Javier Milei discursou no fórum econômico de Davos de 2024 afirmando que “os valores ocidentais estão ameaçados” pelo “comunismo” e por países como China e Brasil. Isto é, reforçou o discurso eleitoral que o sagrou vencedor das eleições argentinas de 2023.
Contudo, cabe
perguntar aqui o que são estes “valores ocidentais” ameaçados, bem como o que
os expoentes do neofascismo – como
Milei, Bolsonaro e Trump – entendem por “valores ocidentais”?
Tal como foi comum no passado – para
usar uma expressão célebre – “chutar Hegel como um cão morto”, no presente é
comum chutar “os valores ocidentais” e “eurocêntricos” como um cão morto!
Por certo, os europeus cumpriram um
papel cruel no processo civilizatório, do qual precisamos rever e mesmo renunciar
a uma série de heranças desses valores. No entanto, isso precisa ser feito com
lucidez; o que muitas vezes não é o caso.
Certamente os neofascistas, tendo, no momento, Milei e a presidência da Argentina
na “vanguarda” desta podridão, se referem aos valores que mais lhe são caros: a
propriedade privada e a família burguesa, que é a base de sustento da primeira.
A sua receita é simples e cruel:
jogam-se todos os valores ocidentais num balaio e tentam acionar na psique
coletiva mundial o velho “nós contra
eles”, sempre muito eficaz. Depois, relacionam o termo “propriedade” com
liberdade, o que não é, na maioria das vezes, verdade. Logo após, juntam a ela
tudo o que é emocionalmente caro a maioria das pessoas, como a família, a
religião, os valores habituais cultivados cotidianamente.
O que Milei não diz é que atrás da
propriedade privada burguesa estão inevitavelmente relacionados o colonialismo,
a exploração de povos inteiros, o rentismo do sistema financeiro, o racismo, a
xenofobia, a ambição egocêntrica desmedida e descontrolada; isto é, os pilares
centrais do capitalismo “ocidental” que servem de base para o imperialismo
estadunidense frente à ascensão meteórica do capitalismo “oriental”, tendo a
China como o carro chefe.
Ao jogar com as forças pré-conscientes
e não refletida da maioria das pessoas, Milei pretende legitimar e angariar
apoio ao seu projeto de saque do país via dívida “pública”, inflação fora de
controle, imposição de uma dolarização que beneficia apenas a elite argentina –
isto é, vai na contramão do que desejam os países do BRICS. Inclusive
inviabiliza a adesão da Argentina aos BRICS, o que é um dos principais
objetivos do seu governo, amplamente apoiado pelos governos estadunidenses –
sobretudo pelo possível futuro governo de Donald Trump.
Em sua decadência histórica, os EUA não
podem abrir mão de promover sabotagens financeiras, como criação artificial e
arbitrárias de barreiras alfandegárias e guerras comerciais no mercado mundial,
sem deixar de ter consequências que se desenrolem numa reação em cadeia, com
consequências nefastas sobre os países e pessoas mais pobres (que são mantidos
na sua área de influência a partir da manipulação
emocional feita através da identificação com os “valores Ocidentais”).
As guerras comerciais tendem a
degenerar em guerra militar aberta – seja feita através da
intervenção direta dos EUA como no caso do Iraque e do Afeganistão; seja
através de sua “terceirização” por “aliados locais”, que depois são largados à
própria sorte, como é o caso da Ucrânia e, futuramente, será de Taiwan.
Além disso, em sua decadência econômica
e política, os EUA passam a inflação monetária do dólar para os países
fantoches através da impressão de mais dólares sempre que as estratégias do seu
governo julgam necessárias. As elites locais abraçam a inflação sem titubear e
os custos, como sempre, são passados aos mais pobres.
A decadência do imperialismo
estadunidense também se traduz por uma distorção permanente do que ele vende
como “jornalismo”, que é, na realidade, uma máquina de doutrinação em massa de
seus valores e necessidades propagandísticas de guerra ou de “paz”, e de forma
alguma pode ser tratado como “informação”. As narrativas “jornalísticas” dos
EUA e dos seus aliados “ocidentais” jogam milhões de pessoas contra os inimigos
do seu império, confundindo-os como “inimigos do Ocidente” e “da liberdade”.
A “liberdade” de imprensa ocidental é
demonstrada pela perseguição implacável a jornalistas como Julian Assange, e
pessoas como Edward Snowden, que ousam enfrentar os interesses estadunidenses
em nome do acesso à verdade. Esta “liberdade” também se expressa na manipulação
descarada e sem escrúpulo da privacidade das pessoas através das redes sociais,
dos seus algoritmos, bem ao estilo do escândalo envolvendo a Cambridge Analytica.
Os valores ocidentais e
europeus são apenas negativos?
Julgamos importante encontrar uma visão
equilibrada, que saiba estabelecer um olhar crítico sobre a herança ocidental e
europeia, mas que saiba também separar o joio do trigo, o progressivo do
regressivo; aquilo que pode ajudar na emancipação proletária e humana daquilo
que serve para justificar a exploração, a colonização e a opressão.
O neofascismo
de Milei, Trump e Bolsonaro, como corrente internacional, certamente defende os
“valores ocidentais” naquilo que têm de pior, negativo, repressivo e opressor,
servindo perfeitamente para justificar a exploração e a fonte de sua riqueza.
Temem perder seus privilégios históricos e imediatos, por isso recorrem à fraude
e à distorção para sustentar a parte retrógrada desses valores, se escondendo
atrás de justificativas “nobres”, de tradição e de “alerta” em relação à
“ameaça comunista”, “oriental”, “de fora”, aos “valores ocidentais”, como a
propriedade e a família burguesa, sempre associados indiscriminada e
acriticamente à liberdade.
Ao invés de fazermos a crítica à
herança cultural do Ocidente, majoritariamente masculina e branca, a partir do
ponto de vista dos povos colonizados, explorados e assassinados, das mulheres e
dos povos africanos, indígenas e asiáticos, joga-se fora a criança com a água
suja da bacia. A equiparação cultural, muitas vezes, também não é pensada; ou
se é feita, apresenta-se de forma destrutiva, exagerada, a começar tudo do
zero, como se não houvesse nada de positivo.
O fato do neofascismo exaltar o pior da cultura ocidental – isto é, tudo
aquilo que precisamos renunciar e superar –, não exclui o fato de que ela tem
muitas contribuições que transcendem o colonialismo e a exploração, sendo parte
do tesouro cultural humano. Revisitar esses valores com o olhar crítico é parte
importante desta tarefa de renunciar ao que tem de ruim e saber superar estes
valores, incorporando seus pontos positivos.
O discurso de Milei em Davos visa,
portanto, tensionar a dicotomização do pensamento e tenta salvar os valores
ocidentais decadentes que sustentaram e ainda sustentam o imperialismo
estadunidense e europeu, do qual é um vassalo. Parte do movimento sindical e da
esquerda responde, com tonalidades identitárias não refletidas, esquecendo-se
de olhar através desta lente do “caminho do meio” para dificultar um pouco mais
a vida do neofascismo, que usa deste
estratagema da psicologia de massas do “nós contra eles”, para adquirir
vantagens política na manipulação emocional da classe trabalhadora na América e
no mundo todo.
Contudo, um dos valores ocidentais mais
cultivados pelas pessoas (incluindo militantes nos seus diferentes matizes), e
que mais contrasta com o pensamento oriental, é a ambição egocêntrica
desmedida. É bonito e louvável, segundo o Ocidente, ser ambicioso e procurar a
fama individual visando acumular riquezas. Diluir-se no todo causa um pavor
descomunal no ser humano ocidental, que não mede esforços para sobressair-se de
alguma forma. Não apenas os valores ocidentais se baseiam na ambição, mas o
próprio funcionamento do capitalismo depende dela, cultivando-a em muitas esferas.
Basta reparar o abuso das propagandas e de consumismo, ambos baseados em formas
de insuflar o egotismo.
Se é importante sabermos reconhecer a
contribuição sincera e a importância individual de cada ser humano (fatores
levados até o extremo da demência pelo neoliberalismo ocidental), é crucial
para a superação dos “valores ocidentais” trilhar um caminho da virtude que
seja natural e espontâneo; criar e não se apossar; agir e não esperar.
Como diz a sabedoria milenar oriental:
quem só vê beleza em vencer é quem se alegra em matar; e quem se alegra em
matar, não verá realizado o seu propósito no mundo; o vencedor de uma guerra
ministra um ritual fúnebre!
Milei, como um ambicioso vassalo do imperialismo ocidental, procurar reordenar o
sistema financeiro argentino para sustentar a máquina de guerra do complexo
industrial-militar dos EUA que usa da força bruta, real e simbólica, visando
perpetuar os piores valores ocidentais que, sem sombra de dúvida, devemos
renunciar. Da mesma forma, é importante relembrar os bons valores ocidentais de
luta pela liberdade e emancipação humana (sem nunca esquecer “do todo”) nesta
luta contra os supostos auto intitulados porta-vozes do “mundo Ocidental”, que
são, em essência, porta-vozes de uma nova forma de fascismo.
Este é, em síntese, o conjunto de
ideias e valores que Milei e cia. querem defender com unhas e dentes, já que,
no momento, é o neofascismo o melhor
“valor ocidental” capaz de preservar a sua fonte de riqueza.