sexta-feira, 21 de julho de 2017

Jesus Cristo voltou, aleluia!

"Quanto ao dia e à hora da segunda vinda ninguém sabe,
nem os anjos dos céus, nem o Filho, senão somente o Pai"
(Mateus 24:36).


         Diz a tradição inspirada nas sagradas escrituras que deus envia de tempos em tempos um messias para redimir a humanidade dos seus pecados. Segundo a crença ocidental, já se passaram mais de dois mil anos e quase duas décadas desde que ele enviou o último. Era tempo de redimir esta nova gama de pecados cometidos pela humanidade ao longo deste último período. O lugar escolhido, tal como a dois mil anos atrás, foi uma província miserável de um território dominado por um império: Porto Alegre.
Algum infiel incrédulo pode perguntar: mas porque deus escolheu logo Porto Alegre? Ora, porque deus tem seus acessos de vontade, como as sagradas escrituras nos demonstram; e estas, como sabemos, se bastam a si mesmas. De mais a mais, havia uma música de uma banda gaúcha que dizia que Jesus Cristo iria voltar e que em Porto Alegre ele iria morar. Muitas crianças, com seus corações puros, cantaram aquela canção, e esta foi sentida por deus como uma forma de oração. Assim, acabou por escolher Porto Alegre e viu que isso era bom.
Zaz! Um clarão desceu do céu. Lá estava Jesus, com sua túnica branca envolta por um pano vermelho, vestindo as suas surradas sandálias, exalando bondade e pureza através de uma aura brilhante dourada, parado, de pé, na pracinha do Julinho, em plena Av. João Pessoa, às 14h de uma movimentada quarta feira. Muitos passageiros de ônibus nas paradas ou simples transeuntes olharam com grande curiosidade aquela estranha figura, vestida daquele jeito, caminhando lentamente em direção à Redenção. Uns cochichos e pequenas risadinhas puderam ser ouvidos vindos de longe. “Mais de dois mil anos se passaram e eles ainda não aprenderam”, pensou Jesus consigo mesmo. Chegou próximo de uma das paradas da Av. João Pessoa e disse: “Não julgais para não ser julgado”. E então, uma explosão de gargalhadas começou a ressoar por todos os lados. “Perdoa-os pai”, disse Jesus, olhando pra cima, “eles ainda não sabem o que fazem”. Retomou a sua marcha em direção à Redenção.
***
         Chegando nos bosques da grande praça, Jesus se deparou com dois mendigos brigando por um resto de marmita e pão, que haviam encontrado em um banco ao léu. Os impropérios vindos de ambos os lados eram dolorosos. “Eu vou te matar”, um dizia. “Eu vou quebrar toda a tua cara”, respondia o outro.
         “Calma e paciência”, disse Jesus levantando uma mão e levando a outra ao coração, “Vamos resolver esta contenda com a paz interior”. Imediatamente os dois mendigos se largaram e olharam aquela curiosa figura que caminhava em sua direção. Os olhos de um deles se arregalaram. Ele disse: “Mas, mas é Jesus!”. O outro não se conteve e caiu na gargalhada: “Tu só pode tá louco da cola!”.
“Não, é Jesus mesmo”, disse o primeiro, esfregando os olhos. “Isso mesmo, vós estais certo, sou eu, Jesus”. Uma aura dourada subiu por trás da cabeça de Cristo, que chegou a alumiar o interior do bosque da esquina da Av. João Pessoa com a José Bonifácio. “Ó senhor, me perdoe”, disse o primeiro, se atirando aos pés do redentor.
“Todo aquele que reconhecer os seus pecados e se arrepender sinceramente por eles será perdoado”, falou Jesus colocando a sua mão esquerda sobre a cabeça do mendigo. Este se pôs a chorar, baixinho.
O outro, incrédulo, ficava olhando, distante. “Estou sentindo falta de fé por aqui”, disse Jesus, admirado com a incredulidade de um deles. “Me alcance aquele pedaço de pão”, pediu ao mendigo ajoelhado. Rapidamente ele atendeu ao mestre. Jesus tomou aquele pedaço duro e velho de pão e o ergueu aos céus, olhando fixamente para uma grande nuvem que pairava sobre a praça. “In nomine patris, et filii, et spiritus sancti. Amen”, murmurou Cristo. De repente surgiu em suas mãos mais 10 pães, completamente novos e apetitosos, como se tivessem recém saído do forno. “Deus seja louvado”, gritou o primeiro mendigo, se ajoelhando novamente de fronte ao mestre. Pegou rapidamente um pedaço de pão e começou a comer, faminto.
“Dai de comer a quem tem fome e de beber a quem tem sede”, pronunciou solenemente Jesus, olhando para os dois mendigos. O incrédulo remexeu em um saco preto próximo ao banco e puxou de lá uma faca de cozinha. Ameaçou Jesus e o mendigo ajoelhado: “Parado os dois, senão furo vocês! Passem pra cá os pães”. Tomou de assalto o que queria, os colocou em um saco maior e saiu correndo em direção à Av. Oswaldo Aranha. “Perdoa-o pai, ele não sabe o que faz”, lamentou-se Jesus, olhando para os céus.
***
         Um pouco cansado e abatido, Jesus deitou-se em um dos bancos da Redenção para dormir, sempre acompanhado do mendigo, seu novo discípulo, que dormiu no chão, ao lado do mestre.
Foram acordados na manhã seguinte por uma ambulância, que passou fazendo um escândalo com sua sirene, em direção ao Hospital de Pronto Socorro (HPS). Jesus acordou dando um salto do banco e caindo ao lado do mendigo. Na Palestina de 20 anos após o seu nascimento nunca tinha visto nada semelhante.
“Alguém deve estar morrendo”, sussurrou o mendigo. Jesus se pôs de pé e disse: “Precisamos ajuda-lo. Para onde estão indo?”. O mendigo se levantou e disse a Jesus que estavam indo ao Hospital de Pronto Socorro. Foram caminhando a passos largos para lá.
Chegando ao saguão do hospital, se depararam com centenas de doentes pelas cadeiras, pelo corredor, esperando atendimento ou mães e pais tentando amenizar o choro de suas crianças. Era quase uma visão do inferno. Tudo desorganizado. Uma verdadeira baderna! Jesus entrou no saguão, mas o mendigo foi impedido de entrar por um segurança.
“Deixa-o passar, é meu discípulo. Ele está arrependido de seus pecados e por isso merece o reino dos céus”, ordenou Jesus ao segurança. Este se pôs de pé, dizendo: “Aqui não é lugar pra vagabundo! E quem tu pensa que é vestido desse jeito? Jesus?”. “Sim”, respondeu Cristo, exalando sua luz dourada. O segurança recuou, assustado. Jesus se aproximou de um jovem que tinha a perna quebrada e gemia muito. “Quando vão atender meu filho?”, perguntava a mãe, consolando seu filho e tentando amenizar sua dor. Colocando a mão sobre a perna quebrada, Jesus falou em tom solene e ríspido: “Levanta-te e anda!”. O jovem largou a mão da mãe e se levantou de um só pulo. Todos que estavam em volta se espantaram. Uma senhora se colocou a fazer sinais da cruz pensando se tratar de algum tipo de bruxaria.
“Ouçam a palavra de deus, todos vocês”, gritou Jesus para os presentes, “olhem como estão tratando seus iguais”, apontou para o mendigo, que olhava tudo da rua, “por que ele não pode entrar aqui? Aqui não é a casa de deus também? Onde os leprosos e doentes são tratados? Por que há tantos doentes sem atendimento? Por que esta criança chora mesmo estando no seio de sua mãe?”. O segurança sentiu como se aquilo fosse o princípio de um motim. Suas ordens estritas eram pra manter a tranquilidade do ambiente. Chamou reforços pelo rádio.
Alguns presentes filmavam o que dizia aquela estranha e divina figura com seus celulares e outros apenas olhavam, estarrecidos. “Eu voltei para redimi-los dos seus pecados”, continuava Jesus já de cima de um banco, “conheça a verdade e a verdade vos libertará!”. Nesse instante reforços da segurança do hospital e da Brigada Militar adentraram o recinto. Pegaram Jesus pelos braços e colocaram-no na parede: “Este é o elemento?” gritou o capitão. “Sim”, respondeu prontamente o primeiro segurança. “Aquele é o seu cúmplice”, apontou para o mendigo na rua, que se pôs a correr, sendo facilmente detido logo na esquina com a Oswaldo Aranha. O jovem que teve a perna curada se colocou na defesa de Jesus: “Como são capazes de fazer isso com Jesus Cristo, nosso senhor?”. O policial logo deu uma chave de braço no rapaz e o colocou na viatura, junto com Cristo e o mendigo. Foram levados para o Palácio da Polícia. Lá foram fichados, interrogados e por total ausência de provas, liberados. Alguns curiosos, ao saberem da notícia e ao verem os vídeos circulando nas redes sociais, foram até o Palácio para ver como estavam tratando o “suposto” Jesus. Saíram pela porta dos fundos, mas foram recebidos por estes olhares curiosos.
Jesus e seu séquito, que já havia crescido para um grupo de cerca de 15 pessoas, voltaram caminhando para a Redenção. Sentaram-se no meio dos seus escuros bosques, fizeram uma fogueira, e Jesus começou a lhes falar, novamente, sobre o Reino dos Céus. Um deles, seguidor de uma igreja evangélica, relatou como era a sua crença e o que lhe professavam os seus pastores. Disse que certa vez viu um pastor do templo perto da rodoviária curar uma mulher possuída pelo demônio. Jesus achou muito estranho. Ficou reflexivo. “Quero ir conhecê-la”, disse Cristo. O evangélico concordou em leva-lo a aquele templo na manhã seguinte.
***
         Ao perceber o esbanjamento da construção, com seus vitrais e ornamentos, Jesus ficou impressionado. Em nada se assemelhavam aos templos de Jerusalém. O evangélico corou um pouco. Mesmo assim, entrou no culto acompanhando Jesus, que olhava tudo com grande curiosidade e serenidade.
         O pastor, em cima do palco, reparou a entrada de elementos estranhos: “Alto lá, quem são vocês?”. Cristo ergueu uma mão aos céus e a outra ao coração, pronunciando: “Eu sou o caminho da verdade e da vida”. O pastor ficou um pouco desconfiado. Não sabia se tudo aquilo fazia parte do culto. Ninguém tinha lhe avisado nada. Parte dos crentes fez um sonoro “oh!”. Percebendo a sedução dos presentes, o pastor logo disse: “É você senhor?”. “Sim, sou eu, Jesus de Nazaré; estou de volta para acertar contas com aqueles que ainda não entenderam meus ensinamentos, para redimi-los dos seus pecados”.
“Mas será mesmo ele?”, ouviam-se algumas vozes incrédulas do meio do plenário. “Senhor, como podemos ter certeza de que é mesmo o nosso messias reencarnado?”, aproveitou-se o pastor. “Todo aquele que for puro de coração, logo me perceberá, sem necessidade de provas”, ia dizendo Jesus, quando rapidamente adentrou no palco dois assistentes do pastor carregando uma grande bacia cheia de água.
         “Eis aqui o desafio para tirarmos a dúvida:”, bradou o pastor com o dedo em riste, “se este homem for mesmo o nosso messias ele caminhará sobre esta água”. O pastor apontava ensandecidamente para a bacia e agitava o plenário. Descalçando as sandálias, Jesus reparou que o mendigo e o jovem do HPS estavam entre a multidão, esperando algum milagre. Puxou a barra da saia da túnica para cima e pisou suavemente sobre a água, que espalhou leves círculos concêntricos por onde o Senhor pisava, sem afundar ou mesmo abalar o espelho d’água. O pastor e toda a plateia fizeram um “oh” duplo!
O pastor, falando com a escuta, sussurrou: “Daonde saiu este filho da mãe? Ele tá caminhando de verdade sobre a água!”. O produtor que estava na escuta, respondeu: “Não tenho a menor ideia; mas tu já sabe o que fazer, certo?”.
“Aleluia, irmãos, Jesus Cristo voltou”, disse o pastor voltando-se para a multidão. Muitas mãos com seus celulares tiravam fotos e gravavam vídeos. Uma senhora começou a chorar convulsivamente dizendo: “Ele voltou! Ele voltou! Aleluia”. O pastor então domou aquele frenesi: “Depositem agora mesmo o seu dízimo online na maquininha à sua frente; não deixe Jesus afundar com sua falta de crença, contribua agora mesmo...”. Luzes começaram a brilhar ao fundo do palco.
E Jesus, vendo o espetáculo, começou a se desequilibrar, como se fosse afundar. Então parou, ainda flutuando sobre as águas, e respirou fundo. Reequilibrou-se. Sentindo todo o ranço presente naquela atmosfera, Jesus começa o seu sermão: “Parem de transformar a casa de meu Pai em um mercado!”. Todos ficaram atônitos e um súbito silêncio se fez. Ele prosseguiu: “Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai uma casa de negócio. A minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a fazeis covil de salteadores”.
O pastor então pulou sobre Jesus, para fazê-lo afundar, mas acabou virando a bacia e levando o Senhor ao chão. “Este homem é um impostor, homem de pouca fé, fora já do nosso templo”. O público ficou confuso. “Só pode ser o capeta nos tentando!”, gritava o pastor. Imediatamente uma grande vaia estourou por todos os lados do templo, ressoando para a grande porta de entrada, que dava para as paradas de ônibus da Av. Júlio de Castilhos. Alguns olhares curiosos se colocaram a observar. “Fora daqui, pecador imundo!”, berrava o pastor, gesticulando com as mãos e tendo os olhos faiscantes, “o verdadeiro Jesus disse na Bíblia para tomarmos cuidado porque muitos iriam aparecer fingindo ser o messias”. O pastor chegou a descer alguns degraus do seu púlpito para apontar a porta da rua: “Este homem é a reencarnação do demônio que veio aqui tentar a nossa fé; fora já daqui Lúcifer, você não nos enganará...”. E muitas senhoras e jovens começaram a fazer o sinal da cruz descompassadamente. Outros presentes ficaram confusos, batendo cabeça.
Abaixo de uma grande vaia, Jesus e seus seguidores saíram do templo em direção ao centro. Olhares curiosos continuavam a espreitá-los por todos os lados. Mesmo com todo este incidente, muitos fiéis colocaram o vídeo na internet. Inevitavelmente tornou-se um dos trending topics de muitas redes sociais. A mídia foi obrigada a ter que falar sobre o assunto. ZH dominical dizia: “Quem é este homem? De onde ele vem? Qual a sua mensagem?”; o Correio do Povo colocou como uma submanchete: “O que quer nos dizer um homem que se veste como Jesus e está assustando os moradores do centro histórico?”. Convites de entrevistas em programas de TV foram enviados. Instigado por tal fenômeno, alguns repórteres começaram a procurar o suposto messias. Como ouviram os boatos de que ele morava por entre os bosques da Redenção, começou a ter uma grande incursão de jornalistas por entre as árvores da grande praça, tentando algum furo de reportagem.
***
Não era difícil encontra-lo. Desde que ouvira um homem tocando saxofone no pequeno templo de Buda, perto dos bambus, atrás do Araújo Vianna, Jesus passou a viver ali. Gostou da tranquilidade, do silêncio das tardes nubladas e frias, das pontes em estilo japonês. Aos domingos as crianças corriam soltas pelos seus gramados. Sentiu uma grande paz de espírito ali. De dentro da casinha, que possuía uma disforme estátua de um “Buda” gordo, Jesus orava, pregava ao seu séquito, que agora já tinha aumentado ainda mais. Alguns seguidores, mais ortodoxos, passaram a dormir com barracas ao lado do pequeno templo de Buda e aquele deslocamento de miseráveis atrás do Senhor já começava a despertar preocupação nas autoridades.
Certa vez um repórter pegou Jesus pregando aos seus seguidores em um domingo ensolarado. Ele dizia: “Todos nós buscamos a iluminação, seja na minha religião, seja na religião de Buda. Todos pregamos o amor, a compaixão, a vida desapegada de valores materiais, fúteis. Para atingir a pureza de coração ou a iluminação, no Nirvana, todos nós devemos cultuar a paz interior. Olhem para o universo! Lá devemos desvendar as leis de deus juntos, com condições dignas para todos os seres humanos...”. As imagens fizeram sucesso. Viralizaram nas redes sociais e as grandes emissoras do país retransmitiram-nas em alguns programas de esoterismo.
O Arcebispo de Porto Alegre, percebendo que a Igreja Católica estava ficando em desvantagem em relação a tudo isso, fez um convite solene para Jesus visitar a sua própria casa: a Catedral Metropolitana de Porto Alegre, filial da Santa Sé de Roma. A mídia noticiou o fato. Foi montado um grande evento para recepcionar Cristo. Uma multidão se espremeu na Praça da Matriz para ver a chegada do Senhor. Católicos VIPS ganharam senhas para ocupar assentos nos bancos do interior. Padres, freiras, figuras públicas e notáveis políticos gaúchos e nacionais ombreavam o governador do Estado, que também cancelou sua agenda para estar presente na solenidade.
Sem nenhum tipo de glamour, Jesus chegou com o seu séquito de mendigos, jovens, esfarrapados e prostitutas, sob o olhar atento dos presentes. Flashes explodiam por todos os lados, as câmeras estavam posicionadas, celulares, gravadores, tudo registrando um momento histórico. Jesus subiu as escadas, seguido pelos seus discípulos (que foram detidos nos portais de entrada), e caminhou, por entre os bancos da catedral, até o seu altar. Os olhares estavam firmes; nem piscavam. Não queriam perder nenhum momento daquele grande acontecimento.
O Arcebispo de Porto Alegre sorriu e disse: “Bem vindo de volta à sua casa, Senhor”. Após, ajoelhou-se aos pés do redentor. “Pare com esses protocolos. Ponha-te de pé homem”, falou Jesus, rispidamente. Lançou um rápido olhar sobre a mesa, com suas taças, candelabros, hóstias. Voltou seu olhar para as páginas da Bíblia, aberta logo ao lado. Ia começar a falar: “Ora, há algo errado ali. Eu não disse isso...”, quando o Arcebispo celebrou: “Viva a volta de nosso Salvador”. E os presentes gritaram: “Hosana nas alturas, glória vós Senhor”.
Jesus deu um passo atrás. “Então”, disse ele, “o que a Igreja que diz falar em meu nome tem feito pelos pobres?”. O Arcebispo mais que depressa tomou a palavra: “O nosso Papa tem defendido a causa do povo, meu Senhor. Falado em retomar os valores de São Francisco de Assis e de voto de pobreza, como o senhor mesmo falou nas sagradas escrituras. Nós fazemos campanhas do agasalho, de arrecadação de alimentos...”. Jesus sentiu uma atmosfera de hipocrisia no ar.
“Cristo, temos o louvado por anos”, disse uma senhora de traços severos e trajando um belo terno feminino cor de carmim; “Eu venho a missa todos os domingos”, exaltou-se outra, sentada mais ao lado. Um burburinho começou a vir do fundo. O Arcebispo falou mais próximo do microfone: “Que bons ventos o trazem de volta, Jesus, nossos Senhor?”.
“Venho relembrar minha mensagem, que parece ter sido esquecida”, falou Jesus, também se aproximando do microfone. “Ó Senhor, estamos sedentos por ouvi-la”, disse o Arcebispo.
“Como é feliz aquele a quem o Senhor não atribui culpa, e em quem não há hipocrisia! Enquanto eu mantinha escondido os meus pecados, o meu corpo definhava de tanto gemer.”, iniciou Jesus. Um súbito silêncio se fez. Ele parou de falar no microfone, porque sua voz podia ser ouvida da rua. “Os mestres da lei e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés. Obedeçam-lhes e façam tudo o que eles lhes dizem. Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que pregam. Eles atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los. Tudo o que fazem é para serem vistos pelos homens. Gostam do lugar de honra nos banquetes e dos assentos mais importantes nas Igrejas; de serem saudados nas praças e de serem chamados cidadãos de bem. Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês fecham o Reino dos céus diante dos homens! Vocês mesmos não entram, nem deixam entrar aqueles que gostariam de fazê-lo. Vocês devoram as casas das viúvas e, para disfarçar, fazem longas orações. Por isso serão castigados mais severamente”.
Aquilo parecia tão direto, verdadeiro e ríspido. Um mal estar geral se instalou no ar. De repente, um homem se levantou do meio dos bancos da Catedral e disse: “Como saberemos que este homem não é um impostor se passando por Cristo?”. Um novo burburinho e cochichos explodiram por todos os lados. O Arcebispo pediu calma no microfone. “É verdade! Queremos um milagre!”, gritou outro homem de um dos extremos da grande igreja; “É isso mesmo! Queremos um milagre”, gritou uma mulher um pouco mais a frente. E a massa dos presentes começou a gritar em uníssono: “milagre, milagre, milagre...”. Jesus tomou a palavra novamente pelo microfone e disse: “Tragam-me um jarro d’água”. Todos pararam instantaneamente. Um coroinha subiu no altar levando um jarro grande cheio de água. “Beba um gole”, ordenou Jesus ao Arcebispo. Ele virou o jarro em um cálice e tomou: “É água”, confirmou.
Jesus ergueu as mangas de sua túnica e colocou uma mão no interior do jarro, fazendo escorrer um pouco de água pelas laterais, e pronunciou: “In nomine patris, et filii, et spiritus sancti. Amen”. De repente borbulhas vermelhas começaram a submergir na superfície, tal como se Cristo tivesse cortado a própria mão e o sangue jorrando colorisse o recipiente. O Arcebispo tonteou para um lado; quase caiu. “Aqui está seu milagre, Fariseu!”, disse Jesus enxugando a mão na toalha da mesa. O Arcebispo serviu um cálice e tomou: “É vinho!”, ele gritou. Alguns curiosos se levantaram para ver de perto. O Arcebispo passou o cálice para o primeiro ao seu lado: “É realmente vinho!”, ele confirmou.
“Aleluia”, gritou o político que estava sentado na primeira fila. Muitos começaram a gritar também: “Aleluia! O senhor voltou!”.
“Por que gritam em meu nome vocês que estão cegos?”, indagou Jesus no microfone, “Se alguém jurar pelo santuário, isto nada significa; mas se alguém jurar pelo ouro do santuário, está obrigado por seu juramento. Cegos insensatos! O que é mais importante: o ouro ou o santuário que santifica o ouro?”. O Arcebispo interrompeu: “Mas Senhor, temos cultivado sua palavra por séculos”.
“Por isso mesmo”, continuou Jesus, “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Vocês dão o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas têm negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade. Vocês limpam o exterior do copo e do prato, mas por dentro estão cheios de ganância e cobiça. Vocês são como sepulcros caiados: bonitos por fora, mas cheios de ossos e de todo tipo de imundície por dentro. Assim são vocês: por fora parecem justos ao povo, mas por dentro estão cheios de hipocrisia e maldade”.
“Por que é tão duro conosco, Senhor?”, disse uma senhora em prantos, próximo das primeiras filas, “Nós comemoramos a sua ressurreição todos os anos, merecemos o seu reconhecimento”.
Irado e de dedo em riste, Jesus falou: “Uma mentira de fariseus, de hipócritas! Vocês edificam os túmulos dos profetas e adornam os monumentos dos justos. E dizem que se tivessem vivido no tempo dos nossos antepassados, não teriam tomado parte com eles no derramamento de sangue dos profetas. Assim, vocês testemunham contra si mesmos, que são descendentes dos que assassinaram os profetas. Acabem de encher a medida do pecado dos seus antepassados! Se purificam rezando pelos pecados do passado para continuarem cometendo assassinatos de profetas no presente”. Uma senhora se atirou no chão chorando. Os políticos consternaram-se. Não havia clima sequer para tirar uma foto, pois qualquer tipo de sorriso seria forçado e mentiroso. O Arcebispo, sentindo o drama da situação, propôs: “Vamos cantar uma canção sacra para encerrar esta linda cerimônia de reaproximação”.
 “Eu não ordenei o seu encerramento”, gritou Jesus, “Por que todas as casas que vocês falam ser minhas estão tomadas por homens de negócio, por vendilhões do templo? Por que a Igreja concentra ouro em suas esculturas e altares? É assim que quereis cultuar minha memória? Por que possui terras, imóveis, universidades, rádios e televisões, enquanto tantas pessoas passam fome? Por que os meus seguidores autênticos deixastes do lado de fora, nas escadarias deste templo?”. O Arcebispo, meio constrangido, aproximou o microfone da caixa de som, o que fez ecoar uma horripilante microfonia por toda a catedral, atormentando os presentes: “Er, meu senhor... a Santa Sé possui tudo isso pra melhor propagar a sua palavra. Talvez possamos entrar em contato com o Papa no Vatic...”.
Jesus virou os castiçais e taças de metal no chão. O barulho assustou os presentes, que exclamaram interjeições de horror.
“Basta!”, gritou Jesus, “Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai uma casa de aparências. Falo pela última vez: é mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do que um rico entrar no reino dos céus”. Vozes horrorizadas e de protesto começaram a ecoar no fundo da catedral. “Vais me dizer também que a Santa Inquisição foi para melhor propagar a minha palavra?”, insistia Jesus, descompassadamente e já descabelado.
O governador, vendo os apuros do Arcebispo, tentou intermediar: “Mas Senhor, diga-nos agora, o que queres que façamos por sua santidade?”. Jesus virou-se para o governador, e controlando a sua indignação, disse: “Quem tem muitas roupas, dê roupa ao que não tem. Quem tem bastante alimento, faça o mesmo. Não cobrem nada além daquilo que foi determinado. Não usem da violência e não caluniem ninguém”.
“Mas vejam só”, disse um cidadão que estava sentado na primeira fila, “este homem só pode ser um comunista infiltrado”. De repente um burburinho submergiu do fundo: “Vai pra Cuba, seu comunista, comedor de criancinha!”. Garrafas e pequenos crucifixos de madeira começaram a ser jogado para cima do altar. O Arcebispo levantou a batina para se proteger.
“Por que o Vaticano tem um banco só seu?”, continuou Jesus, indignado, “O que está havendo com vocês? Não entenderam nada?”. A população explodiu em xingamentos de ódio incontido. “Saia daqui seu comunista!”, gritavam uns, “Onde você já viu isso dar certo?”, berravam outros. “Nós defendemos os valores da família, seu pervertido”, gritou um grupo de senhores e senhoras, sentados mais à direita, na primeira fileira.
Jesus insistiu, gritando: “Seria perfeitamente viável que todos vivessem de forma digna se dividís...” uma taça de metal acertou-lhe a cabeça, fazendo escapar um filete de sangue em sua testa. Se defendendo dos xingamentos e dos objetos voadores, Jesus procurava o caminho da saída. Começou a ser chutado, cuspido, socado, de um lado e de outro. Com muita dificuldade encontrou seus discípulos, na rua, que passaram a defendê-lo em forma de escudo humano. Desceram correndo a rua da ladeira.
Quando a calmaria se fez, o Arcebispo rezou, então, uma nova missa em nome da ressurreição de Cristo e todos os fiéis fizeram o sinal da cruz. Com sua voz calma e tranquila, novamente acalmou aquele povo. Ao saírem da catedral, colocaram uma pedra em cima do assunto. As mulheres retornaram à cozinha e às necessidades básicas dos filhos; os maridos dividiram-se entre alguns bares da Cidade Baixa ou da Goethe. Outros adentraram o prostíbulo da R. Olavo Bilac. As velhas reclamações e pequenas intrigas entre uns e outros voltaram à tona, exigindo novas orações e pedidos piedosos.
***
Jesus prostrou-se frente aos seus discípulos, sentando no cercado do templo de Buda, na Redenção. “Perdoem-nos. Eles não sabem o que fazem”, disse ao mendigo. “Estão cada vez piores, mestre”, ele respondeu a Jesus, “eles nos humilham todos os dias e nas raras vezes que nos dão esmolas dizem que temos que deixar as ruas e ir trabalhar, como se houvesse emprego para todos”. “Não vamos perder a fé”, disse Jesus, que olhava para a paz do laguinho da praça oriental. “Olhai os lírios do campo”, ele prosseguiu, “procure a alegria no olhar de uma criança. Por que nós iremos perder a fé por causa destes incidentes tão pequenos?”. Juntos rezaram de mãos dadas uma oração bem diferente das que conhecemos.
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A volta inesperada de Cristo gerou uma silenciosa revolução espiritual em muitos setores da sociedade. Grandes nomes da política nacional, banqueiros, empresários, apoiados por pastores de igrejas evangélicas e por bispos e arcebispos da Igreja Católica, estavam extremamente preocupados. Entraram em contato uns com os outros. Criaram organizações mútuas. Diziam: “Este impostor está trazendo graves prejuízos para a fé do povo brasileiro”; “precisamos dar um basta nisso”. Apesar da sociedade oficial ter jogado Jesus para o gueto, deixando-o restrito à mata da Redenção, seus milagres e ensinamentos tinham se proliferado pelas redes sociais ou mesmo pelo boca a boca. Então, a grande mídia sensacionalista começou uma campanha de perseguição a “aquele ser demoníaco, de outro mundo, paranormal, que só poderia ser o prenúncio de algo muito pior”.
Uma campanha publicitária foi desencadeada 24h na televisão, com anúncios patrocinados. Jesus estava alheio a ela. O Globo Repórter e o Repórter Record fizeram programas especiais sobre o assunto: mostraram imagens diabólicas, com cenas editadas de feições brabas e distorcidas de Jesus em seus protestos contra os ricos, feitas por cinegrafistas amadores. Foram contatadas “vítimas” de sua ação demoníaca: “Ele baixou o satanás no meu corpo”, disse um deles, com voz distorcida e imagem desfigurada no rosto. “Ele disse que eu não precisava ter vergonha das minhas vergonhas”, dizia outra mulher, com as mesmas desconfigurações para preservar o anonimato. “É preciso dar um basta antes que seja tarde”, afirmavam vários tabloides do Rio Grande do Sul e do Brasil. “Este bandido tem que ir pra cadeia”, diziam os jornalistas do Balanço Urgente e do Geral do Brasil.
***
         A noite estava estrelada e calma. Sentado nos degraus de entrada do templo de Buda, Jesus dividia o pão e o vinho com seus discípulos. “Este é o meu corpo, que agora vos dou. Vamos celebrar o amor, carnal e espiritual, de forma pura e alegre”, falava Jesus enquanto passava um pedaço de pão ao jovem, que estava sentado ao seu lado. De repente ouviram uma agitação vinda do chafariz central. De lá vinha uma multidão, com tochas e pedaços de pau em direção ao local em que Cristo se encontrava com seus discípulos.
         “Lá estão eles”, disse o bispo a um exército de pastores. “Prendam este impostor”, falou um político, que estavam acompanhando a multidão, seguido por policiais, que imediatamente agarraram Jesus e o levaram dali, sob o olhar atônito dos seus discípulos. Muitos embrenharam-se nos bosques da Av. Oswaldo Aranha com a Av. Setembrina. Negaram Cristo pra poderem sobreviver à ira daqueles que ali estavam, a bradar um ódio incontido.
         Após colocarem algemas em seus pulsos, Jesus foi levado para o presídio central, sem interrogatório, sem passagem pelo Palácio da Polícia, sem direito à habeas corpus. Naquela noite foi torturado, despido, lançado no meio de outros presos. Ali ficou sendo ridicularizado, mas com o passar de algumas horas e o brilho de sua aura, acabou ganhando a simpatia dos demais presos. Por isso, Jesus foi lançado numa solitária. Nesta cela definhou e sentiu o peso dos seus machucados por uma noite inteira. Uma parte dos discípulos de Jesus ficou velando a entrada do presídio todo este tempo. Ao saber disso, associações cristãs e evangélicas convocaram seus fiéis para dispersar aquela manifestação insensata de “baderneiros miseráveis, drogados, que mal podiam caminhar e pensar”. Um confronto se deu entre os dois grupos. Novamente o boca a boca e as imagens de internet fizeram a chapa esquentar. Era preciso dar um fim o quanto antes àquela figura.
         “Se você é filho de deus, então não teme a morte”, disse o sargento da Brigada Militar a Jesus. “Não”, respondeu ele, firmemente. “Espero que o senhor não fique bravo comigo, eu apenas cumpro ordens”, recuou o sargento, “lamentavelmente precisamos levá-lo para o alto do Morro da Polícia”.
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         O céu tinha amanhecido nublado e prenunciava um temporal. Um séquito de peregrinos abria uma nova via crúcis para o cume do Morro da Polícia. “Vamos dar um fim a este impostor como ele merece”, membros da associação católica e evangélica diziam, enquanto pregavam as hastes da nova cruz: “Se ele se chama de Cristo, então vai ser tratado enquanto tal. Será que ele vai descer à mansão dos mortos, ressuscitar no terceiro dia para subir aos céus?”, agitou o pastor Macedo, que estava no meio de um grupo de engravatados.
         Da rótula da Av. Teresópolis, de fronte ao presídio feminino, se podia vislumbrar o mórbido espetáculo, que se traduzia em um amontoado de apedrejadores modernos, trajando, em sua maioria, terno e gravata, mas, também, chinelo de dedos e calças rasgadas. A cruz já estava pronta, apenas esperando o messias para começar o sacrifício a deus. Desta vez não houve Maria Madalena para enxugar o sangue e o suor, nem um Barrabás para ser solto; apenas uma multidão de Judas, alimentada, sobretudo pelo ódio; aliás, muito ódio, irracional e incontido, pronto pra apedrejar todo aquele que ousasse falar em liberdade ou questionar a dubiedade da ética e da moral de sua sociedade.
         Estando já deitado sobre a cruz e prestes a ser pregado novamente, Jesus disse suas penúltimas palavras: “Porto Alegre, Porto Alegre, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste!”. “Cala a boca, viadinho”, gritou um pastor que estava preparando o martelo e os pregos, “não tem ninguém aqui pra registrar o que tu diz”.
Ao sentir os primeiros pregos sendo cravados nas mãos e nos punhos, Cristo chorou. A cruz foi eriçada ao alto e fincada no chão. Das calçadas da terceira perimetral, transeuntes olhavam aquela cena, curiosos e distantes. Pensavam se tratar de uma encenação pascal. Mas achavam estranho, pois não estávamos na quaresma. Mesmo assim, nada faziam, apenas olhavam.
Uma chuva de pedras, tomates, alfaces, palavrões e agressões verbais descompassadas e incontidas caíram sobre Jesus. A mídia nada noticiou. Sentindo o fim inevitável e o novo vagar de sua alma, Jesus pronunciou suas últimas palavras: “Perdoa-os pai, eles não...”.
Parou por um instante. Refletiu. Tomou o fôlego final: “Não pai, não os perdoe. Mais de dois mil anos se passaram. Eles já sabem o que fazem...”. Agonizou por mais alguns minutos e morreu. As consciências estavam tranquilas outra vez.
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Três dias se passaram e uma vigília de beatas católicas, evangélicas e de curiosos ficou velando o local onde Cristo havia sido crucificado e enterrado, com velas, terços e muitas lamentações. Passou o quarto dia e nada. O quinto e nada. No sexto, começaram a recolher seus pertences e levantaram acampamento.
Desta vez, ele não ressuscitou. O ódio tinha sido deveras desagregador.