Certa vez, o socialista inglês Perry Anderson escreveu:
“O socialismo não haveria de ‘resolver todos os problemas da raça humana’ – de fato, da trindade proposta por Trotski, de ‘fome, sexo e morte’, ele só poderia oferecer alívio para a primeira. Além da classe, os seres humanos ainda deveriam sofrer culpa e dor, e sentir o desconforto das restrições da civilização sobre impulsos instintivos” (in Perry Anderson, “Afinidades seletivas”, Boitempo Ed. 2002, São Paulo – página 153).
É engraçado e curioso que a militância
atual ainda professe que o socialismo seja capaz de resolver todos os problemas da raça humana, se
negando a perceber que sexo e morte (assuntos ligados à psique, emoções
irracionais e à religiosidade humana) são pontos determinantes no dia-a-dia de
todas as pessoas comuns – isto é, são assuntos importantíssimos e decisivos no
cotidiano da classe trabalhadora – aos quais, para sermos honestos, não há
resposta.
A burguesia, sua mídia, seus ideólogos
e religiosos certamente se aperceberam destas lacunas “esquecidas” pela
militância socialista. O fascismo clássico das décadas de 1930 e 1940, bem como
o neofascismo idealizado por Steve
Bannon e Donald Trump, se baseiam justamente nestes pontos negligenciados pela
“esquerda”, sempre muito ocupada em expor a importância exclusiva da
expropriação dos meios de produção como forma de solucionar automaticamente
todos os problemas da humanidade.
Muitas vezes uma questão subjetiva
torna-se determinante para intervir e modificar uma situação objetiva. Querer
apenas mudar os meios de produção da economia (situação objetiva) e ignorar ou
renegar questões como a influência do sexo, da psicologia de massas, do medo do
sofrimento e da morte, além da compreensão fundamental que o sentimento
religioso possui para a conduta cotidiana da classe trabalhadora (situações
subjetivas), significa repetir os erros da construção socialista do século XX –
o que só pode redundar, na melhor das hipóteses, numa triste reedição do stalinismo...
***
Ignorar a religiosidade humana,
tratando-a como mero delírio digno de ser desprezado, nos fecha para sentimentos antropológicos fundamentais
que movem o ser humano há milênios. Aqui, obviamente, nos referimos ao
sentimento do “numinoso” e não à exploração da fé popular e do medo individual
protagonizado pelas religiões organizadas.
O sentimento numinoso é um estado de
espírito absolutamente único da psique humana, que sente ou está consciente de
alguma coisa misteriosa, terrível, aterrorizadora e/ou sagrada. Ele está
relacionado também ao temor e à ira divina (seja de que espécie for – inclusive
a suposta “ira de uma natureza mística” ou de um “universo” que possui vontade
própria). É a consciência de que não somos nada e de que deus, o divino ou o “universo”
é tudo; é uma sensação de “certeza” acerca da eternidade. Tal sensação é quase
que exclusivamente sentida pela psique de pessoas espiritualizadas, sendo muito
difícil a sua descrição em palavras.
Existem inúmeras lacunas no
conhecimento humano. Como sabemos, a ciência não explica tudo; e nem teria
condições de fazê-lo, já que ela corresponde a um estágio específico da
evolução humana. Uma vez que não sabemos tudo, praticamente qualquer
experiência, fato ou objeto encerram algo de desconhecido. Assim, se falamos da
totalidade da experiência, o termo “totalidade” só pode referir-se à sua parte
consciente. E como não podemos dizer que nossa experiência abarca a totalidade
da realidade ou do objeto, é evidente que a totalidade absoluta necessariamente
deverá conter uma parte não experimentada ou conhecida.
O que supre provisoriamente as lacunas
deixadas pela ciência é a intuição e a imaginação. As religiões organizadas se
escondem e se constroem atrás deste sentimento numinoso e intuitivo. É também a
partir dela que cientistas como Albert Einstein e Fritjof Capra pretendem
construir novos modelos científicos. O menosprezo da intuição e da imaginação é
um empecilho para a continuidade do desenvolvimento da ciência. Em suas
notáveis obras, O Ponto de Mutação e
o Tao da Física, Capra explica
detalhadamente tais ideias. Já para Einstein,
“a imaginação é mais importante que o conhecimento”, uma vez que “o conhecimento é limitado, enquanto que a
imaginação abraça o mundo inteiro, estimulando o progresso” do conhecimento
e da ciência.
Nesse sentido, os mitos e as crenças, quando
observados com bastante cuidado e critério, ajudam a mente coletiva humana a
evoluir por caminhos inexplorados ou mesmo ignorados; isto é, ajudam a
desbravar, a partir da imaginação e intuição numinosa, as inevitáveis lacunas
deixadas pelo pensamento científico – para que posteriormente sejam criticadas,
reafirmadas ou superadas.
Por tudo isso, é muito importante
renovar o pensamento marxista através de uma prática teórica semelhante à
proposta por Capra nos livros citados.
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O marxismo está marcado pelo “espírito
do século XIX” – em especial, pelo cientificismo positivista, que ignora ou
mesmo menospreza o sentimento religioso como coisa inútil, ao mesmo tempo em
que ele próprio sofre de influências religiosas e míticas ocultas. Há uma forte
presença religiosa e messiânica mitológica no marxismo, no geral, não admitida
pelos militantes socialistas – mas que preenche esta “necessidade” humana
dentro deles, mesmo que a maioria se declare ateísta.
Se observarmos os estudos
antropológicos acerca dos mitos antigos e modernos, de diferentes povos e
regiões, perceberemos uma influência anímica muito forte na cultura humana,
mesmo nas ditas “civilizadas” e “educadas cientificamente”. Até certo ponto
isto é natural, pois reflete milênios de crenças e ritos que não poderiam ser
extirpados do inconsciente coletivo e, tampouco, da mente dos ditos “gênios da
ciência humana”.
Os mitos de escatologia e cosmogonia,
de fim e recomeço de novas eras, estão visivelmente presentes no pensamento
marxista, como os “fins dos mundos antigos” para a cosmogonia de novos mundos:
isto é, o fim de uma humanidade, para o surgimento de uma nova humanidade, que
seria virtualmente perfeita. Um povo nativo asiático, por exemplo, acredita que
após o fim do mundo, surgirá uma nova humanidade, que viverá em condições
paradisíacas. Nessas condições não haveria mais enfermidades, nem velhice e nem
morte.
Qualquer semelhança com o “mundo novo”
e a “nova humanidade” perfeita (ou semi perfeita) que nascerá depois da
revolução socialista segundo a visão de muitos militantes não é mera
coincidência. Trata-se da espera por um mundo purificado de todo o mal, no qual
a história irá reencontrar sua consumação. Compreender isso não significa, de forma
alguma, abrir mão do projeto socialista de transformação social, mas apenas
olhá-lo com uma lente que lhe seja mais adequada, evitando exageros ufanistas,
permeados de heranças mitológicas.
A questão é que muitas tensões da
história, bem como as contradições da existência, são parte indissociável da
vida, da sociedade e da condição humana e, enquanto tal, podem ser
compreendidas e, talvez, minimizadas,
mas não podem ser completamente abolidas.
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Até que ponto as teorias socialistas e
os militantes não esperam uma sociedade perfeita? Tipo um paraíso sobre a
terra?
Mesmo em uma sociedade socialista, poderemos
viver sem nenhum tipo de dor? Ou uma evolução humana que ocorra sem sofrimento?
Adolescentes e adultos poderão não se sentir sozinhos no seu lento e pavoroso
processo de individuação? Casais não mais sofrerão ao se separarem? Ou os
relacionamentos serão perfeitos e sem nenhum tipo de crise? As famílias viverão
numa eterna harmonia, sem conflitos? Tudo isso se alinhará automaticamente,
como que numa espécie de alinhamentos de astros, após a socialização dos meios
de produção, ou teremos de enfrentar tais desafios inescapavelmente?
A experiência russa, chinesa e cubana
demonstra que não se deu desta forma. As heranças psicológicas seguiram vivas e
atuantes. O socialismo e os socialistas querem acabar com as dores e os
sofrimentos decorrentes da miséria capitalista, mas até que ponto isso não se
confunde com acabar com toda a dor e o sofrimento humano (seja ele emocional,
psíquico ou espiritual)? Os diversos tipos de sofrimento humano não seguiriam
existindo como parte da tortuosa evolução humana?
A socialização dos meios de produção
pode diminuir “as dores do parto”, mas não pode erradica-las totalmente, porque
é através das escolhas que nos tornamos humanos e descobrimos o nosso senso
pessoal de significado. É preciso coragem para enfrentar diretamente os nossos
estados emocionais, entendê-los, para, assim, dialogar com eles. Nos atoleiros
da alma existem o significado e o chamado para a ampliação da consciência. Esta
tarefa, no mais das vezes, individual, não pode ser cumprida automaticamente
pela socialização dos meios de produção, nem por decretos governamentais. A
adoção do socialismo como regime social é um ato político e econômico
fundamental que ajuda a dar suporte para todos estes processos individuais, mas
naturalmente não pode resolver tudo. É a orientação educacional e a prática
social que podem transformar a sociedade numa grande escola, capaz de dar
suporte e apoio nesta inevitável luta emocional que se desencadeia dentro de
cada um de nós.
De qualquer forma, as coragens
individuais para enfrentar a si mesmo é algo muito subjetivo e, portanto, deve
ter um cuidado especial, cujo menosprezo por parte da esquerda em geral como
coisas “idealistas” custa um preço demasiado caro. Após a revolução, os seres
humanos continuarão morrendo e renascendo, seja biologicamente, psíquica ou
“espiritualmente” (entendido aqui como ciclos emocionais e de gerações). Neste
processo há uma dor inextinguível, pois a transformação e a evolução exigem um
sacrifício de dores emocionais, hormonais e, por vezes, traumáticas, que
demandam muita energia. O prazer é um contrabalanço a estes dores, mas não pode
ser usado como um antídoto pra tudo (tampouco o desenvolvimento das forças
produtivas, tecnológicas, pode resolver todos os problemas subjetivos, uma vez
que a natureza humana também desenvolve necessidades culturais praticamente
inesgotáveis sempre em mudança).
No amor, por exemplo, que é um campo
por excelência subjetivo e pessoal, existem muitas “receitas” do que se fazer,
do que é “certo” ou “errado”: “não seja possessivo”, “não seja tóxico”,
“respeite os limites”, etc. Mas o que geralmente se exige para o amor é
humanamente irreal. Seria quase um amor para deuses e semi deuses, não para
humanos; muito mais preocupados com o pró forma do que com a realidade concreta
de cada pessoa.
Sem querer fazer apologia à condutas
equivocadas, brutais, violentas ou omissas (machistas, em essência), que muitas
vezes são ocasionadas pelo desespero e sofrimento, bem como pela inexistente
educação emocional e sexual, os seres humanos são totalmente falíveis e
produzem inevitavelmente dor.
O mesmo se passa em outros campos
sociais, intelectuais e emocionais da vida diária humana. O debate sobre a psicologia de massas e os desconfortos
das restrições da civilização sobre impulsos instintivos ainda precisará ser
muito debatido e refletido pelo movimento socialista, para muito além das
questões técnicas e econômicas (objetivas). O primeiro passo é reconhecê-las
como importantes para, em seguida debatê-las, honesta e fraternalmente.