Na literatura marxista de orientação trotskista, o termo político "direção" possui grande destaque e importância. O primeiro parágrafo do Programa de Transição acusa, nada mais, nada menos, que "a crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária".
quinta-feira, 31 de março de 2022
O problema da direção política
domingo, 20 de março de 2022
Rússia e China cumprem um papel antiimperialista contra os EUA?
A atual conjuntura, marcada pela guerra entre Rússia, secundada por China – de um lado –, e Ucrânia e OTAN/EUA – de outro –, divide as posições da esquerda e cria a possibilidade para uma reflexão coletiva.
O centro das polêmicas, que termina por
se reduzir a duas posições principais, é o seguinte: um lado apoia direta ou indiretamente a manipulação da
OTAN-EUA sobre a Ucrânia, ignorando esse fato decisivo e condenando as
correntes políticas ou militantes que compreendem o direito da Rússia de se
defender do cerco militar e das provocações que vem sofrendo; o outro setor
apoia a Rússia acriticamente, depositando consciente
ou inconscientemente esperanças de que ela destrua ou, pelo menos limite, o
poder do odiado imperialismo estadunidense (em alguns casos negando que a
Rússia seja ou cumpra um papel imperialista), apontando para a criação de um
“mundo novo”, multipolar.
Nota sobre o nível do debate nas
redes sociais
Como em todo o debate, há grãos de
verdade em ambas posições, mas é necessário observá-los com cuidado e
contrastá-los com o quadro mais amplo. Sabemos que uma posição que ignora fatos
importantes da conjuntura e se coloca como independente de ambos os campos
imperialistas, sendo muito minoritário por entre a classe trabalhadora, pode
cair numa espécie de abstração ou de purismo, mas isso precisa também ser
pontuado e especificado em cada texto e análise concretamente – isto é, precisam ser destacados e apontados trechos
que denotem esta abstração.
As correntes de esquerda que se digladiam
nas redes sociais não possuem representação na Ucrânia ou na Rússia, fazendo,
portanto, no geral, análises de fora da realidade onde estes fatos
desenrolam-se. Daí provém as mais variadas formas de acusação de abstração e
cumplicidade com um ou outro lado da guerra. Porém, mesmo que não haja
representação direta, a interpretação mais fidedigna dos fatos e do papel
cumprido por cada país – sem dogmas
ou delírios – tem papel decisivo sobre a elaboração de uma política de
independência de classe e, certamente, pode e deve ser feita, mas com a devida
humildade.
Por outro lado, o que vemos nestes
debates é uma reprodução de políticas dos teóricos marxistas do século XX, transplantadas mecanicamente para o presente,
sem nenhum tipo de independência ou criatividade intelectual que leve de fato
em consideração a conjuntura atual. Poderia uma realidade ou um fenômeno social
se reproduzir na história exatamente igual? Não! Por este motivo, o importante
resgate dos teóricos marxista se faz necessário como referência e ponta pé inicial
de qualquer análise, mas evitando a reprodução
canônica.
Nota sobre a conjuntura
A “guerra” é resultado, sem sombra de
dúvidas, das provocações estadunidenses feitas através da OTAN, que vinha
cercando a Rússia de diferentes formas. O imperialismo ianque está em declínio
histórico, por isso suas ações contra os imperialismos concorrentes se
intensificam, obrigando-lhe a ir para a ofensiva, na maioria das vezes, de
forma camuflada.
A burguesia norte-americana – sobretudo
aquela que dirige o deep state –
manteve sua hegemonia mundial baseada nos mais diversos níveis de invasão,
agressão e controle militar. Rapinaram países através de golpes de estado em
“defesa da democracia”; derrubaram presidentes “democraticamente eleitos” que
lhes eram inconvenientes; espionaram e espionam governos, empresas e pessoas
comuns; financiam e sustentam ditadores e monarquias arquireacionárias com uma
mão, enquanto pregam democracia e direitos humanos contra os inimigos –
geralmente taxando-os de “comunistas” e “terroristas” (quando os principais
terroristas são eles) – com a outra mão; manipulam meios de comunicação e redes
sociais, instigando, destilando e manipulando o ódio humano mais rasteiro. Está
fora de dúvida o papel nefasto cumprido pelo imperialismo estadunidense no
mundo: é um câncer em metástase, cuja manutenção implica em dor e sofrimento
para a maior parte dos países do mundo.
O
ódio de largas parcelas da população latino-americana e do Oriente Médio contra
o império estadunidense, portanto, é compreensível e, até mesmo, justificável,
dadas as agressões e violações que sofreram e sofrem como condição de
existência deste imperialismo. Este ódio, no entanto, tende a levar setores da esquerda a apoiar qualquer
“saída” que o debilite ou supostamente o derrote, sem se preocupar com o que
vem em seu lugar – inclusive que sobrevenha um outro tipo de imperialismo. A
lógica é a mesma do imediatismo economicista, que tende apoiar qualquer movimento
que ocorra por quebrar a “mesmice”, independentemente da direção, das bandeiras
e do seu possível desfecho.
***
Do outro lado desta disputa encontram-se
China e Rússia – as candidatas a novo imperialismo
hegemônico com discursos de “mundo multipolar”. A postura chinesa – não belicista
atualmente, tolerante com empréstimos
financeiros internacionais e supostamente não interventora nos assuntos
internos de cada país –, bem como a russa, que não demonstra intenções
expansionistas e manipuladoras para além do seu entorno, parecem demonstrar a
superação de um passado imperialista da história, apontando para uma outra
perspectiva, multipolar, mais “democrática” e “inclusiva”.
Realmente há diferenças pontuais importantes entre o agressivo imperialismo
estadunidense – que mesmo hoje continua manipulando países, patrocinando e
terceirizando guerras e golpes – e o nascente imperialismo sino-russo, que,
para se firmar, precisa justamente aparecer com uma “nova” imagem para
sustentar suas pretensões à potência hegemônica. Um movimento revolucionário não
deve se furtar a apontar essas diferenças entre os imperialismos e a conclamar
a classe trabalhadora mundial a se aproveitar destas diferenças. Contudo, ao
contrário do que acredita e prega grande parte da esquerda, ainda tratamos de
campos imperialistas em disputa.
A dinâmica histórica coloca tarefas
distintas para cada um dos campos imperialistas: o imperialismo estadunidense depende
da dominação agressiva, interventora, intimidadora – tipicamente Ocidental; o
imperialismo sino-russo (sobretudo o chinês) se caracteriza por ser silencioso,
“propositivo”, não-interventor, supostamente “preocupado” com “soberanias
nacionais”. Isso se dá desta forma não apenas pela condição econômica mundial,
que favorece o a ascensão chinesa, já que atualmente “todos os caminhos” e
“todas as rotas da seda” levam à China. A Rússia, após décadas mendigando
compreensão e apoio por parte da Europa e dos EUA – inclusive solicitando
ingresso na OTAN –, voltou-se para a China e terminou por se beneficiar
amplamente de sua dinâmica capitalista, que resultou da reincorporação do
gigante asiático ao mercado mundial.
Em
síntese, o movimento econômico mundial atualmente é favorável ao
desenvolvimento chinês e russo, em detrimento do imperialismo Ocidental –
sobretudo o representado pelo EUA, que está em declínio (a balança comercial
pendendo para e a reserva de dólares da China que o digam![1]);
por isso, ela pode se dar ao luxo de prescindir de guerras ou intervenções.
Isso impõe tarefas e estabelece parâmetros políticos para ambos os lados, que
se expressam em narrativas ideológicas, apresentadas, sobretudo, através da
grande mídia (seja a mídia Ocidental; seja a CGTN, Sputnik, etc.) – daí advém o discurso chinês de “um mundo
multipolar”. No entanto, a unidade do
bloco sino-russo é imprescindível para ascensão mundial de ambos os países,
dado que se enfraquecem separados frente ao imperialismo estadunidense – por
isto este último tenta quebrar o bloco rival de diferentes maneiras.
Rússia e China lutam contra o imperialismo
capitalista ou se beneficiam dele?
Neste
ponto do debate devemos nos perguntar: o que Rússia e China pretendem colocar
no lugar do imperialismo estadunidense em declínio? O socialismo? Para alguns
setores da esquerda parece que sim; para outros, trata-se de governos
reacionários, mas ainda assim, preferíveis ao odioso imperialismo
estadunidense. Isto é, dão um cheque em branco para Rússia e China, aos quais
não atribuem papel ou mesmo qualquer interesse imperialista.
Para
muitos ativistas e organizações de esquerda o reconhecimento de uma nação como
“imperialista” deve seguir o estrito modelo apresentado por Lenin no início do
século XX. É evidente que este modelo, quase um check-list, é muito importante e continua sendo uma referência, mas
ele não pode substituir uma lúcida análise da realidade atual.
Vejamos
alguns exemplos extraídos das redes sociais que atestam uma posição inconsciente de que a Rússia promoveria uma política
antiimperialista: “percebam que o
movimento na Rússia já promoveu mudanças drásticas na geopolítica, como forçar
os ianques a fazer concessões à Venezuela”[2].
Não há aqui uma explicação séria sobre que mudança drástica seria essa, mas o
espírito da citação é claramente favorável ao papel cumprido pela Rússia.
Qualquer arremedo de “mudança” na conjuntura é usado como pretexto para
reforçar a sua política de apoio a um dos dois blocos em disputa – neste caso,
de apoio ao bloco sino-russo.
Outro
ativista, mais conscientemente ufanista
do “antiimperialismo” russo e chinês, anuncia solenemente ao mundo nas suas
redes sociais: “torceremos diuturnamente
pela Rússia. O mundo precisa dessa fragorosa derrota americana na Ucrânia. E
precisa que os nazistas sejam desmobilizados”[3]; a
seguir ele posta um artigo cujo título é Para
um mundo multipolar, é melhor que a Rússia vença[4].
Eis o resumo da ópera! Frente a este tipo de ilusão, é pertinente perguntar:
que espécie de “mundo multipolar” a Rússia irá promover ou já promoveu no leste
europeu?
Outro
exemplo das complicações em que a esquerda está enredada pode ser lido no
relato a seguir: “é complicado optar
sobre essa guerra, principalmente se o parâmetro for as informações falsas da
imprensa do Ocidente. Por outro lado, não existe uma posição unânime na
esquerda brasileira sobre os fatores econômicos, estratégicos e étnicos que
motivaram a operação da Rússia na Ucrânia. Enquanto as avaliações forem feitas
com base nas informações da imprensa do Ocidente, vai sempre prevalecer a
narrativa do império americano e a posição ideológica do princípio da soberania
nacional, ou seja, vai prevalecer o senso comum da narrativa predominante no
Ocidente”[5].
Aqui
já se delineia a “impossibilidade de se tomar posição”, apontando para o
problema de repetir acriticamente a mídia burguesa Ocidental e, portanto, o
imperialismo ianque. É possível sim tomar posição sem repetir a grande mídia
burguesa, nem reproduzir dogmaticamente os clássicos marxistas.
O derrotismo revolucionário se
aplica às condições atuais da “guerra” na Ucrânia?
Outras organizações da esquerda, que defendem
o “derrotismo revolucionário”, explicam que “consideramos
o conflito entre estas potências – respectivamente entre seus procuradores na
Ucrânia – como profundamente reacionário. Consequentemente, os socialistas se
opõem a ambos os lados neste conflito. Eles precisam defender um programa de
derrotismo revolucionário, ou seja, trabalhar para a derrota dos respectivos
governos e pela transformação deste conflito em uma crise revolucionária
doméstica”[6].
O derrotismo revolucionário foi uma
política proposta por Lenin e os bolcheviques durante a Primeira Guerra
Mundial, quando as nações do continente europeu promoveram uma carnificina
humana para disputar a hegemonia mundial sobre as colônias de então. As agressões
eram recíprocas e partiam ininterruptamente de ambos os lados – bem como a
finalidade era explícita: tomar as colônias e a influência do imperialismo que
se combatia de armas na mão no campo de batalha. Se aplicarmos mecanicamente o
“derrotismo revolucionário” ao caso da “guerra” da Ucrânia, esquecendo-nos do
contexto do início do século XX e a diferença em relação a este século que se
inicia, então, estaremos sendo coniventes com as provocações do imperialismo
decadente – o norte-americano –, que não pode agir de outra forma.
O mesmo vale para o erro oposto, que dá
total apoio político ao governo Putin, muito além do reconhecimento ao direito
de se defender, tal como qualquer nação que é atacada por outra. Há
preponderância na argumentação de Putin sobre Biden, quando o primeiro afirma
que não posiciona mísseis de longo alcance no território do México, nem manda
porta-aviões para o Atlântico norte. Tampouco a Rússia sabota militarmente os mercados dominados pelo
imperialismo ianque, ainda que utilize outros métodos de sabotagem, como
utilização de mecanismos econômicos para desvalorizar o preço do barril de
petróleo visando atingir a indústria petrolífera estadunidense[7].
Para nos pautarmos pela independência de classe nesta análise, não podemos esquecer
que a Rússia tem total interesse em manter a dominação e a influência nas
regiões do seu entorno, que se estende da Ucrânia até os países do leste europeu
– se pudesse, certamente engoliria toda a Europa, mas não o fez e não se
utilizou de provocações e sabotagens militares para tanto, tal como fez os EUA
em um continente alheio; por esses e outros motivos, a Rússia usa
historicamente o leste europeu como seu “escudo”. Não foi casual que Putin
tenha feito referência ao México, pois sabe que ali, bem como em toda a América
Latina, trata-se de uma esfera de influência ianque; isto é, de um “quintal dos
EUA”, ainda que Putin também não se furte a “auxiliar” em ocasiões específicas
o governo venezuelano contra o “grande irmão” do norte, utilizando-se de um
discurso de “soberania nacional”.
Da mesma forma, a posição política que
sustenta a “imediata saída das tropas russas da Ucrânia” defende, na prática,
as provocações imperialistas dos EUA e da OTAN, menosprezando o direito à
defesa frente a tais provocações. São como palavras soltas, mais voltadas a
causar um “impacto estético revolucionário” altissonante em quem as escuta do
que ajudar a elucidar a complexidade do contexto histórico em que vivemos.
Tampouco ajuda na conscientização e na organização da classe trabalhadora
mundial e brasileira. Não é muito melhor a posição que coloca a Rússia e a
China como expoentes da “luta anti-imperialista” e da construção de um “mundo
novo, livre e socialista”.
Uma política elaborada e aplicada
mecanicamente tende a nos afastar da realidade e a embaçá-la. Por tudo o que se
sustentou neste artigo, não restam dúvidas de que se trata de uma disputa
interimperialista por hegemonia, e que vença quem vencer, o imperialismo capitalista
seguirá o seu curso, de forma mais branda ou agressiva, mas, ainda assim, será
um tipo de disputa por mercados e controle econômico, com semicolônias
exploradas e marginalizadas, exploração de classe, miséria, crises e conflitos.
Contudo, esta disputa interimperialista precisa ser analisada nas suas relações
concretas e, principalmente, ser explicada e debatida com a classe trabalhadora
por uma perspectiva de independência de
classe, fato que só pode se tornar efetivo se não estiver baseado em dogmas
e receitas pré-fabricadas.
Referências
[1]
Ver: http://portuguese.news.cn/2022-03/15/c_1310515004.htm (este texto traz de
forma sucinta informações acerca das atuais relações entre EUA e China – ainda
que pareça que o governo Biden está preocupado com as boas relações com o
gigante asiático, na verdade ganha tempo, enquanto a China procura garantir
suas pautas e reforçar sua política de “neutralidade” e “não violência” –
ao mesmo tempo em que o governo Biden condena e luta contra a Rússia).
[2]
Extraído do grupo de Whatsapp “Revolução Socialista”, no dia 9 de março de
2022.
[3]
Extraído do grupo de Whatsapp “Revolução Socialista”, no dia 13 de março de
2022. A seguir o mesmo ativista posta o seguinte texto para dar “embasamento”
aos seus argumentos: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/melhor-que-a-russia-venca/
[4]
Além do referido artigo: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/melhor-que-a-russia-venca/
; ver também: https://vozoperariarj.com/2022/03/07/suposto-imperialismo-russo-nunca-existiu-russia-e-anti-imperialista-e-contra-um-governo-global-parte-1/
[5]
Extraído do grupo de Whatsapp “Dialética da natureza”, no dia 10 de março de
2022.
[6] https://www.thecommunists.net/worldwide/global/critical-remarks-on-lit-ci-statement-on-the-current-nato-russia-conflict/#anker_1
[7]
Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/03/coronavirus-crise-capitalista-e-o.html
domingo, 6 de março de 2022
O discurso de Putin e a política bolchevique de autodeterminação das nações oprimidas
Vladmir Putin durante discurso pronunciado em 21 de fevereiro de 2022. Leia o discurso na íntegra clicando aqui |
Em um discurso recente – pronunciado
em 21 de fevereiro de 2022 –, que antecedeu a invasão da Ucrânia, Vladmir Putin
fez diversas menções à política bolchevique de autodeterminação das nações
oprimidas. Todo o seu discurso foi construído em cima da “revisão” desta
política, tão cara aos bolcheviques, quanto aos revolucionários
internacionalistas em geral.
A essência do discurso é
abertamente anticomunista; e isso fica evidente desde o início, quando Putin
atribui a culpa da “criação da Ucrânia moderna” aos “bolcheviques”. Ele dá a entender que o processo de
surgimento deste país teria sido uma criação artificial do governo de Lenin,
feito de forma arbitrária e “rude com a própria Rússia”. O autocrata ainda tem
a empáfia de dizer que Lenin e os bolcheviques “não tinham perguntado nada aos
milhões que moravam lá”, como se ele perguntasse algo à classe trabalhadora
russa e ucraniana nos dias de hoje.
Depois,
Putin nos informa que o território da Ucrânia foi formado por uma política de
anexações e concessões feitas por Stalin, Kruschev e outras lideranças
soviéticas – inclusive tomando territórios da Polônia e da Hungria –, para logo
a seguir dar atenção especial “ao período inicial de formação da União
Soviética (URSS)” – eis aí a sua verdadeira intenção!
A
intencional salada de frutas ideológica de Putin proclama que Stalin supostamente teria dado amplos poderes
administrativos à Ucrânia, quando na verdade representou o oposto. A seguir,
Putin afirma que em função desta política de “amplos poderes” houve
divergências entre os bolcheviques sobre o tema, o que é verdadeiro, embora ele
não nos diga nada de concreto sobre que divergências seriam essas. Mais
adiante, contradizendo-se totalmente em relação à fala anterior, ele afirma que
a “ditadura stalinista”, “o terror vermelho” – lembrando que o próprio Putin
foi uma cria da KGB (a polícia secreta stalinista) – e o “sistema planificado
da economia nacional”, transformaram a “soberania das repúblicas soviéticas”
(das quais a Ucrânia fazia parte) em uma mera formalidade, pois, na prática, se
tratava de um regime “estritamente centralizado e absolutamente unitário”. Qual
dos dois discursos vale?
No entanto, o que Putin realmente
pretendia com o discurso aparece na sequência, quando ataca a política
bolchevique de autodeterminação dos povos, proposto pelo governo revolucionário
de Lenin saído da revolução de 1917, e que vigorou até a ascensão ao poder da
burocracia stalinista, mantendo-a como uma mera formalidade “leninista”, uma
saudação à bandeira, até ser renegada completamente com a restauração do capitalismo em 1991, quando a Ucrânia desmembrou-se
tornando-se mais uma república burguesa.
O
nacionalismo grão-russo de Putin escondido sob o ataque aos interesses
nacionalistas de outros – e o seu desejo de permanecer no poder a qualquer
custo!
Para
Putin, a política bolchevique de autodeterminação dos povos seria uma invenção
artificial para “satisfazer ambições nacionalistas ilimitadamente crescentes
nos arredores do antigo império”. Isso é uma mentira completa!
Os
diversos povos subjugados pelo império czarista almejavam a independência
política – daí advém tal proposta dos bolcheviques. Putin sabe perfeitamente
disso, mas tenta esconder este desejo social afirmando que na Ucrânia “existem
laços de sangue, de família, de cultura, de história”, até mesmo – pasmem! –,
de “espírito”. Portanto, não haveria razões para a Ucrânia não fazer parte da
Rússia, já que sua “independência” seria, segundo Putin, uma “invenção
artificial” da política bolchevista de autodeterminação das nações, imposta nos
anos iniciais de formação da URSS. Não bastasse essa lambança teórica
intencional, Putin iguala a política de Lenin saída da revolução de 1917 com a
política da burocracia stalinista que culminou na restauração capitalista,
levando à formação da Comunidade de Estados Independentes (CEI), tal como se
fossem a mesma coisa.
Para
Putin, este política representaria uma concessão desnecessária de Lenin aos
“ambiciosos nacionalistas” que só causariam danos à Rússia. É por trás de
afirmações como esta – não contestadas pormenorizadamente pela “esquerda” atual
– que Putin esconde todo o seu nacionalismo e orgulho grão-russo, alimentado
pelos seus interesses expansionistas dentro do capitalismo e do mercado mundial
– sobretudo no leste europeu.
Durante
a maior parte da existência da URSS ela esteve fora do mercado mundial e
isolada – seja por iniciativa da própria burocracia soviética, seja por imposições
do imperialismo. A partir dos anos 1970, com a reabertura política e econômica
da China (pós Deng Xiaoping); e nos anos 1990, com a reincorporação da Rússia ao mercado mundial, o papo é outro. Atualmente, ambos países não estão apenas
dentro do mercado mundial, mas possuem as maiores reservas de dólares! Por isso
temem pouco as ameaças de sanções por parte do imperialismo estadunidense. A
força gravitacional da China, por sua vez, já sugou a Ásia e agora suga a
África, a Europa e a América Latina, secundarizando ou mesmo isolando os EUA –
esta é o motor das provocações políticas e militares do governo Biden contra a
Rússia e, secundariamente, contra a China. Enquanto isso, os problemas sociais
internos e a dívida pública ianque só aumentam. Como possuem o monopólio da
impressão do dólar, “resolvem” o problema imprimindo mais dinheiro e mandando a
inflação para o resto do mundo – em especial, para o Brasil.
A Rússia controla mercados
importantes de commodities (como o de
petróleo e o de gás natural). É o pesadelo dos capitalistas ianques. Desde o
início do século XX não há mais livre mercado. Vemos apenas guerra entre
monopólios, escondido sob políticas “imparciais” dos seus respectivos governos.
As ameaças de bloqueios econômicos e sanções levaram o governo de Putin a
declarar que todas elas devem voltar-se contra o Ocidente, dado que apenas
encarecem o gás natural para a Europa e não permitem que os EUA suplante
imediatamente o fornecimento russo. Termina, assim, por criar uma crise
energética e um impasse no continente europeu. O que sobra é guerra de
(des)informação, comercial, de sabotagem; além de provocações para que Rússia e
China respondam, justificando campanha de ataques midiáticos, políticos,
econômicos e militares.
Putin
não pode assumir seus reais interesses nacionalistas, que convertem-se em uma
forma de imperialismo não apenas sobre a Ucrânia, mas a sede ilimitadamente crescente por ganhar
outros mercados – sobretudo o europeu. Para isso, precisa recorrer ao velho
método de obscurecer intenções, acusando os outros daquilo que realmente é. Seu
nacionalismo é o motor de um imperialismo crescente, ainda que, no momento,
totalmente dependente do amparo chinês; e uma maneira de esconder o seu desejo
desesperado de permanecer no poder precisamente
a qualquer custo – pelo menos, até 2036! Em seu discurso “realista”, os
bolcheviques seriam meros arrivistas e Putin, este sim, um exemplo de
integridade e coerência. Seu projeto de poder é altruísta e pensado para o “bem
comum”, sem falsificações, substituições de conceitos ou manipulações da
consciência pública (estes são os adjetivos com que o nosso nobre aspirante a czar moderno qualifica os “bandidos
bolchevistas”). Estar no poder até 2036 – com possibilidade real de prorrogação
do seu mandato inquestionável – seria uma mera casualidade.
Para
Putin, a política de autodeterminação dos povos não seria algo refletido e
pensado pelos bolcheviques, pelo menos, desde 1909, mas concessões territoriais
oportunistas e demagógicas para criar um novo equilíbrio político visando
permanecer no poder “a qualquer custo”. O fato desta bandeira aparecer no
programa bolchevique desde 1903 – ou seja, muito antes da tomada do poder em
1917 –, e num artigo de polêmica com a social-democracia alemã em 1914, são
reles detalhes, passíveis de “esquecimento”.
Por
que Putin quer apagar Lenin?
Vladmir
Putin ironiza que os ucranianos, agradecendo o “presente de Lenin” com a
política de autodeterminação, agora destroem seus “monumentos na Ucrânia”. A
vaga neofascista não tolera qualquer
menção ao “comunismo” e também alimenta o mais vil sentimento anti-russo.
Contudo, se os ucranianos colocam abaixo estátuas de Lenin no seu país – em sua
maioria construídas pela burocracia stalinista como forma de esconder a sua
total ausência de “política leninista” –, Putin quer demolir a herança teórica
de Lenin que tantos inconvenientes lhe causa, dado que evidencia sua política
nacionalista grão-russa.
Para
Lenin“os grão-russos na Rússia são a
nação opressora”[1].
E complementa: “A formação de um Estado nacional autônomo e independente continua a
ser por enquanto na Rússia um privilégio somente da nação grão-russa. Nós,
proletários grão-russos, não defendemos privilégio algum, não defendemos também
este privilégio[2]. (...) Qualquer burguesia, quer na questão nacional ou privilégios para a sua
nação, ou vantagens exclusivas para si (...). O proletariado é contra quaisquer privilégios, contra qualquer
exclusividade. Exigir dele o ‘praticismo’ significa navegar nas águas da
burguesia, cair no oportunismo”[3].
E assim Lenin justifica a política
de “independência da Ucrânia”: “são
precisamente as condições históricas concretas da questão nacional da Rússia
que tornam no nosso país especialmente urgente o reconhecimento do direito das
nações à autodeterminação na época que atravessamos”[4]. Concluindo que “nesta cadeia de acontecimentos só um cego
pode deixar de ver o despertar de toda uma série de movimentos nacionais
democrático-burgueses e de aspirações à formação de Estados nacionalmente independentes
e nacionalmente homogêneos. Precisamente porque e só porque a Rússia,
juntamente com os países vizinhos, atravessa essa época, é que nos é necessário
o ponto relativo de direito das nações à autodeterminação no nosso programa”[5].
Vladmir Putin não é cego. Ao
contrário. Vê bem com as lentes da “nova” burguesia russa e também demonstra
bem o que significou a restauração do capitalismo na ex-URSS. Com as mãos
livres para traçar a política que desejar, aponta para uma estratégia
nacionalista de dominação e expansão. Certamente a época histórica em que Lenin
escreveu o referido artigo – 1914 – não guarda semelhança alguma com a atual
situação da Ucrânia. Vivemos neste início do século XXI um movimento provocador
insuflado pelos EUA que nada tem a ver com um “movimento democrático-burguês de
libertação nacional”, mas a ojeriza de Putin à política revolucionária expressa
por Lenin demarca a divisão entre a compreensão proletária e a compreensão
burguesa da autodeterminação das nações oprimidas. Mais do que isso: expressa
as intenções do imperialismo nascente russo, que está sendo instigado a sair da
toca e se apresentar ao público pela pressão do imperialismo decadente, os EUA,
que não pode agir de outra forma.
Esta
diferenciação histórica é fundamental, não apenas para demonstrar a diferença
abismal entre a Rússia soviética dirigida por Lenin, e a Rússia de Putin no seu
neoimperialismo em ascensão. A
decadente burguesia estadunidense, experiente e lutando desesperadamente para
manter sua hegemonia, aprende com a história (diferentemente da “esquerda”).
Assim como ela se apropriou do discurso identitário para usá-lo contra o
movimento proletário[6], bem como patrocinou “revoluções
coloridas” pelo mundo (apoiadas entusiástica e vergonhosamente por parte da
“esquerda” – incluindo a “revolução colorida” da Ucrânia em 2014, que foi, na
verdade, um golpe de Estado patrocinado pelo imperialismo ianque[7]), agora apossa-se do discurso de
“autodeterminação das nações oprimidas” para usá-lo contra os seus inimigos
russos e chineses, ganhando, como sempre, o apoio acrítico da “esquerda”
mundial e do movimento de massas que ela influencia.
Nesse
sentido – e somente nesse! – Putin é honesto: esta política bolchevique é um
estorvo para o seu projeto de poder. Sua intenção é anexar territórios do
entorno à grande Rússia para centralizar política e economicamente as decisões
e continuar, junto com a China, a expansão econômica sobre o mercado mundial –
em especial no mercado de commodities
europeu. O recorte de classe fica evidente: seu objetivo é neutralizar
fronteiras, não garantir nenhuma autonomia aos Estados do entorno, dado que “os fundamentos básicos, formalmente legais
sobre os quais todo o nosso Estado foi construído, odioso, utópico, inspirado pela revolução”, são reles “fantasias absolutamente destrutivas para
qualquer país normal” (trecho do seu discurso de 21 de fevereiro);
preparando, assim, as bases para o expansionismo político e econômico, tendo o
exército russo como retaguarda e vanguarda, a depender do momento – isto é:
preparando as bases para sustentar a sua expansão neoimperialista.
O
que Putin entende por “país normal” e política “não-fantasiosa” e “realista”? A
política burguesa, que anexa, que se expande, que esconde pretensões
imperialistas – isto é, a retomada dos projetos do império czarista em moldes
modernos, numa total dependência do bloco político e econômico com a China[8].
A
provocação imperialista ianque feita através da OTAN abriu o precedente para a
invasão da Ucrânia e a implementação do projeto de anexação
É
precisamente este discurso anticomunista e, em especial, antileninista de Putin
que a “esquerda” acrítica endossa quando afirma a imperiosa necessidade de se
apoiar a Rússia contra os EUA e a OTAN a qualquer preço – como se houvesse
nisso algum resquício de antiimperialismo. Com essa impostura, não se liquida
apenas a independência de classe, mas se ataca os fundamentos da política
leninista que dá embasamento à própria independência de classe. Segundo Putin,
os princípios do leninismo seriam “muito pior do que um erro”. Ver isto ser
pronunciado pelos seus lábios é bastante compreensível, dado que ele raciocina
como um burguês que pretende expandir seus negócios. Nesse sentido, o leninismo
é um estorvo para qualquer projeto nacionalista/imperialista de expansão, dado
que cria “constrangimentos” em relação à independência das nações oprimidas. O
que não é compreensível é ver parte da “esquerda” levantando bem alto o projeto
expansionista russo – capitalista e nacionalista –, cuja justificativa é um
ataque frontal ao pensamento marxista.
A
acusação do governo russo de que a OTAN não apenas não se dissolveu, conforme
foi prometido durante o período da restauração capitalista no início da década
de 1990, como seguiu avançando em “cinco grandes ondas de expansão” no sentido
de cercar a Rússia, incorporando países vizinhos numa tentativa de isolar o
maior país do mundo, que é sempre um inimigo em potencial para o imperialismo
ianque, é uma realidade (e tudo isso apesar dos “esforços” de Putin para
integrar a Rússia na OTAN e no sistema Ocidental ao longo dos anos 2000).
Também é verdade a denúncia que Putin faz da utilização do território ucraniano
como “teatro de potenciais operações militares” estadunidenses contra a Rússia,
transformando o país em um palco de provocações ininterruptas, além de
depositário de investimentos militares, em armas e treinamento, de bilhões de
dólares. Ou seja, a burguesia ucraniana e o seu governo fantoche dos interesses
de Washington usam a “independência” da Ucrânia como base de operações para
provocações contra a Rússia, visando ganhar algum tipo de lucro e vantagens.
Isso não pode ser esquecido nem por um minuto.
Tudo
isso é uma triste realidade, cuja grande mídia Ocidental trabalha dia e noite
para minimizar ou mesmo apagar completamente, buscando transferir, às vezes
sutil, às vezes abertamente, os motivos da “guerra ucraniana” apenas para o
governo Putin. Pretendem disfarçar a disputa imperialista escondendo as
provocações e planos do imperialismo estadunidense, para direcionar a atenção
do público apenas à figura de Putin, descontextualizando a situação e
transformando-o num bode expiatório, depositária de todo o mal, bem como gosta
e requer a mentalidade religiosa.
A nazificação do governo ucraniano é outro fato não só tolerado, mas
apoiado, pelo Ocidente, que muitas vezes se desdobra em massacres à população
que reivindica a integração com a Rússia na região do Donbass. Os relatos são
assustadores e a grande mídia também não noticia absolutamente nada, ignorando
a violação aberta das resoluções da ONU e da OSCE acordadas no tratado de
Minsk. Putin aponta para todos estes problemas no seu discurso de 21 de
fevereiro, além de exigir que a OTAN recue e retire as bases militares e o
apoio logístico e financeiro ao governo títere ucraniano, mas nada disso é
levado em consideração na “cobertura imparcial” feita pelo jornalismo
mercenário da grande mídia Ocidental.
No entanto, todos estes ataques não
podem nos fazer fechar os olhos para qual política Putin pretende colocar no
lugar de um suposto “Estado desnazificado”. O referido discurso analisado aqui
é apenas uma pequena demonstração de como ele entende a conjuntura. A Ucrânia
está prestes a sumir do mapa, engolida pela política expansionista de Putin. Já
não há mais saída para o Mar Negro[9]. As pontes com o exterior estão
sendo gradativamente cortadas sob o olhar dos EUA, que em parte não responde
militarmente para não se desgastar politicamente, se escondendo atrás da
campanha midiática mundial; em parte por não ter condições materiais. Que
espécie de “luta anti-imperialista” ou mesmo de “novo mundo” pode surgir de um
governo que prega abertamente contra o direito à autodeterminação das nações
oprimidas? Seria esse o caminho ao mundo multipolar prometido por Rússia e
China para o lugar do atual, dominado e controlado pelos EUA?
As
sanções contra o governo Putin: quem paga a inflação e a crise econômica?
Tal como no início da pandemia,
agora a mídia Ocidental cria uma histeria em torno da invasão de Putin,
omitindo, como falamos antes, o decisivo papel do imperialismo Ocidental. As
mentiras e o sensacionalismo da mídia burguesa (Putin não é o único que conta
mentiras) não têm limites. Cabe destacar aqui a tentativa de imputar a inflação
brasileira à “guerra da Ucrânia”. As causas da inflação, do desemprego e da
crise crônica da economia brasileira dizem respeito a um conjunto de fatores
que não podem se resumir a esta “guerra”. Por exemplo: relação dólar-real, cuja
impressão desenfreada da moeda norte-americana para injetar em bancos e grandes
empresas[10] – sobretudo as de petróleo – são
repassadas aos países neocoloniais. É um problema de dependência econômica que
existe desde muito antes de qualquer “guerra na Ucrânia”. É uma política
econômica permanente do imperialismo, assim como as “tenebrosas transações”
resultantes do sistema financeiro operante no país, da farra da especulação com
dívida “pública” e outras formas de agiotagem, sem mencionar as maiores taxas
de juros do mundo, que deveriam ser um dos principais motivos de vergonha e
revolta nacional!
A “guerra” deve tensionar a uma alta
no preço das commodities – como o gás
natural e o petróleo – na Europa e tem levado à desvalorização do dólar. Tudo
isso tende a pressionar e desorganizar os mercados internos subordinados, como
é o caso do brasileiro. Mas daí para a
justificativa midiática de que a “guerra de Putin” é a principal causadora da
inflação e do aumento do custo de vida no Brasil é de uma canalhice ímpar.
O nosso país paga o preço de ser uma economia periférica e subordinada do
capitalismo Ocidental, atualmente gerido pela gangue entreguista dos bolsonaros
e guedes – esta é a principal razão das nossas mazelas.
As
sanções do governo estadunidense contra o governo Putin voltam-se contra o
próprio Ocidente, intensificando a crise econômica que será jogada sobre as
semicolônias. O discurso midiático serve como uma perfeita cortina de fumaça
para esconder a crise e a decadência do imperialismo estadunidense, acusando a
Rússia de uma instabilidade criada pela própria ação da OTAN no leste europeu.
Talvez seja por isso que Putin e seus ministros têm chamado esta política de
“suicida”.
Em resposta às ameaças de sanções
dos EUA, o presidente honorário do conselho para assuntos internacionais da
Rússia, Sergei Karaganov declarou que “o
Ocidente pode tentar nos intimidar com sanções devastadoras – mas também somos
capazes de dissuadir o Ocidente com nossa própria ameaça de uma resposta
diferente, que paralisaria as economias ocidentais e perturbaria sociedades
inteiras”[11].
É entre esta guerra econômica e
política dos monopólios autocráticos que a classe trabalhadora mundial se
encontra – isto é, é exatamente aí que se encontram as pessoas comuns, completamente desorganizadas e desorientadas,
esmagadas pela guerra das elites mundiais pelo controle da nova ordem.
A
substituição da hegemonia mundial de um imperialismo por outro sempre traz
crises e guerras
Toda
mudança histórica de hegemonia imperialista mundial leva a guerras e crises.
Foi assim com as guerras mundiais e a crise de 1929, que precederam a
substituição do imperialismo europeu – em particular, do inglês – pelo
imperialismo estadunidense. A crise de hegemonia ianque, que se arrasta, pelo
menos, desde meados da década de 1980, tende a levar a guerras e a crises
econômicas mundiais, até que o(s) novo(s) imperialismo(s) se estabeleçam.
Na
medida em que está sendo jogada para um papel secundário no mundo, o
imperialismo estadunidense vai arrastando para o buraco junto consigo tudo o
que pode. O grau de irracionalidade das políticas dos governos dos EUA e das
suas semicolônias; a economia baseada em investimentos militares – portanto, em
forças destrutivas –, são realidades evidentes. A tendência permanente à queda
da taxa de lucro, que não encontra solução nem em um parasitismo permanente do
setor privado sobre o Estado, aponta para um impasse. A “saída”
imposta pelo imperialismo ianque ao mundo está baseada em provocações
militares, guerras comerciais e tarifárias, imposição do consumo do supérfluo e
extorsões dos Estados neocoloniais nos mais diversos níveis. Um dos principais
objetivos do imperialismo ianque na “guerra da Ucrânia” já foi atingido – ainda
que possa ser revertido a longo prazo: a interrupção da construção do canal de
abastecimento de gás natural Nord Stream
II, que ligaria a Rússia diretamente à Alemanha através do Mar Báltico[12].
Enquanto a gangorra desce do lado
norte-americano, que se debate para não ser alçado ao chão, inclusive com
sabotagens nas mais diferentes esferas, incluindo golpes de Estados nas
semicolônias (como foi o caso do Brasil em 2016); do outro lado, Rússia e China
se alçam para cima, desviando-se das sabotagens e aproveitando as ofensivas
estadunidenses. A pandemia de covid-19 foi um ponto marcante. A “guerra da
Ucrânia”, que pode ter diversas consequências sobre a Europa e o mundo, está sendo outro.
Tal como a China, que começa a falar
com voz cada vez mais alta na diplomacia internacional, o governo russo
engrossa a voz. Putin apresenta ao mundo a sua “doutrina de destruição
construtiva”[13], que, apesar de ser vendida como
“não-violenta” e restrita às provocações da OTAN, soa como uma proposta de
remodelação do mundo ao seu entorno – sobretudo na Europa – segundo interesses
grão-russos, evidentemente. É a OTAN que está na mira, mas o governo Putin se
restringirá à ela?
O porta-voz do governo russo, Sergei
Karaganov, declara ainda que “quando
chegar a hora de estabelecer um novo sistema de segurança europeu para
substituir o existente, perigosamente desatualizado, isso deve ser feito dentro
da estrutura de um projeto eurasiano maior. Nada de valor pode nascer do velho
sistema euro-atlântico”[14].
Parece que, para o governo russo, “a
hora” já chegou.
Para o ex-diplomata britânico,
Alastair Crooke, “Washington pretende ter
uma ‘arma assassina’ direcionada a Moscou: sancionar chips semicondutores.
‘Isso seria o equivalente moderno de um embargo de petróleo do século XX, já
que os chips são o combustível crítico da economia eletrônica’. Ambrose Evans
Pritchard argumenta no Telegraph: ‘Mas isso também é um jogo perigoso. Putin
tem os meios para cortar minerais e gases críticos necessários para sustentar a
cadeia de fornecimentos do Ocidente para chips semicondutores’. Em suma, o
controle de Moscou sobre os principais minerais estratégicos poderia dar à
Rússia uma vantagem, semelhante ao domínio energético da OPEP em 1973”[15].
Vemos, portanto, que os EUA e a
Europa não estão lidando com uma semicolônia, mas com um país que tem acesso e
controle sobre cadeias produtivas mundiais, o que coloca a batalha em um outro
patamar. Forças e limites estão sendo testados.
Sobre
as palavras de ordem estéreis da “esquerda” e a “confusão” de sua propaganda
A
análise de conjuntura por parte da “esquerda”, por sua vez, é lastimável.
Confusa, vacilante; pautada pelo apoio acrítico a um ou outro imperialismo –
liquidando a independência de classe, que deveria se traduzir por uma análise
lúcida e independente –, ou por uma abstração que beira a fantasia. Por
exemplo: misturam elementos de propaganda e de agitação, quando exigem a saída das tropas russas da
Ucrânia, que neste momento combatem o sistema de mísseis dos EUA instalados no
seu território. Bradam que “tudo será resolvido pelos trabalhadores ucranianos
e russos”; mas neste momento tanto a classe trabalhadora russa, quanto a ucraniana,
estão desmanteladas, destruídas, sem direção, partidos ou organizações que
possam colocar tais palavras de ordem em ação. Isto precisaria ser levado em
consideração. O primeiro passo para se reorientar – e consequentemente tentar
reorientar o proletariado – é colocar em
ordem as nossas palavras de ordem e a propaganda revolucionária, trazendo
uma narrativa que tenha os pés no chão
e o norte na independência de classe.
Anteriormente a maior parte da
“esquerda” (LIT-PSTU, grande parte do PSOL – em especial MES e CST –, MRT/ED,
dentre outros) apoiou a “revolução colorida” que derrubou o governo pró-Moscou
de Yanukovich[16], abrindo caminho para os grupos
neonazistas que espalharam russofobia pelos quatro cantos do país, massacraram
as populações das regiões mais próximas da Rússia, como as do Donbass, e
aplainaram o caminho para a vitória de Volodymyr Zelensky. Agora, colocam-se
numa posição que tende apenas a condenar as ações da Rússia, ecoando em maior
ou menor medida o frenesi da grande mídia burguesa, sem fazer o contraponto. As
ações da Rússia são o resultado da pressão e do cerco das posições
estadunidenses. É possível compreender (e até mesmo defender, quando
necessário) a resposta militar russa à OTAN, sem prestar nenhum apoio político
a Putin, nem condená-lo segundo os interesses Ocidentais.
A LIT-PSTU, como sempre, coloca-se
abertamente do lado da política estadunidense, levantando um vergonhoso “Todo apoio à resistência do povo ucraniano
- pela derrota da invasão russa e de Putin na Ucrânia” – para logo depois
levantar um “fora as garras dos EUA, da
OTAN e da União Europeia”[17] envergonhado, contraditório e
delirante. O povo ucraniano está completamente desorganizado e apoiar esta
“resistência” forjada pelos EUA é prestar-lhe um novo suporte político. Assim
tem agido a “esquerda” fantasiosa, que liquida a independência de classe e
ajuda a desorientar a classe trabalhadora brasileira e mundial.
Já
outros setores, como o PCO, a LBI, o portal Brasil 247, Pepe Escobar, dentre
outros, ainda que eventualmente façam uma boa análise da conjuntura, prestam um
vergonhoso apoio acrítico à Rússia de
Putin, vendendo suas ações como um combate antiimperialista. Vimos qual é a
posição de Putin acerca da autodeterminação das nações oprimidas e da “utopia”,
do “ódio” ao Estado russo nascido da revolução russa de 1917. Se podemos
compreender a ação russa como defesa às provocações e ações do decadente
imperialismo estadunidense na Ucrânia, não podemos esquecer, nem por um
segundo, das implicações de uma política de “destruição construtiva” baseada no
rechaço à autodeterminação das nações oprimidas e do Estado operário saído da
revolução de outubro de 1917. Isto é: não devemos baixar a guarda para Rússia e
China em nenhum momento, nem nos furtarmos a nenhuma crítica em relação ao que
pretendem colocar no lugar do domínio mundial norte-americano.
A
propaganda da “esquerda” confunde fatores essenciais e, de uma forma ou outra,
leva água ao moinho de um ou outro imperialismo. Devemos reconhecer o direito
da Rússia se defender das provocações imperialistas, sem prestar um grama
político de apoio a Putin. As palavras de ordem, para não beirarem a fantasia,
precisam estar alicerçadas na realidade, mesmo que não possam ser colocadas em
prática agora – mas isso, infelizmente, não tem sido o caso até o momento.
Ao
contrário de Putin – e de grande parte da “esquerda” – é importante relembrar
Lenin no que ele tem de melhor, como no direito das nações à autodeterminação: “Não importa que esta propaganda seja ‘não
prática’, tanto do ponto de vista dos opressores grão-russos, como do ponto de
vista da burguesia das nações oprimidas”[18].
Mas que propaganda seria esta? Lenin
se refere “a tarefa da agitação e
propaganda cotidiana contra quaisquer privilégios estatais nacionais, pelo
direito, direito igual de todas as nações, ao seu Estado nacional. De fato é
precisamente esta propaganda, e só ela, que assegura uma educação verdadeiramente
democrática e verdadeiramente socialista das massas”[19].
Através da sua doutrina de
“destruição construtiva”, Putin quer colocar abaixo não apenas a real ameaça
militar da OTAN em território ucraniano, mas a política de autodeterminação das
nações levantada e defendida por Lenin. É assim que devemos compreender o seu
discurso do dia 21 de fevereiro de 2022. Putin e Karaganov falam contra os
“dogmas marxistas” e o “fim das liberdades civis ao povo” representado pelo
“regime comunista”. Eles querem nos fazer crer que a doutrina de “destruição
construtiva” irá criar um mundo melhor, mais harmônico e equilibrado, com
“liberdades civis”.
Ao que tudo indica, eles pretendem
substituir os “dogmas” marxistas e “liberais” pelos dogmas da mão de ferro da máfia burguesa russa contemporânea, com
a nobre finalidade de aprofundar o capitalismo
imperialista... sob nova direção!
Existem dois discursos em jogo: o de
Putin e o de Lenin. A classe trabalhadora consciente
deve optar pelo de Lenin, para quem: “‘Não
pode ser livre um povo que oprime outros povos’, assim diziam os maiores
representantes da democracia consequente do século XIX, Marx e Engels.
(...) E nós, operários grão-russos,
penetrados pelo sentimento de orgulho nacional, queremos, aconteça o que
acontecer, uma Grã-Rússia livre e independente, autônoma, democrática,
republicana e orgulhosa, que assente as suas relações com os vizinhos no
princípio humano da igualdade, e não no princípio feudal do privilégio, que
humilha uma grande nação”[20].
Referências
[1] LENIN, Vladmir Ilitch. Sobre o direito das nações à autodeterminação (in Obras escolhidas, tomo I – página 523) Edições Progresso, Moscou, 1981.
[2] Idem (página 524).
[3] Idem (página 522).
[4] Idem (página 521).
[5] Idem (página 519).
[6] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2021/02/os-meritos-e-os-perigos-do-identitarismo.html
[7] Ver: https://lutamarxistablog.blogspot.com/2014/03/ucrania-palco-da-disputa-imperialista.html
[8] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/05/a-ascensao-mundial-da-china.html ; e: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/09/socialismo-com-caracteristicas-chinesas.html
[9] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=akl0483_i6Y&ab_channel=TV247
[10] Ver: https://conscienciaproletaria.blogspot.com/2020/03/coronavirus-crise-capitalista-e-o.html
[11] Ver: https://greatgameindia.com/putin-doctrine-constructive-destruction/ ou em português: https://telegra.ph/A-nova-pol%C3%ADtica-externa-da-R%C3%BAssia-a-Doutrina-Putin-02-28
[12] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=akl0483_i6Y&ab_channel=TV247 e ainda: https://www.poder360.com.br/europa-em-guerra/empresa-dona-do-gasoduto-nord-stream-2-pede-falencia/
[13] Ver: https://greatgameindia.com/putin-doctrine-constructive-destruction/ ou em português: https://telegra.ph/A-nova-pol%C3%ADtica-externa-da-R%C3%BAssia-a-Doutrina-Putin-02-28
[14] Ver: https://greatgameindia.com/putin-doctrine-constructive-destruction/ ou em português: https://telegra.ph/A-nova-pol%C3%ADtica-externa-da-R%C3%BAssia-a-Doutrina-Putin-02-28
[15] Ver: https://patrialatina.com.br/a-desconstrucao-construtiva-do-modelo-relacoes-da-russia-com-o-ocidente/
[16] Ver: https://lutamarxistablog.blogspot.com/2014/03/ucrania-palco-da-disputa-imperialista.html
[17] Opinião Socialista Nº630.
[18] LENIN, Vladmir Ilitch. Sobre o direito das nações à autodeterminação (in Obras escolhidas, tomo I – página 525) Edições Progresso, Moscou, 1981
[19] Idem.
[20] LENIN, Vladmir Ilitch. Acerca do orgulho nacional dos grão-russos (in Obras escolhidas, tomo I – página 565) Edições Progresso, Moscou, 1981