terça-feira, 16 de setembro de 2025

A ideologia do livre mercado

 




"A polícia mata muitos, e mais ainda mata a economia"
Eduardo Galeano

“O mundo ‘normal’ nos atrai.
Enquanto atrai, distrai.
E porque nos distrai, nos trai.
Se nos deixarmos trair, ele nos destrói.
É hora de despertar!”
Hermógenes.

 

         O senso comum e a mentalidade do povo brasileiro são dominados pela ideologia do livre mercado.

         A sociedade civil de nosso país, que foi bombardeada por anos de propaganda e doutrinação feitas, principalmente, através da grande mídia, é refém do discurso neoliberal de Estado mínimo, que foi imposto de forma semelhante ao totalitarismo desde meados do século XX.

         Esta ideologia triunfou depois de ter sido exaustivamente repetida, e acabou penetrando no coração do povo, que, em sua maioria, passou a defendê-la acriticamente. É assim que se consuma parte da autoescravização da classe trabalhadora brasileira e mundial.

         A grande questão é: há como desmascará-la e vencê-la? O povo consegue abrir mão dela? 

A “esquerda” não soube ou não quis responder a estas perguntas, em parte, porque teme enfrentar a consciência utilitária e conservadora de grande parte do povo e de si própria.

 

I - No que consiste a ideologia de livre mercado?

         A televisão, a grande mídia, as universidades e as escolas atuais nos doutrinam através da ideia de que vivemos em uma economia de “livre mercado”; que democracia é sinônimo de capitalismo e “liberdade de mercado” é o mesmo que liberdade individual.

         O egoísmo individualista é visto como a fonte geradora de riqueza, dando as diretrizes “éticas” para a sociedade e para o caráter. O senso comum chama ser rico e ter um emprego de “ser alguém na vida”. Ou seja, “somos alguém na vida” se temos dinheiro para consumir e enriquecer. Liberdade é confundida com posses.

         O discurso neoliberal esconde seu totalitarismo quando ataca e condena qualquer coisa que pense diferente, transformando-o numa “verdade universal”, já que ele necessita de uma padronização para funcionar. No entanto, o “livre mercado” não passa de uma forma de organização econômica que reflete os monopólios e os cartéis que controlam e definem os preços do mercado na época imperialista.

         Se vende a ideia de que no capitalismo o livre mercado é soberano e justo, não sofrendo influência alguma dos multimilionários, bancos e mega empresas, possibilitando o suposto enriquecimento de qualquer pessoa. Não é muito difícil perceber que trata-se de uma trapaça, embora o povo pareça querer acreditar nesse engodo justamente porque, em seu íntimo, almeja ser rico e poderoso como eles.

 

II - As consequências da ideologia do livre mercado para a economia brasileira

         Numa economia periférica que não superou plenamente as heranças coloniais, como é a brasileira, a ideologia do livre mercado serve como uma forma de escravidão mental que mantém o discurso preso num eterno ciclo vicioso de exploração e submissão internacional. Isso significa que o imperialismo em suas distintas faces não precisa invadir militarmente o nosso país: os atuais ideólogos, jornalistas, escritores e “militantes” nacionais são os próprios cavalos de Tróia que fazem o trabalho de criar os grilhões invisíveis, que se transformam em dogmas econômicos e morais, vociferados todos os dias nos telejornais, nas universidades, nos canais monetizados do youtube e na agenda econômica oficial que torna o nosso país refém acrítico desta exploração e sabotagem sem fim.

         É a partir da ideologia do livre mercado que os EUA e os países europeus controlam o Brasil e liquidam, na prática, a sua soberania.

         Qualquer ação internacional do Brasil ou de outros países é enquadrada, julgada e justificada a partir dessa ideologia, que nos deixa dependente dos interesses da cúpula do mercado mundial, sediada nos EUA e na Europa.

         A mentalidade de vira-lata, de que o país “não dá certo” e que não se pode colocar na competição com outros países do mundo se deve, sobretudo, à ideologia de “livre mercado”, que passa a falsa impressão de que não conseguimos nos disciplinar e nos adequar às exigências da meritocracia e do mercado. Portanto, superar o espírito de vira-lata e de desapreço pelo próprio país pressupõe superar a ideologia de livre mercado.

 

III - A ideologia do livre mercado impõe os dogmas de “Estado mínimo”

         O “Estado mínimo” é um dogma criado pela escola de Chicago  e imposto pelo Consenso de Washington aos governos latino-americanos, sendo repetido como um mantra por economistas mercenários e ecoado 24h na grande mídia.

         O Estado nacional e a sua intervenção sobre a economia é a única força capaz de se contrapor ao poder do imperialismo internacional e a sua aliada no país, a “elite do atraso”. Assim, a ideologia do “livre mercado” e, em específico, os seus dogmas de “Estado mínimo”, neutralizam politicamente qualquer país sem necessitar de uma intervenção militar direta.

         Além disso, a lógica de “Estado mínimo” reforça o discurso de que o Brasil “só é viável se receber investimentos estrangeiros”, não cabendo ao Estado nenhuma função econômica além de segurança pública (também não cumprida integralmente) e de fiador do lucro privado — sobretudo das multinacionais. No entanto, os verdadeiros investimentos para o desenvolvimento nacional dependem do Estado (tal como nos comprova a experiência varguista e chinesa, por exemplo), dentre outras coisas, para criar as condições em que o empresariado nacional — sobretudo o paulista — passe a reinvestir seus capitais no nosso país, fazendo a roda começar a girar a favor do mercado interno (este é o único e real empreendedorismo que pode beneficiar o povo brasileiro).

         Já nos países do Oriente Médio e da Ásia, o discurso passa a ser o de “democracia” para substituir os “governos autoritários”, “terroristas” ou do “eixo do mal”. A democracia liberal é o instrumento político no qual a ideologia do “livre mercado” opera, supostamente para auxiliar populações massacradas por governos autoritários, escondendo, por sua vez, a auto escravização resultante da aplicação da própria ideologia.

 

IV - A iniciativa privada como um “santo remédio”

         Segundo a ideologia do livre mercado, os governos e o Estado supostamente “atrapalhariam” a iniciativa privada — cobrando impostos, fiscalizando e definindo leis, regras, regulamentações econômicas, etc. Em contrapartida, a iniciativa privada é vista como um poço de virtudes e uma fonte de soluções.

         Não é verdade que o bem esteja só de um lado e todo o mal no outro. A ideologia do livre mercado serve perfeitamente para disfarçar o fato de que a iniciativa privada quer deixar o Estado exclusivamente como fiador do lucro privado às custas dos investimentos sociais, sempre taxados de “gastanças desnecessárias” ou como ameaças de “quebra do país”.

         Enquanto a iniciativa privada enriquece quase sempre uma pequena elite utilizando-se do Estado e dos governos como meios de acumulação e combatendo qualquer forma de regulamentação e cobrança de impostos que sirva para reverter a criação de riqueza em benefícios sociais, os governos e a política são vistos erroneamente como os únicos focos de corrupção e os únicos inimigos.

         A ideologia do livre mercado esconde, portanto, que a riqueza da iniciativa privada se faz às custas da garantia do dinheiro público para isenções de impostos e de investimentos que geralmente reproduzem e garantem a acumulação de capital para poucos às custas da maioria.

         O fato do governo brasileiro pagar mais de 50% do que arrecada em juros e amortizações da dívida pública para os bancos e o sistema financeiro, deixando uma pequena gorjeta para a corrupção em distintos níveis, não deve ser justificativa para não se pagar impostos, mas reforça a tese principal de que a iniciativa privada, o agronegócio, o sistema financeiro e o empresariado nacional e internacional utilizam os recursos públicos como garantia econômica para si próprios às custas do desenvolvimento do país. Eles maquiam, disfarçam e escondem tudo isso atrás da ideologia do livre mercado, que serve perfeitamente para estes fins.

         Em síntese, a ideologia do livre mercado sustenta a ideia de que só há desenvolvimento a partir da iniciativa privada e de privatizações. Além disso, ela defende que não há alternativa à economia de mercado nos moldes neoliberais. Os jornais e a mídia fazem a lavagem cerebral, os ricos enriquecem ainda mais, o povo empobrece ainda mais, repete o discurso e… aplaude!

 

V - A ideologia do livre mercado e os apetites e taras individuais

         A maioria do povo pobre simpatiza com a ideologia de livre mercado porque comunga com ela certas noções e valores de acumulação de riquezas, que se relacionam, de uma forma ou de outra, com os códigos morais tradicionais e expectativas de vida consumistas. 

Por exemplo: o homem como “chefe de família”, já que não pode mandar na arbitrariedade dos governos, dos bancos, da polícia ou local de trabalho, quer compensar em casa, nas mulheres e nos filhos, agredindo-os se necessário for. Ou seja, quer sentir-se importante e poderoso em algum nível como compensação psíquica.

Os ideólogos, jornalistas e escritores que propagam a ideologia do livre mercado usam e abusam da ilusão de que o capitalismo seria autenticamente democrático e respeitaria as “liberdades individuais”, enquanto o socialismo e qualquer oposição ao “livre mercado” seriam uma afronta à própria liberdade humana. Confundem propositalmente “liberdades individuais” com “fazer o que se quiser”, mesmo que não se tenha dinheiro; e misturam tudo isso com a defesa de “deus, pátria e a família tradicional” que, muitas vezes, se assenta no moralismo mais retrógrado e numa completa confusão de conceitos econômicos que, ao fim e ao cabo, defendem apenas a riqueza e a propriedade dos multibilionários.

O fato, contudo, é que a “liberdade” do liberalismo e do “livre mercado” é muito relativa e, na prática, enganosa. Talvez esta ideologia tenha vencido no final do século XX precisamente porque ofereceu a ordem social aparentemente menos intrusiva nos desvios e taras individuais. Além disso, mostrou-se como o instrumento mais conciliador e tolerante de repressão diurna do inconsciente noturno, o que dá uma aparência de mais “liberdade”, quando na realidade o próprio capitalismo e o seu “livre mercado” se beneficiam dos vícios e taras das profundezas obscuras de cada um de nós (o que inclui o egoísmo mais rasteiro e as perversões não declaráveis). Reforça também a luta de todos contra todos, gerando o caos sádico que é aproveitado pelas elites para dividir e reinar.

Enfrentar a ideologia de livre mercado pressupõe, portanto, encarar esta confusão proposital que foi feita pelos ideólogos neoliberais fazendo uma mistureba louca de moralismos e economia, mesmo sabendo que para a psicologia de massas o discurso racional sequer arranhe as convicções egotistas, geralmente irracionais, de cada pessoa. Significa, muitas vezes, comprar uma briga com os desvios do povo e, consequentemente, com bases sociais, sindicais e eleitorais — algo que é temido à morte pelas esquerdas.

O regime militar sempre foi uma forma preferencial de governo ao longo da História para disciplinar a espécie humana ao trabalho forçado. O liberalismo, com sua ideologia de livre mercado, conseguiu transformar uma violência física — o regime militar — numa violência simbólica feita, na maioria das vezes, imperceptivelmente, através de uma permanente ameaça disfarçada com o desconto salarial, as dívidas, a demissão, o desemprego, a deportação, etc. Esta “força branda”, que é, na realidade, uma violência simbólica, dá uma roupagem de respeito à “democracia” e “liberdade individual”, quando se trata de uma forma nem tão sutil de censura.

A coerção liberal, portanto, é feita através de mecanismos econômicos, quase sempre querendo se passar por uma consequência de alguma “insuficiência individual”; se trataria, portanto, de alguma “escolha” ou “má conduta pessoal”. É como na lógica meritocrática: o perseguido e censurado sente-se como corretamente punido por sofrer a censura e a perseguição.

Esta forma sutil de censura dá a impressão de que há democracia em comparação com as “terríveis ditaduras comunistas” e “estatais”, que lhe perseguem, espionam e censuram com as suas polícias secretas. Nas “democracias” liberais a espionagem é feita pelas redes sociais e outros mecanismos de filmagem (voluntárias e involuntárias), a perseguição ocorre por meio de “degolas burocráticas”, cancelamentos, demissões, “nomes sujos”, fichas policiais, etc.

Existem distintos níveis de censura e ditadura nas “democracias liberais”, todos escondidos pela ideologia de livre mercado.

Em primeiro lugar, é a falta de dinheiro para a maioria esmagadora das pessoas, que dificulta ou mesmo impossibilita qualquer ação ou divulgação de ideias e críticas independentes. Depois é a demissão, que aparenta individualizar o problema ou despersonalizar uma perseguição. Por fim, temos as bolhas das redes sociais, onde falamos para nós mesmos e para o seleto grupo de pessoas que pensa como nós.

Quando tudo isso não é suficiente para abafar, padronizar e controlar o pensamento diferente e o descontentamento dos debaixo, explodindo, apesar de todos estes mecanismos informais de controle um movimento de massas, sobrevêm, então, os golpes de estado e a repressão militar e policial direta.

 

VI - Uma ideologia que funciona… desde que se tenha dinheiro!

         Para além dessa condescendência suspeita com a “vida noturna”, as taras e as incoerências humanas de cada um de nós, o liberalismo e o “livre mercado” vendem a ideia de que defendem e propagam uma liberdade individual absoluta. Só não podem acrescentar que para que ela seja verdadeira e não apenas um discurso sedutor, é preciso ter dinheiro.

         Por exemplo:

         Eu posso expor minhas ideias e artes nas redes sociais, plataformas e publicar jornais para divulgá-las atingindo um bom número de pessoas, desde que tenha dinheiro. Também cabe perguntar se as ideias são realmente minhas ou se são influência de uma indústria cultural e de meios de comunicação muito mais poderosos do que eu.

         Tenho “direito de ir e vir”, sair por aí, pela cidade, pelo país e pelo mundo, desde que tenha dinheiro. Posso comprar carros, casas e eletroeletrônicos novos, desde que tenha dinheiro. Posso até mesmo mandar meu patrão à merda, desde que tenha uma soma de dinheiro que me mantenha ou, então, um outro emprego em vista que me submeterá a um novo patrão.

         Mesmo que nunca se concretizem — e a maioria desses “sonhos” nunca se concretizam! —, tais planos existem como possibilidades reais na cabeça de quem compra a ideologia. É a velha cenoura amarrada na testa do burrico para que ele ande infinitamente sem reclamar e nunca a abocanhe!

 

VII - A meritocracia como a “cenoura inatingível”

         O Brasil nunca teve uma elite com o propósito de desenvolver uma filosofia e cosmogênese próprias que encarnassem o “espírito” do desenvolvimento nacional de forma autônoma e corajosa. 

Ao contrário. 

Sua “tradição espiritual” e visão de mundo é uma simples reprodução dos valores ocidentais europeus e estadunidenses — como, por exemplo, a ideologia do “livre mercado”, dentre outras — para tentar se integrar no mercado mundial e conseguir vender o país para enriquecimento de poucos. Esta “tradição espiritual” e visão de mundo transforma-se em tipos particulares de mentalidade e psicologia social nas massas, que tomam como suas. Daí advém a sua “esperança infinita” de que “a vida vai melhorar”. Só que ela nunca melhora. A ideologia de livre mercado esconde uma mentalidade colonial e uma das maiores desigualdades sociais do mundo.

         A meritocracia é uma forma de disfarçar ideologicamente a exploração, a roubalheira e a violência simbólica e real da classe dominante com um discurso supostamente “justo”. O povo brasileiro comprou a meritocracia a partir do discurso de empreendedorismo, mas sem levar em consideração que para empreender é necessário ter um mercado regulamentado que atenda o básico de serviços, infraestrutura urbana, rural, logística e, sobretudo, social, além de uma política financeira de empréstimos a juros baixo que possibilite o empreendedor empreender. 

O empreendedorismo e a meritocracia vendidos pela mídia e pela classe dominante brasileira não passam de uma ideologia para mistificar a realidade e jogar uns contra os outros, culpando o pobre pela pobreza e justificando as imorais fortunas dos bilionários. Triste é constatar o fato de que o povo compre-a tão facilmente, mesmo com tantas contradições na realidade sendo visíveis a olho nu.

Isso não quer dizer que ter mérito e qualidade no trabalho não seja importante — incluso em uma sociedade socialista —, mas isso nada tem nada a ver com uma ideologia que serve para justificar e mistificar a realidade brasileira e as suas gritantes desigualdades.

 

VIII - Devemos admitir que o povo pobre foi seduzido pela ideologia de livre mercado e a abraçou quase voluntariamente!

A nossa principal tarefa ideológica deveria ser emancipar o pensamento do povo do domínio do liberalismo dogmático (isto é: da ideologia do livre mercado). Porém, para termos alguma chance de mudar essa realidade e, consequentemente, a maneira de pensar da maioria do povo, temos que ter a coragem de olhá-la de frente e, a partir daí, propormos tarefas realizáveis e sensatas.

Devemos reconhecer que uma parte considerável do povo brasileiro quer acreditar na ideologia de livre mercado em função desta junção confusa de conceitos, preconceitos e práticas. O povo foi seduzido por décadas de doutrinação liberal e anti-comunista, beirando até mesmo a paranóia, o que demonstra a força das auto verdades irracionais, sempre utilizadas pelos ideólogos da burguesia contra o próprio povo. 

As elites nacionais e as suas mídias sabem bem os pontos nevrálgicos onde há propensões egotistas humanas prontas a serem manipuladas para seduzir, ludibriar e conquistar egos frágeis. Sabe seduzi-los com promessas demagógicas de riqueza e poder, que é um dos cernes fundamentais da ideologia do livre mercado — e o pior: sabe que o povo tem se vendido facilmente! Assim, uma grande parcela da população age contra os seus próprios interesses, sendo um resultado direto da manipulação da psicologia de massas. 

A ideologia de livre mercado se forjou e se consolidou na condução e manipulação do egoísmo humano presente em cada um de nós. Sabe onde apertar e onde aliviar. 

A “esquerda”, os movimentos sociais, sindicatos e partidos operários não têm sabido combatê-la. Ao contrário, têm se rendido às maiorias da sociedade civil e da opinião pública por medo da impopularidade momentânea, julgando, erroneamente, que para combater a ideologia de livre mercado basta ser o mais racional entre os racionais; o detentor das mais sábias e perfeitas análises econômicas entre os economistas e militantes; porém, não entende nada de ansiedade, vazio existencial e sequer está apta a ouvir um trabalhador sinceramente, com toda a sua presença e todo o seu coração. Ou seja, ignora orgulhosa e estupidamente a psicologia de massas.

         Pensa que o racionalismo iluminista é suficiente para enfrentar a manipulação liberal e que as infindáveis carências sociais e econômicas — vulgo, estômago vazio — geram automaticamente consciência auto-reflexiva e organizativa, sem que haja um enfrentamento e contra-debate dentro do terreno explorado e dominado pelo inimigo, que é a psicologia de massas, o vazio existencial, o sentimento numinoso preenchido pelas religiões organizadas, etc; não dá o exemplo a partir da própria pele, seja na escuta autêntica, seja na reformulação radical dos métodos de organização, de debate, de trabalho de base, de sensibilidade militante, etc. Faz tudo igual, sem criatividade alguma… e ainda espera resultados diferentes!

         Como é estreita uma visão política e econômica que não entende e enfrenta os mecanismos subterrâneos das paixões humanas. Como é triste e inglória uma luta que ignora as ansiedades da alma humana e pensa de forma positivista, achando que o mero discurso racionalista e científico é capaz, por si mesmo, de triunfar sobre o discurso irracional e a manipulação da burguesia e da sua direita neofascista.

         A desconfiança da política e dos políticos não tem sido atribuída pelo povo ao capitalismo, ao liberalismo e ao livre mercado. Eles são vistos e sentidos como forças supostamente neutras e até mesmo benéficas. A culpa é sempre estritamente dos políticos e da política (e… dos comunistas, que nunca estiveram no poder no Brasil!). A criticidade não tem avançado, não assumindo valores socialistas e humanistas, nem na visão política geral, nem nas relações pessoais cotidianas. É a força da ideologia que faz isso, justamente porque ganhou o coração e a mente do povo e passou a ser parte dele, da sua visão de mundo e dos seus valores.

         Nada do que a esquerda nos seus mais diferentes espectros tem feito arranha essas ilusões que cobram um preço duríssimo para as condições de vida da maioria da população. É o principal trunfo da burguesia na manutenção do sistema.

         Grande parte da manipulação da psicologia de massas do neofascismo diz respeito às dicotomias entre segurança material X independência real; dignidade democrática X bem-estar; orgulho X prosperidade. Quando nos lançamos em uma luta política, sindical e revolucionária, colocamos em jogo o nosso bem-estar material, pois nos enfrentamos com a perseguição em distintos níveis, podendo ser retaliado, demitido ou morto.

         Geralmente a classe trabalhadora passa pelas mais insidiosas necessidades materiais. A indústria cultural e a sua propaganda conseguiram inverter a lógica, a narrativa e as carências materiais criadas pelo capitalismo a seu favor. Além disso, as noções egóicas construídas por séculos de pregação judaico-cristã, mais a propaganda, as marcas, a sedução da fama e enriquecimento fáceis que são para poucos, mas que servem como a cenoura amarrada por uma vara de pescar no lombo do burrico, trabalha para que os proletários temam perder a segurança que eles não têm e a possível prosperidade que eles almejam ter um dia — e provavelmente nunca terão. 

Por enquanto, a propaganda capitalista venceu a comunista a partir da sedução da psicologia de massas por inúmeras promessas egocentradas de riquezas e poder, as quais as organizações comunistas e de “esquerda” não sabem fazer frente. 

         Tudo isso nos deveria forçar a tirar novas conclusões e a repensar tudo! Porém, quanto mais dogmaticamente auto afirmações de guetos são gritadas, tão mais inócuas se tornam e mais fracos nos tornamos para enfrentar as ideologias burguesas, que acabam tendo mais força e adesão por parte da massa trabalhadora.

         Talvez estas sejam algumas das razões pelas quais a ideologia do livre mercado têm sido amplamente hegemônica na sociedade civil e na mente e no coração de milhões de trabalhadores. Se, erroneamente, achamos que já temos a resposta, continuaremos a gritar as mesmas coisas de sempre. Reconhecer o problema, bem como as nossas insuficiências teóricas e práticas, é o primeiro passo para tentar acordar o povo.