As eleições presidenciais da Venezuela trouxeram o país caribenho para o olho do furacão novamente.
Os motivos são os mesmos de sempre: a disputa entre a oposição neoliberal privatista e o que se convencionou chamar de “regime bolivariano”.
Todos os holofotes da grande mídia e das principais potências ocidentais são jogados sobre o pobre país, que desde muito tempo, tal como os demais países latino americanos, passa fome.
A sua dádiva e a sua maldição são suas enormes reservas de petróleo. Nada de sério pode ser discutido sobre a situação política e econômica do país sem levá-las em consideração, além das sanções e embargos comerciais impostos pelos EUA. O triunfo da oposição significaria a recolonização completa da Venezuela e das suas cobiçadas reservas de petróleo. Ela propõe reprivatizar tudo (em especial, a empresa petroleira PDVSA).
Num continente em que a vida da maior parte da população trabalhadora é uma longa e prolongada agonia, como podemos aceitar que o debate se reduza ao problema da “ditadura chavista” que criaria sozinha as “difíceis condições de vida e de fome”, sendo que a situação da maioria do povo latino-americano é basicamente a mesma?
Dito de outra forma: a preocupação com a fome e o sofrimento do povo venezuelano é seletiva. Serve apenas como ponta de lança para retomar o controle sobre as reservas de petróleo.
O real objetivo da oposição de direita, da grande mídia e dos demais países que condenam o governo de Maduro
A grande preocupação da oposição de direita, da grande mídia e da elite latino americana não é com a fome ou a falta de democracia do povo venezuelano, mas com a nacionalização do petróleo e de outras empresas privadas protagonizada pelos governos chavistas. É precisamente isto que é intolerável para todos eles e que desperta o ódio violento expresso nas suas posições políticas, reportagens e declarações.
Se Maduro exportasse petróleo de acordo com os interesses das multinacionais imperialistas estadunidenses, tal como faz a monarquia da Arábia Saudita, ou como fazia Kadafi na Líbia e Saddam Hussein no Iraque, antes de mudarem sua política de preços contrário ao que desejava os EUA para, depois de décadas, de repente serem tratado como “ditadores”, não haveria problema algum e nenhuma “democracia” ou fome do povo venezuelano interessaria aos EUA e à “comunidade internacional”. Porém, Maduro se nega a privatizar a empresa petroleira estatal, fonte e base do poder político chavista.
A situação política e social da Venezuela é ilustrativa para todos nós, latino-americanos. Se quisermos utilizar as riquezas naturais dos nossos países em benefício do desenvolvimento nacional, sofreremos com a oposição da elite de ricaços e proprietários — geralmente aqueles que estão envolvidos nos casos mais escabrosos de corrupção e sonegação —, depois nos enfrentaremos com a grande mídia nacional e internacional, que não cessará sua campanha de calúnias e difamação e, por fim, com os países imperialistas, sedentos por colocarem a mão nos recursos naturais em nome das marcas de suas grandes empresas. A América Latina deve continuar sendo uma semicolônia.
As atas das eleições atuais, de um lado e de outro, se tornaram os principais cavalos de batalha da grande mídia e dos governos ao redor do mundo. A oposição e a grande mídia acusam como “fraude” a eleição venezuelana, mas as “atas” apresentadas por elas não são nada melhores. Estão jogando apenas com “a má fé” que uma eleição acirrada geralmente desperta, visando empestear o ambiente e facilitar a aceitação do projeto político e do “destino econômico” que o imperialismo deseja para a Venezuela.
Os lindos discursos “democráticos” da grande mídia e de alguns governos mundiais contra a “ditadura de Maduro” e em favor da oposição de direita querem dar à “comunidade internacional” a consciência tranquila para apoiar a privatização das grandes reservas de petróleo, que certamente redundará no aprofundamento da miséria e da desgraça do povo. Em um eventual governo da oposição de direita certamente veríamos as sanções e embargos serem aliviados, levando à estabilização econômica interna.
O regime chavista e o realismo político
A experiência política da Venezuela com o regime chavista demonstra o que acontece com qualquer governo na América Latina que tente estatizar as riquezas naturais e utilizá-las para o desenvolvimento nacional em benefício do povo: sabotagens, embargos, campanhas de calúnia e difamação permanentes; até atentados e golpes de Estado. Estes são os desafios que precisam ser enfrentados para o desenvolvimento do continente.
E reparem que Hugo Chávez e Nicolás Maduro sequer romperam com o capitalismo, a não ser na retórica e em algumas medidas muito questionáveis. O simples fato de não se alinharem ao que desejam os países imperialistas é o suficiente para colocarem-nos na lista de países a serem combatidos ou no “eixo do mal”, de “países terroristas”, etc.
Para muitos militantes e organizações de esquerda o que fez o chavismo é o máximo de realismo possível. Para eles, apoiar o governo Maduro em quase tudo, custe o que custar, se tornou o ápice da luta contra o imperialismo estadunidense e europeu.
No entanto, apesar da campanha permanente de sabotagem ianque e das suas sanções econômicas contra a Venezuela, nem tudo o que fala e faz Maduro é progressivo ou passível de ser apoiado. A começar pelo fato de ele ser herdeiro de uma tradição caudilhesca, que remonta Simón Bolívar — a despeito de alguns elementos progressivos de sua prática, como a luta pela união da América de língua espanhola.
O socialismo e o comunismo não podem florescer (ou reflorescer) em um regime político e econômico caudilhesco. Sabemos ser muito importante apoiar a estatização do petróleo venezuelano e lutar contra as sabotagens imperialistas, mas é possível surgir uma democracia popular e o socialismo a partir do caudilhismo?
A aproximação de Maduro com a religiosidade mais retrógrada — o equivalente das igrejas evangélicas no Brasil — não é um bom sinal e também é ignorado pela maior parte dos “realistas” que despontam entre a militância da esquerda brasileira. Na Venezuela, quem impulsiona e participa ativamente das marchas por deus, pátria e família não é a direita, mas o próprio governo chavista.
A grande questão, contudo, é que o fato da Venezuela ser sabotada e atacada permanentemente pelo imperialismo ianque não deveria nos tornar acríticos a tudo o que o governo faz e para onde apontam suas inclinações. Tampouco pode nos fechar os olhos para certas tendências da psicologia de massas do povo venezuelano e latino americano.
Esta esquerda, portanto, tende a facilitar o trabalho de difamação e calúnia por parte da grande mídia e do imperialismo, que sabem muito bem lidar com tal tipo de “criticidade”, uma vez que as polarizações já são esperadas, não saem de certos limites e fazem parte de suas estratégias. Ou seja, não há criação de algo novo, mas apenas reprodução.
O embargo econômico e as sanções arbitrárias e autoritárias do imperialismo ianque — sempre omitidas ou minimizadas pela grande mídia — geram desgastes políticos e feridas sociais inevitáveis, que são sempre sentidas pelos mais pobres e aproveitadas pela classe dominante e média para desestabilizar o governo.
As respostas do governo Maduro à crise inevitável são sempre as melhores? A sua relação com o povo também? Não haveria nada a melhorar e a ponderar nisso tudo na luta contra a oposição de direita?
Existe “mobilização espontânea” contra o governo de Maduro?
Indo mais além da esquerda “realista”, existe a esquerda “delirante”, que serve de base de apoio ao golpismo de direita, tanto na Venezuela quanto no mundo — tendo papel lamentável também no Brasil.
Sua visão política é tão distorcida e problemática que dá pra desconfiar que seja apenas o resultado da pressão midiática e social da direita. Talvez seja possível que estas organizações estejam infiltradas direta ou indiretamente por agentes provocadores que passam a dar a linha política.
Muitas delas, mesmo se reivindicando do marxismo e do trotskismo, não aprenderam nada com a história do movimento operário. Para dar um verniz de “realismo” às suas posições, falam que as mobilizações contra o governo de Maduro são “espontâneas”, o que demonstraria um ódio popular legítimo e não manipulado contra o regime.
Em uma campanha de sabotagem que dura mais de 20 anos e se desdobra hoje numa “luta eleitoral” encarniçada, é muita ingenuidade — ou má fé — pensar que esta “mobilização” seja “espontânea”. Para ficarem bem com a própria consciência e evitarem um balanço duro de décadas de capitulação, é mais doce e consolador ver “mobilizações espontâneas” onde existem visíveis sabotagens, calúnias e ataques.
Há tempos o governo de Maduro vem procurando integrar os BRICS. China e Rússia já reconheceram a vitória de Maduro nas eleições atuais e flertam abertamente com o seu ingresso no grupo. A grande mídia Ocidental tem se utilizado deste fato para intensificar a campanha difamatória contra seus “governos comunistas autoritários”, que só demonstram sua comunhão de planos “malévolos e perversos” com a “ditadura madurista”. Os estadunidenses criam tais “manchetes” e as disseminam aos quatro cantos do mundo, sendo repetidas pelos seus vassalos midiáticos no Brasil e na América Latina.
O estrago na mente de inúmeros jovens e trabalhadores é incalculável. É justamente esta a estratégia de desgaste, que não é desfeita apenas com a propaganda doutrinária e os velhos discursos de auto afirmação. Sabemos que esta é a “liberdade de imprensa” e a “democracia” que o imperialismo defende, mas o tipo de debate feito pela esquerda não consegue demonstrar isso, nem atinge a mentalidade e o coração da classe trabalhadora envenenada por este bombardeio. Muitos trabalhadores honestos no Brasil se envenenam facilmente pelas distorções e mentiras.
A queda de braço entre os BRICS e os EUA já está dada e a Venezuela é, neste momento, a mesa onde os cotovelos se apoiam para medir forças.
O Brasil, diferente de China e Rússia, está pressionado de todos os lados e, consequentemente, paralisado. O governo Lula e os seus assessores empurram o reconhecimento oficial da vitória de Madura o máximo que podem. Qualquer declaração ocasional é explorada inescrupulosa e exaustivamente pela grande mídia, a fim de pressionar e tensionar.
O governo Lula é liberal-burguês e não possui uma estratégia revolucionária. É bastante natural que aja desta maneira. Exigir dele o que não advenha da sua própria natureza é disseminar ilusões de que possa mudar. A grande questão não respondida é por que a classe trabalhadora brasileira não vai além dele?
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Em outras épocas já vimos uma grande aliança internacional para esmagar um “ditador” da América do Sul. Foi durante a guerra do Paraguai (1864-1870). Havia neste país uma singela perspectiva de criar um país independente e autônomo, ainda que por meios muito questionáveis.
O resultado todos nós conhecemos. A tentativa de desenvolvimento autônomo foi completamente estraçalhada. Hoje a guerra ainda não está no campo militar aberto, mas nos discursos inflamados da grande mídia, nas sabotagens internas e externas, bem como nas sanções econômicas e embargos estadunidenses.
Frente a tantos interesses econômicos especulativos e mesquinhos; a egos, grandes e pequenos, inflados e esvaziados, que fazem da sua posição política um estandarte que mais reflete a si mesmo, seus interesses econômicos e a sua organização política, do que a real situação, fica difícil ver quem realmente se preocupa com a democracia e o povo na Venezuela.
Lutar contra a ofensiva imperialista e de direita contra o povo venezuelano é realmente muito importante, mas sempre do mesmo jeito?