte Alexandre III que me custou um rasgão no
casaco – esta ponte, para mim, é uma das mais bonitas do mundo, com postes e
estátuas de bronze e uma bela vista da Torre Eiffel; tudo romanticamente
retratado no filme Meia noite em Paris).
Neste primeiro contato com a cidade ficamos, literalmente, desnorteados, não
apenas pelo frio e o cansaço, mas pela beleza e deslumbramento do que tínhamos
a oportunidade de vivenciar. As cidades da Europa, ainda que possuam belezas
naturais, como a orla dos rios, montes e parques, são lindas porque traduzem
séculos de urbanização, com arquiteturas, estátuas e praças peculiares.
Portanto, foram as mãos humanas que as fizeram tão belas. Comparada com a
arquitetura daqui percebemos o quanto há para evoluir.
Andávamos por ruas parecidas, mas igualmente
lindas e ornamentadas – quase todas com aqueles charmosos e atraentes bares
parisienses (os cafés e brasseries).
Neste caminhar sem rumo do primeiro dia, sendo mais guiado pelo frio e pela
sonolência, acabamos casualmente dando de frente com o Banque de France. Por tamanha coincidência e surpresa, escrevi na
postagem do instagram, de 7 de
fevereiro: “vocês se lembram que a maior
parte de membros da direção da Comuna de Paris (de 1871), formada de
blanquistas e proudhonistas, não quis tomar o Banco da França contra a tirania
de Thiers, que usou de toda a crueldade e artimanhas possíveis contra a Comuna?
Pois é...” estávamos diante da entrada deste banco (que provavelmente não funciona
mais enquanto tal e hoje é apenas um prédio que conserva a fachada), com blocos
de neve pelas ruas, calçadas, telhados e as tendas dos cafés.
***
Nos dias seguintes ficamos um pouco
mais a vontade, embora retraídos quando se tratava de comunicação. As pessoas
causam medo, ainda mais em outra língua! Nas capitais da Europa não se fala
apenas inglês ou francês, mas uma variedade incrível de línguas (não teve um
dia que não tenhamos ouvido distintas línguas ou mesmo o português do Brasil).
O quanto os europeus são instigados a falar outros idiomas e a entrar em
contato com outras culturas em comparação a nós, brasileiros, que vivemos em
rincões que apenas falam português e, no máximo, espanhol? Foi no meio de
reflexões parecidas com estas, interrompidas pelo esforço de tapar as pequenas
brechas nas roupas e no pescoço por onde entrava um ventinho gelado, que
chegamos na Torre Eiffel, já no segundo dia. Ainda estávamos evitando o metrô e
procuramos atingi-la a pé. Acertar o caminho olhando no mapa nos deu aquela
emoção que fica gravada na memória de quando dobramos uma esquina inesperada e
demos de cara com aquela gigantesca construção de ferro e aço, que nos faz tão
pequeninos. Para nosso azar ela estava fechada em razão da neve, mas o pequeno
parque, com algumas flores, plantas e bancos nos propiciou bons momentos de
fotos e contemplação. A Torre Eiffel é mais do que o símbolo turístico da
França, é uma colossal obra prima, que se utiliza de todo o valor estético do
aço, forjado no final do século 19, conforme pudemos ler no Museu d’Orsay. No
primeiro nível da torre, mesmo do chão, pode-se ler os nomes de cientistas, matemáticos,
engenheiros e políticos da França.
Por outro lado, em dissonância com a sua
beleza e opulência, percebemos o quanto há de trabalho informal em todos os
pontos turísticos da França e da Itália (quiçá de toda a Europa), levado a cabo,
em sua maioria, por africanos. Assim que percebiam que éramos turistas (o que,
de fato, não era nenhum pouco difícil), eles começavam a nos cercar e oferecer seus
souvenires (pequenas lembrancinhas, chaveiros de Torre Eiffel, pau de selfie,
dentre outros), tentando acertar a nossa língua: inglês, francês, espanhol; até
hakuna matata! Bem de fronte à torre,
atravessando a rua em direção ao Sena, sofremos o golpe da ONG que ampara
crianças surdas e mudas. Ofereceram-nos um abaixo assinado em defesa destas
crianças, com o qual, evidentemente, não tivemos como recusar. Assinamos no
auge de nossa ingenuidade. Logo em seguida nos pediram a quantia para a doação
que tínhamos nos comprometido, uma vez que tínhamos assinado a planilha. Não
tinha como fugir, né? Afinal, eram as crianças surdas e mudas! Demos um valor
razoável, seguimos nosso caminho e depois não caímos mais nessa armadilha (tentaram
outra vez nas margens do Sena próximo do Palácio Real e ainda na Itália).
Depois desse breve, gelada e
inesquecível visita à torre, fomos caminhando em direção ao monumento que
traduz as extravagâncias da era napoleônica: o Arco do Triunfo. A cada passo
que dávamos pra frente virávamos para olhar a Torre Eiffel, que ficava cada vez
mais distante, lá, a nos brindar, majestosa e linda, já do outro lado do Sena.
Tal como todos os outros pontos turísticos de Paris, o Arco do Triunfo é
repleto de turistas e vendedores ambulantes. Passamos por debaixo da rua para
atingir o monumento, de ondem despontam inúmeros ornamentos, detalhes e nomes
de militares e personalidades francesas. Não subimos até o topo porque exigia
pagamento, mas andamos por todo o espaço inferior. De saída do arco caminhamos
pela Champs-Éllysées, o mais famoso e
largo boulevard da França (e do mundo?). Ela desemboca na Praça da Concórdia,
onde o Rei Luís XVI foi guilhotinado durante a revolução francesa. Foi na Champs-Éllysées que usamos pela primeira
e única vez os carregadores de
celulares disponíveis nas paradas de ônibus. Esta “grande invenção” francesa, a
despeito de toda a beleza da capital do país, foi o que mais marcou a viagem do
sagaz prefeito do PSDB, digno de obriga-lo a fazer uma nota para as redes
sociais. Isso que é visão!
Neste mesmo dia, já bastante
cansados pela longa caminhada (mais de 40 quadras!) e pelo frio, chegamos ao
Palácio dos Inválidos, um museu essencialmente militar, onde está enterrado
Napoleão Bonaparte. Pelo tamanho e extensão, certamente era utilizado como
palácio militar, onde tropas desfilavam, se exercitavam e faziam manobras. Em
todos os museus, palácios ou mesmo igrejas é preciso passar por um aborrecedor
processo de revista de raio-X. Num inverno de zero graus, significa tirar
casacos, tocas e cachecóis; às vezes relógios e celulares. É um tanto
desagradável. Segundo eles, tudo para vencer a luta contra o terrorismo!
No Palácio dos Inválidos, a despeito
de murais com fotos e informações sobre a visita de Sir Wiston Churchill ao
local, bem como de “mártires” da luta contra o nazi-fascismo, a “atração” é
mesmo a tumba de Napoleão. Não pagamos para entrar em razão do valor, mas só de
chegar às suas portas e dar uma olhadela para dentro, mesmo discordando de
todos os horrores proporcionados pelo período napoleônico, se sente aquele frio
na espinha de pensar em todo um período histórico que mudou a face de um
continente e do mundo inteiro.
***
No dia em que reservamos para ir ao
Museu do Louvre o céu amanheceu carregado, ameaçando tempestade de neve. No
percurso do nosso hotel até lá grossos flocos de neve começaram a cair,
confirmando a ameaça do céu e nos obrigando a parar em toldos de café e, no
fim, a ter que comprar um guarda chuva. Chegamos na famosa pirâmide de vidro
cerca de 11h da manhã. O frio era severo, de cerca de -1ºC, o que tornou a
espera na fila de entrada muito mais dolorosa. Novamente passamos pelo ritual da
longa fila de inspeção, com esteira e raio-X (para terem certeza de que nós não
éramos terroristas. Sorte a nossa!).
O Museu do Louvre ocupa um grande
palácio que forma um “U” em um grande pátio, onde se encontram as pirâmides de
vidro. Pela imponência de suas extensões, provavelmente era parte do Palácio
Real, onde antes habitavam os cortesãos dos reis e de Napoleão, que instalou
sua nova corte real nas Tulherias, exatamente onde o Museu está localizado.
Neste museu – o mais famoso do mundo – encontra-se um grande tesouro da cultura
humana! Separado por épocas históricas, o museu parte do período mesopotâmico,
passando pelo egípcio e greco-romano, indo até a arte moderna e Renascentista.
Há uma longa galeria que traz o florescimento da escultura francesa,
influenciada pelo Renascimento italiano. Descobri que os franceses tem
verdadeira devoção por esculturas, procurando repetir não apenas os italianos,
mas os próprios gregos e romanos. As estátuas estão literalmente por todos os
lados, não se restringindo ao Museu do Louvre: se encontram belas obras nas
praças, nas fachadas dos edifícios, nos postes, nos telhados, nas pontes, nos
muros... Desde ninfas e seres mitológicos, até personagens históricos da França
e de outros países, as esculturas dos artistas franceses estão, certamente,
entre as mais belas e expressivas do mundo.
O acervo do Louvre é constituído,
segundo nosso amigo bolonhês (que conheceremos mais adiante), por obras
roubadas de outros países, em particular, da Itália. Penso que ele tem razão, ainda
que a Itália seja uma pequena parcela dos países que tiveram artefatos
artísticos e históricos saqueados pelos franceses. Esta riqueza cultural e
arqueológica certamente não deve ter caído do céu, embora muitos colecionadores
e mecenas vendam ou doem obras para os museus europeus. O fato, contudo, foi
que o Louvre me abriu os olhos para esta arte tão apreciada pelos antigos – a
escultura –, e me fez ficar muito mais atento passeando pelas ruas de Paris,
Londres e Roma do que propriamente dentro do museu. Nas ruas as estátuas dão um
charme especial e peculiar às cidades europeias; em particular à Paris, que foi
a que mais estátuas pude contar (na verdade perdi as contas).
Entre diversos saguões que abrigam
cerâmicas, peças, pedras, estátuas e quadros das mais variadas fases da
história, eu e T disputamos ombro a ombro com turistas do mundo todo um
espacinho para ver de perto a pedra do Código de Hamurábi, La Gioconda (a Monalisa) e a Vênus de Milo. No caminho, perdido
entre um e outro, esbarrávamos numa estátua da Pallas Atenas, num quadro
impressionante da Idade Média ou numa grande obra do Renascimento (que
exigiriam pelo menos, algumas horas de análise). No Louvre há tanta cultura
espalhada por um Palácio fantástico, que por si só, com seus corredores imensos
e grandes janelas, que ora fazia aparecer um pedaço da rua branquinha de neve,
ora aparecia o grande pátio com suas pirâmides de vidro, já valeria o ingresso.
Nos perdemos, então, neste labirinto de saguões, apartamentos e escadarias,
pelo menos, duas vezes. Neste percurso, encontrávamos sempre novos setores
interessantíssimos, dentre os quais, cabe destacar o que abordava a
aristocracia francesa dos séculos XVII, XVIII e XIX. Em uma das quinas do
Palácio, está reconstruído, tal e qual, as salas de jantares e de reuniões da
época do falsário Napoleão III. Eram ambientes ornamentados com detalhes de
ouro, grandes mesas, sofás, vitrais e lustres, entrecortados por estátuas,
quadros e pinturas deslumbrantes no teto – geralmente de cunho religioso,
ostentando anjos, ninfas e santos –, que sugerem que você está no céu; tudo
isso explicou pra mim de forma muito eloquente o porquê das revoluções
francesas de 1789, 1830, 1848 e 1871.
O Museu d’Orsay, que visitamos no
nosso último domingo em Paris, era um tanto menor, embora não menos impressionante.
Praticamente grudado ao Museu do Louvre, o Museu d’Orsay fica do outro lado do
Rio Sena, em uma antiga estação de trem, toda adaptada para abrigar um museu,
com mais quadros e estátuas de valor histórico-universal. Fomos a este museu
por calorosa recomendação de nosso já referido amigo bolonhês, que nos disse
valer muito a pena, sobretudo em razão dos quadros impressionistas, que é a
especialidade do Museu d’Orsay. Esta dica valeu muito a pena. As obras dos
impressionistas, vistas dentro de um contexto, são realmente fantásticas. Ver
em sequência os quadros de Van Gogh, Manet e Monet é um privilégio, ainda que
se tenha que pagar bem caro por ele (levando em consideração que somos latino-americanos).
Fiquei horas deslumbrado com um quadro de Monet, que retratava uma simples
paisagem iluminada por uma luz outonal, pois parecia uma foto e não uma pintura.
Aprendi mais sobre história da arte do que em toda a minha faculdade (e toda a
minha vida?). E o impacto e a emoção de olhar o quadro “A noite estrelada” de
Van Gogh? O resultado é que na saída fui obrigado a comprar um livro retratando
Paris pintada pelos impressionistas.
Neste museu ainda me marcaram as estátuas dos
irmãos Gracos, de Roma, dos Gladiadores e
o escultor, do deus grego Dionísio (Baco para os romanos) oferecendo um
cálice de vinho para uma pomba, a pintura de mulheres enchendo vasilhas num
lago (que pareciam ser as mulheres de Atenas) e de uma luta de espadas que
tinha terminado com uma terrível decapitação. Pela falta de tempo não pudemos
aproveitar mais, pois o museu abrigava também uma parte que falava sobre Paris
ao longo da história, a grande feira conhecida como Exposição Universal de
1900, a construção da Torre Eiffel e o valor estético do aço, além das obras de
Delacroix, que não conseguimos ver por que nos perdemos de novo e não tínhamos
mais tempo. As janelas do Museu d’Orsay são magníficas, permitindo uma visão
panorâmica da Basílica Sacré Cœur em meio a vários prédios típicos de Paris.
Não poderia esquecer, é claro, dos grandes relógios de vidro, que permitem que
a luz da rua entre no prédio e também propicia belíssimas fotos para os
turistas.
***
Geralmente saíamos cansados de todos
estes passeios, não apenas porque os museus eram gigantescos e exigiam subir e
descer muitas escadas, além de obrigar que ficássemos muitas horas de pé, mas
também porque aquele excesso de beleza nos preenchia os olhos e tudo nos
deslumbrava demais. Sentíamos fome; muita fome! Saíamos a caça de um bar, ou de
uma barraquinha de crepe susete, ou mesmo de um restaurante mais acessível. A
comida parisiense é deliciosa, diversa e, em alguns casos, na minha opinião,
exótica. Basta dizer que muitos pratos surgiram da culinária parisiense e a
palavra gourmet, é francesa. No petit déjeuner (café da manhã) quase
sempre tem croissant, baguete típico,
com um tablete de queijo (tipo polenguinho), geleias, ovos fritos e suco de
laranja. Os croissants que comi foram
os melhores da minha vida, o que confirma a fama. Já as iguarias como Macarron não me agradaram tanto. Ao meio
dia, quase sempre oferecem pasta
(massa) com variados molhos, mas estas não diferem muito das do Brasil. Bem
diferente da Itália, onde a massa, as pizzas e o azeite são fabulosos; posso
dizer, seguramente, que são os melhores que já comi (ainda que as da América
sejam boas a seu modo).
Caberia destacar os queijos e os
vinhos, que são verdadeiras relíquias da França. Nos restaurantes (tanto lá,
quanto aqui) não vale a pena beber nos restaurantes, pois são bem mais caros.
Compramos em supermercado por um valor relativamente barato. Assim como não
encontrei pizza ou massa ruim na Itália, não encontrei vinho ruim na França. Os
Bourdeaux são incrivelmente saborosos, diferentemente dos “bordôs” brasileiros,
que se assemelham aos de garrafões. Já os vinhos italianos me parecem com a
qualidade um pouco inferior ao dos franceses, enquanto que na Inglaterra só
víamos marcas estrangeiras, inclusive muitas do Chile (que também estão presentes
no Canadá). Em Londres comprávamos vinhos nos supermercados também e tomamos um
muito ruim da Califórnia, que não tinha rolha (era de tampa comum). Na França
não vi nenhum vinho que não fosse de rolha, o que, segundo entendidos, garante
a sua maior qualidade, e nos obrigou a comprar um saca-rolha.
O café Les Deux Moulins |
Mas o que mais trago vivo na memória
foram os pequenos restaurantes da Rue
Lepic, que desce desde o morro da Basílica de Sacré Cœur, quase como umas pequenas casinhas dos Alpes Suíços
(ainda mais com neve nos telhados). O cenário constituía-se não apenas de
restaurantes tradicionais parisienses, como o famoso café Les Deux Moulins, do filme Amélie Poulain, mas também de muitos
mini mercados, açougues, quitandas e mercearias típicas, com frutas dos mais
variados tons, aparentemente geridos pelas famílias tradicionais francesas. Em
uma que fomos comprar almoço, por exemplo, os atendentes não falavam nenhuma
língua a não ser o francês. Comemos couscous,
uma espécie de hambúrguer com tomate (um bem tipicamente francês), arroz e
salada (estávamos com muita vontade de comer arroz e salada!). No local não
tinha lugar para sentar, por isso tivemos que comer no hotel, mas a Rue Lepic nos causou as melhores impressões
de um típico charme urbano francês, que nos deixou com muita vontade de voltar
lá.
***
Num certo domingo decidimos ir
conhecer Versalhes e o seu famoso palácio, que fica a alguns quilômetros de
Paris. Foi a primeira vez que desbravamos o metrô parisiense, que tem ligação
direta com o trem que leva até Versalhes. Desta vez a distância exigia um meio
de transporte, pois era realmente impossível ir a pé. Por orientação do nosso
amigo Sofian, o recepcionista do hotel, pegamos três linhas e, por um preço
acessível, chegamos até Versalhes ainda na manhã daquele domingo. No trem, nos
bancos atrás de nós, sentou-se um grupo de brasileiros (não teve um único dia que não encontrássemos brasileiros); um pouco mais adiante, ingleses e mais
à esquerda alguns alemães. Assim como em quase todas as partes da França,
víamos e ouvíamos turistas de todos os cantos do mundo. Na fila de entrada do
Palácio tínhamos a nossa frente um grupo grande de chineses e atrás um casal russo.
O Palácio de Versalhes – lido e
ouvido sempre como o local do famoso tratado de 1918, como centro da burguesia
francesa contra a Comuna de Paris ou, ainda, como um dos mais marcantes
episódios da Revolução Francesa de 1789 – possui dimensões colossais (quase um
palácio-cidade dentro de outra cidade), não apenas pela estrutura dos edifícios
construídos pela megalomania dos reis absolutistas franceses, mas, sobretudo,
pela imponência dos jardins, que são imensos e descomunais, repletos de
chafarizes e outras tantas estátuas. Por dentro, o Palácio é marcado pela busca
de glória, riqueza e luxo dos monarcas e da sua corte que ali viveram
supostamente representando a sociedade francesa.
Hoje está totalmente transformado em
um imenso museu, onde cada sala ou saguão conta um episódio da vida nacional da
França. Em um largo corredor aparecem enfileirados cronologicamente as estátuas
de reis, pensadores, filósofos e políticos franceses, indo desde a Idade Média
até a contemporaneidade. Não vi entra elas (bem como em nenhum outro lugar da
França) nenhuma estátua de Robespierre, Marat ou de Gracus Babeuf. Mesmo a sala
do Palácio que fala sobre a Revolução Francesa de 1789 é absolutamente sem
graça, quase um hiato entre a nobreza absolutista medieval e o período contemporâneo.
Provavelmente a clássica revolução burguesa que deu origem ao desenvolvimento
capitalista na França e na Europa inteira hoje cause certo desconforto.
Andando pelos quartos e salas de
jantares da nobreza francesa pode-se perceber a opulência e a ostentação que
certamente contribuiu de maneira decisiva para as revoluções do povo francês
contra ela. Desde o grande saguão construído por Luís XIV para abrigar suas
amantes, até o imenso salão dos espelhos, usado pela monarquia para dar grandes
bailes e festas. Em 1871, no auge da Comuna de Paris, este salão foi utilizado
pelo Kaiser alemão para a sua coroação, humilhando não apenas a monarquia
francesa, que estava em frangalhos, mas a própria burguesia da França que naquele
momento estava em uma luta de morte contra os operários parisienses sublevados.
***
Mais do que gastar dinheiro para
entrar em museus, igrejas, templos ou pontos turísticos, nos interessava
passear pelas ruas e, sobretudo, conhecer as praças. As praças de Paris são
muito diferentes das brasileiras, não apenas pelo conteúdo histórico da maioria
delas, mas, também, porque elas não possuem árvores e mata verde como acontece
geralmente aqui no Brasil. As praças de Roma quase não têm árvores. As praças
de Paris e Londres que tem algum tipo de espaço verde tem o acesso às árvores e
flores fechado com cercas.
A Place de la Concorde, por exemplo,
ainda que possua uma “vizinhança” verde com os bosques da Avenida Champs-Éllysées, de um lado, e do Jardim
das Tulherias, do outro, ela própria não possui uma árvore sequer. Do seu
centro se ergue um majestoso obelisco, seguido por um grande chafariz, repleto
de estátuas e significações. Quase todos os postes exibem pequenos sátiros e
ninfas. É nesta praça que está a grande roda gigante (talvez uma imitação do Big Eye londrino?) e um pequeno
carrossel na entrada. Na parte sul da praça se pode vislumbrar o imponente
prédio da Assembleia Nacional, com seus pilares à moda grega, do lado norte um
grande palácio (hoje é o Museu Maxim’s)
e na extensão da Rue Royale a
imponência da Igreja de La Madeleine.
Quando caminhamos pela Place de la
Concorde fiquei imaginando a cena ocorrida em 21 de janeiro de 1793: o Rei Luís
XVI subindo ao cadafalso, com as mãos amarradas, cabisbaixo, sendo guiado por
um sentinela jacobino, enquanto que o carrasco e outras autoridades o
aguardavam. A massa parisiense ensandecida e enfurecida, esperando para ver o
que seria o ato mais radicalizado das revoluções burguesas de toda a Europa: o
guilhotinamento do Rei, que abalaria uma instituição com mais de 1000 anos, a
monarquia. O clima que eu via, ao contrário de tudo isso, era bem diferente.
Fluxo de carros e turistas chegando em excursões de ônibus, ou a pé, tirando
fotos e formando fila para andar na roda gigante.
Bem próximo dali está a Place
Vendôme, que possui a famosa coluna de mesmo nome, que se ergue por uns 40
metros acima das nossas cabeças. Fundada originalmente por Luis XIV no que hoje
é o 1º arrondissement de Paris (uma
região bem rica e movimentada), a praça possuía no centro uma estátua equestre
do Rei Sol. Em 1792, os revolucionários destruíram a estátua, símbolo do poder
real. Em 1800, já na era napoleônica, um decreto impõe a construção de uma
coluna em 20 de março, quando Napoleão Bonaparte decide construir uma coluna
departamental na Praça de Vendôme para celebrar a sua vitória na batalha de
Austerlitz, com uma estátua de si mesmo em traje de imperador romano na parte
superior da dita coluna. O episódio mais marcante, contudo, ocorre na época da
Comuna de Paris. A insurreição que leva os operários ao poder traz uma nova
visão sobre os antigos monumentos, conforme um dos seus manifestos declara: “A Comuna de Paris considera que a coluna de
Vendôme é um monumento bárbaro, símbolo da força bruta e da falsa glória, uma
afirmação do militarismo, a negação do direito internacional, um permanente
insulto dos vencedores aos vencidos, um perpétuo ataque a um dos três grandes
princípios da República Francesa, a fraternidade. Por isso a coluna de Vendôme
será demolida”. Assim a Comuna procedeu: em 16 de maio de 1871 a coluna foi
demolida frente a uma multidão. Porém, com a sua sabotagem e derrota, a coluna
foi reconstruída e hoje abriga no seu topo uma reconstrução da estátua de
Napoleão em trajes romanos.
A Praça Vendôme não possui uma única
árvore. Está envolta por edifícios no estilo tradicional parisiense em formas
de um grande quadrado, hoje possui algumas lojas de grifes e marcas famosas.
Passamos por lá certa vez quando voltávamos para o nosso hotel na Square
D’anver.
***
Na maioria das estações, metrôs e
nos aeroportos há um piano público ou algum tipo de manifestação artística. No
aeroporto de Fiumicino, em Roma, e na estação de trem de Saint Pancras, em
Londres, ouvimos por um bom tempo pessoas comuns tocando piano, esbanjando
talento numa grande demonstração de arte popular. Em duas estações de metrô de
Londres vimos pessoas tocando violão (rock clássico ou pop) e violino. Na praça
do Pantheon, em Roma, assistimos por alguns minutos a apresentação de um
violinista, que encantava e interagia com os turistas e as pessoas que passavam
na rua. Ainda em Roma, numa passagem em forma de caverna com uma escadaria que
passava por debaixo de um grande edifício velho estava um senhor tocando as
músicas típicas da Itália em um acordeão.
No entanto, dois destes shows populares me
marcaram mais a memória: uma senhora tocando gaita em uma das pontes do Rio
Sena, em Paris; e a apresentação de pop rock em frente a academia nacional de
música (o prédio da famosa Ópera Garnier, no coração de Paris) em um belíssimo sábado
de sol parisiense, aquecendo um pouco o rigoroso inverno francês. A senhora do
acordeão sobre a ponte do Sena me marcou pela melodia triste e por seu rosto,
cheio de rugas da vida e com olhos piedosos pedindo ajuda; o cantor pop da
Ópera Garnier era, provavelmente, um mendigo que tocava e cantava (julgo pelas
roupas – posso estar enganado!). Porém, parecia um músico profissional e
tentava estabelecer uma conexão com os turistas e os parisienses que, se
empoleirando nas escadas da Ópera, procuravam o seu lugar ao sol. Até onde o
tempo nos permitiu ficar lá, ele estava conseguindo envolver um grupo de
turistas norte-americanos no seu show improvisado, pedindo para irem até o
microfone cantar junto com ele.
***
Nos últimos dias da nossa primeira
estada em Paris, por recomendação de amigos e familiares, fomos visitar o
famoso cemitério de Père-Lacheise, que fica entre o 11º e o 20º arrondissement. Chegamos lá a pé, depois
de visitar a Place de la Bastille
(onde ficava a antiga masmorra que foi tomada em 14 de julho de 1789 pela
revolução) e a Place de la Nacion,
para onde os bulevares Diderot e Voltaire confluem, quase na periferia de Paris.
Por fora o cemitério é bastante
comum, com grandes muros brancos, de ondem saltam algumas cúpulas ou ornamentos
de um grande túmulo qualquer, que tem alguma coisa de egípcio em sua entrada
central. O cemitério de Père-Lacheise se constitui de um gigantesco espaço
verde, com árvores entrecortadas por inúmeras covas no chão, em sua maioria com
mausoléus que possuem estátuas ou arcos e janelas ogivais, no velho estilo
gótico, cruzadas por ruas de paralelepípedos (as principais) ou vielas de chão
batido (por entre os túmulos). Para a minha surpresa, fiquei sabendo que grande
parte da história da França e da Europa está enterrada ali (Saint-Simon, Honoré
de Balzac, Oscar Wilde, Allan Kardec, Augusto Comte, Eugène Delacroix, Édith
Piaf, Laura Marx, Thiers e a “grande atração”, Jim Morison, enterrado em uma
tumba sem muita ostentação). Como resultado disso, muito mais do que viúvas ou
entes queridos, vimos perambular pelas sepulturas um grande número de turistas
e curiosos, que observam ou tiram fotos com o celular do grande mapa afixado
num mural de metal, logo na entrada, contendo o nome dos “mortos famosos”, para
as utilizar como mapas do submundo parisiense de Hades.
***
O frio tinha dado uma leve trégua. A
neve já havia derretido das ruas e o sol brilhava em um curto período de tempo do
dia do inverno europeu. Voltamos ansiosos para o hotel: no dia seguinte
ganharíamos um novo carimbo no nosso passaporte; desta vez com o emblema da
realeza!
4 dias como súditos
Uns 3 dias após a volta para o
Brasil, li no romance “O homem que amava os cachorros”, de Leonardo Padura, que
Bukharin regressou de Paris a Moscou pela Gare du Nord, a estação ferroviária
que liga a França aos países do norte da Europa. Foi justamente nesta estação
que pegamos o trem da Euro Star que
nos levou para Londres. A Gare du Nord é uma grande construção de vigas de aço,
que ainda conserva algum toque dos séculos XIX e XX. Fundada em 1866, já possui
ares de modernidade, com sala de espera com wi-fi e todos os confortos da
calefação, embora na plataforma de embarque se sinta um pouco de frio, uma vez
que não é fechada.
O empreendimento ferroviário é
simbólico quando falamos do Brasil: um país de dimensões continentais (quase maior
que a Europa), proibido pelos trustes, monopólios automobilísticos e
petroleiros, com o subserviente apoio dos seus pares políticos, de ter uma
malha ferroviária que transporte passageiros e cargas. O quanto estamos
atrasados se comparados à Europa, que está totalmente interligada por estradas,
trilhos e pontes aéreas? O que justifica nós, latino americanos, não possuirmos
– tal como já tivemos no passado (pelo menos em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio
Grande do Sul) – uma malha ferroviária que ligue Porto Alegre à São Paulo,
Santa Maria e Montevidéu? Por que não existe transporte ferroviário entre Rio
de Janeiro, São Paulo e o nordeste? Por que taxaram de “utópico” ou “populista”
o projeto proposto pelos chineses de ligar por trem o sudeste brasileiro com o
Peru e o Equador, isto é, o oceano Atlântico com o oceano Pacífico? A resposta
é uma só: o controle absolutista monárquico de grandes monopólios industriais
sobre a fabricação de carros, caminhões, asfalto e combustível. O Estado
brasileiro, totalmente dominado pelos dogmas anacrônicos e parasitários do
neoliberalismo, jamais empreenderia estes projetos (que certamente se
autofinanciariam) para não se chocar contra os seus amos.
Estas reflexões são inevitáveis, uma
vez que há grande facilidade de deslocamento (ainda que o valor não seja dos
mais baratos) entre passageiros da França para a Inglaterra, o que gera uma
profunda capacidade de interação (justamente o que nos falta na América
Latina). Voltemos, pois, às 5h30min daquela terça feira, 13 de fevereiro,
quando o nosso despertador tocou para sairmos a tempo do nosso hotel na Square
D’anvers e nos dirigirmos caminhando para a Gare du Nord, que ficava a cerca de
10 minutos a pé. Saímos de lá para conhecer a terra da rainha apenas com duas
mochilas, pois graças ao nosso amigo Sofian, pudemos deixar nossas malas
maiores em um depósito do hotel sem nenhum custo extra. Apesar do gelo ter
derretido no dia anterior, fazia muito frio: cerca de zero graus, e ainda era
noite fechada. Havia um breu que deixava a lua um pouco nublada e ao longe
ainda podíamos avistar as grandes cúpulas da Basílica de Sacré Cœur. Alguns garçons e funcionários de restaurantes já
começavam a chegar para o trabalho, colocando mesas nas ruas, limpando o chão
ou abrindo cortinas e vitrines. O movimento neste horário era bem menor, embora
já houvessem um princípio de circulação de carros e bicicletas.
Chegamos na Gare du Nord, que parece
não dormir, mantendo um fluxo constante de passageiros. Nos dirigimos à
plataforma de embarque internacional. Por não fazer mais parte formalmente da
zona do Euro, a Inglaterra exige uma rápida entrevista de migração, feita pelos
guichês que se encontram na própria Gare du Nord, mas não exige visto (tal como
suas arrogantes ex-colônias). Preenchemos um pequeno papel com nossos dados,
motivos da viagem, hospedagem, quantidade de dias que ficaríamos, etc. Logo em
seguida, entramos numa fila um pouco grande, mas que andava rápido. O
funcionário da rainha, de forma rotineira e repetitiva, nos questionou o que
iríamos fazer no seu reino. Respondemos apenas a verdade: turismo! Aproveitar
as férias! Isto é, a mesma coisa que queríamos fazer em Nova York, mas tivemos
o nosso pedido de visto absurda e autoritariamente negado. Poderíamos ter dito outra
verdade: conhecer um quinhão do mundo que é nosso também, pois somos terráqueos
e, enquanto tal, desfrutando dos supostos “direitos humanos” e da “declaração
universal dos direitos dos homens”, possuímos, supostamente, o direito de ir e
vir.
Sem nenhum tipo de questionamento, o
funcionário, de forma um pouco aborrecida (talvez pela repetição monótona
daquela profissão burocrática e, na minha opinião, um pouco ultrajante)
simplesmente carimbou nosso passaporte e voilà,
estávamos aptos a entrar por até seis meses (com o severo destaque de “sem
direito ao trabalho”) no Reino Unido. Sentimos um pouco de medo. Tínhamos
ficado traumatizados pela nossa experiência muito amarga com o visto para “a
maior democracia do mundo” (que mereceria também uma narração detalhada como
esta – quem sabe um dia?).
Embarcamos no equivalente à
“terceira classe” de um longo trem da Euro
Star, conhecido por atingir altas velocidades e fazer o trecho
Paris-Londres em apenas 2 horas. A nossa terceira classe era muito confortável,
possuindo poltronas com um bom espaço, tomadas para celulares e notebooks,
mesas para comer (caso alguém compre algo no bar dentro do trem, pois não é
servido nem uma água sequer), televisão com informações da viagem e propaganda
da empresa, e um wi-fi que às vezes perdia o sinal. Vimos o sol nascer da
janela do trem, passando pela zona rural da França e imaginando como vivem ali
aqueles agricultores. Eu ansiava pelo grande momento: a passagem no túnel por
baixo do Canal da Mancha. Já havia propaganda nas televisões sobre um óculos
que poderia ser conectado ao celular e ao wi-fi e onde se criaria uma imagem em
3D do fundo do mar, por onde o nosso trem cruzaria destemidamente. Nós, é claro,
não compramos, alugamos ou mesmo baixamos no celular o aplicativo para ver esta
reprodução, que no vídeo da empresa parecia encantar profundamente aquelas
crianças e mesmo os seus pais. Para nós, cruzar o Canal da Mancha por baixo foi
como passar por um túnel comum: apenas o friozinho na barriga e aquele
tradicional entupimento nos ouvidos por causa da pressão. O mais esperado
estava realmente do outro lado.
Quando saímos do túnel, cerca de uns
20 ou 30 minutos depois, já era dia. Nos deparamos com uma bonita paisagem
verde, com pequenas e grandes casas, provavelmente fazendas, com enormes silos
metálicos interligados. O céu, como não poderia deixar de ser, estava nublado.
***
O nosso trem aportou na estação de
Saint Pancras, em Londres, aproximadamente às 10h daquela terça feira.
Conhecida como a “estação internacional” entre as paradas do metrô londrino (chamado
de underground), Saint Pancras estava
comemorando 150 anos. Construída no estilo tradicional inglês, mesclando vigas
de aço, ferro e tijolos à vista, a famosa estação ferroviária é conhecida por
abrigar a lendária passagem secreta de Harry Potter. A plataforma de trem é
constituída de um grande vão, onde os trens aportam para desembarcar os
passageiros. Sentimos muito frio ao sair, mas não estava nevando. Logo entramos
num ambiente climatizado, onde pudemos avistar uma escada rolante que
desembocava em grandes vitrais e, em seguida, num corredor com várias lojas,
restaurantes e livrarias.
Caminhamos em direção ao underground e lá, praticamente não
existem mais guichês, tudo sendo feito automaticamente por máquinas. O underground e a Libra Esterlina são
caríssimos. Como bons “capitalistas empreendedores” que não somos, eu e T não
compramos as promoções que barateariam o preço dos tickets. Demoramos um tempo
para perceber e dar o braço a torcer de que deveríamos ter feito isso: eu ainda
tinha esperanças de andar a pé o tempo todo, até ser convencido pelo “bom tempo
britânico” de que isso não seria possível. A sensação de passar pela catraca,
descer as escadas, olhar o rosto dos passageiros, suas roupas “chiques”, de
gola alta, com sobrecasacas, gorros e cachecóis, e, principalmente, ouvir a voz
metálica das gravações de “next station”,
me deu a plena sensação de estar em um episódio de black mirror ou num romance de Huxley. Aquela modernidade fria era
um pouco assustadora e desumana. Ao entrar no metrô lotado em direção à Victoria station, fui empurrado sutilmente
para a frente por uma cara feia, envolta em uma toca preta e segurando um livro
de Gabriel Garcia Marques, em inglês! Este “chega pra lá” foi a nossa saudação
de “boas vindas”.
O sistema de metrô de Paris e de
Londres é fantástico: uma verdadeira cidadela subterrânea que se liga com os
quatro cantos da cidade e, inclusive, com estações internacionais. Nada
demonstra mais a subserviência das prefeituras das grandes cidades brasileiras
aos trustes das empresas de ônibus que controlam o transporte público
(sobretudo em Porto Alegre), do que a sua recusa em construir um metrô, em
interligar as grandes cidades às suas periferias, facilitando o deslocamento e
a vida dos seus cidadãos. Apenas 6 cidades brasileiras possuem metrô: São
Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza. Isto é realmente
vergonhoso!
Acompanhando meus mapas, querendo arranjar
com isso um pouco de segurança, fiz um cálculo improvisado da estação que seria
mais próxima da rua do nosso hotel: Hugh
Street, número 20. Vi a pimlico
station, próxima da referida rua, então, pensei que seria a mais próxima. Não
era! Ao sairmos do underground
caminhamos um pouco a mais numa avenida de prédios de tijolos vermelhos sob um
céu terrivelmente acinzentado (lembrando os piores dias de inverno porto
alegrense: Quintana tinha razão!).
O nosso hotel fez jus ao poder
aquisitivo de latino-americanos tentando pagar em libras. Seu nome era Holly House Hotel, mas se quisesse
corresponder à realidade, deveria se chamar Hell
House. Administrada por indianos, o hotel estava instalado naqueles
tradicionais edifícios ingleses, com escadinha de entrada e grandes fossos dos
lados, que dão para as janelas dos andares inferiores. O piso era estofado e as
escadas muito estreitas, com poucos banheiros, que eram todos compartilhados.
Os forros de madeira faziam os quartos tão pequenos que quando adentrávamos
nele quase caíamos na cama. À noite, ouvíamos nestes forros (não sabíamos bem
se acima ou ao lado, nas paredes) o caminhar de alguma coisa: ratos ou
esquilos? Tentávamos nos convencer de que eram belos esquilos.
A nossa Hell House também tinha vantagens. Estava bem localizada: cerca de
3 quadras do Palácio Real. Sim, éramos quase convidados da rainha, embora
dormindo no estábulo real!
***
Como plebeus latino-americanos, tínhamos
levado cerca de R$1.600 para passar 4 dias na Inglaterra. Isso nos valeu míseras
350 libras. Pensava eu, na minha ingenuidade, que os preços e o custo de vida
em Londres seriam expressos em valores mais baixos em libras. Que nada! Tudo
custava mais do que 5 ou mesmo 10 libras, inclusive nosso primeiro fish and chips e a nossa primeira
cerveja morna que tomamos no restaurante mais humilde dentre os mais chiques
próximos ao palácio da rainha, gerido por uma senhora, tipicamente inglesa, de
cabelos curtos e roupas singelas. Tinha uma voz que me lembrava algo do Mr Bean e na sua janela, que dava para
os edifícios vizinhos, podíamos ver um punhado de livros com teias de aranha,
entre cartilhas com páginas de luxo sobre o majestoso Buckingham Palace até um grande e velho tomo de War and Peace, que fiquei muitíssimo
curioso para folhear. A Libra Esterlina, como uma das moedas mais valorizadas
do mundo, faz de nós, latino americanos, devedores de nascimento (algo como um “pecado
econômico original”) e dos ingleses, credores por natureza. Um inglês,
dispendendo muito menos dinheiro, pode usufruir de muito mais luxo no Brasil,
na Argentina ou no México, do que um latino-americano na Europa. Nossas
condições de hospedagem nos criaram trabalhos extras e muitos incômodos. Mas
sabíamos dos riscos desde o início. A quantidade de moedas que vinham de troco,
entre peças de 2 pennys ou mesmo 1,
era impressionante. Impossível não lembrar das “mil divisões” da libra no
século XIX. Certamente o sistema monetário inglês hoje é diferente, mais
centralizado e menos subdividido, porém, alguns resquícios sempre permanecem.
O fato, contudo, é que as nossas
poucas libras nos obrigaram a economizar, andar a pé, comer comidas mais
baratas (o que inclui o McDonald’s). Por outro lado, perder um pouco de
conforto abre outras possibilidades. Numa viagem como esta, não aproveitar para
caminhar por todas as ruas e avenidas possíveis e inimagináveis significaria
ser transportado pelo underground ou,
no melhor das hipóteses, ser levado por táxis e ônibus turísticos direto aos
principais pontos.
E o que há melhor para se sentir o
sangue correndo nas veias do que caminhar por caminhos desconhecidos, sem saber
o que nos espera no dia de amanhã? Qual inglês atualmente já andou cerca de 40
quadras de Londres a pé? Será que possuindo facilidades de transporte alguém já
tenha cruzado duas vezes o Hyde Park,
ido até a Abbey Road e o Freud Museum, na Maresfield Gardens, apenas com a tração dos próprios sapatos e
durante o auge do inverno? Isso, por certo, cobrou o preço de um dos joelhos da
T, mas isso era sempre superado no dia seguinte, quando a sede de novas
aventuras anestesiava a dor física e o nosso cansaço.
***
Ainda às doze horas do primeiro dia
em que pisamos na Inglaterra, dada a proximidade com o Palácio, fomos visitar a rainha. O guarda chuva que compramos em Paris nos foi de grande utilidade, pois
desde o primeiro dia na Grã-Bretanha tivemos que utilizá-lo. No caminho do
Palácio de Buckingham, na Buckingham gate,
já sentimos os primeiros pingos fininhos de uma garoa típica. Ainda não
acreditávamos que estávamos ali, na Inglaterra que foi outrora o centro do
império britânico e hoje, de certa forma ainda é um dos centros do mundo.
Aquela sensação de novidade por tudo nos deixava um pouco grogues, sem falar na
fadiga, pois havíamos acordado às 5h30min na França e às 10h estávamos na Inglaterra!
Na frente do Palácio, mesmo com
chuva, se aglomeravam inúmeros turistas, tirando fotos, selfies ou apenas observando a tradicional guarda inglesa. Não
vimos vendedores ambulantes, tal como na França e na Itália. Acima do Palácio
tremulava uma grande bandeira bordada em estilo medieval: as velhas e infames
flâmulas da tradição! Fiquei sabendo quando dei uma olhada no livro sobre o
Palácio no restaurante da senhora tipicamente inglesa, que quando aquela
bandeira está hasteada a rainha se encontra no Palácio. Nós, lamentavelmente,
não vimos absolutamente nada; mas pudemos observar o belo chafariz que se
encontra de fronte às grades do Palácio, em que de um lado temos um homem com
um martelo e, do outro, uma mulher segurando uma foice (o que diriam os
neuróticos anti-comunistas brasileiros e ianques?). Também apreciamos a
tradicional guarda real inglesa, parada nas suas guaritas, resistindo às fotos
e aos sorrisinhos zombeteiros dos turistas.
Embalados pela curiosidade, saímos caminhando
em direção ao centro de Westminster, onde se pode vislumbrar grandes
construções no estilo medieval, desde a catedral do famoso bairro até o
parlamento, que ostenta às margens do Tâmisa, o famoso Big Ben. Ao nos
aproximarmos da George Street, pudemos
ouvir as badaladas dele. Porém, para o nosso azar, percebemos que ele estava em
reformas, cheio de andaimes e tapumes que impediam a visão. O edifício do
parlamento, no entanto, valeu a visita: tal como uma grande catedral gótica, a
sua arquitetura é toda ornamentada com pequenos e grandes detalhes dourados,
além de uma belíssima estátua de Oliver Cromwell e imensos portais de entrada
em estilo ogival.
Na tardezinha e noite do primeiro
dia, após um breve descanso, caminhamos pelas margens do Rio Tâmisa, que banha
e corta Londres em duas partes. Em largura e extensão lembra bastante o Sena em
Paris e o Tibre em Roma. Indo pela Vauxhall
Bridge Road até a beira do rio, subimos depois pela Abington Millbank e fomos novamente até o parlamento inglês,
caminhando pelo grande jardim que o precede para quem vem pelo sul, chamado de Victoria Tower Gardens. Alguns cachorros
e seus donos passeavam por ali naquela terça feira nublada e fria. Passando o
Palácio do Parlamento, fomos até o big
eye londrino, a famosa roda gigante às margens do Tâmisa. Do lado oposto ao
do London eye está um grande
monumento aos aviadores britânicos mortos na Segunda Guerra Mundial (existe
outro em homenagem aos combatentes das guerras mundiais próximo de uma das
entradas do Hyde Park). De lá, fomos procurar um tradicional pub londrino para
tomar cerveja morna e, talvez, degustar uma nova porção de fish and chips.
Nos recomendaram um pub barato de Westminster, chamado The Lord Moon of The Mall. Enquanto caminhávamos para lá íamos saboreando a paisagem, já de noite fechada, com prédios de arquitetura e aparência medieval, em meio a um grande trânsito de pedestres e carros. O google maps nos enganou duas vezes. Quando já estávamos desistindo de encontrar o pub demos de cara com ele, do outro lado da rua. Atravessamos e adentramos o local. O ambiente era grande e chique, com carpete no chão e grandes mesas de madeira espalhadas por todos os lados e quadros pendurados em todas as paredes. Estava lotado! Pessoas sentadas e outras em pé conversavam sonoramente. Pegamos uma mesa em um canto e pedimos duas cervejas com uma porção de chips (foi o que nossas libras nos permitiram comprar!). Enquanto comíamos e conversávamos, observava uma família e um grupo de amigos bem ao nosso lado, comendo hambúrguer e bebendo cerveja. Falavam animadamente e volta e meia um senhor dava uma risada. Eu me esforçava, mas não conseguia entender aquele inglês tão rápido, provavelmente, repleto de gírias. A experiência foi boa; e a cerveja, apesar de morna, também! Depois disso, a little bit drunk, caminhamos de Westminster direto para o nosso hostel.
***
No dia seguinte acordamos cedo,
tomamos café e zarpamos para a rua: a agenda estava lotada! Queríamos conhecer
a Abbey Road, o Museu do Freud e, se
possível, visitar o bairro em que Marx viveu – o Soho – e ainda passar na Baker
Street, pois no mapa todos estes pontos pareciam relativamente próximos. Por
esta ousadia, caminhamos mais de 40 quadras. Apesar do “erro”, andamos por
lugares inesquecíveis, cheios de uma beleza arquitetônica e estética rara para
nós. De tanto que caminhamos chegamos a sentir calor em alguns momentos, sendo
obrigados a tirar cachecol e toca. Por volta das 11h da manhã chegamos na Abbey Road. Não se sabe ao certo quando
se está próximo da famosa faixa de segurança, pois as ruas são muito parecidas
e bastante longas. Porém, não há mais dúvida quando se vê um grupo de pessoas
atravessando várias vezes a faixa, de um lado para o outro, tirando fotos e um aglomerado
de gente nas calçadas, esperando sua vez de atravessar, chegando a gerar um
certo congestionamento de carros.
Um pouco mais adiante da faixa de
segurança mais famosa do mundo está o Abbey
Road Studios, que abriga uma loja de conveniências com tudo sobre os
Beatles. No muro de entrada todos deixam o seu recado de agradecimento à banda,
trechos de música ou simplesmente uma declaração de amor a outrem. Eu e T
eternizamos nosso amor com um belíssimo coração em um dos poucos espaços em
branco dos pilares do muro do estúdio. All
we need is love! Em alguns prédios vizinhos existem placas pedindo (sem
sucesso) para não picharem, tamanho o afã dos beatlemaníacos do mundo em deixar um “estive aqui”.
***
Um pouco mais tarde e mais distante
da Abbey Road, eu demorei certo tempo
para acreditar que estávamos diante da casa em que Freud morou. Foi na Maresfield Gardens, número 20, que vimos
as nossas primeiras placas azuis, que diziam que Sigmund Freud e Anna Freud
tinham vivido ali até as suas mortes, em 1939 e 1982, respectivamente. Neste
local, onde viveu a família Freud, também foi redigido Moisés e o Monoteísmo e O
esboço de Psicanálise. Mesmo diagnosticado com câncer, Freud continuou a
sua prática psicanalítica, recebendo pacientes que vinham até aquela casa para
sessões. Na grande sala do térreo pode se ver o divã original trazido da
Áustria, a sua mesa, com os famosos óculos redondos sobre um papel com
anotações e cinzeiros, muitos cinzeiros! Mais à esquerda está uma grande
estante de livros, com réplicas de pequenas estátuas gregas, romanas, egípcias
e orientais; mais acima despontam vasos gregos e de outros povos antigos,
pedaços de paredes ornamentadas (como se fossem de um templo da mesopotâmia),
tapetes em estilo persa e até uma máscara funerária de Tutancâmon
(provavelmente uma réplica). Impressiona a quantidade de estátuas! Que só
perdem em quantidade para os livros! Segundo os organizadores do museu, tudo
pertencia a Freud, que era um ávido colecionador de antiguidades. “A paixão por colecionar”, diz o
portfólio do museu, “só era superada em
intensidade pelo seu vício de fumar charutos”.
Entre seu acervo de livros há diversos
assuntos que vão desde a biologia, psicologia, arte e literatura até medicina,
arqueologia, filosofia e história. Antes de fugir de Viena, Freud teve que
vender, contrariado, cerca de 800 livros. Observando a estante de livros logo
após o hall de entrada, percebemos uma movimentação atrás de nós: era um grupo
de brasileiros, provavelmente psicanalistas, que vinham conhecer o museu
também. No jardim de inverno, que fica no fundo da casa (originalmente aberto
para o grande quintal, mas atualmente fechado) é onde se compra o ingresso. Ali
há uma pequena lojinha de conveniências, com souvenires, obras de arte, livros,
blocos de anotações, canetas, bolsas, etc., tudo, evidentemente, ou quase tudo,
relacionado com a psicanálise. Lá recebemos o nosso adesivo do museu que servia
como ticket de entrada. O tempo que passamos na casa constatamos grande afluxo
de turistas de todo o mundo, não apenas brasileiros, mas, também, alemães e de
outras nacionalidades que não conseguimos identificar. O preço em libras não
era muito convidativo, mas, de qualquer forma, queríamos levar lembranças
daquele momento mágico para nós. T comprou uma bolsa do museu e eu um pequeno
livro intitulado: “Life lessons from
Freud” de Brett Kahr, um psicanalista inglês que ajudou a organizar o
museu.
Foi na sala de vídeo do segundo andar, que
era provavelmente um quarto no passado, mas que transformaram em uma espécie de
cinema do museu no presente, onde passava um vídeo narrado por Anna Freud, que me
caiu a ficha e eu pude perceber então onde eu estava. O filme contava, pela voz
de Anna, a história da vinda da família Freud até Londres e dava um breve
relato da vida do pai naquela casa. Quando me sentei numa das cadeiras e pude
olhar uma nesga de céu pela janela dos fundos, que dava para o belíssimo jardim
do quintal, a emoção do momento me trouxe muitas lembranças à consciência: de
repente me vi na casa da minha infância, também muito grande e com um belíssimo
quintal, onde ficava olhando o céu nublado porto alegrense. Agora estava lá, no
outro extremo do oceano Atlântico, na casa de um grande pensador! Não se
tratava apenas de estar na casa em que Freud “passou o último ano de sua vida”, mas na Europa, no velho mundo!
Vendo e vivendo todas aquelas coisas que outrora apenas lia nos livros e via na
TV ou na internet.
***
Saímos um pouco apressado do museu
porque já era tarde, estava frio, e o inverno londrino faz os dias muito mais
curtos. Ainda pretendíamos voltar a pé para o hotel, quando uma chuva, que
começou fininha, mas engrossou rápido, começou a cair. Na ida tínhamos visto
uma feira gastronômica com bancas que vendiam comida de todos os lugares do
mundo, inclusive do Brasil (com pão de queijo e guaraná!). Gostaríamos de ter
voltado lá, mas com a chuva achamos mais prudente seguir o nosso caminho em
direção ao hotel. Através de um pequeno beco, desembocamos na grande avenida Finchley Road, na qual há uma sequência
de restaurantes, bares e lanchonetes. A chuva nos fez entrar numa Starbucks, onde sabíamos que tinha a
internet de menor burocracia para livre conexão.
Nos sentamos em duas confortáveis
poltronas de lado para um grande vitral que dava para a rua. Tomávamos café e
falávamos com os familiares no Brasil pelo celular e entre nós também. Foi
neste momento que T percebeu que estávamos sendo observados. Eu demorei um
pouco para entender. Continuamos conversando, até que reparei um senhor, sentado
bem de frente para nós, do outro lado da mesinha, nos analisando com um olhar
provocador. Ele possuía uma grande barba branca, vestia um paletó cinza e tinha
no colo um notebook. Não lembro ao certo qual foi a deixa para que ele
começasse a falar conosco desenfreadamente, só sei que no meio de todas essas
sensações já estávamos conversando como se fôssemos velhos amigos. Tal como ele
nos falou um pouco depois, o que tinha lhe chamado a atenção em nós era a
língua, que não era muito familiar para os seus ouvidos. Mesmo percebendo que
nós tínhamos grandes dificuldades para falar em inglês, ele não desistiu de
nós.
Começou, obviamente, perguntando de
onde éramos. Em seguida, quis saber por que estávamos em Londres no inverno!
Falei, no meu péssimo inglês, que éramos dois jovens latino-americanos,
andarilhos do mundo, curiosos, amantes da boa literatura e de boas aventuras.
Gostávamos de andar por outros países e pelas ruas de outras cidades. Ele se
interessou muito pelo assunto. Desandou a falar. Compreendíamos entre 60% e 70%
do que dizia. Parecia que ele esperava alguém romper com o mundo virtual
daquela cafeteria para poder trocar uma ideia em carne e osso, que é sempre
muito melhor.
Perguntou o que fazíamos da vida.
Respondemos brevemente. Vendo o notebook não mais no seu colo, mas já na
mesinha a sua frente, perguntei se ele era escritor (quem sabe eu e T estivéssemos virando personagens de um grande romance?). Não! Para nossa grande
surpresa ele nos disse que era jogador de xadrez (não entendi até hoje se
amador ou profissional). Me espantei! Não imaginava que isso fosse possível!
Lamentei não termos um tabuleiro para jogar. Nesta altura eu já estava muito
curioso, tendo a possibilidade de conversar com um senhor inglês, de mais de 70
anos, muito simpático (iguaria rara em Londres), que exibia grandes dentões de
coelhos por entre a espessa barba branca quando sorria, e, ainda por cima,
jogador de xadrez! Era, realmente, um encontro muito surreal!
Nos contou ainda que havia estado na
Alemanha (provavelmente para jogar xadrez), e que lá a juventude estava falando
melhor inglês do que na Inglaterra. Repliquei lhe dizendo que este era um
fenômeno mundial. A juventude está se alienando em todos os países e
valorizando coisas banais (claro que não falei com esta clareza, mas tropeçando
para formar cada uma destas frases; quando T não me ajudava a completa-las, o
senhor inglês compreendia por si só, ou me ajudava a concluir). Questionei-lhe
então, por duas vezes, quais eram os seus autores preferidos da atualidade. Ele
não compreendeu a pergunta. Como bom inglês, primeiro me falou longamente sobre
Shakespeare e a sua peça preferida: Júlio César. É compreensível! Qualquer país
se orgulharia de ser a pátria de Shakespeare. Em seguida, falou de Charles
Dickens. Sabia muito pouco sobre este escritor, a não ser o básico: ele
escreveu Oliver Twist. Certamente
aquele senhor inglês me despertou a curiosidade em conhecer mais a sua obra.
Contou-nos detalhes das passagens que mais lhe emocionavam no livro As aventuras do Sr. Pickwick. Neste
momento confesso que consegui compreender 40% do que ele dizia, mas, de
qualquer forma, sentia que ele vibrava ao contar e que realmente queria
conversar conosco, como se fôssemos velhos amigos.
Ele, por sua vez, perguntou quais
eram os nossos escritores preferidos. Respondi-lhe que gostávamos de Marx, Dostoievski
e Machado de Assis (citamos este porque vimos um de seus livros de contos numa
livraria de Paris). Ao ouvir o primeiro nome ele desandou a nos contar a
história de Marx em Londres. Disse-lhe que conhecíamos a história e que me
agradava a sua biografia. Então, o nosso amigo nos questionou se iríamos pagar
libras para ver o velho revolucionário no cemitério. Não pude lhe responder a
altura, pois não tinha conseguido compreender a maldade do questionamento.
Limitado pelo meu inglês, disse-lhe apenas que “talvez fôssemos”. Quis lhe
perguntar se ele já tinha lido Os irmãos
Karamazov, de Dostoievski, e ele respondeu que não, apenas havia visto a
adaptação para o cinema (que eu nem sabia que existia!). Não sei se entendi
mal, mas me pareceu que o nosso bom senhor inglês não se interessava muito por
arte de fora do reino. Talvez tenha sido apenas uma má impressão minha. Vendo
tantas pessoas aficionadas nos seus celulares e notebooks, o questionei sobre a
tecnologia: o que pensava ele do mundo virtual e das pessoas vidradas nos seus
aparelhinhos? “Wonderful”, ele
respondeu! Uma criança de 5 anos de idade se comunica com pessoas do outro lado
do mundo, ele completou. Era um senhor realmente conectado com as novidades tecnológicas
do mundo.
Nessa altura me dei por conta que
ainda não sabíamos os nossos nomes. Nos apresentamos e, em seguida, ele
apresentou-se: chamava-se John. Já nos tratávamos como grandes amigos. John
elogiou nossa preocupação em andar com guarda-chuva: “nesta cidade isto é muito
necessário”, ele nos alertou. Comentei que já estava ficando tarde e que a
chuva havia diminuído: o cinza do céu já dava lugar a uma névoa úmida.
Perguntou onde estávamos hospedados. Respondi-lhe que perto do Palácio de
Buckingham. John demonstrou um leve desapontamento. Puxou um novo assunto: como
estava a situação do Brasil? Fiz-lhe, até onde o meu inglês o permitiu, uma
breve exposição da situação política nacional, com um governo ilegítimo e
odiado. A sobrancelha de John franziu-se. Disse-lhe que vivemos em um país
jovem e cheio de problemas, mas apesar de tudo, um bom país. Meu inglês
limitado e nossa breve amizade não me permitiu apresentar-lhe as dívidas da
Inglaterra para com o Brasil e a América Latina
T reparou que John tinha os sapatos
e uma parte de sua maleta, logo ao lado da poltrona, sujos de terra. Até hoje
não solucionamos este enigma. Vendo os adesivos do Freud museum que havíamos esquecido de tirar dos nossos casacos,
John se pôs a falar de sua família. Disse-nos que havia nascido em 1939, na
Escócia, criado em uma família muito autoritária, o clã dos McDonald. Neste
momento ele disse, orgulhoso, “me chamo
John McDonald”! Contou ainda que seu pai maltratava a sua mãe (não ficou
claro para nós se eram realmente um casal ou o seu pai “abusava” de sua mãe) e
que isso lhe fazia muito mal. John não era casado e não tinha filhos: a sua
última esposa era muito estúpida (segundo o seu relato), e isso acelerou o fim
do relacionamento. Não tivemos coragem (nem nosso inglês nos permitiu)
perguntar mais detalhes. Logo em seguida, por iniciativa própria, com a voz um
pouco engasgada e os olhos marejados, John falou que não chorou quando seu pai
morreu, o que aprofundava seu complexo de culpa. Isso lhe pesava muito sobre os
ombros – foi bastante visível. Nós nos limitamos a ouvir e dizer: “tudo isso é
realmente muito triste, John”. Ele apenas sorriu e disse: “life is complicated”. Dessa vez fomos nós que sorrimos. Já era
tarde! Falamos que tínhamos que ir. John se pôs de pé e nós também. Lembro-me
que ele salientou a altura de T: “como ela é alta”! Nos abraçamos e nos
despedimos.
Já no meio da rua, caminhando em
direção ao underground, fomos
pensando no quão surreal tinha sido tudo aquilo. John McDonald parecia um
personagem pitoresco saído de um romance. Esfregávamos os olhos para ver se o
que tínhamos vivido era verdade. Aqueles que aguentaram ler o relato até aqui
podem perguntar se tudo isso não passa de uma ficção literária. T é testemunha
de que não! Quando estávamos próximo de uma banquinha de distribuição do Evening Standard, nos demos por conta de
que devíamos ter pedido o contato dele. Facebook,
e-mail, qualquer coisa! Peguei um jornal, rasguei uma parte e escrevi ali o
nosso contato. Quando voltei à cafeteria para lhe entregar o bilhete
improvisado, tudo indicava que ele tinha ido ao banheiro. Deixei o pequeno
pedaço de papel sobre o seu notebook e fui embora.
Até hoje nunca recebemos retorno...
***
Cabe um destaque para o jornal
londrino Evening Standard, que é
entregue gratuitamente todas as noites, principalmente nas entradas do underground. Trata-se de uma publicação
regular de grande circulação, de caráter liberal-burguês. Do meu ponto de
vista, até onde consegui ler, é um jornal insosso, descartável, mesclando
notícias políticas com fofoquinhas de personalidades. Os editoriais, a despeito
de um chargista, que passou a ser meu amigo no instagram, defendem pautas burguesas e neoliberais. Cabe o destaque
de uma crítica literária de um “best seller”, lançado recentemente, que afirma
que “a sociedade humana nunca esteve tão bem quanto neste século” e que, por
isso mesmo, temos todo o direito de nos sentirmos otimistas. Parecia,
evidentemente, que os jornalistas sofriam de uma espécie de cegueira
voluntária, uma vez que se a sociedade está
boa para eles, então está boa para todos. A América Latina, a África e a
Ásia são pequenos detalhes...
Outro tópico que me chamou a atenção foi um
artigo escrito por Allan Mak, um parlamentar eleito pelo partido conservador
por Havant (região ao sul da Inglaterra), como representante de uma colônia
chinesa da Grã-Bretanha. Ele atacou severamente o “comunismo” chinês
(obviamente para se diferenciar dos seus compatriotas e ignorando,
provavelmente de forma consciente, que não há, nem nunca houve, “comunismo” na
China), para logo em seguida conclamar a que a comunidade de chineses na
Inglaterra (que não deve ser pequena) torne-se protagonista dentro do Reino
Unido, assumindo mais funções sociais e saindo dos guetos. Em síntese, conclama
a que esta comunidade chinesa utilize-se de seu poder de maioria e, é claro,
lhe dê suporte político. Basta perguntar: para quê?
Um homeless inglês |
O Evening
Standard também abordou o aumento dos moradores de rua (homeless) nos bairros ricos de Londres.
Isto realmente é visível a olhos nus. Diferentemente dos mendigos da Itália e
do Brasil, os indigentes da França, mas, sobretudo, os da Inglaterra, não falam
absolutamente nada com você. Ficam sentados, com uma plaquinha e uma latinha
para colher pennys (quiçá 1 libra).
Mal conseguem elevar os olhos. Evidentemente que o Evening Standard fez uma abordagem jornalística superficial e
burguesa, mas não pôde esconder o problema, que tem crescido por toda a Europa,
bem como o “problema” da imigração. Também é importante registrar que, tal como
na França, os imigrantes ocupam as profissões mais baixas: atendentes de hotel,
caixas de supermercado, motoristas de ônibus, serventes, faxineiros; na
Inglaterra, a maioria destes postos é composta por pessoas negras ou indianas.
Em menor medida, se observam muitos chineses nestes mesmos postos – embora se
ocupem mais de pequenas lojas de conveniência e souvenires.
Naquela noite, depois de conhecer nosso amigo
John McDonald, comemos uma pizza comprada em um supermercado e tomamos vinho
barato da Califórnia (muito ruim, na minha opinião), comprado em uma loja de
conveniência. Sentados num estreito vão do quarto do nosso hostel, eu e T
tivemos uma briga homérica, digna de andarilhos cansados e um pouco estressados,
que viviam momentos inesquecíveis do outro lado do mundo. As paredes tinham um
forro muito ruim que nos fazia ser ouvidos em outros quartos. Por sorte,
ninguém sabia falar português. Felizmente o amor é uma grande força da
natureza. E tão logo o ódio – que é parte do amor – se desfez, já estávamos em
paz.
***
Na manhã do dia seguinte descemos na
estação de Archway da linha preta do underground, que leva para o norte da
cidade, saímos em um bairro pacato de Londres. Nos deparamos com um clima
totalmente diferente de Westminster, onde um tráfego lento de carros e de
pessoas nos deu grande tranquilidade para caminhar e desfrutar de um belíssimo
dia de sol, que contradizia toda a literatura e os filmes que se passam na
capital da Inglaterra. Na saída demos de cara com um mendigo, que estava
absolutamente imóvel, segurando uma placa pedindo ajuda e “lagarteando” no sol
do inverno. Tirei uma foto dele para registrar os moradores de rua na Europa.
Ao perceber que estava sendo fotografado (embora eu estivesse disfarçando,
tirando foto da estação do underground),
ele escondeu o rosto atrás da placa.
Outro homeless inglês |
Nos deslocamos, então, calma e
vagarosamente para o bairro de Highgate,
conhecido por sediar o famoso cemitério no qual Karl Marx está sepultado. Já
estávamos nos tornando turistas mórbidos de cemitério. Chegamos próximos de
grandes grades, artisticamente soldadas, que deixavam aparecer, por entre suas
frestas, o interior do cemitério, com tumbas ostentando estátuas e belíssimos
ornamentos, nesgas de árvores altas, que davam um bonito aspecto bucólico e
verde musgo a todo o cenário.
Tivemos que contornar toda a parte
sul do Highgate Cemetery East, que é
separado do West por uma avenida que se estende por uma lomba. Após uma breve
caminhada chegamos ao portão principal, que tem uma casinha de entrada, onde
fica um funcionário. A entrada nos custou 4 libras, o que nos dá direito a um
mapa. De início pode-se perceber em um grande banner no portão de entrada uma
foto da tumba de Karl Marx. Até hoje a mídia burguesa ironiza o fato de se
pagar para ver o túmulo de Marx (como se fosse culpa dele); no dia anterior nosso
amigo John McDonald já nos tinha ironizado. Por mais que seja realmente um
absurdo pagar para entrar em um cemitério – uma vez que o Perè-Lacheise, em
Paris, é absolutamente gratuito e muito maior, contendo muitas mais tumbas
“famosas” –, fazer turismo é uma questão de opção: ao invés de pagar para andar
na roda gigante do London Eye ou num
barco no Tâmisa, preferimos prestar condolências ao velho revolucionário, tal
como muitas outras pessoas do mundo. Ainda que tenhamos sido logrados pelo
espírito burguês do “empreendedorismo” inglês, era nossa única oportunidade de
estar de pé no mesmo local em que Friedrich Engels pronunciou seu famoso
discurso, quase uma profecia, sobre o caixão do amigo, em 17 de março de 1883: “seu nome viverá através dos séculos, e com
ele a sua obra”.
Lá estávamos nós, de pé em frente ao
seu grande busto, em cima de um bloco sólido e bem compacto de pedras, com os
seguintes dizeres: Workers of all lands,
unite; Karl Marx, Jenny Von
Vestphalen, the beloved wife of Karl Marx, born 12th february 1814, died
december 1881; seguido por outros nomes de filhas. Logo abaixo se pode ler,
em inglês, a famosa 11ª tese à Feuerbach: “Os
filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, mas o que
realmente importa é transformá-lo”. Sobre a tumba se vê um punhado de
flores de vários tipos, velas, folhetos, livros e bilhetes agradecendo-o por
tudo. No tempo que estivemos ali, pelo menos umas 10 pessoas passaram para
olhar e tirar fotos (algumas de feições orientais). Quando saímos do cemitério,
perto do meio dia, outras pessoas estavam chegando do leste europeu, pelo que
pudemos ouvir, também para visitar o seu túmulo.
Juntei algumas pedrinhas brancas que
ficavam sobre a tumba, agradecemos no nosso íntimo a luta daquele grande revolucionário
– que morreu no anonimato de sua época, difamado e caluniado –, e nos pusemos a
caminhar pelo cemitério. Entre tumbas grandes e pequenas, carros de coveiro e
funcionários do cemitério, vimos uma raposa sair do meio de arbustos, nos olhar
e voltar para a mata, e alguns esquilos subindo nas árvores. Que belo presente
da natureza em meio a um cemitério, não? Ainda “visitamos” o túmulo de Eric
Hobsbawm e de Douglas Adams, o autor do Guia
do mochileiro das galáxias. Entre uma caminhada e outra descobri um
jornalista brasileiro enterrado em Highgate:
era José Carlos Rodrigues, editor do Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, que
viveu entre 1844 e 1923.
Aquela manhã em que visitamos o
túmulo dos Marx fazia um dia estranhamente ensolarado em Londres. Passamos
outra vez em frente ao grande busto do revolucionário alemão, como que para nos
despedirmos. Se aproximava um novo grupo de indivíduos. Nos pusemos em marcha
para a saída. Quase no portão da rua o céu nublou abruptamente e desabou um
aguaceiro, que logo se transformou em granizo. A guarida do guarda era muito
pequena para abrigar a todos nós, além do que já tinha outras pessoas. O jeito
foi se esconder na capela de entrada, muito ornamentada, com grandes vitrais
coloridos e com uma tela de televisão acoplada à parede, que dava boas vindas
aos forasteiros e mostrava foto das tumbas e dos caminhos do cemitério. Justamente
naquele dia fomos iludidos pelo sol que brilhou radiante e não levamos o nosso
guarda chuva parisiense. Quanto tempo iríamos esperar encarcerados ali?
Felizmente, em menos de 10 minutos, a chuva foi se transformando em uma garoa e
o céu se abriu novamente. Assim que sentimos firmeza, saímos caminhando do
cemitério, subimos a lomba e demos numa praça muito bonita, que dava de frente
para um Igreja cercada por um belíssimo muro de tijolo à vista, de onde
despontava a placa da Highgate High Street.
Caminhando em direção à estação do underground, ainda encontramos uma nova
placa azul: dessa vez foi uma casa em que o escritor Charles Dickens tinha
estado em 1832 (isso é o legal dessas plaquinhas azuis, que apareciam quando se
menos esperava). Paramos, contemplemos o lugar e seguimos nosso caminho. Mas a
nossa visita a Marx não acabou em Highgate.
***
Por volta da uma da tarde
desembarcamos na estação do underground
do Soho, bairro em que Marx morou durante o período que escreveu O capital, provavelmente se aproveitando
da proximidade com o Museu Britânico. Fomos seguindo as orientações do mapa,
que mostrava o edifício exato da Dean
Street em que Marx tinha morado. No caminho o estômago começou a falar mais
alto que a curiosidade e, então, achar um restaurante tornou-se primordial.
Tentamos uma lanchonete, mas estava completamente lotada. Então, voltando nosso
olhar para o outro lado da rua e demos de cara com um convidativo restaurante
italiano: Limoncello! Só ao adentrar
o recinto e ouvir as músicas já nos sentimos em casa. O italiano é irmão do
português, e o parentesco com o latim quebrou aquela overdose de anglo-saxão
que estávamos ouvindo 24h. Eu comi macarrão típico com uma taça de vinho; T
pediu um minestrone. O atendente era um senhor italiano, que falava inglês com
o “R” carregado. Eu conseguia entendê-lo perfeitamente. Apesar de um pouco
caro, saímos satisfeitos e eu um pouco embriagado para encontrar a antiga casa
de Marx.
Posso dizer, seguramente, que o Soho
foi um dos lugares que mais me agradaram em Londres: um centro comercial, que
mais parecia um formigueiro, de tantas pessoas que caminhavam para lá e para
cá. Em cada canto um restaurante diferente, com prédios coloridos de toldos
listrados e postes com vasos de flores pendurados. Uma praça ao centro do
bairro, muito charmosa e convidativa. Pena não termos tido tempo de desfrutar
uma tarde sentados nos seus bancos. Chegamos de fronte a casa de Marx, com uma
placa azul quase no terceiro andar do prédio, mal dando para ler os dizeres: Karl Marx lived here 1851-56. Tivemos
que quase quebrar o pescoço para conseguir olhar e mal deu para tirar uma foto.
Ao lado da plaquinha azul tremulava uma grande bandeira do Reino Unido.
Seguindo a rua em que Marx morou
desembocamos em uma grande avenida, onde paramos para olhar algumas lojas e o
movimento de transeuntes. Ao longe víamos um engarrafamento dos grandes ônibus
vermelhos, seguidos pelos black cabs.
Num pequeno estabelecimento de souvenires, compramos duas caixas metálicas do
tradicional chá inglês para levarmos de lembrança. Consultando o caminho pelo
celular, nos pusemos em marcha para o Museu Britânico, que era relativamente
próximo dali, observando o início do fim da tarde no movimento bairro do Soho.
***
Quando chegamos na entrada do Museu
Britânico o sol do Inverno já estava bastante fraco, dando uma tonalidade
avermelhada para a fachada da frente e o telhado do prédio, que parece um
grande templo grego. Apesar de menor que o Louvre em tamanho e em acervo, o
Museu Britânico tem a grande vantagem de ser totalmente gratuito! Talvez seja
por isso que se forma uma grande fila na entrada até às 18h, que é impedida de
fluir livremente porque precisa ser revistada pelos aparelhos de raio-X numa
verdadeira operação militar. Com pacotes de compras, mochilas, casacos e
cachecóis, nos pusemos a passar por aquele ritual aborrecedor, embora a
recompensa fosse valiosa: os tesouros da antiguidade humana, desde o oriente
chinês e a América pré-colombiana (arte Maia e Asteca) até a antiguidade
clássica greco-romana.
Certamente o Museu Britânico passou
por readaptações, com partes hoje cobertas, lojas de conveniência, livrarias,
cafés, bancos para descanso, etc. Chegamos muito atrasado naquele dia, por isso
não pudemos desfrutar de cada sessão com calma. Em algumas exposições tivemos
que simplesmente passar, lamentavelmente. A sessão egípcia compensou a do
Louvre (que não pudemos ver em razão de estar fechada). A greco-romana me
passou uma impressão de ser melhor organizada e com mais acervo do que o
Louvre, mas posso estar enganado. A mais original, contudo, foi a que trazia
estátuas de porcelana da antiguidade chinesa, com vasos, fragmentos de placas
contendo textos de epigramas em mandarim. Em razão do tempo, não pudemos ver as
galerias da Renascença europeia, com uma coleção doada pelo barão Ferdinand
Rothschild, nem a galeria pré-colombiana.
Finalmente, após subir e descer por
várias escadas e passar por diversas galerias, chegamos à biblioteca do museu,
que hoje, certamente deve ser muito diferente do que era na época de Marx. Foi
precisamente ali que ele escreveu sua grande obra, utilizando-se,
provavelmente, daqueles livros espalhados por gigantescas prateleiras (hoje
fechadas com vidro), entrecortadas por vasos gregos e estátuas antigas. Ficamos
algum tempo sentados num dos grandes bancos bem no meio do saguão, observando
os curiosos que passavam por ali, tirando fotos ou simplesmente observando.
Imaginei o velho, sentado em uma das mesas (que não estão mais ali), com vários
livros de consulta, fazendo anotações e apontamentos, pegando e descartando
livros. Foi neste interim que dois funcionários passaram gritando, comunicando
que o museu iria fechar em 10 minutos e que todos tinham que se dirigir para a
saída.
Deixamos o museu e fomos caminhando
para o hotel, numa noite já gelada e, apesar disso, com muita gente na rua. O
dia seguinte seria o nosso último dia como súditos.
***
Levantamos cedo, tomamos o nosso
café da manhã magro do hostel, com cereais, torradas, suco de laranja
industrializado, café ou chá. Comemos o que conseguimos, juntei os flyers que achei interessante, um mapa
de Londres e nos pusemos em marcha, com mochilas e sacolas, parecendo dois
retirantes. O nosso último dia na capital do Reino Unido foi colaborativo: sol,
céu azul e poucas nuvens, embora estivesse frio, muito frio. Caminhamos do
nosso hostel até o Hyde Park, onde, cansados de carregar tanto peso, nos
sentamos num dos bancos da praça. Vimos pessoas correndo, ciclistas e um grupo
do exército passando com as suas metralhadoras à vista (isso foi uma cena
recorrente nos três países que passamos, principalmente na França e na Itália).
Cortando caminho pelo meio do
parque, nos deparamos com alguns esquilos cheirando e examinando nozes no chão
e alguns corvos, que a poucos passos de nós crocitavam, preenchendo o cenário
bucólico. Ao longe já avistávamos uma grande avenida, por onde passavam os tradicionais
ônibus vermelhos e vários carros, e alguns prédios no bom estilo londrino.
Vendo aquelas árvores seculares espalhadas ao longo do caminho verde, dada a
proximidade com o Palácio de Buckingham, cheguei a pensar, com os meus botões,
que num passado longínquo aqueles jardins seriam de uso exclusivo da família
real, para caçar, passear, ou simplesmente desfrutar de um lugar ao sol.
Perdido nesses devaneios, cruzamos a grande Park
Lane e adentramos a rua que nos levaria à Baker Street.
***
De todos os cenários londrinos de
filmes que já vi e histórias que já li, nada se parecia com aquela Baker Street fria, escurecida pelo
nevoeiro do inverno. Nenhum violino sendo tocado na janela pelo famoso
inquilino dessa rua ou pelo ratinho que mora no seu assoalho. Vimos apenas uma
rua ensolarada e linda, cheia de pessoas caminhando e um comércio pujante.
Próximo da estação do underground se
encontra o Sherlock Holmes Museum,
mas não possuíamos mais nenhum penny
para poder visita-lo. Nos contentamos a tirar uma foto do lado de fora. Bem
acima da entrada encontra-se uma placa azul, afirmando que o lendário detetive
tinha “vivido” ali.
Antes de chegarmos no museu,
passamos por uma das esquinas da Baker
Street que tinha um prédio de tijolos à vista, com outra placa azul, que
dizia que John Lennon e George Harrison tinham estado naquele lugar,
provavelmente fazendo um som. Tiramos algumas fotos e, logo após, fomos comer
em um fast food “saudável”, que fazia
sopas e comidas vegetarianas. Here comes
the sun! Já ao meio dia fazia um pouco de calor, o que me obrigou a tirar a
toca, o cachecol e colocar o casaco na cadeira. Estávamos cheios de sacolas,
mochilas e, agora, com roupas penduradas por todos os lados.
Depois da rápida visita à rua de
Sherlock Holmes fomos para a London
Bridge. Queríamos desfrutar alguns bons momentos de sol de inverno pertinho
do Tâmisa. Saímos do underground com
as nossas bagagens e ficamos alguns minutos sobre a ponte, olhando o fluxo
intenso de barcos cheios de turistas e de transeuntes, ônibus e carros que
passavam de um lado para o outro. Lá no outro lado podíamos avistar a grande
ponte das torres (Tower Bridge), com
a sua arquitetura medieval majestosa. Passava, naquele dia, um ventinho frio
por nós, mas o sol nos esquentava um pouco. Muitas pessoas também se
empoleiravam para tirar uma selfie ou
uma foto qualquer. Algumas gaivotas voavam por baixo da ponte ou pousavam em
algum alambrado nas margens do rio.
Seguimos caminhando e cruzamos a
ponte em direção à City Londrina, a Wall Street da Europa. Um grande prédio
espelhado está bem na saída da ponte. Procurávamos um supermercado barato para
comprar alguma fruta ou comida barata. Dando a volta no prédio acabamos
encontrando uma grande coluna, que era o monumento ao grande incêndio ocorrido
em 1666 (mais conhecido como The Monument),
que devastou prédios, templos, casas e deixou um número grande de vítimas. Foi
perto deste monumento que entramos numa lancheria do Pret a Manger, uma das “novidades” em termos de fast food da Inglaterra, onde passamos
nossos últimos minutos antes de embarcar no trem de volta à França.
Esta rede de restaurante britânico
prega uma “nova filosofia”, que supostamente respeitaria os ciclos da natureza:
os lanches seriam produzidos diariamente a partir de comida natural e café
orgânico, não ficando mais do que um dia nas prateleiras. Segundo o seu site,
eles afirmam “fazer a coisa certa” partindo de “uma abordagem estratégica para
reduzir os impactos no meio ambiente e tendo um efeito positivo nas comunidades
que atende”. Supostamente estariam preocupados com a sustentabilidade, evitando
o desperdício e aliviando o sofrimento de famintos e de sem teto (a partir da Pret Foundantion – seria algo como o Instituto Ronald McDonald?). Para comer,
servem sanduíches de tipo baguete, saladas e wraps; para beber, oferecem café orgânico, chás e sucos. Inegavelmente
a comida é boa e aparentemente mais saudável que os hambúrgueres do McDonald’s
ou do Burger King, embora dois lanches custem cerca de 10 libras, o que para
latino-americanos como nós era algo muito dispendioso. O discurso sustentável
é questionável, dado o número de plástico envolvido no transporte e o regime de
produção, que certamente deve ser industrial; bem como o suposto alívio da
fome, uma vez que na lanchonete próximo ao Marble
Arch, na Oxford Street, havia um
indigente sentado quase na sua entrada e que, apesar de quieto, segurava uma
placa pedindo ajuda.
Foi na mesa de um Pret a Manger, próximo da London Bridge,
que brinquei com os meus últimos pennys,
esperando o momento de pegar o underground
para a estação internacional de Saint Pancras. Reparei numa família inglesa,
bem ao nosso lado, conversando e comendo sanduíches e bebendo suco. A menininha
que estava sentada numa cadeira mais alta falava aos pais sobre a sua escola e
percebeu que eu os observava; então, passou a me olhar também. Tive muita
vontade de conversar com eles, mas não tive coragem. Terminamos de comer nosso
“almoço” com uma bela vista do rio Tâmisa.
O relógio soou 15h! Sob um céu azul,
embora já dando seus primeiros sinais de escurecimento, adentramos a Monument Station do underground e fomos
para Saint Pancras.
***
As últimas horas em Londres foram
lúdicas e tensas. Sentados nos bancos de espera antes do embarque para Paris
recebemos a notícia, via WhatsApp, de que o governo Temer preparava uma
intervenção militar no Rio de Janeiro. As notícias eram escassas e confusas,
sendo mais o resultado de uma histeria virtual. Ficamos atordoados e
preocupados, pois a imprensa europeia quase nem fala do Brasil.
Ouvir dois jovens pianistas quase na
plataforma de embarque, no entanto, tornou esta espera um pouco mais sublime e
nos acalmou. Às 18h já tínhamos passado as burocracias de imigração e já
estávamos prontos a subir num trem da EuroStar
de volta à cidade luz.
Fim de semana de sol em
Paris
Chegamos em Paris às 21h de uma
sexta feira, atrasados em função de um pequeno “engarrafamento” de trens nas
proximidades da cidade. Desembarcamos na Gare du Nord, onde ainda se via um grande
fluxo de pessoas chegando dos mais distintos cantos da Europa. Fazia muito frio
e os passageiros saíam quase em fila indiana para o ponto de taxi. Como o nosso
antigo hotel – onde estavam as nossas bagagens maiores – era relativamente
próximo da Gare du Nord, fomos até lá busca-las. O frio, o cansaço da viagem e
o joelho de T foram alguns problemas que tivemos que enfrentar, mas resistimos
a tudo isso e conseguimos chegar no hotel por volta das 21h30min.
Quando chegamos na recepção
percebemos que não era mais o nosso amigo Sofian que estava lá, mas um novo
recepcionista que não conhecíamos. Com alguma dificuldade de comunicação, fomos
até o depósito e resgatamos nossas malas. Agora estávamos com as mochilas que
levamos para a Inglaterra e mais duas grandes malas. Não sabíamos ao certo onde
ficava o outro hotel que tínhamos reservado. Nos guiando pelos mapas,
caminhamos em direção a ele através de uma grande avenida que nos ligava ao 10º
arrondissement, já bastante afastado
do centro. Resisti o quanto pude em pegar um taxi, nos aproveitando da ciclovia
para puxar as malas de rodinha. Vimos uma Paris um pouco diferente, inclusive
com certos “elementos estranhos” em pontos mais escuros desta marcha. Além de
economizar alguns bons euros, pudemos observar este movimento noturno da
cidade, num dos invernos mais rigorosos do mundo.
Nos acalmamos um pouco quando nos
aproximamos da grande Place de la
République, uma das mais bonitas na minha opinião, muito iluminada e
bastante movimentada, sempre puxando nossas bagagens, que resistiram bravamente,
bem como o joelho da T. Do centro da praça se ergue um grande monumento com uma
mulher segurando um ramo de flores, rodeada por outras mulheres erguendo
tochas, e onde, logo abaixo, se podem ver ornamentos de ferro e metal
retratando cenas da história francesa, desde 14 até 20 de julho de 1789;
momentos dramáticos da tomada da bastilha e da grande revolução. Um pouco mais
embaixo, quase no chão, se pode ver um grande leão de ferro a proteger o
monumento com um olhar imponente. A praça é cercada por belos prédios no
tradicional estilo parisiense, sendo que um deles parece um grande palácio e a
rua bem na sua frente desemboca no Apollo
Théâtre. Nesta mesma via ficava o nosso hotel, onde existiam, como sempre,
inúmeros barzinhos com as cadeiras dispostas na frente. Muitas pichações nas
paredes e nas portas dos estabelecimentos, inclusive no Apollo Théâtre. O asfalto cedia lugar a paralelepípedos, lembrando
algumas das ruas de Porto Alegre.
Nosso Hotel du Centre, ficava de fronte a pequenas lojas de roupas
(alguma coisa que nos lembrava as lojas da Voluntários da Pátria) e ao lado de
uma loja de vinho Nicolas, que existe
desde 1822 e está espalhada por toda Paris com mais de 100 lojas. O hotel era
estreitinho, como se estivesse esmagado pelos edifícios do lado, possuindo
apenas duas janelas cada andar, uma próxima da outra. Possuía um toldo bem na
frente, que protegia a saliência, onde estavam duas entradas por onde se vendia
crepe. Foi ali que conheci um amigo indiano, chamado Ricky, que nos orientou a
entrar no estabelecimento para falar com o “seu chefe”.
Ao adentrar o recinto, andamos até
um estreito balcão, um pouco enevoado pela fumaça que tomava conta do ambiente.
Ao fundo percebemos um grupo de pessoas jogando cartas e fumando charutos.
Ricky deu um grito da entrada e um homem, de meia idade e cabelo preto, um
pouco cambaleante, se aproximou de nós. Falou em francês algo incompreensível.
Dissemos, em inglês, que tínhamos uma reserva. Então ele puxou um caderninho,
em cima do balcão, e folheou, como que procurando nossos nomes. Com os olhos
vermelhos e uma língua enrolada perguntou quem éramos: o dono do hotel estava
visivelmente bêbado! Nos entreolhamos e contivemos as risadas. Começou a nos
dar diversas informações em inglês. Compreendíamos grande parte do que ele
dizia. De repente parou de falar, um pouco aflito. Nos olhou e coçou a cabeça.
De certo pensou que não estávamos entendendo nada. Passou para o espanhol, o
que tornou toda a cena ainda mais inusitada. Dizia: “quedarán en el quinto piso, entendes?”, e nos olhava atentamente,
dando o máximo da sua seriedade. Depois contou os andares em espanhol, para nos
demonstrar qual era o nosso: “uno, dos,
tres, cuatro, cinco...”, apontando o cinco com o dedo, como se fôssemos
bárbaros selvagens e não conhecêssemos os números. Logo a seguir nos cobrou as
diárias. Pegamos o cartão com as instruções e lá fomos nós, com as nossas
bagagens, subir 5 andares, em uma escadinha estreita, pois o edifício
obviamente não possuía elevador. Assim que saímos da esfumaçada recepção, ele
rapidamente voltou para a jogatina.
Os quartos do hotel eram muito
estreitos e simples, mas caíram como uma luva para o nosso cansaço. O banho era
bom, ainda que o banheiro fosse muito apertado. A janela dava uma boa vista
para os edifícios da frente, de onde podíamos, no melhor estilo hitchcockeano, observar a vida alheia
dos nossos vizinhos parisienses. Passei uns bons momentos me divertindo olhando
o movimento da cidade luz, naquele distante 10ª arrondissement. Na noite seguinte, um pouco embriagado com o bom
vinho francês, bradei por esta mesma janela “Je
t’aime Paris”. À noite devoramos bons e baratos crepes de nutella com banana, além de desfrutar de
uma boa garrafa de vinho comprada no franprix
por 3 ou 4 euros. Nossa primeira noite de volta à Paris foi no aconchego da
calefação deste quarto de hotel. Parecia que já estávamos viajando a meses, mas
tínhamos completado apenas 10 dias de viagem.
***
Na manhã seguinte acordamos
tranquilos, descemos as escadinhas estreitas do nosso hotel e saímos pra rua.
Olhamos as lojinhas bem de fronte ao nosso hotel, caminhando num ritmo sabático.
O Hotel du Centre não oferecia café
da manhã, então tivemos que sair a procura de algo para tapar o buraco do nosso
estômago. O céu estava um pouco nublado, mas prenunciava um dia bonito: dava
pra sentir que o sol queria vencer as nuvens. Encontramos um restaurante bem
próximo do nosso hotel, na esquina seguinte. Por 7 euros oferecia 2 croissant, geleia de pêssego ou uva,
manteiga, 2 ovos fritos, suco de laranja e café preto. Entramos mais pelo
ambiente, que era convidativo e tinha uma excelente vista para a praça e a avenida
da frente, do que pelo preço em si.
Saciados, saímos a caminhar por
Paris, com o céu já mais convidativo. O clima de sábado no 10º arrondissement era bastante tranquilo:
poucas pessoas, poucos carros, pouco barulho. Parecia que os nossos vizinhos tinham
preferido ficar dormindo naquele friozinho matinal. Quase na Place da la République fomos abordados
por um senhor, que estava próximo de uma idosa, sentada em um banquinho, quase
no chão. Eram dois pedintes. O senhor, usando chapéu rasgado de onde saíam
tufos de cabelo, e com a cara bastante enrugada, pediu algo em uma língua que
não conseguia distinguir (possivelmente alguma do leste europeu). Eu não
entendi uma única palavra, mas compreendi que se tratava de um pedido de
dinheiro. Coloquei a mão no bolso e encontrei 1 euro e algumas moedas. Juntei
todas elas e as coloquei na mão daquele senhor, que esboçou um largo sorriso,
faltando alguns dentes, e muito contente me agradeceu com novas palavras que
também não entendi nada. Por certo era bastante difícil conseguir esmolas na
Europa. No 10º arrondissement o
número de pedintes aumentou sobremaneira, ficando visível a situação difícil de
parte da população francesa e deixando claro que os meios de comunicação quase
não retratam este assunto no Brasil.
Caminhando sem rumo, apenas pra
conhecer as avenidas, os prédios e as casas, terminamos dando de frente com uma
comemoração do ano novo chinês, em uma avenida que desembocava numa viela com
restaurantes orientais. Lá estavam centenas de pessoas, com banda marcial,
fantasias e o tradicional grande dragão vermelho, erguido por pequenas varetas,
e ondulando organizadamente conforme o movimento dos seus intérpretes. Alguns
fogos de artifícios e rojões começaram a explodir em certas extremidades da
manifestação e os presentes falavam coisas inaudíveis para nós. O tambor e os
pratos batiam! Alguns curiosos – como nós – ficavam olhando tudo do outro lado
da rua. Pude perceber uns poucos carros querendo passar, sendo guiados por
senhores aparentemente incomodados com aquela demonstração cultural.
Depois de passarmos certo tempo
observando a festividade, tomamos nosso caminho. Passamos por umas lojinhas
empoleiradas, da qual se destacava uma de relógios. Ali comprei meu relógio
parisiense, por apenas 6 euros. Aguardando T olhar uma loja, percebi que ao
fundo havia uma grande arco do triunfo, bem no meio da avenida, a qual acredito
ser o pórtico chamado de La Porte
Saint-Denis, que dava um ar especial para aquela paisagem urbana. Foi
olhando seus ornamentos e a sua arquitetura majestosa que me dei conta como os
europeus eram e são obcecados por arcos do triunfo. Esta é, sem dúvida, uma
herança da colonização romana.
Um pouco mais a frente, na mesma
avenida, ainda entramos numa lojinha de duas senhoras que queriam vender
desesperadamente qualquer peça por 10 euros e, um pouco mais adiante, numa
livraria-sebo. Perto do meio dia chegamos às famosas Galeries Lafayette, um dos lugares que dita a moda em Paris e,
consequentemente, no mundo. Trata-se, atualmente, de um grande “shopping center”
– de um tipo bem diferente dos brasileiros – que ocupa uma grande construção de
onde se ergue um grande telhado envidraçado multicolorido, muito bonito,
entrecortado por estruturas e vigas de ferro e metal. Um dos melhores atrativos
das Galerias Lafayette é o acesso ao
terraço superior, que oferece gratuitamente uma esplêndida vista de Paris e da
Torre Eiffel. Subimos até lá (temendo que iriam nos cobrar alguma coisa),
contemplamos todo este cenário e saímos, incrivelmente, sem gastar um tostão!
Parte da fachada da Ópera Garnier, com suas estátuas características |
Ao sair das Galeries Lafayete fomos caminhando sem rumo, contemplando
arquiteturas, ornamentos, estátuas, muros, e desembocamos na Ópera Garnier. Lá presenciamos o
referido show de rua de um violeiro que estava sendo contemplado por inúmeras pessoas
sentadas na escadaria bem em frente do belíssimo edifício, ao mesmo tempo em
que se esquentavam no sol de inverno. Depois de ouvirmos algumas músicas, nossa
marcha terminou próximo ao Museu do Louvre, onde almoçamos num restaurante
grego, para saborear uma tradicional pizza de lá com um jarro de vinho de
Creta.
***
Do meio para o final da tarde
seguimos caminhando pela rua do Museu do Louvre até uma grande praça que tinha
uma igreja imensa em estilo gótico, cercada por belos jardins e pessoas sentadas
nos bancos, tomando sol, e muitos jovens andando de skate. O sol já se
aproximando do fim da tarde dava um aspecto muito bonito ao céu e, em
particular, à igreja. Foi uma enorme surpresa encontrá-la; e uma surpresa ainda
maior poder entrar nela e desfrutar da sua arquitetura interna, muito bonita,
sustentando arcos ogivais no seu centro e contendo pelo menos dois altares em
locais diferentes. Todo o ambiente e a construção arquitetônica lembravam a
Idade Média, inclusive o eco das conversas dos presentes, que andavam, como eu,
contemplando o templo.
Saímos de lá e rumamos para o nosso Hotel du Centre. No dia seguinte
zarparíamos para a cidade eterna, e a expectativa era grande. Chegamos de noite
no nosso quarto. A caminhada tinha sido longa novamente. O cansaço só não era
superado pela fome. A janta foi uma escolha consciente: crepe feito pelo nosso
amigo indiano Ricky. Desci até a rua após tomar banho e descansar um pouco. Lá
estava ele, atendendo os fregueses que passavam na frente do hotel. O 10º arrondissement possuía uma
fervilhante vida noturna, embora um pouco mais proletária. Enquanto esperava o
crepe, pelo menos umas 3 pessoas vieram me pedir dinheiro. Dei as moedas que
podia dar. Ricky observou tudo atentamente; levantava os olhos, observava, e
depois baixava o olhar para a sua chapa redonda, de onde habilidosamente
conseguida girar seu “rodinho” para fazer os crepes. Depois que ficavam
prontos, habilmente ele embalava tudo num papel e entregava aos clientes.
Eu estava com grandes dificuldades
de compreender o cardápio. Do francês ele me traduziu para o inglês, o que
facilitou um pouco: pedimos crepe de banana com nutella e outros de queijo. Enquanto Ricky fazia os crepes me senti
suficientemente a vontade para conversar com ele, pois o seu inglês possuía um
acento forte no “R”, tal como os escoceses, o que facilitava muito minha compreensão.
Ele me falou que morava em Nova Deli e que há pouco mais de um ano foi tentar a
vida em Paris. Senti simpatia por ele desde o início, pois seus olhos passavam
um ar de desconfiado, de alguém preocupado por estar em um ambiente hostil (é
claro que esta interpretação subjetiva pode estar totalmente errada, mas foi
isso que senti). Comentei com ele que tinha muita curiosidade e interesse em
conhecer a Índia. Ele apenas sorriu. Era um homem de poucas palavras! Eu, mesmo
assim, prossegui: disse, em um contexto que não me recordo mais, que os nossos
países eram explorados por fucking
bastards, e a nós, latino-americanos e indianos, restava a pobreza ou o
subemprego. Ele consentiu com a cabeça e sorriu, mas não teve coragem de se
pronunciar. Perguntou se de onde eu vinha possuía praia. Disse-lhe que não; que
vínhamos do sul do país, um lugar que fazia frio durante alguns meses do ano.
Ricky me deu algumas orientações sobre como pegar o metrô para a Gare du Nord, que tem linhas para o
aeroporto Charles de Gaulle. Elogiei mais uma vez seus crepes, que eram
melhores e mais generosos do que os crepes nos arredores do Museu do Louvre, e
nos despedimos. Subi para o nosso quarto. Bebemos vinho e desfrutamos de um
crepe maravilhoso, que até hoje guardamos as melhores recordações (é uma
lástima não podermos comer isso por aqui também!).
Dormimos o sono dos anjos e, às 5h
da manhã, levantamos e saímos direto para o aeroporto. A um estudante de
História como eu, que teve entre os principais motivadores a investigação e o
estudo do Império Romano, esta viagem revestia-se de um sabor especial. Meio
dormindo e meio acordado, senti o avião da Air
France levantar voo em direção à península em forma de bota no sul do velho
continente, a qual tinha grandes esperanças de conseguir vê-la das nuvens (essa
esperança foi frustrada, mas compensada pela belíssima vista dos Alpes suíços).
Nas ruínas imperiais da
cidade eterna
Depois de uma rápida escala na cidade de
Lyon, onde infelizmente não pudemos sair em função do pouco tempo e do clima (mas
pudemos ver o exército de metralhadora em riste fazer vigília nos saguões do
aeroporto), chegamos novamente em Fiumicino
às 17h do domingo. Já estava quase noite e o frio era um pouco mais brando do
que na França e na Inglaterra. Nos direcionamos ao ônibus que leva diretamente
ao centro de Roma – mais precisamente ao Roma
Termini (grande estação de trem nas proximidades dos principais pontos
turísticos da cidade), e onde se localizava o nosso hotel. O aeroporto de Fiumicino fica a cerca de 20 km de Roma,
por isso se faz necessário pegar ônibus ou trem. Quando eu e T subimos a escada
do ônibus, percebemos que ele estava quase lotado. Sobravam dois lugares um do
lado do outro, mas separado pelo corredor, bem no meio. Com grande dificuldade,
pois estávamos com muitos casacos e mochilas, sentamos.
Um indivíduo ao meu lado me viu mexendo no
celular (eu estava tentando me conectar no wi-fi
do ônibus) e pediu a senha pra mim. Eu lhe comuniquei que a internet não
funcionava. Ficamos um pouco em silêncio, mas a curiosidade me fez olhá-lo de
lado. Puxei assunto. O passageiro ao meu lado era egípcio. Ele estava indo
visitar o pai, que era italiano. Fiquei bastante interessado em conversar mais com
ele, que apesar de se demonstrar amigável, era um pouco arrogante e esbanjador.
Num dado momento do nosso translado alguém ligou para ele e, então, se pôs a
falar árabe espalhafatosamente. Ouvi toda a sua longa conversa. Quando ele
desligou o telefone me disse que era o seu irmão. Num outro momento, me contou
que falava mais de 3 línguas – fez questão de perguntar algo em italiano para o
passageiro de trás. Porém, tive certeza de que o meu amigo egípcio era um tanto
fútil quando me perguntou sobre jogadores de futebol brasileiros. “O que acha
do Philippe Coutinho?”, e ficou me olhando esperando uma resposta. Me enrolei
não apenas no inglês, mas com o tal do Philippe Coutinho, que não tinha a menor
ideia de quem era. Com uma pergunta tão clichê a um brasileiro, me senti
confortável para perguntar a ele sobre as pirâmides. Gostaria que ele me
falasse algo mais do que uma evasiva, mas não consegui nenhuma informação
relevante. Apenas um “I’ve been there a
lot of times”: ele não se saiu muito melhor do que eu sobre o tal do
Philippe Coutinho.
Neste momento o motorista gritou com aquele
forte sotaque italiano: Vaticano! Eu
me enchi de curiosidade, ignorei meu amigo egípcio e tentava olhar pela janela
do ônibus, mas a escuridão não deixava ver nada além de um grande muro num breu.
Olhava pelo celular e realmente o mapa confirmava que estávamos do lado da
cidade do Vaticano. Quando me recostei de novo no banco do ônibus, o egípcio
tentou me mostrar algumas fotos no seu celular, mas por sorte não tinha
internet e ele se perdeu nos seus arquivos pessoais. Eu, ele e T tiramos
algumas selfies por iniciativa dele
(sabe-se lá o que ele fez com essas selfies).
Mas felizmente nos aproximamos do Roma
Termini e, então, nos despedimos e descemos com a promessa de nos
adicionarmos no facebook (queríamos mesmo era adicionar o nosso amigo John
McDonald – T chegou a procurar seu perfil, sem sucesso). Até hoje, não sei se
feliz ou infelizmente, o egípcio não nos adicionou.
Pegamos nossas malas e caminhamos com certa
dificuldade pela lateral do terminal de trem por uma ruela de paralelepípedos
em direção ao lado que estava nosso hotel, com mochilas e malas de rodinhas. A
língua, o clima e os prédios nos remeteram involuntariamente ao Brasil: era
como estar no centro de Porto Alegre! Mais especificamente naqueles grandes
prédios da Borges de Medeiros, antes de chegar na Salgado Filho. A latinidade
ferveu nas veias. Já podíamos observar mais pedintes e, inclusive, algumas
pessoas deitadas na rua, com sacolas, roupas, malas e colchões. Tristemente
isso tudo era muito parecido.
De todas as cidades que íamos visitar, Roma
foi a que menos estudamos em detalhes, nos mapas, nos vídeos do youtube, nos passeios, no clima, etc.
Isso dava uma margem maior à incógnita da aventura, mas também nos trouxe
problemas. Tivemos algumas dificuldades em programar melhor a disposição do
nosso tempo, sem falar num dia em que a chuva de inverno nos impediu de
circular pela cidade.
Após rodar um pouco feito barata tonta,
chegamos em frente ao Hotel Cherubini,
que ficava exatamente a uma quadra do Roma
Termini. Era um prédio muito antigo, com uma grande entrada e que reunia
inúmeros hotéis nos seus 5 ou 6 andares. Tinha uma escadaria em forma
quadrangular, que ocupava quase toda a sua parte central (lembrando muito as
habitações antigas dos romanos, pois é sempre bom lembrar que eles foram os
precursores dos edifícios com apartamentos). O hotel estava adaptado no segundo
andar deste edifício. O recepcionista era de Bangladesh, muito simpático e amigável;
fizemos rapidamente amizade com ele. O hotel era bonito, apesar de ser um valor
relativamente acessível, com uma grande janela que dava pra rua; o seu estilo
arquitetônico, cortinas, móveis, ainda que singelos, eram dignos de César e
Cleópatra. Mas a melhor parte era o local do café da manhã, com uma escadinha
que dava para uma espécie de varanda, com plantas e flores no alambrado e uma
rica visão da rua, com mesinhas de madeira rústica, vitrais e lamparinas.
Lamentavelmente estávamos no auge do inverno europeu, por isso a sacada ficava
fechada com uma lona transparente. Fiquei imaginando a sorte dos hóspedes que
podem desfrutar desse ambiente no auge do verão de Roma (que dizem ter
temperaturas muito próximas do brasileiro).
A verdade é que Roma não é uma cidade muito
grande, sendo fácil percorrer as ruas a pé até os seus principais pontos
turísticos. Para quem tinha caminhado 40 quadras nas outras cidades, as 10 que
nos separavam do Coliseu e das ruínas do fórum imperial eram barbada! Quando
pensamos que há cerca de 2000 anos atrás a cidade que dominou todo o mundo
antigo era muito menor, restrita às colinas e às ruínas do fórum, sendo quase
um simples bairro de uma cidade moderna, como Porto Alegre.
Não fosse o cansaço, teríamos andado a pé
diretamente até o Coliseu, o Vaticano, o Circus
Máximus e as ruínas. Terminamos jantando num dos charmosos restaurantes
italianos, daqueles com toalhinhas xadrez avermelhada, com direito a vinho da
casa.
***
Na nossa visita ao Coliseu consegui comprar o
livro que vim cobiçando desde Londres:
SPQR – Uma história da Roma Antiga, da historiadora inglesa Mary Beards. O
SPQR era o brasão que os exércitos romanos empunhavam nos seus estandartes de
guerra. Significava Senatus Populus Quo
Romanus, isto é: “O Senado e o povo de Roma”. Estas quatro letras estão
espalhadas por tudo ainda hoje: desde o brasão do time de futebol, até
caminhões, camisetas, souvenires e as tampas dos esgotos no chão das ruas.
Segundo a historiadora na abertura deste livro, Roma ainda nos ajuda a
encontrar um caminho para entendermos o nosso mundo e a pensarmos sobre nós
mesmos, sobretudo a política e a cultura ocidentais.
A começar pela própria Europa: foram os
romanos que definiram e modelaram a Europa moderna que estávamos desbravando. A
conformação do território do Império Romano é subjacente à geopolítica da
Europa moderna e ainda vai além. Segundo a historiadora, a principal razão de
Londres ser a capital do Reino Unido é devido ao fato dos romanos a terem feito
capital da sua província, conhecida como Britânia (de onde vem o nome da “ilha”
também). Desde os arcos do triunfo – que dão a tônica de como os europeus
compreenderam por longos séculos a política entre si e para o mundo – até as
noções de política, cidadania e civilidade. Tudo isso é bastante visível na
Europa; principalmente nas duas outras cidades que tivemos a sorte de ter
conhecido (sendo uma delas uma verdadeira capital do mundo moderno, desde fins
do século XVIII e todo o XIX).
No dia seguinte da nossa chegada, pudemos,
então, perceber que tínhamos a possibilidade de aprofundar esta “sorte” e
desbravar as ruínas imperiais da cidade eterna!
***
Elas estavam ali, acolá, em todos os
lugares, bem na nossa frente. Pedaços de colunas, restos de parede, pequenos e
grandes templos, pedras com grandes inscrições. Roma é um museu a céu aberto. Não
é preciso gastar dinheiro, porque a cidade inteira é um grande campo de
arqueologia que se abre aos seus olhos na próxima esquina.
Jamais esquecerei da nossa primeira
manhã em Roma, quando saímos caminhando sob um céu ainda cinzento, mas que foi
se abrindo ao longo do dia e nos presenteou com um belíssimo dia de sol. Os
prédios da grande avenida que nos levou à Roma antiga eram encantadores, alguns
com trepadeiras e folhagens, ou mesmo com um singelo vaso de flores na janela.
Foi emocionante desbravar uma pequena escadinha que passava por debaixo de um
prédio e de onde podíamos ouvir uma bela melodia tocada em um velho acordeón. Lá estava um senhor a tocar
antigas canções italianas, com o seu potinho para receber moedas. Muitos
transeuntes cruzaram aquela pequena “caverna”, que nos levava a uma grande rua
de paralelepípedos e mais parecia um pátio, cheio de carros estacionados e
algumas barracas de comida. As ruas de Roma são peculiares e lindas; pequenas,
estreitas, convidativas, onde praticamente não há distinção entre a calçada e a
passagem dos carros. E os prédios vão se empoleirando de tal maneira que as
ruas se formam nos hiatos, nas entrelinhas, nas margens entre um prédio antigo e
outro mais antigo ainda ou, inclusive, por debaixo dos prédios, como era o caso
daquele lugar onde estava o velho gaiteiro.
Íamos subindo a ladeira, olhando os
prédios velhos, de uma arquitetura sem igual. De repente nos deparamos com a
faculdade de engenharia, no qual podíamos ver alguns jovens sentados, fumando e
conversando. Paramos a contemplar aquele cenário, enquanto enchíamos os pulmões
com o ar da Itália, observando aquelas árvores típicas – a Pinos Doméstico –, que despontavam de um lado e de outro, de um
pequeno canteiro ou de um terreno mais adiante. De repente, naquele andar
descomprometido, sem correrias e compromissos compulsórios, tal como a vida
deve ser, viramos a esquina e lá estava o Coliseu, majestoso, com seu grande
declive, quebrado e inteiro ao mesmo tempo, resistente à história: mais de 15
séculos nos contemplavam!
Nos aproximamos da grande praça do
Coliseu, onde centenas de milhares de turistas do mundo todo fervilhavam para todos
os lados, formavam filas, tiravam fotos, compravam tickets, ou simplesmente ficavam contemplando aquele monumento
histórico. Guias te oferecem os seus serviços a cada passo, em todas as línguas
possíveis e imagináveis. Mais do que isso, ficam tentando acertar a sua língua
materna, dizendo que “você pode evitar filas se segui-los”, etc. Esperando para
comprar os ingressos, reparei nas grandes pedras que compõe o chão ao redor do
Coliseu; provavelmente são as mesmas que resistem desde a época dos césares. Um
pouco mais ao lado, já com grandes cercas de ferro, erige-se praticamente
intacto o arco de Constantino. Todo aquele cenário te remete involuntariamente
para as cenas de filmes épicos, com inúmeros romanos com suas túnicas e sandálias,
caminhando em direção às entradas do Coliseu, se espremendo para conseguir um
lugar na arena dos gladiadores.
Ponto importante: T não tinha ideia
da função exata do Coliseu! Quando ela descobriu, disse que se arrependeu de
ter despendido 20 euros para comprar os ingressos (ainda que este ingresso dê
acesso também às ruínas do Monte Palatino e do fórum imperial – o que talvez
valha mais a pena!). Afinal, o que é o Coliseu? Um monumento à barbárie para alienar um povo a partir do panis et circenses.
Caminhando por aqueles destroços se
pode imaginar a grandeza daquela civilização e, ao mesmo tempo, a necessidade
de se recorrer à crueldades inauditas para sustentar um império baseado no
militarismo e na escravidão. Aquelas pedras falam, ainda que estejam
silenciadas a quase 20 séculos. Depois do império ainda veio a Igreja Católica,
que também se utilizou de um símbolo anti-cristão para seus rituais, o que é,
no mínimo, contraditório. Olhando as descrições históricas numa das partes do
Coliseu, transformada em museu, pode-se descobrir que durante a Idade Média
algumas partes daquele “circo” foram utilizadas como estábulo, silo e galpão.
Subir ao segundo andar do Coliseu e
observar o fluxo de turistas demonstra claramente que Roma ainda é uma capital
mundial. Pessoas de todos os cantos do mundo transitam por ali, esperando um
lugar entre o gradil ou os alambrados para tirar uma foto. Muitas outras partes
estão fechadas ao público (como o centro da arena, que hoje é constituída por
buracos e pedaços de pedras), podendo ser contempladas de longe. Me chamou
muito a atenção o fato de que nas rochas do meio da arena, onde no passado os
gladiadores se matavam, hoje nasce flores, o que nos dá um pouco de direito à
esperança. Saí de lá atordoado e reflexivo. Algumas fotos tiradas na ocasião
denotam isso perfeitamente.
É interessante como a cidade nova
“abraça” as ruínas do Coliseu e da cidade antiga. Seguimos aquelas ruas, mais
puxados pela curiosidade do que por um plano predeterminado. Estávamos famintos
e curiosos por provar a comida e o vinho italiano direto da fonte.
***
Na florida, histórica e bela Via Urbana fomos analisando os preços e
a “cara” dos inúmeros restaurantes que despontam ao longo do caminho.
Encontramos um bastante simpático e típico, que oferecia massas, pizza e vinho.
Era um restaurante adaptado em vários ambientes de uma antiga casa, com aquela
tradicional toalha xadrez vermelha e preta sobre as mesas, bastante convidativo
e aconchegante.
Os clientes comiam conversando em
alto e bom som, bebendo vinho, comendo massas e saladas. Tivemos que caminhar
quase todos os ambientes até encontrarmos uma salinha nos fundos do
restaurante, onde sentamos praticamente sozinhos. Tocava uma bela canção
italiana e pela parede estavam pendurados pinturas de regiões de Roma e da
Itália.
Pedimos pizza e espaguete à
carbonara, com o vinho da casa, servido em grandes cálices. A massa da pizza é
fina, mas feita de uma forma bastante peculiar que dá um gosto absolutamente
diferente de todas as pizzas que já comi. Não disponibilizam condimentos, como
ketchup ou mostarda, pois, segundo os próprios italianos, isso estraga o
verdadeiro sabor. Apenas colocam na mesa azeite e óleo de oliva. As pizzas
geralmente eram do tamanho de um prato, não existindo aqueles exageros da
América (inclusive de Porto Alegre). Os vinhos que tomamos lá (em especial o
popular casteli romani) eram muito
saborosos, embora não fossem melhor do que os franceses.
Saímos do restaurante tão
satisfeitos que lembramos deste almoço até o final da nossa viagem. Ainda
comeríamos em uma pizzaria – chamada Galina
Bianca –, bem próximo do nosso hotel, nos últimos dias de nossa estada, que
também nos marcou bastante; sobretudo a pizza de quattro formaggi.
***
A pobreza na Itália é muito mais
visível que nos outros países europeus pelos quais passamos. Os indigentes não
ficam sentados quietos, tal como na Inglaterra e na maior parte de Paris. Eles
procuram conversar, tal como os mendigos brasileiros. Talvez por isso a gente
consiga sentir maior o peso da pobreza, sem falar das pessoas morando nas ruas,
que também é visível, ao contrário dos outros países, que deve esconder melhor
estas mazelas do “mundo desenvolvido”.
Há inúmeras lojinhas de souvenires
por todos os cantos; principalmente próximo dos pontos turísticos. Estas, em
sua maioria, são administradas por chineses. Há, também, muitos camelôs e
ambulantes, que procuram vender camisas, pôsteres, pequenas lembrancinhas. Em
muitos cantos pudemos encontrar as banquinhas típicas de camelô, tal como no
Brasil. Acredito que muito dos “guias turísticos” próximos do Coliseu, das
ruínas históricas e do Vaticano estejam nesta mesma condição de subemprego –
embora nem todos.
Foi na Fontana di Trevi que presenciamos um caso de repressão policial aos
ambulantes. Depois de caminhar por ruelas muito charmosas, com cafés e
restaurantes que aumentavam a quantidade de turistas quanto mais nos
aproximávamos da fonte, que desembocamos na praça da Fontana, cercada por
prédios tradicionais romanos e uma igreja clássica, também repleta de turistas,
com uma senhora pedinte sentada bem nos portões de entrada. T tinha ido comprar
um sorvete em uma gelateria, eu
fiquei parado, contemplando o fluxo gigantesco de pessoas próximas da fonte,
tentando um espacinho pra tirar uma foto. Muitos ambulantes circulavam entre os
turistas, vendendo souvenires e “pau de selfie”. Reparei que uma viatura da Polizia cercou um desses ambulantes,
negro, provavelmente africano, usando toca e portando uma mochila onde guardava
suas mercadorias. Sem muita conversa confiscaram a mochila e colocaram no porta-malas
da viatura. O ambulante ficou desesperado e tentou argumentar em italiano. Três
policiais o cercaram: um tomava nota em um bloquinho; o outro o inquiria, ora
com o olhar, ora com palavras; e o terceiro ficava com um olhar intimidador.
Me aproximei do local e comecei a
tirar fotos do celular. Tentei ficar observando pra demonstrar que alguém
acompanhava aquela “operação”. A grande esmagadora maioria das pessoas estava
completamente alheia ao sofrimento ou demonstrava medo daquele homem, que
falava gesticulando, tal como um italiano. Um dos policiais era ríspido,
extremamente autoritário. Negava com a cabeça e com palavras tudo o que o ambulante
falava. Este quase implorava, faltando pouco para se ajoelhar. Um outro
policial sorria e tentava manter um “ar democrático”, como se realmente se
importasse com o destino do ambulante. Em todo o tempo que estive ali não vi
ele fazer absolutamente nada de diferente do que os outros ambulantes estavam
fazendo. Como um ato de uma injustiça flagrante, o ambulante foi colocado na
viatura e levado pelos policiais sabe-se lá para onde.
Aquela cena estragou completamente
minha visita à Fontana di Trevi, que
sempre me remeterá a este episódio lamentável. O quanto isso se repete Itália
afora ou mesmo em outras regiões da Europa? Postei algumas das fotos das cenas
de repressão da polícia italiana nas redes sociais para demonstrar aquilo que
nós não vemos na mídia ordinária.
***
Mesmo não sendo caminho, quase todos
os dias passávamos pelo Coliseu e pelas ruínas, para contemplar aquela cidade
que outrora foi a capital do mundo. Hoje tão deserta, destruída, repleta de
ruínas e gaivotas, que voam e pousam no mais alto das colunas em estilo
coríntio. Já estávamos aprendendo a andar por aquela região praticamente sem
mapas, quando desviamos um pouco o caminho e desbravando novas ruelas e becos,
chegamos ao Panteão, um dos prédios que eu mais queria conhecer. Reza a lenda
que durante o Império Romano aquele prédio abrigara deuses dos povos conquistados
em troca da adoração total dos deuses de Roma. A cúpula do Panteão era
recoberta de bronze dourado para que toda a cidade pudesse ver-lhe o brilho; um
atestado evidente de sua riqueza. Hoje, no entanto, ele não passa de um templo
católico, cheio de estátuas da mitologia cristã e sem nenhum brilho especial, a
não ser, é claro, para os historiadores, que como eu, ficam contemplando
aquelas colunas da entrada, imaginando como seria aquela praça de entrada nos tempos
dos césares. Alguns atores, vestidos de centuriões romanos ficam a disposição
dos turistas para tirar fotos. No dia que passamos por lá tinha um violonista popular
dando um belo espetáculo.
O melhor do Panteão é que não
precisa pagar: um ponto turístico clássico e histórico totalmente gratuito! O
melhor, na minha opinião, é ficar olhando para o teto, com as suas pequenas
cavidades quadriculares, a 48 metros de altura das nossas cabeças, recebendo
luz apenas por uma abertura no ápice da abóboda. Todos se perguntam o que
acontece quando chove, uma vez que este grande “buraco” no teto não pode evitar
que a água entre. Pois bem, presenciamos um dia terrível de chuva em Roma, que
nos perseguiu o tempo inteiro, me fez encharcar as calças, as meias e o sapato;
mas me fez ver como o sistema de dreno no chão de mármore do Panteão consegue
absorver quase tudo o que cai pelo teto.
O Panteão é um prédio redondo. Em
todos os seus 360º há estátuas de algum santo católico. Bem ao centro está um
altar e bancos de madeira, típicos de igreja. Sentamos ali, por alguns
segundos, e pudemos ouvir o volume das conversas aumentar, quando uma pessoa,
através de um microfone que ecoou por todo os 48 metros do saguão, pediu
“silêncio, por favor” em quase todas as línguas, inclusive em português. O
Panteão romano, tal como os arcos do triunfo, fez escola pela Europa. A maioria
dos países, mas em especial a França, possui um “Panteão” com os heróis da
pátria, que não pudemos entrar e conhecer (lamentavelmente!), pois era pago.
Ainda voltaríamos uma última vez no Panteão,
quando passamos pela Piazza Navona, a
caminho do Vaticano. Tudo feito a pé, respirando o “ar puro” das margens do Rio
Tibre. As nossas fotos são testemunhas.
***
Dizem que ir à Roma e não ver o papa
é a mesma coisa que não ter ido lá. A gente quase conseguiu concretizar a
profecia. Ficamos sabendo que todas as quartas feiras pela manhã o papa profere
algumas palavras numa missa realizada na Praça de São Pedro. O medo do mau tempo
e a caminhada a pé nos fez chegar atrasados ao evento. Pudemos ver apenas as
centenas de cadeiras dispostas ao longo da praça central, cercadas pelas
barreiras de madeira.
Do lado delas estava a bela e
imponente estátua de São Pedro, envolto em uma longa túnica e segurando uma
espada, circundada pelas belíssimas colunas que ladeiam toda a praça e
desembocam na grande basílica. Sobre estas colunas estão estátuas de apóstolos
e santos muito caros à história cristã. Turistas do mundo todo formam uma fila
que nunca diminui, todos ansiando por entrar na Basílica de São Pedro ou na
capela Sistina. Há um ambiente de poder oculto muito forte, justificado como
“fé”, que sentimos a cada passo. Nesta primeira visita não conseguimos entrar
para a visitação. A fila para passar nos censores e na revista dos policiais
era imensa e o tempo escasso. Pensamos que iríamos embora de Roma sem poder
entrar na basílica. Um futuro “imprevisto” faria a sorte nos sorrir e nos
brindar com uma nova oportunidade.
***
Fomos embora de Roma num sábado, dia
24 de fevereiro, com destino a Paris. Era da capital da França que iria sair
nosso voo da Alitalia para o Brasil, com nova escala em Roma. Ou seja,
retornaríamos à Paris, para voltar de novo à Roma; de onde, só então, iríamos
decolar definitivamente para o Brasil, tudo isso apenas no dia 26. Contudo, neste
voo do dia 24 para Paris teríamos uma breve escala em Bolonha, no norte da
Itália.
O avião tinha 3 poltronas juntas de
um lado e do outro, com apenas um corredor ao centro. Estávamos nos acomodando,
guardando mochilas e sacolas, arrumando os livros que iríamos ler ao longo da
viagem e conversávamos descontraidamente (naturalmente, em português), quando
fomos inquiridos, também em português, por um homem ao nosso lado: “Vocês são
do Brasil?”. Eu olhei para a minha direita e lá estava um sujeito de meia
idade, cabelos pretos, um pouco acima do peso, barba por fazer e óculos
escuros. Trajava uma jaqueta clara e calça jeans. Respondi afirmativamente.
Pensei se tratar de um brasileiro, uma vez que neste primeiro contato não
percebi sotaque na sua fala e também pela quantidade de compatriotas que
encontramos ao longo de quase 20 dias em solo europeu.
Neste primeiro momento senti um
certo alívio, pois poderíamos conversar na nossa língua materna, já que há
tantos dias não falávamos com outras pessoas além de nós mesmos. Perguntei ao
meu interlocutor de que parte do Brasil ele era, e me surpreendi ao saber que
ele não era brasileiro, mas italiano; precisamente de Bolonha, para onde o
nosso avião faria uma escala dentro em breve! Ele disse que reconheceu a língua
ao nos ouvir conversando e que não perderia a oportunidade de conversar com
brasileiros. Nem eu gostaria de perdê-la! Então, nos pusemos a conversar.
Ao contrário de John McDonald, fechado
na redoma do seu reino, o bolonhês, de nome Pietro, conhecia muito bem o
Brasil. Segundo me falou, morou em São Paulo e Rio de Janeiro. De 6 em 6 meses
– não ficou claro o motivo, mas acredito que deva ser um pequeno empresário de
algum ramo – viajava ao Brasil. Conhecia bem os bairros das duas maiores
cidades do país, os hábitos dos brasileiros, bem como parte de sua realidade
política. A sua mentalidade, é claro, era condizente com a sua classe, embora
no início da conversa isso não tenha ficado muito claro.
Falava tão bem português, com um
leve sotaque italiano, tal como os colonos da serra gaúcha, que eu poderia
muito bem tê-lo levado como brasileiro o tempo todo. Me disse que aprendeu
falando errado, tropeçando, fazendo os outros rirem muito das suas confusões
linguísticas. Frente ao meu comentário da semelhança entre as nossas línguas
ele disse, também, que o italiano e o português, apesar de descenderem do
latim, são profundamente diferentes. O que é verdade, embora haja inúmeras
semelhanças, a começar pela sonoridade.
No meio da nossa conversa, duas
aeromoças viram o livro de Mary Beard – SPQR,
a history of ancient Rome – sobre a mesinha a minha frente, questionou, em
italiano, a sua colega o que significava a sigla, ao que Pietro voltou-se
rapidamente, intrometendo-se na conversa das aeromoças e explicou, também em
italiano, se tratar de Senatus Populus
Quo Romanus. A seguir, fez um comentário maldoso, menosprezando a
inteligência média do seu próprio povo.
Exaltou o patriotismo alemão e norte-americano (de onde estava regressando). Conversamos
um pouco sobre isso. Acabamos descambando para como os outros países do mundo
faziam uso dos condimentos e temperos nas pizzas e massas, inclusive o erro
comum do que se entende no Brasil por “massa à bolonhesa”, que segundo ele,
nada tem a ver com o verdadeiro molho feito na Bolonha. Ainda nos receitou uma
banquinha no aeroporto que tinha a tradicional mortadela defumada de lá (provamos
e era realmente deliciosa e totalmente diferente do que conhecemos por aqui).
Pietro estava voltando de Miami, pois tinha conseguido passagens absurdamente
baratas, além do que, ele nunca tinha ido para a Flórida. Trocamos algumas
impressões, mas ele realmente ficou impressionado com a demonstração de
patriotismo ianque: bandeiras nas janelas e nas portas das casas! Relativizei,
dizendo que isso não era o mais importante em um povo. Ele novamente falou mal
do desleixo italiano, sua falta de organização social e patriotismo, fazendo
inevitáveis paralelos com o Brasil. Com o que, tive que concordar.
Durante toda a conversa não
expressei nem por um momento minhas referências políticas. Dei corda solda para
o diálogo, que estava fazendo o voo muito mais agradável e interessante. O céu
italiano estava nublado, mas como sobrevoávamos as nuvens, o sol brilhava,
radiante, fazendo a luz inundar todo o interior do avião, o que fez com que
Pietro não tirasse os óculos escuros. No meio dos diálogos ele se equivocava um
pouco na conjugação de um ou outro verbo, o que é bastante natural, embora isso
nem de longe comprometesse o seu desempenho quase perfeito no português.
Chegou no ponto que talvez ele
estivesse pleiteando: “A comunidade internacional está com medo da eleição
dele!”. Perguntei, ingenuamente, “ele quem”? Pois Pietro puxou este assunto
quase do nada. “Como um país que estava crescendo a quase 10% ao ano fica
estagnado desse jeito? Se ele for reeleito os demais países do mundo vão
colocar um ‘x’ no Brasil”, e desenhava um “x” com os dedos nas costas da
poltrona da frente. Logo entendi se tratar de Lula. Todos aqueles argumentos
toscos, colonialistas e terroristas eram patéticos e facilmente refutáveis, mas
dei corda para ver até onde ele iria. Que direito tinha ele de se intrometer
nas eleições do nosso país? Por acaso o mundo não deveria colocar um “x” na
Itália caso os italianos reelegessem Silvio Berlusconi? Provavelmente Pietro
não via nenhum problema em votar num indivíduo mafioso, corrupto até a medula
dos ossos e, além de tudo, depravado. Apesar de insistir sutilmente, não fiquei
sabendo de sua opção eleitoral, pois a Itália teria eleições gerais na próxima
semana.
Então, ele descambou a falar da
crise da Europa, em particular de Grécia e Itália; e chegou no ponto que estava
almejando: a xenofobia. Como todo cidadão médio europeu, alimentado por uma
mídia absurdamente xenófoba, Pietro era anti-imigração, vendo no deslocamento
de seres humanos do terceiro mundo para as “cidades proibidas” do “primeiro”
como algo inaceitável e como fruto dos problemas dos seus próprios países, como
se o imperialismo europeu não tivesse absolutamente nada a ver com isso. Depois
disso, começou a atacar os muçulmanos, como bom italiano cristão que deveria
ser. “Sabe o que essa gente vai fazer em Meca todos os anos?”, me perguntava
ele, querendo me envolver na sua xenofobia, “Olhar uma pedra! Veja só você! Uma
pedra, que é sagrada pra eles! Veja se isso tem cabimento?”, ele me dizia, com
ares de indignação e superioridade.
Quando nos aproximávamos de Bolonha,
Pietro foi me contando um pouco da história da cidade. Felizmente nem toda a
conversa se resumiu a episódios reacionários lamentáveis. Me disse que a cidade
foi praticamente fundada por duas famílias que queriam se manter no poder. Cada
uma dessas “famiglias”, no melhor
estilo da máfia italiana, queria construir um edifício com uma torre maior do
que a família rival. Quando começamos a sobrevoar os edifícios da cidade, ele
me mostrou as duas maiores torres, que podiam ser vistas tranquilamente do
avião. A seguir, nos fez algumas recomendações sobre Paris: “O melhor museu de
Paris não é o Louvre, que tem um amontoado de obras roubadas de vários lugares
do mundo, em especial dos renascentistas italianos; mas o Museu d’Orsay, que é
onde estão as obras dos impressionistas franceses e de Van Gogh. O
impressionismo foi um movimento autenticamente francês”.
Anotamos a boa indicação e, assim que o avião
pousou em Bolonha, nos despedimos dele. Dessa vez não pedimos contato: o Brasil
já tem reacionários que chega!
O último au
revoir!
Nos nossos últimos dois dias em
Paris cumprimos o conselho de Pietro e reservamos a manhã do domingo para
visitar o Museu d’Orsay. O mais impressionante é que o nosso último hotel era
ao lado da famosa estação de trem de Saint
Lazaire, que hoje é uma das mais movimentadas estações de metrô de Paris,
com algumas ligações à estradas de ferro internacionais. O livro que não pude
deixar de comprar no Museu d’Orsay, chamado Le
Paris impressioniste, possui uma grande pintura dessa estação, datada do
século XIX, na época em que as marias-fumaças faziam parte indissolúvel do
cenário europeu. Hoje é uma estação completamente diferente do que a pintura
retrata. Diversos túneis de metrô a entrecortam, e grandes construções de
concreto criaram diversas lojas, restaurantes e lanchonetes, como Burger King, que a transformaram praticamente
em um shopping.
Mesmo extremamente cansados com a
viagem, logo ao nos estabelecermos no nosso hotel, decidimos ir até a Torre
Eiffel para vê-la à luz noturna. Aproveitamos a nossa localização privilegiada
(ao lado da estação Saint Lazaire) e fomos de metrô. Como já foi relatado, com
certa dificuldade aprendemos a usar as conexões do metrô parisiense.
Desembarcamos na estação mais próxima da torre, às margens do Sena, e fomos
caminhando com uma relativa apreensão, pois ela estava quase deserta. No meio
de uns restaurantes e prédios típicos conseguimos vislumbrar o desenho da torre,
totalmente iluminada. Ela estava majestosa e coroou a nossa noite de sábado.
Tiramos muitas fotos e a contemplamos até quando o nosso corpo resistiu ao
frio, que estava absurdamente insuportável, apesar de não estar nevando. Por
incrível que pareça, muitos ambulantes – em sua maioria, africanos – vendiam
souvenires da Torre e (acreditem!) vários tipos de vinho para ajudar os poucos turistas,
como nós, a suportar o frio. Os valores até não eram altos, mas não tínhamos muitos
euros pra gastar nestes últimos dias.
No caminho de volta, em uma das
conexões do metrô, encontramos um mendigo disforme, provavelmente com algum
tipo de doença degenerativa (talvez diabetes), com as unhas das mãos entortadas
e a sobrancelha caída sobre um dos seus olhos, completamente largado a própria
sorte. Enrolado por trapos ele nos deu a nítida sensação de que o corcunda
tinha descido de Notre Damme para as
profundezas do metrô – ele era, possivelmente, o corcunda moderno! Estávamos com fome e tentamos pegar um chocolate
em uma daquelas máquinas de self service.
Ao nos ver penando para conseguir o doce, ele se aproximou e tentou comunicação
em todas as línguas. A sua fala travada e o nosso inglês limitado dificultava
ainda mais a comunicação. Ele ainda tentou digitar os números na máquina, mas
as suas unhas tortas não o permitiam. Tentamos ajudá-lo, mas também não
conseguimos. Por fim, com a iminência da chegada do nosso metrô, demos as
moedas para o corcunda do metrô e nos
despedimos dele.
***
Ao meio dia de um domingo
ensolarado, após visitarmos o Museu d’Orsay,
procuramos o nosso último
restaurante parisiense. Mais do que nunca Paris era quase uma cidade nossa. Já
andávamos pelas ruas com certa desenvoltura, quase aproveitando a ressaca de um
domingo de sol invernal. Tentamos um restaurante chamado Bonaparte, um dos poucos abertos naquele dia. Estava lotado,
soltando gente pelas janelas. Pegamos uma mesa para 4 pessoas bem próxima a uma
das entradas. O garçom ao nos ver sentar ali se desesperou e nos enviou para outra,
bem estreitinha, para duas pessoas, repleta de senhoras e senhores pelas
laterais. Sentimos uma espécie de claustrofobia ali; nos levantamos antes do
garçom voltar com o cardápio e fomos embora sob o olhar curioso daqueles fregueses.
Em todos os restaurantes não existe espaço vazio: eles querem otimizar todas as
mesas, nunca deixando cadeiras livres. O fluxo de clientes parece ser muito
grande.
Le Rue Montorgueil de Claude Monet, exposto no Museu d'Orsay |
Terminamos por escolher um
restaurante bonito esteticamente, com cadeiras, mesas e paredes coloridas, que
tinha um apetitoso prato dominical de frutos do mar, dando a impressão de um
cenário de verão. Como eu não sou muito afeito a este paladar, pedi um que
tinha arroz (tinha muita vontade de comer arroz; só faltava o feijão!) e carne
(que na verdade eram grandes pedaços de bacon frito), acompanhados por uma
salada leve e um molho especial. Para brindar nosso último domingo em solo
europeu, como não poderia deixar de ser, uma jarra de vinho.
Após degustar estas iguarias, demos
a nossa última volta nos Jardin du Luxemburg,
que era muito próximo do restaurante que almoçamos. O parque estava cheio de
pessoas, sentadas próximas ao grande chafariz central, procurando tomar o
máximo possível de sol. Algumas crianças brincavam com pequenos barcos a vela e
à pilhas nas águas do chafariz. O clima era muito despojado e tranquilo.
Ficamos ali um tempo, tomando sol e contemplando as pessoas, a arquitetura do
grande prédio que fica logo ao fundo do chafariz, em estilo clássico francês.
Após esse breve tempo, decidimos ir embora para o hotel organizar nossas
bagagens para a longa viagem.
***
Estávamos realizados e felizes, mas
bastante cansados. Fomos privilegiados por ter podido desfrutar de tal
experiência. A grande esmagadora maioria da população da América Latina não tem
esta oportunidade. Quase completando 20 dias de viagem já havíamos saturado a
nossa parca capacidade de comunicação (na tensão diária ela se expandiu um
pouco – é apenas no tensionamento que a gente evolui –, mas deixou claro também
o quanto somos provincianos e precisamos evoluir!). Quando temos que pensar
para falar – e isso acontecia o tempo todo – o diálogo não flui de maneira
natural (com exceções, é claro) e, dessa forma, nós não somos nós mesmos. Pesava,
também, o nosso lado anti-social, de evitar a conversa quando isso era
possível, seja através da mímica ou simplesmente evitando o contato. Não foram
poucas as vezes que ficamos com cara de tacho frente a um funcionário do metrô
ou de um restaurante; ou mesmo pedindo informações: certo dia da nossa primeira
estada em Paris, falamos com um senhor sentado no metrô e ele não entendeu nenhuma
das nossas diversas tentativas de pronunciar a palavra invalides (queríamos chegar ao Hôtel
des Invalides). Somente após mostrarmos no mapa impresso ele entendeu aonde
queríamos chegar.
Essa sensação ruim de deficiências
na nossa comunicação me deixou muito reflexivo sobre as minhas capacidades, as
relações humanas e me fez lembrar, involuntariamente, do Arquipélago – o terceiro livro da trilogia O tempo e o vento –, quando Floriano Cambará, o escritor fictício,
fala da necessidade de construirmos pontes entre as ilhas, que somos nós, os
seres humanos. Mais do que nunca senti o peso desse afastamento, das inúmeras
culturas, universos, da ausência de busca entre nós, da supremacia de uma única
língua sobre todas as outras e da falsa sensação de nos bastarmos a nós mesmos.
Além de pontes entre os seres humanos, precisamos construir pontes entre todos
os países do mundo.
Um pouco extenuados por este cansaço
linguístico, não sabíamos ainda que falaríamos dois dias a mais em outras
línguas, como veremos a seguir. Além do esgotamento comunicativo, depois de
passar quase 20 dias de um frio muito mais intenso do que o que conhecemos no
Rio Grande Sul, confesso que já sentia um pouco de saudades do calor
brasileiro, e de falar livremente também. Todos estes elementos, bem ou mal,
apesar da ideologia nacionalista (sobretudo a nazifascista), demonstram que há
sim algo em nós que faz sentirmo-nos como pertencentes a um torrão natal. No
final desses dias em campos de neve, embora realizado pessoalmente, estava
sentido vontade de me reencontrar com o meu povo e a minha terra. Este – e
somente este – sentimento pode ser considerado como uma real nacionalidade; mas
é claro que nunca podemos nos dar por satisfeitos com esta mediocridade: o
mundo é muito maior que o nosso quarto e precisamos estabelecer as pontes entre
as culturas e os países do mundo inteiro!
"Presos" em Roma
Saímos do nosso hotel às 5h da manhã
e chegamos cedo no aeroporto Charles de Gaulle, por volta das 5h50min. Uma
grande fila de brasileiros e chineses se formava para fazer o check in. Fizemos todos os procedimentos
com o máximo de destreza – tínhamos passado por tantas máquinas, sensores e
esteiras de raio-X nesses 20 dias que já estávamos craques. Apesar dessa
desorganização inicial, conseguimos chegar no portão de embarque com cerca de
25 minutos de antecedência. Ficamos sabendo que o voo estava suspenso, pois o
aeroporto de Roma tinha sido fechado em razão de uma nevasca na noite anterior.
Ficamos esperando mais ou menos 2h entre conseguir embarcar e ouvir o piloto
anunciar que o voo tinha sido autorizado.
Chegamos em Roma por volta do meio
dia. O nosso avião da Alitalia ainda
aparecia na tela de departures, ordenando:
boarding now! Corremos tudo o que
podíamos, segurando nossas mochilas, passamos pelo free shop e o posto de migração. Suportando a morosidade da fila,
chegamos de língua de fora no portão de embarque e o nosso avião... já tinha
partido!
Começou, então, um longo tormento
sobre o que fazer. No balcão de informações da Alitalia encontramos muitos brasileiros que também tinham perdido o
mesmo voo “em razão das condições climáticas” e, da mesma forma, estavam
preocupados e indignados, pois o avião com destino ao Brasil, mesmo sabendo dos
atrasos de todas as suas conexões, tinha partido sob condições misteriosas. Nesta
mesma situação, conhecemos um estudante paulista que tinha ido visitar a mãe e
o padrasto no interior da Itália, um casal de namorados, uma mãe e uma filha de
Minas Gerais e uma excursão de idosos gaúchos liderados por uma jovem que era a
intérprete do grupo. Imediatamente nos aproximamos deste pessoal frente às
evasivas da empresa aérea, que dava claras demonstrações de que iríamos
permanecer no aeroporto até o voo do dia seguinte (ou sabe-se lá quantos dias a
mais), sem ter onde dormir ou comer. Eu e T não tínhamos mais dinheiro.
Estávamos completamente à mercê da comida que esperávamos receber no avião.
Intermediando a relação entre o
atendente do balcão, a jovem líder da excursão e o restante dos brasileiros – que
juntava cerca de 40 pessoas –, recebemos a informação de que a empresa estava “trabalhando
pra resolver o problema” e pedia “para que retornássemos dali a 1 hora”. Muito
a contragosto nos pusemos a esperar, ali mesmo, aflitos, de fronte ao balcão,
para demonstrar que não iríamos arredar pé.
Bateu o relógio e o homem que nos
atendeu foi substituído por uma nova atendente, que nos enrolou mais um pouco e
pediu mais uma hora, já elevando o tom de voz; o que nos obrigou a elevar o
nosso também. Os outros passageiros do aeroporto olhavam aquele acontecimento,
meio estarrecidos, meio sorridentes. Colocamos as nossas bagagens em cima do
balcão, para demonstrar que se necessário fosse, iríamos acampar ali.
Iniciou-se um debate entre nós e os atendentes sobre o utilitarismo das
empresas aéreas. Querendo otimizar os custos, a Alitalia fazia conexões de distintos países da Europa para Roma e,
um único voo, de Roma para o Brasil. Se é certo que a empresa não tem nada a
ver com a nevasca que acometeu a cidade naqueles dias, tampouco nós, os
passageiros, que sequer temos os meios de produção da empresa (e muitos ali,
como nós, sequer tinham dinheiro para se manter um dia a mais), temos
responsabilidade sobre isso. Para quem sobraria a conta?
Mas nós, unidos pelo imprevisto, não
estávamos dispostos a pagar por ela. Buscamos cadeiras de espera que estava num
dos cantos do saguão e ficamos bloqueando parte da fila do balcão da Alitalia. Escrevemos cartazes exigindo
nossos “direitos de passageiros” e os penduramos no balcão. Os transeuntes nos
olhavam espantados. Uma guarda do aeroporto veio nos perguntar o que estava
acontecendo. Relatamos toda a situação. Ela fez alguns contatos em italiano
pelo seu walkie-talkie e nos pediu
mais paciência. Dirigiu-se até o balcão da Alitalia
e conversou alguns minutos com os atendentes, que já nos olhavam com caras
aflitas.
Nossa intransigência nos arrancou um
almoço, pago pela empresa, na praça de alimentação do segundo andar e uma
audiência com o setor da empresa que garantia hotel e transfers a partir do aeroporto. Almoçamos e depois nos dirigimos
para este novo balcão. Até chegarmos nele tivemos que passar pelo posto de
migração novamente, onde nossos passaportes foram outra vez carimbados (haja
burocracia!) para entrar na Europa (teoricamente nós já estávamos fora).
Durante as “negociações” com estes
funcionários da Alitalia, algumas
pessoas desse grupo de brasileiros, como o estudante paulista e o jovem casal
conseguiu ser encaixado no voo daquela noite para São Paulo. Eu e T iríamos
apenas na noite do dia seguinte, junto com a mãe e filha mineiras e a excursão
gaúcha, que reunia umas 30 pessoas. Além disso, recebemos uma noite no hotel Holly Day Inn de Roma, um dos hotéis
mais ricos e confortáveis que já tivemos a oportunidade de estar, bem diferente
de todas as nossas estadias anteriores (em particular, da nossa pocilga de
Londres).
Nos deslocamos, então, sob um frio
de -1ºC até o estacionamento do aeroporto de Fiumicino, onde o micro ônibus nos buscaria. Separados da excursão
gaúcha – que foi para outro hotel (eles tiveram menos sorte do que nós) –, mas
junto com as mineiras, estarrecidas pelo frio, esperamos, com alguns outros
passageiros árabes e alemães, cerca de 30 minutos o micro ônibus. Quando ele
finalmente chegou já era noite fechada. Fomos, então, para o nosso novo hotel,
chegando lá por volta das 21h.
No meio do caminho entre o aeroporto
de Fiumicino e Roma, o hotel
constituía-se de duas grandes torres, com mais de 10 andares. Tinha um grande
saguão de entrada, com confortáveis poltronas, um belíssimo restaurante, onde
era servido o café da manhã, almoço e janta, além de belas piscinas que, em
razão do mau tempo, estavam fechadas para banho (me pus a imaginar a
aristocracia europeia a aproveitar aquelas instalações no tórrido calor
italiano do verão). Estavam hospedados naquele hotel muitos ingleses, o que dá
uma ideia aproximada de quanto ele custa. Os quartos eram imensos, com duas
camas de casal, uma bela vista pela janela, e banheiras imensas. Aproveitamos cada
minuto que pudemos desse nosso “azar”.
***
No dia seguinte, após tomar um
belíssimo e indescritível café da manhã, que tinha mais opções do que um
restaurante de buffet livre, e logo
depois de almoçar (para valermo-nos da refeição do hotel), aproveitamos o dia
de sol (ainda que muito frio) para visitar o Vaticano.
Chegamos à praça de São Pedro por
volta das 15h. Como sempre, a fila estava quase dando a volta na praça. Tomamos
a posição do último lugar e resistimos às investidas dos guias e vendedores
ambulantes. Exatamente na nossa frente tinha um velho casal de ingleses; o
homem, de cabelos grisalhos e apesar de roupas pesadas para o frio, de forma
bastante despojada; a mulher, de cabelos curtos e pintados, de traços severos.
Ambos conversavam tranquilamente. Durante a nossa estada na fila, duas pessoas
tentaram se infiltrar no meio para não precisar ir desde o fim da fila. O velho
homem inglês deu uma dura nos impostores, acompanhado pelo olhar ríspido de sua
mulher. Depois ficamos cuidando pra ver se nenhum engraçadinho tentaria dar um
novo golpe.
Após resistir a estas investidas
chegamos até a parte que nos autorizava a entrar. Novamente passamos por uma
nova máquina de raio-X, que nos examinou, bem como as nossas mochilas. Assim
que adentramos a cerca que dava acesso à basílica, tivemos que deixar nossas
malas em um guardador (gratuito, felizmente). As proporções do templo são
gigantescas, e o chão e as colunas de mármore dão a impressão de entrarmos em
uma das sete maravilhas do mundo. Trata-se de uma verdadeira Igreja-Palácio,
pra dar a certeza de que estamos na capital oficial do catolicismo. Ao passar o
grande portal que dá acesso à basílica, pudemos ver o chão lustroso, as
cadeiras milimetricamente dispostas próximos do altar central, cercadas por
colunas e estátuas imponentes. É maior do que todas as igrejas que tive
oportunidade de conhecer, inclusive os imensos mausoléus católicos da França. O
altar gigante, de onde o papa reza suas missas, com ornamentos metálicos e as
madeiras torneadas se estendem quase até o teto, constituindo-se de um símbolo
do seu poder atemporal. Um grande número de turistas procurava o melhor ângulo
para tirar suas fotos, deixando o espaço ainda mais exíguo para o trânsito dos
curiosos. Apesar de todo este povo caminhando lá dentro, observando, tirando
fotos, cochichando baixinho, o silêncio se impunha como uma das normas sem que
quase ninguém precisasse pedir.
Um pouco mais à esquerda havia um
grande corredor que levava para uma loja de souvenires, com rosários, terços,
fotos, cartões postais, imagens do papa e de santos católicos, pequenas
estátuas, etc. Todas estas “mercadorias para a alma” variavam muito de valor.
Foi inevitável não lembrar de Lutero. Próximo desse corredor que dava acesso à
loja há uma escadaria que leva para um subsolo tenebroso e um pouco sombrio,
com ares de Idade Média. Neste subsolo estão enterrados diversos papas que
“governaram” a Igreja ao longo dos séculos. Em pequenas placas de mármore se
pode ler, esculpido, o seu nome e os anos do seu papado. É impressionante o
fato de que o Vaticano e os papas reinaram como uma verdadeira monarquia, por
séculos, em quase toda a Europa; e ainda hoje, em certo sentido, continuam
reinando não apenas na Europa, mas em grande parte do mundo. Possuem bancos,
mídias, escolas, universidades, diplomacia, exército e guarda nacional.
Apesar do frio e dos restos de gelo,
saímos da Basílica com sede e levemente cansados. Naquela noite ainda teríamos
que cruzar o Atlântico e o horário do nosso voo se aproximava. Bebemos água
numa das bicas que está entre as colunas da Praça de São Pedro e nos pusemos em
direção à rua. Saímos do Vaticano e fomos caminhando pela avenida central, até
às margens do Rio Tibre. Fomos costeando o Castelo de Santo Ângelo até a
estação de metrô mais próxima.
Dos três que conhecemos, o metrô de
Roma é o mais barato. É bem organizado, embora com menos linhas e disposto
sobre um território bem menos abrangente. Ficamos na fila e compramos nossos
tickets por apenas 1,50 euros. Tomamos a direção do Roma Termini, de onde sabíamos que saem ônibus de 1 em 1 hora em
direção ao aeroporto de Fiumicino. Os trens do metrô são modernos e bonitos.
Naquele dia não lotaram, tal como o underground
londrino, mas tivemos que ir de pé, ouvindo a conversa de uma família de russos,
que provavelmente estavam visitando a capital da Itália naquela ocasião, e
tentando decifrar o que aparecia escrito em italiano na pequena TV acoplada
quase no teto do vagão.
Conforme o planejado, descemos no Roma Termini e pegamos o ônibus em
direção ao aeroporto. Ainda sofremos com um engarrafamento de cerca de 1h. Por
prudência, fomos para o aeroporto com bastante antecedência. Certamente a Alitalia não seria generosa uma segunda
vez. Por volta das 20h nos encontramos com os brasileiros, que já estavam
sentados no saguão de espera. Cansados e realizados, eu e T nos despedimos da
Europa às 22h do dia 27 de fevereiro de 2018.
Europa e América Latina:
“desenvolvimento” e “subdesenvolvimento”!
Antes de chegarmos no velho
continente, eu e T já tínhamos desbravado Uruguai, Argentina, Recife, Rio de
Janeiro e parte do Canadá. Nenhuma dessas viagens – com algumas exceções – me
fez escrever minhas memórias. Só isso denota os fortes resquícios do
“eurocentrismo” que ainda vive em mim. Visto, sentido e vivido parte da Europa
Ocidental, posso afirmar que estávamos diante de sociedades altamente
desenvolvidas, mas com crescentes problemas sociais, que nós, latino americanos,
conhecemos muito bem. O fato de os terem em menor número não os justificam. A
imigração e o subemprego são realidades cotidianas. Africanos e latino
americanos só são bem vindos para turismo e para jogar futebol – e ainda assim
de forma muito restrita. A vida boa e o alto desenvolvimento do continente
europeu estão assentados sobre o subdesenvolvimento e a miséria dos demais
continentes. Aos miseráveis do mundo, que querem se deslocar para lá visando
melhorar suas condições precárias de vida, ergue-se um muro de mentiras, de
burocracia, de exércitos, de dissimulações e de desculpas. Aquelas “cidades
proibidas” não podem ser desfrutadas por todos. É assim que o “capitalismo
funciona”: pequenas ilhas de países prósperos cercados por oceanos de miséria,
exploração e sofrimento.
O povo brasileiro e latino-americano
(e, em especial, a sua classe média) cria uma imagem idealizada dos países da
Europa e demoniza os latino-americanos. A visão dicotômica redunda na ideologia
de que os povos europeus são destinados à liderança do mundo por suas virtudes
intrínsecas, enquanto que os povos latino-americanos e dos demais continentes
são predestinados à submissão servil e escravocrata. Alguém duvida da enorme
capacidade de produzir autolegitimação e autoestima nas sociedades ditas “avançadas”
pela propagação desses preconceitos que pressupõem uma superioridade moral
“inata”, como se os séculos de exploração e submissão da América Latina nada
tivesse a ver com isso? Não se trata, é claro, de negar a corrupção e os graves
problemas sociais da América Latina, mas, sim, de colocar a noção sobre
“desenvolvimento” e “subdesenvolvimento” no seu devido lugar histórico. A
exploração do nosso continente propiciou as condições para o surgimento de
“sociedades avançadas” na Europa e na América do Norte. Essa exploração não
acabou a partir das “independências” das repúblicas da América Latina; apenas
mudaram sua forma.
O andar “aventureiro” de dois
latino-americanos, cheios de sonhos, curiosidades e desejo de viver a vida, se
traduziram nestas inevitáveis reflexões e memórias que colocam em contraste
duas realidades sociais muito diferentes, mas complementares. Que elas sejam o
pontapé inicial para uma nova mentalidade e uma nova forma de ver esta
dialética entre metrópole e colônia; entre “desenvolvimento” e
“subdesenvolvimento”. Paremos a sangria desatada da nossa intelligentsia rumo aos países do norte: o caminho real é a mudança
das estruturas do sistema mundial, que possibilita que o “desenvolvimento” de
alguns poucos se assente no “subdesenvolvimento” de todos e gere uma onda
migratória para fugir do problema ao invés de olhá-lo de frente, para compreendê-lo
e resolvê-lo.
Porto Alegre, 8 de
julho de 2018