quinta-feira, 29 de março de 2018

O legado de Wilhelm Reich e o que ele tem a nos ensinar sobre o atual fascismo brasileiro


Wilhelm Reich (1897-1957)
Talvez as duas maiores sínteses filosóficas do século XIX e XX tenham sido feitas pelo marxismo e o freudianismo (ambas influenciadas pelo pensamento darwinista). O primeiro, acertando contas com o materialismo mecanicista; e o segundo, com o campo filosófico idealista, dando-lhe uma sólida base materialista.
            Faz-se fundamental, então, um diálogo maior entre ambas filosofias. Vários marxistas, freudianos, escritores e poetas já esboçaram tentativas nesse sentido: Trotsky (embora Lenin equivocadamente discordasse da psicanálise), Eric Fromm, a escola de Frankfurt (Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor Adorno, etc.), Slavoj Zizec, Jacques Lacan, Paulo Leminski, etc. Contudo, o pensador que maiores e mais profundos resultados atingiu nesse intento foi seguramente Wilhelm Reich (1897-1957). Ele aprofundou e corrigiu erros do pensamento social freudiano a partir de uma base marxista, ao mesmo tempo em que possibilitou a aproximação do pensamento marxista com elementos da subjetividade a partir das conquistas da prática psicanalítica.
            Como todo o inovador, Reich sofreu uma série de calúnias, difamações e incompreensões. Não foi diferente do que sofreram Giordano Bruno, Galileu, Marx, Darwin e Freud. Tal como a Reforma Luterana, em que as mudanças e críticas de Lutero ficaram restritas a limites toleráveis à Igreja Católica, enquanto que o monge alemão Thomas Müntzer desejava realizar “reformas” de maiores proporções e muito mais radicais, numa analogia superficial, podemos dizer que Freud é Lutero e Reich, Thomas Müntzer.
            Inicialmente apoiado por Freud, Reich passa a dirigir seminários e clínicas psicanalíticas. Em 1927, mesmo ano em que publica A função do orgasmo, Reich estreita contato com o Partido Comunista Austríaco e abre clínicas gratuitas de aconselhamento psicológico e sexual, com enorme afluxo de operários e estudantes. Por suas posições enfáticas acerca do tema da preponderância sexual e por questionar as disputas dentro do movimento psicanalítico, terminou expulso deste e do movimento comunista (já hegemonizado pelo stalinismo). Sua análise das mudanças sociais dentro da URSS, bem como dos retrocessos a partir do período stalinista, são particularmente notáveis, associando estas restaurações ao abandono das pautas sexuais (luta contra a família patriarcal, a legalização do aborto, igualdade jurídica entre os sexos, etc.) e reconhecendo graves desvios burocráticos. Por sua atuação política e científica terminou perseguido pelo nazismo, que o obrigou a exilar-se. Em 1939 vai definitivamente para os EUA, onde leciona para classes lotadas na New School for Social Research. Em razão das suas pesquisas controversas acerca de “estranhas caixas”, chamadas de “acumuladores de orgônio”, é outra vez perseguido, só que agora pelo governo estadunidense, que incrimina seus livros e os proíbe em território norte-americano. Ainda que estas pesquisas possam ser questionáveis, proibir livros tão importantes e profundos como os de Reich soa, no mínimo, como uma atitude política medieval da tão festejada “democracia” norte americana, que necessitava tanto quanto a alemã ou a brasileira conhecer e estudar melhor os posicionamentos de Reich, que, diga-se de passagem, morreu sob circunstâncias suspeitas.
            O mais provável é que Reich, assim como Demócrito de Abdera, apenas tenha lançado uma ideia revolucionária: tal como o filósofo pré-socrático pensou o átomo (numa noção bem diferente do que viria a ser o “átomo moderno”), o ex-discípulo de Freud apenas pensou o orgônio. Cabe agora às sucessivas gerações de filósofos, cientistas e, sobretudo, de revolucionários, terem que se debruçar sobre o seu pensamento para depurá-lo e esculpi-lo.
Apesar de sofrer do mal da filosofia alemã, de querer produzir um ambicioso sistema global que abarcasse todas as coisas possíveis e imagináveis (ainda que isto falte profundamente à intelectualidade brasileira), o pensamento de Reich nos fornece uma poderosa compreensão (e portanto, uma poderosa arma) sobre o fenômeno nazi-fascista, que corretamente nos indicou ser (tal como alguns marxistas) um fenômeno internacional. E, indo mais além dos marxistas, penetrou nos meandros da subjetividade individual, fazendo uma fecunda síntese do pensamento marxista e freudiano no seu livro Psicologia de massas do fascismo. Sua teoria padece um pouco do messianismo dos referidos sistemas filosóficos alemães, dando preponderância aos problemas sexuais sobre os sociais (ainda que pese o fato de que o debate sexual é absurdamente escondido sob mil véus de hipocrisia e evitado com todas as forças). Seja como for, uma síntese entre o marxismo e o freudianismo iria resultar em uma filosofia superior em comparação as anteriores, ainda que toda a novidade cause dúvidas e medo.
No contexto mundial e brasileiro atual, através desta síntese, a obra nos dá a chave para compreendermos muitos dos fenômenos aparentemente obscuros e, talvez, algumas respostas ao que parece não ter explicação. Abaixo seguem alguns trechos comentados do seu livro A função do orgasmo (1927), onde ele dedica um capítulo especial ao irracionalismo fascista:

Todas as discussões sobre a questão de saber se o homem é bom ou mal, se é um ser social ou anti-social, são passatempos filosóficos. Se o homem é um ser anti-social ou uma massa de protoplasma reagindo de um modo peculiar e irracional depende de que suas necessidades biológicas básicas estejam em harmonia ou em desacordo com as instituições que ele criou para si. (...) Uma de suas características mais essenciais veio a ser essa de sentir-se felicíssimo em atirar sua responsabilidade para cima de algum führer ou político, pois não se compreende mais e, na verdade, teme a si mesmo e às suas instituições. Está desamparado, inapto para a liberdade e suspira pela autoridade porque não pode reagir espontaneamente; está encouraçado e quer que lhe seja dito o que deve fazer, pois é cheio de contradições e não pode confiar em si mesmo.
A culta burguesia europeia do século XIX e do início do século XX adotou as formas de comportamento moralistas e compulsivas do feudalismo e transformou-as no ideal da conduta humana.

Desnecessário dizer que as formas de comportamento da Idade Média correspondem ao controle total e absoluto da Igreja sobre a conduta moral, social e política dos seres-humanos.
Seguindo adiante e buscando as raízes da ascensão de Hitler ao poder, Reich conclui:

(...) Hitler era meramente a expressão da contradição trágica entre o anseio pela liberdade e o medo real frente a ela.
O fascismo alemão deixou bem claro que não operava com o pensamento e a sabedoria do povo, mas com suas reações emocionais infantis. Nem seu programa político nem qualquer das suas muitas e confusas promessas econômicas levou o fascismo ao poder e o garantiu aí no período seguinte: mas sim, em grande parte, foi o apelo a um sentimento místico e obscuro, a um desejo vago e nebuloso mas extraordinário e poderoso. Aqueles que não entenderem isso não entenderam o fascismo, que é um fenômeno internacional.

Aí está um dos pontos altos das formulações teóricas de Reich, que precisamente reconhece o nazi-fascismo como um fenômeno internacional, muito diferente da burguesia dos “países democráticos”, que tenta associá-lo estritamente à Itália e à Alemanha para esconder o seu flerte permanente com ele. Indo mais além, Reich demonstrará que a base do nazi-fascismo é a classe média (isto é, os setores sociais mais reprimidos moral e sexualmente), cuja raiz se espalha para outros setores sociais. Mais adiante ele afirmará que o fascismo “não é um problema alemão, mas um problema internacional, pois o desejo de amor e o medo à genitalidade são fatos internacionais”.
Tal como Bolsonaro faz no Brasil,

Hitler assegurou [aos alemães] liquidar a discussão democrática de opiniões. Milhões de pessoas congregaram-se em torno dele. Estavam cansadas dessas discussões porque elas haviam sempre ignorado suas necessidades pessoais diárias, isto é, aquilo que era subjetivamente importante. Não queria discussões a respeito de “orçamento” ou dos “altos interesses partidários”. O que queriam era um conhecimento verdadeiro e concreto a respeito da vida. Não podendo consegui-lo atiraram-se às mãos de um guia autoritário e à ilusória proteção que se lhes prometia.

Aqui há um indício dessa superestimação do poder sexual, quando Reich afirma que o que queriam era “um conhecimento verdadeiro e concreto a respeito da vida”; isto é, sobre sua real satisfação sexual e ao livre florescimento da sua personalidade, totalmente subjugada pelos pesados grilhões políticos, sociais e morais. Contudo, por mais importante que isto seja, o nazi-fascismo foi hábil em enganar as massas de que resolveria o “caos social” gerado pelas crises econômicas do capitalismo. É necessário, para além da fundamental educação sexual das massas, combatendo e superando os preconceitos, moralismos e submissões, demonstrar concretamente um programa econômico e político alternativo; isto é, concretizar o programa socialista (fato que a atual esquerda deixa a desejar e, em parte, o próprio Reich).

Hitler assegurou-lhes liquidar a liberdade individual e estabelecer a “liberdade nacional”. Milhões de pessoas trocaram entusiasticamente a liberdade individual por uma liberdade ilusória, isto é, uma liberdade através da identificação com uma ideia. Esta liberdade ilusória livrava-as de toda a responsabilidade individual. Suspiravam por uma “liberdade” que o führer iria conquistar e garantir para elas: a liberdade de gritar; a liberdade de fugir da verdade para as mentiras de um princípio político; a liberdade de serem sádicos; a liberdade de jactar-se – a despeito da própria nulidade – de serem membros de uma “raça superior”; a liberdade de sacrificar-se por alvos imperialistas, em vez de sacrificar-se pela luta concreta por uma vida melhor, etc.
O fato de que milhões de pessoas foram sempre ensinadas a reconhecer uma autoridade tradicional, em vez de uma autoridade baseada no conhecimento dos fatos, constituiu a base sobre a qual a exigência fascista de obediência pôde agir. (...)
O que era novo no movimento fascista das massas era o fato de que a extrema reação política conseguiu usar os profundos desejos de liberdade das multidões.  Um anseio intenso de liberdade por parte das massas mais o medo à responsabilidade que a liberdade acarreta produzem a mentalidade fascista, quer esse desejo e esse medo se encontrem em um fascista ou em um democrata. Novo no fascismo era que as massas populares asseguraram e completaram sua própria submissão. A necessidade de uma autoridade provou que era mais forte que a vontade de ser livre.
(...) O desapontamento por parte de milhões de pessoas quanto às organizações liberais [e as instituições da democracia burguesa], mais a crise econômica, mais um irresistível desejo de liberdade produzem a mentalidade fascista, isto é, o desejo de entregar-se a uma figura autoritária de pai. (...) Agora Hitler chegava e prometia tornar a ideia de procriação, e não a felicidade no amor, o princípio básico do seu programa cultural. Educados para envergonhar-se de chamar as coisas pelo seu nome, obrigados por todas as facetas do sistema social a dizer “procriação eugênica superior” quando tinham em mente “felicidade no amor”, as massas congregaram-se em torno de Hitler, pois ele juntara ao velho conceito uma emoção forte, embora irracional. Conceitos reacionários mais excitações revolucionários produzem sentimentos fascistas. (...) Brutalidade sádica mais misticismo produzem a mentalidade fascista.
(...) A família alemã autoritária típica, particularmente no campo e nas cidades pequenas, incubava a mentalidade fascista aos milhões. Essas famílias moldavam a criança de acordo com o modelo do dever compulsivo, da renúncia, da obediência absoluta, que Hitler sabia como explorar tão brilhantemente. (...) Salientando a identidade emocional entre “família”, “nação” e “Estado”, o fascismo tornou possível uma transição suave da estrutura da família para a estrutura do Estado fascista. É verdade que nem um só problema da família, nem as necessidades reais da nação eram resolvidos por essa transição: mas esta permitia a milhões de pessoas transferir seus laços da família compulsiva para a “família” maior, a “nação”. O fundamento estrutura dessa transferência havia sido bem preparado durante milhares de anos. A “mãe Alemanha” e o “deus pai Hitler” tornaram-se símbolos de emoções infantis profundamente arraigadas.
            (...) A juventude congregava-se aos milhares em torno de Hitler. Ele não lhes impunha qualquer responsabilidade; apenas construiu sobre suas estruturas, que haviam sido previamente moldadas pelas famílias autoritárias. Hitler estava vitorioso no movimento da juventude porque a sociedade democrática não havia feito tudo o que fora possível para educar o jovem no sentido de levar uma vida responsável e livre.
            No lugar da atividade espontânea, Hitler prometeu o princípio da disciplina compulsiva e do trabalho obrigatório. Vários milhões de trabalhadores e empregados alemães votaram em Hitler. As instituições democráticas não apenas não haviam conseguido enfrentar o desemprego mas, quando ele sobreveio, se haviam mostrado claramente temerosas de ensinar as multidões de trabalhadores a assumir a responsabilidade pela realização do seu trabalho. Educados para não entender nada a respeito do processo de trabalho (impedidos, na verdade, de entendê-lo), acostumados a ser excluídos do controle da produção, e a receber apenas seu salário, esses milhões de trabalhadores e empregados podiam aceitar facilmente o velho princípio, de forma intensificada. Podiam agora identificar-se com o “Estado” e a “nação”, que eram “grandes e fortes”. Hitler declarou abertamente em seus escritos e discursos que, porque as massas populares eram infantis e femininas, apenas repetiam o que era incutido nelas. Milhões de pessoas o aclamaram, pois ali estava um homem que queria protegê-las.
            (...) E aconteceu que as desapontadas massas populares congregaram-se em torno de Hitler, que – embora misticamente – recorria às suas forças vitais. A pregação a respeito da liberdade conduz ao fascismo a menos que se faça um esforço decidido e consistente para inculcar nas multidões uma vontade firme de assumir a responsabilidade da vida cotidiana; e a menos que haja uma luta igualmente decidida e consistente para estabelecer as pré-condições sociais dessa responsabilidade.

            Aí está uma síntese das razões que levaram Hitler e o nazi-fascismo ao poder. Explicam também a ascensão da direita no mundo e, em particular, no Brasil. Não casualmente, todas elas reforçam a noção de família-nação-Estado. Reich ainda diz, no mesmo texto, que “desde os tempos antigos a ‘preservação da família’ foi, na Europa, um abstrato chavão, por trás do qual se escondiam os pensamentos e ações mais reacionários”. A direita brasileira tem se esforçado, com apoio ora aberto, ora dissimulado, da grande mídia, das igrejas evangélicas e outros movimentos religiosos reacionários, a preparar as bases da ascensão de um regime militar fascista. Sem nenhuma vergonha ou pudor levantam tais bandeiras. Isto tudo só é possível graças aos sentimentos sexuais e morais mal resolvidos em milhões de trabalhadores e membros da classe média, tal como já alertava Reich. Estes sentimentos mal resolvidos foram a base da ascensão do nazi-fascismo europeu e continuam sendo hoje em todos os cantos do mundo. Enquanto não for resolvido, será sempre um terreno fértil pronto a ser semeado pelos fascistas.
            Como conclusão, Reich tenta apontar as razões desta fácil manipulação das massas por parte do nazi-fascismo:

            (...) Esse anseio cósmico ou oceânico que as pessoas sentem não é senão a expressão de seu desejo orgástico pela vida. Hitler fez um apelo a este desejo, e foi por esta razão que as multidões o seguiram, e não aos secos racionalistas, que tentavam sufocar esses vagos sentimentos de vida com estatísticas econômicas.

            Esta necessária alfinetada de Reich à esquerda europeia da época, que parece ainda não ter superado os mesmos problemas daquele período, não nos dá maiores sugestões “do que deve ser feito”, tal como uma resposta que deu a um jovem fascista da Escandinávia, que o procurou pessoalmente para debater sobre a sua crise de consciência em relação ao fascismo. Fica evidente que caberia à vanguarda dos trabalhadores buscar o contato com este sentimento permeado pelo anseio cósmico ou oceânico como expressão do seu desejo orgástico pela vida, embora não nos dê maiores esclarecimentos de como fazer isso. Seria possível dialogar com este anseio cósmico ou oceânico, tal como fez e faz a direita nazi-fascista, sem recorrer ao charlatanismo e ao messianismo? Esta é precisamente a pergunta que a esquerda e os seguidores de Reich precisam responder para tentarmos superar esta peste emocional, assassina e predatória, que é o nazi-fascismo.



NOTA_______________________________________________
Todas as citações deste texto foram extraídas do livro de W. Reich "A função do orgasmo".

segunda-feira, 26 de março de 2018

Barbárie em pele de civilização

A "onda conservadora" tem o seu apogeu no governo Trump: um velhaco, tirano, egocêntrico e sádico; um bárbaro travestido de "civilização" para lutar contra qualquer humanidade que impeça a sua acumulação pessoal de riqueza e dos seus comparsas. Sua palavra de ordem é: exploração total e irrestrita.
As suas atuais medidas protecionistas desesperadas contra Brasil e China demonstram para qualquer pessoa que tenha o mínimo de honestidade que o livre mercado é uma ilusão, uma mentira, uma distorção de um "livre protecionismo", "livre intervencionismo", "livre decisão de preços pelos trustes e monopólios" dos governos que mandam no mundo.

Mil Planos Marshalls

Durante a aplicação do Plano Marshall pelos EUA, cerca de 15 milhões de dólares foram "desembolsados" (na verdade emprestados) para "reconstruir" a Europa Ocidental no pós-segunda guerra (na verdade o objetivo era se contrapor ao leste europeu, isolado do mercado e sob influência da URSS).
Entre as décadas de 1980 e 1990 os países da América Latina pagaram, através de suas dívidas públicas com o sistema financeiro internacional, cerca de 238 milhões de dólares aos países "ricos".
Conclusão: além dos países "desenvolvidos" promoverem a guerra e a desestabilização política nos países "subdesenvolvidos" (vide caso da Síria, Líbia, Egito, Venezuela, Colômbia, guerra do tráfico de drogas, etc.), este vínculo escravagista do sistema financeiro leva à "reconstrução" permanente dos países ricos, num Plano Marshall mais do que quadruplicado, e à penúria inesgotável nos países "atrasados".

domingo, 25 de março de 2018

A dialética da história

A Revolução Francesa de 1789, com todas as suas esperanças, medos e tarefas a cumprir engendrou primeiro o governo dos girondinos, segundo o governo de Napoleão e, terceiro, o Congresso de Viena e a Santa Aliança.

A Santa Aliança deu tudo de si para puxar a roda da história para trás: restaurou monarquias, propriedades, condecorações; torturou, mentiu, assassinou. Fez troça da literatura iluminista. Disse que não valia um vintém.

Cá está a literatura iluminista conosco, em pleno século 21, fazendo troça do passado medieval e dos monarquistas. E ainda que alguns hoje digam defender o capital contra o "comunismo", com tanto ódio no coração que nos causa dor e estranheza, estão, na verdade, a levantar a bandeira do medievo contra o iluminismo.

Depois da Santa Aliança, quando tudo parecia perdido, nasceu a Revolução de 1830. Ela não foi suficiente, pois tentaram puxar a roda da história pra trás novamente, e aí sobreveio 1848 e 1871. A Paris dos Operários jamais foi perdoada e a violência foi descomunal: o cristianismo dos cidadãos de bem demostrou, como sempre, a fúria de satã escondido no mais recôndito da sua alma.

Novamente ódio, mentira, assassinatos. O futuro seria da civilização e da liberdade: vamos varrer a sujeira para debaixo do tapete e não se fala mais nisso! Explodiu o prenúncio da civilização: a 1ª e a 2ª Guerra Mundiais, seguidas por mais de 50 milhões de mortos!

Contra a "civilização", uma nova marretada abateu-se: desta vez vinda da Rússia! Todo o poder aos sovietes, pão, paz e terra; por um direito ao futuro! Não apenas uma lei na física, mas na história também: toda ação gera uma reação. A reação trouxe o nazi-fascismo, o medo, o stalinismo.

Tudo está perdido. Nada se pode esperar do ser-humano. A gota no epicentro da 2ª Guerra em ondas concêntricas trouxe ainda China e Cuba para o olho do furacão, espremidas pela Coréia em 1953, Baía dos Porcos em 1961 e Vietnã em 1965. Faça amor, não faça guerra, bradaram contra a reação descomunal de uma potência, repleta de democracia, ganância e armas químicas contra um país de vilarejos agrários.

Façamos um, dois, três, mil Vietnãs contra aqueles que pregam cristianismo, mas comemoram a morte de mulheres e homens porque são "comunistas"; que pregam democracia, mas disseminam ódio, clamam por guerra e intervenção militar; que falam contra a "ditadura comunista", mas idolatram a ditadura (nem tão) disfarçada do mercado, do desemprego e da exploração sem limites embaçado em um discurso de "modernização".

Eles pagam os melhores jornalistas pra distorcer, mentir, ludibriar e colocar medo nos nossos corações. Se esforçam, se superam, se desesperam da forma mais histriônica e profética para puxar a roda da história para trás. Muitas das melhores pessoas que conheço se desanimam, ficam tristes e desesperançadas.

Eu lembro de 1815, do Congresso de Viena, da Santa Aliança e da troça contra os iluministas. Sorrio confiante no futuro! Nesta dialética da história, muitos lamentavelmente pagarão com a vida a sanha de poder da classe dominante, mas, como dizia Rosa, se não tivermos desaprendido a aprender, o futuro nos pertence...

domingo, 18 de março de 2018

Sobre a hipocrisia: um estudo da classe média brasileira


hipocrisia
1.
característica do que é hipócrita; falsidade, dissimulação.
2.
ato ou efeito de fingir, de dissimular os verdadeiros sentimentos, intenções; fingimento, falsidade.


Egoísmo não significa viver como se deseja, mas sim pedir aos outros
 que vivam como a gente deseja. E altruísmo significa
deixar a vida de outrem em paz, não interferir nela.
O egoísta sempre visa criar em torno de si uniformidade absoluta.
(Oscar Wilde)

Prólogo

A classe média brasileira é um excelente protótipo para se explicar o significado da palavra hipocrisia.
Em 2016, ao contrário de todas as evidências e sem nenhum tipo de escrúpulos, apoiou a deposição de um governo em nome do “combate à corrupção” e a instauração de um novo que apresentou novos e piores escândalos de corrupção, sem fazer absolutamente nada. Que ela queira apoiar qualquer tipo de quadrilha política em nome dos seus próprios interesses, que o faça, mas que não minta que é em nome do “combate à corrupção”.
No início de 2018 apoiou, pela enésima vez, uma nova falácia política. Em nome da suposta ordem social no Rio de Janeiro sustentou uma medida de intervenção militar, como tantas outras, que sem sombra de dúvidas, não resolverá nenhum problema real da criminalidade e da violência social. Servirá, novamente, para toda a sociedade, como os “testas de ferro” dos interesses maiores da decrépita elite nacional e do capital financeiro internacional.
Tudo isso é uma pequena peça do grande quebra cabeça que este texto pretende (des)montar.

I
            A hipocrisia social é parte da peste emocional que assola a humanidade e corrói a possibilidade de construção de uma política justa para tentarmos mudar o mundo. É um escudo a serviço dos interesses da classe dominante, que tem o total interesse em manter o Brasil na periferia do mercado mundial, restrito à produção de matérias-primas (comodities), e os trabalhadores reféns da exploração internacional. A burguesia brasileira não é capaz de sustentar um caminho econômico independente para o país, reproduzindo as práticas e o pensamento econômico neoliberal dos centros políticos e financeiros imperialistas. A classe média brasileira foi criada à sombra desta burguesia entreguista. Reproduz, no geral, o que há de pior no pensamento político e econômico da burguesia imperialista dos países centrais. Tudo o que vem por intermédio destas escolas econômicas é visto como positivo e avançado; tudo o que se opõe a estes interesses é visto como atrasado, “socialista” e, portanto, merece ser combatido.
            Mário, Ricardo e Juliano são três representantes desta classe média brasileira que analisaremos a seguir. Brancos caucasianos, cada um tem, respectivamente, 56, 47 e 39 anos. Mário e Ricardo moram em Porto Alegre; Juliano no Rio de Janeiro. O sobrenome deste trio (omitido aqui) denota a descendência de diferentes regiões da Europa. Todos os três moram em bairros de alto nível em suas respectivas cidades, com água encanada, luz elétrica e um bom grau de civilidade e urbanização. Vivem, evidentemente, com medo da violência urbana e da insegurança subsequente, seja ela real ou imaginária; por isso seus condomínios residenciais possuem cercas elétricas, câmeras e porteiros. Mário é um representante comercial de uma grande multinacional norte-americana; Ricardo é profissional liberal que trabalha para empresas de comunicação; e Juliano é engenheiro de produção. Seus círculos de amizade reúnem pessoas do mesmo nível econômico e social, tais como advogados, profissionais liberais, médicos, professores universitários, donos de micro e grandes empresas. Mário, Ricardo e Juliano conhecem muitos países da Europa e dois, destes três, já visitaram diversas regiões dos EUA. O círculo de amigos do trio também é bastante viajado pelos países centrais.
            Em razão de suas crises econômicas e sociais, a corrupção, mas, sobretudo, em relação à insegurança e o medo da violência social resultante da miséria da maioria da população do país, muitos deles falam frequentemente em sair do Brasil, embora sejam apaixonados pelo seu clima, suas praias, círculos de amizade, bem como outros laços culturais e sociais que lhes são caros. Grande parte destas queixas e intenções de mudança para o exterior nunca se concretizam por várias razões, tornando-se, por isso mesmo, uma forma de reclamação sem fim, passando-se esta mentalidade, muitas vezes, de pai para filho. Em nenhum caso se coloca a necessidade de se modificar as estruturas políticas e econômicas do país. Isto é quase um tabu: para eles o Brasil é incapaz de mudar!
Esta afirmação – muito segura de si – representa, como veremos a seguir, o medo de que o país mude, pois desta mudança adviria uma possível modificação de sua posição social. Os três tornam-se, portanto, reféns de uma estrutura que não pode gerar desenvolvimento independente para o país, nem a resolução das mazelas sociais, das quais a violência urbana e a corrupção política são parte integrante e indissociável.

II
            O resultado da política econômica neoliberal em um capitalismo periférico, paternalista e cheio de deficiências políticas e dependências industriais, é a manutenção de uma estrutura agroexportadora, baseada no latifúndio, e dos privilégios de uma elite, tipicamente colonial, com mentalidade e ações entreguistas de recursos naturais e de trabalho humano alheio, totalmente subordinado ao sistema financeiro internacional, que engessa o país e não permite nenhum tipo de desenvolvimento autônomo. A desigualdade social é um reflexo destas discrepâncias. A população brasileira poderia ter outra sorte, caso os meios de produção de riqueza fossem socializados, mas Mário, Ricardo e Juliano são ferrenhos adversários do socialismo. Nunca o estudaram a fundo, tal como uma ciência exige; apenas reproduzem preconceitos passados, incrementados pela grande mídia e pela nova intelectualidade a soldo do grande capital.
            Para viver em uma sociedade de classes, cheia de ganâncias, violências e inseguranças, a hipocrisia e o medo se alimentam reciprocamente. Não podem pensar ou sequer falar em outra forma de sociedade sem chocar-se com seus privilégios e ameaçá-los. Reproduzem e alimentam a injusta segregação social e moral que o capitalismo cria continuamente. Para isso é necessário uma duplicidade hipócrita no seu modo de conceber o mundo.

III
            O pensamento político e econômico desta classe média é metafísico. Isto é, quando não se trata de cinismo e de má fé plenamente conscientes, ele segue uma lógica mecanicista e cartesiana. Isola apenas um elemento da realidade e lhe dá uma força sobrenatural para reforçar os seus argumentos. Não possui uma visão dialética, que busca uma interpretação da totalidade e inter-relação de todos os fenômenos. Com o seu método oportunista de discussão se pode provar qualquer absurdo. Assim, nunca se chega à essência da questão, tirando o problema do seu contexto para facilitar a sustentação de qualquer tese ou posição política.
            Há, certamente, elementos emocionais mal resolvidos que dificultam ou impedem que esta classe média tenha capacidade e humildade de interrogar seu estilo de vida e suas certezas. No fundo há uma grande força emocional que cria uma barreira mista, metade consciente, metade inconsciente. O medo de cair num abismo de incertezas – que muitas vezes é apenas uma ameaça que nem chega a se concretizar – faz soar o alarme do medo, que é logo substituído pelo ódio incontido.
            O pensamento desta classe média, então, naturalmente identifica-se com o conservadorismo, visto como a única força capaz de manter e garantir suas certezas e, é claro, o seu padrão de vida. A direita, que no geral não possui escrúpulos, nem preocupações “éticas” (embora afirme ter), se dá a fiança de assumir uma posição política ou ideológica que não é a sua – e que muitas vezes inclusive combate – para poder sustentar uma argumentação de ocasião e vencer aparentemente um embate teórico. Este método escuso, sem princípios, lhe permite “provar” qualquer tese, com o único propósito de confundir todas as premissas e ajudar a manter o status quo.
***
            As resistências que ocorrem na psicanálise ao desvendamento do inconsciente humano, tal como Reich nos demonstrou na obra Análise do Caráter (1933), se repetem no campo político com estes típicos representantes da classe média brasileira. Ignoram premissas fundamentais da argumentação do oponente, levam em consideração ou se apoiam em preconceitos; sua análise política, econômica e social tem como método a metafísica cartesiana, onde tudo é mecanicamente analisado e separado das suas relações reais, concretas, sociais.
            Por exemplo:
            Se falam da dívida pública ignoram os gastos do governo com os juros estratosféricos cobrados pelo sistema financeiro, como se fosse algo necessário e até mesmo justo. Alguns mais descarados, afirmam que os juros nada têm a ver com a dívida pública, podendo, ser considerados de forma separada. Se falam em previdência pública não analisam todos os gastos do governo com outras áreas, que são roubadas da previdência (como a grande parte que é drenada para pagar a própria dívida pública, dentre outros).
            Suas palavras de ordem são privatizações, segregação social, ódio à qualquer ideia de esquerda (mesmo que lhe faça sentido), preconceito com tudo o que rompa com esta ordem social, da qual são beneficiários minoritários e da qual a estabilidade econômica lhe confere estabilidades emocionais. Todos estes elementos criam um muro contra qualquer discussão sadia, descambando, por sua própria iniciativa, para um terrível “diálogo de surdos”.
            Somente um grau agudo de hipocrisia (e ódio sádico incontido e recôndito) como este poderia servir de base para cimentar a institucionalização da barbárie em cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo, onde o luxo da zona sul convive chacinas nas periferias, tudo naturalizado pelo Estado, grande mídia e cotidiano. Como sustentar tudo isso sem distorcer ou ignorar argumentos, sem essa capacidade cínica de estar completamente alheio ao sofrimento dos outros (principalmente o dos trabalhadores e do povo pobre)?
***
            No campo argumentativo Mário, Ricardo e Juliano estão sempre dispostos a relativizar todas as ações bizarras do imperialismo, as mazelas econômicas do sistema e as políticas dos “seus” governos. Condenam dura e inexoravelmente qualquer escorregão na tentativa de se mudar a sociedade e, em particular, censuram as revoluções socialistas. Neste caso, nunca relativizam nada e são extremamente críticos, inclusive com os seus pontos positivos.
Geralmente quando estão debatendo política, mas em assuntos triviais também – tal como um raio em céu sereno – os nossos três representantes da classe média seguidamente fazem troça de um assunto sério, ridicularizando ou caricaturizando posições da esquerda, demonstrando, pela insistência nestas “piadas”, que elas lhe são profundamente incômodas. É a sua “resposta” para algo que de fato eles não podem responder.
***
A classe média não produz uma intelectualidade com algum pensamento original e independente, seja ele artístico, científico ou filosófico. Ao longo da história tem se caracterizado por combater o pensamento independente, vivendo, como dizia Carlos Nelson Coutinho, “um intimismo à sombra do poder”. Para ilustrar, basta dizer que ela tem combatido sem tréguas pensadores do porte de Paulo Freire, Florestan Fernandes e Caio Prado Jr., porque, segundo suas tacanhas concepções, eles são esquerdistas, mesmo que estes autores tenham sido reconhecidos como notáveis a nível internacional. Em contraposição, apoiam tudo o que há de mais podre no campo filosófico e político, como Olavo de Carvalho, Arnaldo Jabor e chegam ao cúmulo de apoiar até mesmo Alexandre Frota!
Sua filosofia é a seguinte: apoio toda a elite decrépita, todos os abutres insaciáveis do povo trabalhador, toda a medida econômica de espoliação internacional que me beneficie e sustente minhas condições materiais, mesmo que a minha diferença de renda com os trabalhadores seja de mais ou menos 10 mil reais e com a burguesia mais de 10 milhões.
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Quem poderia se utilizar da fome dos povos do mundo como argumentos de ocasião?
O leitor consciente responderia: uma pessoa sem caráter! Todos nós concordaríamos, embora nem todos iriam até as últimas consequências nesta conclusão. Baseado no seu tradicional método de desconsiderar as premissas de uma argumentação quando convém, a direita tem levantado (desesperadamente, diga-se de passagem) a acusação de que nos supostos "regimes socialistas" da Venezuela e de Cuba (sempre Cuba! Esta pequena ilhazinha que ainda hoje é uma pedra no sapato) o povo passa fome. Em alguns casos de mentes doentias e mais desesperadas ainda, temos ouvido aquela infindável cantilena que "comunista come criancinha" (e isso, meus amigos, em pleno século 21!).
Ora, todos nós sabemos que o capitalismo é o principal responsável pela fome no mundo. Mais do que isso: produz muita comida, mas engendra, ao mesmo tempo, a fome em escala planetária. É preciso exemplos? Os nossos amigos da direita fariam bem em olhar um pouquinho mais à esquerda no nosso sub continente, para o Peru, o Equador, a Colômbia, o Chile, a Argentina, o Paraguai, a Bolívia, o México, o Haiti! Acaso é o "regime socialista" que gera os esfomeados latino americanos, cuja presença é tão forte e tão marcante que se transformou num aclamado seriado de TV: Chaves (o menino abandonado que só sente fome)?! E o que falar da África, do Oriente Médio, da Ásia? Seriam uma realização?
E o Brasil? Acaso os esfomeados brasileiros, que se contam na casa dos milhões e que ocupam em grandes contingentes as ruas de Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, como um problema crônico, urgente e insolucionável dentro do atual regime "democrático", serão culpa dos "regimes socialistas" também? E os assassinatos de negros e negras nas periferias das grandes cidades do Brasil e dos EUA? Seriam crimes do "comunismo"?
Muitas mentes doentias, que sofrem com uma epidemia degenerativa, chamada de Peste Emocional (cujo ensejo prepara o fascismo), dirão que estão na rua porque querem. Acreditam eles não apenas no papai noel, no coelhinho da páscoa, mas, também, na mão invisível do mercado e na meritocracia! Para estes senhores, corrompidos e, talvez, incuráveis nessa corrupção moral, já tão desumanizados pelas suas "crenças" econômicas, os esfomeados da Venezuela, de Cuba, bem como as vítimas da fome da guerra civil russa (1918-1921), que nada mais foi do que o resultado da invasão de 14 exércitos imperialistas para derrubar e sabotar um governo revolucionário, valem mais do que todos os outros esfomeados dos 5 continentes juntos!
Que papel patético! Utilizando-se de métodos escusos, que vão desde o exagero desesperado até a ridicularização do argumento adversário justamente porque não pode respondê-lo, estes indivíduos estão definitivamente empenhados em puxar a roda da história para trás, defendendo o "cristianismo", a "democracia" e a "civilização". Pelo visto, além de "combater" seletivamente a corrupção, estes "cidadãos do bem" também combatem seletivamente a fome!

IV
            Os três personagens que selecionamos para representar a classe média brasileira são bastante cultos, embora de uma cultura vaga e imprecisa, sendo mais pedante do que sadia (é mais uma cultura pragmática e individualista, que é o reflexo de uma sociedade consumista). A sua posição cultural também é parte de uma herança aristocrática de se achar superior. Sua situação econômica privilegiada e sua cultura não são usadas com a finalidade de servir ao desenvolvimento social de seu próprio país. Mário é ignorante em qualquer tema relacionado à economia, filosofia ou socialismo, mas mesmo assim não se furta em dar opiniões; Ricardo possui um conhecimento sofisticado mais em razão das suas viagens e por falar outra língua do que por estudos ou busca filosófica, pois suas opiniões políticas se baseiam em preconceitos; Juliano é bastante intelectualizado, vegetariano “nas horas livres”, conhecedor de algumas correntes e pautas do pensamento socialista, mas, ainda assim, com um conhecimento bastante limitado pelo seu método preconceituoso de conceber a realidade, isto é, sua capacidade de interpretar a economia e a política são feitas através de um olhar mecânico, cartesiano; numa palavra: metafísico. Os três possuem visões pautadas por preconceitos ao invés de opiniões políticas e filosóficas.
            Em discussões com todos eles se percebe a falta de qualquer respeito às premissas das argumentações, que podem ser ignoradas ou retomadas quando as necessidades de sustentação de suas posições lhes exigem.
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            A sua moral ética e religiosa é totalmente incoerente (e, portanto, hipócrita). Muitos defendem o cristianismo, mas acumulam riquezas, tem inúmeras propriedades, disseminam o ódio, frequentam prostíbulos, traem conjugues e a própria moral que ostentam socialmente. Não se furtam a cobrar um comunista por usar celular ou outras tecnologias disseminadas pelo capitalismo, como se estes tivessem feito algum dia voto de pobreza e seu objetivo não fosse justamente possibilitar o acesso à tecnologia e à riqueza produzida pelos próprios trabalhadores a todos membros da sociedade. Quem deveria se preocupar com o voto de pobreza é justamente esta classe média que prega – de cuecas – a moral cristã. Cobra dos outros o que deveria ser o primeiro a dar o exemplo. Isto é, quer acusar primeiro para não ser acusada.
            Muitos outros acabam abandonando a religião por ser um entrave a sua real consciência política e conduta “ética”; outros ainda levam o pragmatismo para o campo religioso: constroem o sincretismo religioso que melhor convier às suas aspirações econômicas e que melhor justifiquem (positivamente) suas ações e posições. Mas não se sentem nenhum pouco constrangidos ou sequer veem contradição em fazer parte de um movimento reacionário, como o evangélico, católico, direitista, etc. Um exemplo disso pode ser visto nas páginas do facebook como a “Rio Conservador”.
            Mário, Ricardo e Juliano são casados, mas somente Mário e Juliano possuem filhos. Os valores sociais do patriarcado são defendidos por todos, ainda que de uma maneira bastante eclética, lembrando uma espécie de sincretismo moral. Esta moral lhes permite institucionalizar uma hipocrisia: manter o casamento e a infidelidade conjugal, ainda que isso, evidentemente, jamais seja dito abertamente.
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Sua concepção religiosa é como a religiosidade da burguesia: cristãos nas declarações e pretensões, mas hipócritas nas ações. Não praticam o que pregam. Defendem uma moral, mas a família patriarcal é hipócrita, com amantes e prostituição, ao mesmo tempo que frequentam Igrejas e pregam a “palavra de Cristo”. Cristãos, como Bolsonaro e cia, defendem a violência contra os pobres, a pena de morte formal e informal, a segurança como bandeira política prioritária e a concentração de renda através da defesa do neoliberalismo, privatizações e do próprio capitalismo, a partir de um anti-comunismo neurótico e obsessivo. Eles não enxergam nenhuma contradição nisso tudo.
            Mário e Juliano são católicos declarados, frequentadores eventuais de missas dominicais; Ricardo diz não ter religião, embora sempre se cale, respeitosamente, sempre que o assunto é colocado na pauta do grupo de amigos ou da família. Poderia ser considerado agnóstico, embora não tenha total clareza sobre o assunto para poder declarar-se enquanto tal. Mário e Ricardo já frequentaram prostíbulos ou realizaram adultério no casamento; Juliano, em função da criação repressora e da subsequente timidez, não chegou a tal ponto, embora não se furte a utilizar a prostituição virtual: a pornografia.

V
            O caso do impeachment de Dilma Roussef (PT) é bastante emblemático. Todos os nossos 3 personagens foram ativos militantes do “Fora Dilma”. Durante os 2 primeiros governos Lula e o primeiro mandato de Dilma guardaram um silêncio sepulcral que coincidia com o “crescimento econômico” vendido pela grande mídia. O que era este “crescimento econômico”? Uma economia baseada na venda das comodities (matérias-primas) e produtos do agronegócio. Ou seja, o Brasil continuou tal como era quando foi colônia portuguesa: fabricante exclusivo de produtos primários para o mercado internacional. Antes produzia pau-brasil, açúcar, ouro e café; hoje produz minérios, petróleo, carne, suco de laranja e produtos agropecuários. Nenhuma indústria de tecnologia é brasileira (à exceção da EMBRAER, que neste momento está sendo entregue ao capital privado pelo governo Temer). Este mercado, bem como o setor financeiro, automobilístico e eletroeletrônico, estão totalmente subordinados aos ditames da burguesia imperialista. A maior parte da classe média brasileira sequer se aproxima desta consciência (como é o caso de Mário); e o setor que se aproxima dela ou não se importa ou a justifica (como é o caso de Juliano e Ricardo).
            A classe média brasileira sempre esteve com um grito contra os governos petistas engasgados na garganta, mas mantinha-se em silêncio porque não tinha condescendência para isso. Bastou a crise econômica internacional devastar o país, fazendo os preços das comoditties despencar, para que a grande mídia começasse a insuflar estes setores contra os governos petistas. Nada de substancial tinha mudado no país. O PT sempre zelou pela propriedade privada, pelos interesses do sistema financeiro nacional e internacional, pelo lucro das grandes multinacionais e, inclusive, por “reformas” neoliberais. O seu crime, na verdade, foi se aproximar da China e da Rússia, esboçando uma política relativamente independente dos EUA no cenário internacional. Além disso, a burguesia nacional e o imperialismo internacional teriam que disputar o butim estatal das parcas verbas públicas com os programas sociais de governo (Bolsa Família, ProUni, FIES, Minha Casa Minha Vida, etc.). Segundo a lógica da grande mídia e da elite nacional, tudo isso se evitaria desmoralizando os governos petistas e os impedindo de voltar ao poder.
            Bastou o sinal verde dado pela grande mídia para que as ruas se enchessem de “ativistas” e “militantes” fardados com a camiseta da seleção brasileira, que não se horrorizavam em nada com os escandalosos benefícios dados pelos governos petistas aos bancos e grandes empresas, mas que se assustavam seletivamente com a “corrupção” do governo e as suas administrações de estatais (como a Petrobrás – esquecida até as vésperas do golpe). Mesmo ciente de tudo isso, o PT passou a ser caracterizado por estes “ativistas” da classe média como “comunista” e “socialista”. O fantasma do “comunismo” novamente foi requentado para dar unicidade a esta classe média, amante da moral, dos bons costumes e da propriedade privada.
            No velho estilo do samba de Marquinhos Satã “me engana que eu gosto”, esta classe média sabia que os casos de corrupção dos governos de PSDB, Democratas, MDB, PP e outros eram iguais ou piores do que os do PT, mas quiseram se iludir no sentido de que punir o PT seria punir os demais partidos e preparar as bases para combater a corrupção no país. Como se demonstrou, bastou passar o período do impeachment e novos casos de corrupção não apenas pipocaram por todos os lados, como esta classe média manteve-se num silêncio sepulcral, guardando a sua indignação seletiva para uma outra oportunidade em que for convocada pela elite nacional ou pelo imperialismo.
            Durante o movimento “fora Dilma”, organizações ligadas ao PSDB, como o MBL (Movimento Brasil Livre), lançou palavras de ordem abertamente neoliberais de privatização, dando a tônica do que eram os verdadeiros interesses deste movimento e dos setores conscientes dessa classe média “indignada”. Muitos outros deixaram se utilizar como massa de manobra porque no fundo são alimentados pelo mesmo sentimento aristocrático de superioridade da burguesia semicolonial brasileira e, sobretudo, pelo ódio sádico.
            Como se não bastasse esse show de horror, no auge da sua hipocrisia, levantaram bandeiras abstratas como “ética” (questão da corrupção), “cidadania”, “moralidade na vida pública”, mas, para tudo isso, se apoiaram em notórios corruptos (como o caso escandaloso de defender Eduardo Cunha, do MDB como o “meu malvado favorito”). Em compensação, não foram pra rua quando se tornou público os inúmeros escândalos de corrupção do governo Temer (MDB). Que tipo de ética, moral e cidadania poderiam defender então?
Uma parcela da classe média do país possui uma ingenuidade política e econômica autêntica, como o reflexo de sua criação, educação e valores impostos, sobretudo os religiosos e os propagados pela mídia. Porém, outra grande parte desta classe média não é mais ingênua, nem política, nem economicamente. Já foi corrompida pelos métodos imorais e de exploração de mercado. Pegou os piores vícios do “fundamentalismo econômico neoliberal”. Sabe, empírica e inconscientemente, que a política está associada com a economia. Que nestes bastidores, onde operam as “mãos invisíveis do mercado”, a politicagem corre solta. Possuem um profundo medo de que os alicerces de suas condições de vida (isto é, seus privilégios em comparação com os trabalhadores e o povo mais pobre) sejam abalados.
            Votam em políticos sabidamente corruptos e em partidos que abrigam voluntariamente corruptos e depois relativizam ou negam seus atos e suas políticas bizarras. Atribuem ao “povo” não saber votar, mas como não conseguem ir além da democracia burguesa e das suas instituições, votam em qualquer político e partido que subjacentemente defenda seus interesses, o status quo e, consequentemente, as bases de sua hipocrisia.
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            Mário, Ricardo e Juliano são eleitores do PSDB, MDB ou qualquer partido que represente a possibilidade de derrotar o PT ou outro partido que supostamente represente a esquerda. Vestindo suas camisetas da seleção brasileira, Ricardo e Juliano participaram dos atos pelo “Fora Dilma, impeachment já”; Mário não saiu de casa para tanto, mas apoiou entusiasticamente o movimento em conversas pessoais e informais, nas redes sociais e no meio familiar, ou simplesmente compartilhando e divulgando colunas e reportagens da grande mídia sobre o assunto.
            Quando se tratou dos escândalos de corrupção do governo Temer (MDB) nenhum deles teve a coragem de sair para a rua novamente. Mário e Juliano, levemente constrangidos, deram justificativas curtas e evasivas; Ricardo segue defendendo o governo Temer como o melhor e o único possível. Todos eles dissociam a crise internacional do próprio capitalismo e, segundo a campanha induzida da grande mídia, a associam exclusivamente aos governos do PT.

VI
Juliano e Ricardo reivindicam os economistas burgueses clássicos (Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill) sem nunca terem lido uma única página de suas obras e, como sempre, descontextualizando-os totalmente. Ainda assim, pensam que dominam a situação, que possuem opinião política e econômica, e que estão em perfeita sintonia com a realidade econômica do Brasil e do mundo. Falam com desdém sobre "socialismo" e reivindicam liberdade econômica (oferta e procura), liberdade individual, a propriedade privada, o desenvolvimento tecnológico como principal fator para considerar se um sistema econômico “deu certo” ou não.
Mal sabem eles, do alto do seu pedestal de mármore, que o PSDB não defende efetivamente nenhum desses valores, apesar de também reivindicá-los em discursos vazios. Esta classe média (e lamentavelmente muitos trabalhadores) não se importam com a coerência entre discurso e prática. Consomem qualquer discurso que sacie sua argumentação de ocasião. O PSDB, tal como MDB e todos os outros partidos burgueses brasileiros, não possuem a mínima conexão entre aquele discurso e a sua prática concreta, pautada no velho estilo coronelista e paternalista do Brasil. São totalmente reféns dos dogmas neoliberais, decretados de cima para baixo pelo FMI, Banco Mundial, OMC e outros órgãos imperialistas para o Brasil, o que torna seu discurso sobre “liberdade econômica, individual” e “avanço tecnológico” um disparate cínico, que não apenas não gera liberdade ou desenvolvimento de espécie alguma, senão que apenas aprofunda a dependência do país.
A começar pelo fato de que Adam Smith, David Ricardo e John Stuart Mill analisavam e pensavam a realidade histórica e econômica dos seus países, não uma abstração repetida como papagaios semi-coloniais, importada acriticamente de países estrangeiros. Desde que adentramos a época do capitalismo imperialista não existe mais “liberdade de mercado”. Os preços são decididos pelos conselhos acionários das grandes empresas multinacionais numa disputa entre o grande capital financeiro; logo depois são tornadas oficiais através do lobby sobre os políticos, os partidos burgueses e o parlamento. O PSDB não defende nenhuma política que garanta um espaço para o Brasil neste cenário internacional, ou mesmo nacional. Ao contrário: sustenta a incondicional submissão ao mercado financeiro, vendido como a única política possível. Isto significa submeter o país às privatizações, à retirada de direitos dos trabalhadores (destruir a legislação trabalhista em vigor no país, por exemplo), o sucateamento dos serviços públicos (não investimento, destruição de planos de carreira, de condições de trabalho de servidores). Os bancos públicos, por exemplo, dentro desta lógica não poderiam disputar o mercado com os bancos privados, visando uma política de investimento e de desenvolvimento social. Isto contraria os dogmas neoliberais e a ditadura do mercado financeiro.
Sem dúvida podemos comparar os governos do PSDB aos antigos colonos portugueses, que governaram o país sob o comando da metrópole europeia e temendo a deus tanto quanto qualquer acusação de infração ao pacto colonial. Vejamos um singelo exemplo: em todas as eleições, particularmente na de 2016 que elegeu o prefeito playboy do PSDB em Porto Alegre (com o voto de Mário e Ricardo), sempre ouvimos o discurso de “modernização”. Mas o que seria essa modernização? Seria, por exemplo, um ambicioso projeto de construção de um metrô que ligasse todos os principais bairros da capital gaúcha à sua região metropolitana, facilitando a integração e o desenvolvimento econômico, social e cultural (e de quebra ainda poderia se autofinanciar)? Não! O PSDB não fala em metrô em Porto Alegre porque isso significa se chocar contra o cartel das empresas de ônibus, que controlam a circulação de passageiros e tem o poder absolutista de definir tarifas (tudo isso sem licitação); nem Mário e Ricardo exigem do seu prefeito isso ou sequer veem problema. Em contrapartida, o PSDB fala em “modernizar” a justiça, o que pra este partido significa acabar com a justiça do trabalho, que segundo a lógica do prefeito pequeno-burguês é “desperdiçar milhões” por ano.
            A classe média fecha os seus olhos a tudo isso. Idolatra o PSDB, MDB ou qualquer outro partido que fale contra o PT, porque este partido supostamente representaria a “esquerda”, o “comunismo”, em última análise, o “fim dos seus privilégios”. 13 anos de governos petistas não foram suficientes para demonstrar que mais da metade das ações de governo do PT foram, no campo macroeconômico, idênticas as do PSDB. Preferem continuar elegendo “bruxas” para queimarem e “cristos” para crucificarem. Exemplos não faltam. Estão por aí, nas redes sociais. Os dogmas econômicos neoliberais e o sistema capitalista como um todo “não dão certo” para a maioria do povo e, consequentemente, para o desenvolvimento do país. Isso não impede que o PSDB e a classe média os defendam arduamente, justamente porque estes são indicados pelos órgãos neo-colonizadores internacionais. A política neoliberal e a decadência do capitalismo apenas tem aumentado a recessão econômica, a desigualdade social, a pobreza, o desemprego, a violência urbana, o baixo desenvolvimento e desempenho da saúde e educação públicas, a espoliação internacional e, novamente, o não desenvolvimento do país. Até porque para "desenvolvermos" o país, necessitamos romper com uma política e uma estrutura que submetem e impedem este desenvolvimento.

VII
            Outro elemento que denota sua hipocrisia política é que esta classe média enxerga problemas, corrupção, violência, miséria, perseguição política e morte apenas no “comunismo”, mas nunca no capitalismo, que pela sua ótica é um sistema “natural” e “eterno”. Quando reconhece algum problema é sempre condescendente e piedosa, relativizando verdadeiros horrores. Para esta classe média o capitalismo não teria relação alguma com a base da corrupção, da política, da miséria, do paternalismo político, da perseguição política e morte nas periferias das grandes cidades no Brasil de hoje. Ao contrário: jogam tudo para o campo individualista. Nesse sentido, a sua obsessão pela “meritocracia” ajuda a embaçar a visão e facilita suas desculpas políticas.
            Mário só reconhece os “fuzilamentos de Cuba” (desconsiderando todo o contexto histórico e, também, os erros fruto da degeneração ocasionada pela burocratização) e as guerras, repressões e torturas da época stalinista da URSS; Ricardo fala raivosamente contra a Coréia do Norte, sem nem saber ao certo o que se passa lá, além do óbvio de autoritarismo e repressão de um governo militar, com imagens e análises políticas pejorativas veiculadas quase que diariamente pela grande mídia; Juliano ataca em todas as frentes, inclusive classificando a Venezuela como “socialista” (mesmo que esta não tenha avançado contra a propriedade privada dos meios de produção) e lembrando, é claro, que somente o governo “socialista” venezuelano reprime manifestações e ataca os trabalhadores.
            Esquecem os casos vergonhosos de corrupção patrocinados pelos partidos dos quais foram eleitores, não enxergam os crimes das guerras imperialistas (incluso a atual guerra na Síria e anteriormente na Líbia), nem as mortes de negros nas periferias norte-americanas, bem como o aumento assustador da miséria nas grandes cidades dos EUA e dos países europeus; não reconhecem também as torturas do regime militar brasileiro contra manifestantes de esquerda, porque certamente as apoiam em seu íntimo; as manifestações reprimidas no Brasil e na Venezuela (no caso a repressão e a morte de sindicalistas e apoiadores do chavismo pela oposição de direita ao governo Maduro), a fome do povo, as mortes de manifestantes, destacando-se os atrozes assassinatos de camponeses que lutam pela reforma agrária no norte e nordeste do Brasil. Tudo isso é cinicamente esquecido por eles. Não reconhecem a ditadura dos locais de trabalho, expressa pelo assédio moral diário e a chantagem permanente do desemprego. O seu “pragmatismo” os impede de vislumbrar o que é inconveniente no sentido de manter a sua condição social e a chamar de “utopia” tudo aquilo que signifique uma ruptura com a sociedade que sustenta o seu modo de vida.
            Esta classe média é como o paciente resistente em psicanálise, que se nega a olhar para o seu próprio “espelho profundo”. Para ela todo o efeito colateral da sociedade capitalista – a exploração, o desemprego, o aumento da prostituição, do subemprego, da miséria e da consequente violência urbana – nada teria a ver com a forma de funcionamento e os valores do sistema; tudo seria obra da “vagabundagem individual”, do mero acaso ou da vontade divina.
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Ricardo sustenta que o socialismo é uma doutrina inventada por aproveitadores preguiçosos que não querem trabalhar, por isso pretendem dividir a riqueza para que trabalhem o mínimo e ganhem o máximo possível. Não reconhece isso nos capitalistas e no capitalismo, pois para ele este é o sistema mais justo que existe. Nada, nem ninguém, o fará pensar de maneira diferente, mesmo que leia todo um compêndio sociológico sobre o tema (o que, de fato, jamais ocorrerá). Está definitivamente ganho para esta interpretação radicalmente equivocada e, provavelmente, a levará para o túmulo.
Juliano afirma que a esquerda está presa às questões políticas da década de 1960. Em parte tem razão, embora nem de longe sua intenção seja realmente corrigir estes problemas. Ele também não especifica bem quais organizações, partidos e programas estariam presos ao passado. Sua crítica soa cínica, justamente por apresentar um problema que não pretende buscar solução. Apenas destila preconceito, cuja razão principal é substituir o programa “fora de moda” por um programa liberal burguês. Por todas as suas conclusões e posições políticas, “se atualizar” significa seguir a tática de adaptação do PT à estrutura política do sistema; sem, é claro, admitir isso. Classifica, naturalmente, o socialismo com o “utópico” e “irrealizável”, também se sustentando ora nas experiências stalinistas, ora no discurso niilista pós-moderno de que o ser humano é o problema central, pois “nunca estará satisfeito em seu egoísmo” (também não é capaz de reconhecer publicamente o seu próprio egoísmo e o de seus pares). Juliano repetiu inúmeras vezes, inclusive nas redes sociais, que queria que o Brasil fosse uma Finlândia, Suécia, Noruega ou Inglaterra; em suma, gostaria que o Brasil fosse um “país desenvolvido”. Para isso, ignora toda a constituição desses países, suas relações e construções históricas (e, principalmente, esquece a formação histórica do Brasil e do seu papel periférico no capitalismo mundial). Ignora ou desconhece o papel que aqueles países possuem como imperialismos periféricos no mercado mundial. Situação bem distinta do Brasil, que se constitui historicamente como uma nação dependente e que num mundo dominado pelo imperialismo financeiro não pode mais se desenvolver sem romper com os grilhões do capital.
Mário possui uma indescritível “confusão conveniente”. Seus argumentos não têm um grama de coerência, não respeitando nem suas próprias premissas. Para ele tudo o que “cheire” a socialismo é ruim e ineficaz, sem sustentar nada disso (apenas fazendo menções genéricas à “ditaduras”, o que na verdade apenas escutou de outros). Afirma, inclusive, chegando ao auge do seu delírio hipócrita, que a “direita nunca esteve no poder”. Pessoas como FHC, Aécio Neves, José Serra e, até mesmo, Michel Temer, seriam de “esquerda” (segundo a sua lógica, senão declaradamente, pelo menos disfarçadamente). Ou seja, pretende vincular tudo o que há de ruim à esquerda (e, indiretamente, ao socialismo) e tudo o que há de bom à direita (e ao capitalismo).
É consenso entre todos eles que o socialismo “não dá certo”, ignorando, evidentemente, que se tratou de uma primeira experiência em um país que foi isolado e combatido pela burguesia imperialista mundial. O capitalismo necessitou de, pelo menos, 4 séculos para criar as condições do seu funcionamento político, econômico e social para, então, lançar a humanidade num inferno de guerras, miséria, desemprego, prostituição onde a maioria de seres humanos está submersa; e ilhas de prosperidade e luxo para desfrute de alguns poucos. No meio disso tudo está a classe média, que desfruta de benesses materiais, mas não vai sequer à esquina a pé por medo da violência urbana gerada pelo sistema que “deu certo”. Isto, segundo estes geniais representantes da classe média, é “dar certo”. Algumas vezes eles conseguem ter a compreensão lúcida de que o capitalismo é um sistema voltado para “dar certo para alguns”; mas isso parece não incomodá-los, nem mesmo por aqueles que se reivindicam cristãos (e que sabem, ou deveriam, que é mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do que um rico entrar nos reinos dos céus).
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O programa político e econômico desta classe média seria perfeitamente contemplado pelo programa do PT, que defende que “a saída reformadora passa evidentemente por setores da burguesia brasileira, ligados às necessidades internas de um mercado brasileiro”[i]. A partir dessas reformas em aliança com a burguesia, possibilitando um “crescimento econômico” dentro do capitalismo periférico brasileiro, o PT propunha mudanças graduais no sentido de ir melhorando paulatinamente as condições de vida do povo. Sabemos que esse programa é inexequível pela experiência com os governos Lula e Dilma, em que o PT foi praticamente expulso do governo assim que a conjuntura mudou e a burguesia exigiu a sua sentença. Ao invés desse programa, essa classe média, que se entende como expert em macroeconomia, defende exatamente a especulação financeira improdutiva, que condena o Brasil à periferia do sistema e à completa dependência internacional.
            Por toda a lógica de suas posições políticas, a classe média brasileira deveria apoiar o PT. Este partido quer (utopicamente) “humanizar o capitalismo”, ainda que nem sempre diga isso abertamente. Muitos teóricos desse partido já afirmaram querer taxar as grandes fortunas, distribuir renda (e não meios de produção), fazer reforma política e reforma agrária sem romper com a propriedade privada, o capitalismo e a sua estrutura política hegemônica no Brasil. Existe aí todo um programa de administração do capitalismo, não colocado em prática porque evidentemente se choca com os interesses da elite mais retrógrada e decrépita que possui incontáveis privilégios econômicos e políticos e que depende do funcionamento deste capitalismo predatório e submisso à exploração do sistema financeiro internacional. Este programa não rompe com o capitalismo sob nenhum ponto de vista, preservando, portanto, as condições materiais desta classe média. Ao contrário, busca preservar o sistema e tenta conciliar interesses opostos, mantendo a supremacia da burguesia neocolonial e da velha elite parasitária, em total submissão ao imperialismo.
            Mas, ao contrário de apoiar o PT, a maior parte desta classe média o odeia. Usa-o como espantalho político e a suposta encarnação de tudo o que há de ruim no país (é claro, sem nunca se olhar no espelho). Sustenta, de forma ignorante e intransigente, que este partido representa o “socialismo”. Trata-se, então, de um incontido ódio de classe, que se apega a dogmas e é incapaz de olhar a realidade concreta. Ao mesmo tempo em que serve de apoio político à elite brasileira mais atrasada (expressa pelo PSDB, MDB, Dem, PP, etc.), ela mantém um objeto externo para descarregar a energia retida de todo o seu sadismo mal resolvido.
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            Os estratos mais abastados da classe média – mas também setores mais empobrecidos e mesmo muitos trabalhadores – são visceralmente antipetistas. Mário, Juliano e Ricardo, seguindo as orientações midiáticas, atribuem todos os problemas sociais do Brasil ao PT. Na verdade, um olhar mais atento e crítico veria que os problemas sociais do país começaram há muito tempo atrás (os três sabem perfeitamente disso); e o PT, ao invés de combatê-los, se adaptou a eles através de alianças macabras com o MDB, PP, PTB, PSC, PPS e outros partidos burgueses. O assustadoramente curioso é que este leque de alianças e muitas medidas neoliberais dos governos Lula e Dilma (a despeito de suas “medidas sociais”), bem como a declaração do primeiro sobre o fato de que “os banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro como nos governos do PT”, não os deixa com nenhuma crise de consciência sobre suas acusações e caracterizações de que este partido seria de “esquerda” ou representaria uma “ameaça comunista”.
Os 13 anos de governos petistas apenas reforçaram a classe média e a sua mentalidade. O petismo comemorou (também cinicamente) junto com a grande mídia que grande parte dos “pobres” tinha se tornado membro da “classe C” (isto é, uma fictícia classe média, fabricada pelas estatísticas e pela mídia). Como poderíamos avançar para o socialismo fazendo parte dos trabalhadores tornarem-se supostos membros desta “classe C” através do consumismo? Não seria tudo isso um grande contra senso para esconder o seu abandono total da estratégia socialista e justificar suas alianças?
A esmagadora maioria das políticas de governo do PT não combateu a hipocrisia da classe média. Ao contrário: o alimentou de diversas formas, transformando este monstro horrendo no seu algoz através do processo do impeachment. Em nenhum momento ameaçou a propriedade dos meios de produção (único e decisivo argumento que poderia demonstrar seu caráter “comunista”). Nos sindicatos e movimentos sociais cumpriu o melhor freio para preservar a sociedade capitalista; ao invés de educar os ativistas na teoria revolucionária socialista, insuflou nos movimentos sociais uma desprezível consciência pequeno-burguesa. Mesmo após o impeachment, em todas as oportunidades que colocou massas na rua foi apenas para fazer “demonstrações democráticas” de força, preservando e reivindicando a democracia burguesa, onde insiste em apostar todas as suas fichas, mesmo que a burguesia já tenha dado mostras claras de que não poupará esforços para burlar as suas próprias regras eleitorais para impedir o PT de disputar as eleições. Todo o esforço de mobilização de centenas de milhares de militantes é levado para o leito morto do viciado jogo democrático-burguês.
Em suma, os governos petistas serviram para acordar, dar força e consciência à esta classe média, mais convencida do que nunca da sua missão hipócrita de conservar o país como uma plataforma semicolonial de commodities, enquanto reclama infindavelmente dos problemas sociais do país. Afirma, como um disco quebrado, que abandonará o país, mas sem nunca o fazer efetivamente.

VIII
            Reclamação sem ação – este é o resumo da prática desta classe média; a não ser, é claro, quando é convocada pelas forças conservadoras e de direita para sair às ruas (tal como foram as “marchas por deus, pela pátria e a família”, que precederam a ditadura militar de 1964; ou o movimento “fora Dilma” de 2016). A classe média brasileira prefere viver se queixando eternamente sobre a “vergonha de ser brasileiro”, dos escândalos de corrupção, comprando todos os engodos da grande mídia, do que realmente se chocar com os reais problemas políticos e econômicos do nosso país e do mundo. Na verdade, o resultado dos escândalos de corrupção e da “vergonha de ser brasileiro” tem a ver com suas próprias escolhas e opções políticas. Como seu modo de pensar é metafísico, ela não consegue estabelecer uma conexão entre causa e efeito (com exceção, é claro, dos seus setores que já possuem plena consciência política dos seus atos; estes já agem de forma ardilosa e premeditada).
Vale dar um exemplo singelo, porém, ilustrativo: a classe média vota em partidos como o PSDB em Porto Alegre, que trabalha para reduzir ou cortar verbas dos serviços públicos. O resultado? Matagal e grama crescendo pelas ruas e pelos parques da cidade. Não foram poucas as vezes em que vimos membros da classe média se horrorizando com o desleixo e, novamente reclamando sobre “como a cidade está largada”. As conexões não são estabelecidas em razão da maneira como lê a realidade; isto é, como se o fato de votar em um partido de programa neoliberal, reduzir as verbas e impedir o funcionamento de serviços públicos básicos fossem coisas completamente dissociadas.
            Em 2016 esta classe média só agiu politicamente a partir de uma injeção de ânimo dada pela mídia e por movimentos financiados pelo imperialismo, como o MBL. Não fosse “o sinal verde” acenado por estes setores, que acabavam de romper com o “pacto” de estabilidade do regime democrático burguês e, portanto, com a estabilidade dos governos petistas, esta classe média continuaria reclamando sozinha em casa, acumulando energia sádica para descarregar em outros tipos de preconceitos ou mesmo contra o PT e a “esquerda”, só que de forma isolada. Como estava sendo mobilizada, foi descarrega-la nas ruas.
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            Frente aos escândalos de corrupção do governo Temer, que explodem por todos os lados, nada fizeram e nem reclamaram. Lembram-se apenas da corrupção de Lula, mas fazem vistas grossas à corrupção de Aécio Neves e Michel Temer. Neste caso a “vergonha de ser brasileiro” é tolerável. Jamais farão a ligação política que cai de maduro aos olhos de qualquer indivíduo que tenha um pingo de honestidade, que é o fato de todo o impeachment ter sido tramado e dirigido nos bastidores por um notório corrupto, Eduardo Cunha (do MDB). Até as vésperas do impeachment esta classe média dizia que Cunha era o seu “malvado favorito”. Derrubaram um governo corrupto para por outro pior; e não falam nada a respeito disso, nem sequer sentem “remorsos morais” por todo o processo ter sido comprado por R$1 milhão, dado a cada parlamentar que votou a favor do afastamento de Dilma, segundo delação premiada de Lúcio Funaro.
            A total certeza de estarem sempre certos e os outros errados é parte integrante das convicções políticas de Mário e Juliano. Ricardo é um pouco mais resguardado, mas, no fundo, também possui certezas absolutas, como a de que está sempre certo em qualquer debate político contra a “esquerda”.
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            A arena tradicional em que esta classe média destila o seu ódio-sádico acumulado tem sido a internet e as redes sociais, onde se pode falar o que se bem entende, sem provar nada, e ainda ficar protegido por estar a quilômetros de distância de qualquer indivíduo, partido ou movimento social que se ofenda (não se trata de debate político, mas de simples ofensas morais ou de baixo calão; verdadeiras agressões verbais que denotam um sofrimento interior agudo, que se expressa através de um ódio sádico incontido). Um número assustador de correntes e piadinhas tem sido criado e disseminado pelos 4 cantos por estes verdadeiros “militantes do ódio virtual”.

IX
            Qual é, em linhas gerais, o modo de vida desta pequena burguesia? É bastante característico: baseia-se na ostentação, no sentimento de superioridade (aristocrático) – dentre os quais, por se acharem mais esclarecidos por terem estudado (sendo que na maioria das vezes este estudo universitário nada mais é do que uma reprodução medíocre do conhecimento produzido nos grandes centros imperialistas internacionais) –, no individualismo (não no individualismo capaz de gerar autonomia de pensamento, mas no individualismo baseado no egoísmo; algo, inclusive, que contraria os preceitos básicos do cristianismo, que alguns deles dizem reivindicar). Todos os 3 personagens possuam casa e carros próprios e uma relativa segurança no trabalho.
Como sabemos, mesmo esta classe média sofre com medidas econômicas da grande burguesia, sobretudo em momentos de crise. Sobre a maneira de resistir à esta carestia de vida imposta pela burguesia à classe média, cabe alguns destaques: o representante comercial sonega impostos; o segundo tem uma micro empresa pessoal, em que ele trabalha e explora pessoas de classes mais baixas, defendendo o fim de qualquer resquício de direitos trabalhistas; Juliano é empregado de uma grande empresa de engenharia, paga seus impostos, mas critica a cobrança em si, sem levar em consideração o pagamento dos juros e amortizações da dívida pública (e como se bastasse simplesmente equacionar melhor os impostos. Não que isso não seja necessário, mas a grande sangria desatada dos recursos públicos é a dívida pública, a qual Juliano se nega a reconhecer). Todos os 3 não questionam o poder econômico supremo dos demais países sobre o Brasil, os quais podem espoliá-lo livremente, inclusive impondo políticas econômicas que resultam em aumento de impostos (nunca reconhecidos por estes membros da classe média – estes gastos são vistos, hipocritamente, como necessários).
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            Vendo o quadro de horror apresentado ao longo do texto, se pode objetar perguntando: não existe nenhum setor social que seja progressivo nesta classe média? Sim, existem, embora se constituindo em minoria, infelizmente. Esta minoria, geralmente, está mais próxima dos estratos do proletariado e não costuma se expressar politicamente. É por isso que os seus estratos mais altos e mais reacionários fazem muito mais barulho e, por isso mesmo, se destacam.
O que a classe média consciente precisa entender é que as suas decisões políticas repercutem de forma nefasta sobre a classe trabalhadora e o povo pobre (alguns fazem isso conscientemente, de forma sádica e perversa, outros por ingenuidade), influenciando-os negativamente. No geral a classe média não percebe (ou não quer perceber) que a política neoliberal de privatizações é recessiva, agravando problemas econômicos e sociais internos. Em momentos de crise econômica privatizar e restringir mercados, dificultando investimentos públicos, gera uma bola de neve, intensificando a recessão econômica. Isso só pode ter consequências nefastas sobre a sociedade que, geralmente, se voltam contra a própria classe média.
Por fim, ainda se pode objetar: por que centrar uma análise sobre a classe média e não sobre a burguesia? Ora, a grande burguesia, em sua maioria, tem uma política consciente e deliberada de manter e alimentar a classe média. Esta última, sendo uma classe instável e vacilante, pois reflete a luta e a pressão caleidoscópica das duas maiores classes da sociedade capitalista (a burguesia e o proletariado), se tomar consciência do papel nefasto que joga contra si própria, pode desempenhar uma função social bem mais progressiva para o desenvolvimento do país e, em última análise, para si própria. Isto, contudo só será possível se ela entender os fundamentos da sociedade em que vivemos e se posicionar politicamente ao lado dos trabalhadores conscientes. Sabemos que não é uma tarefa fácil, pois a burguesia joga pesado, utilizando-se do seu método preferencial, que é a corrupção através do seu poderio material, financeiro e de inúmeras promessas que jamais se realizarão, além de se apoiar na grande mídia, no seu discurso de terrorismo psicológico, etc.; por outro lado, sabemos que a consciência ética cumpre um papel decisivo para muitos dos seus estratos sociais (basta lembrar que grandes teóricos marxistas vieram desta classe média). A crítica deste texto visa contribuir para que a classe média brasileira se olhe no seu espelho profundo. Se pelo menos alguns setores – mesmo que muito minoritários – conseguirem resistir e fixar o olhar nele, já terá valido a pena.


NOTAS



[i] GENRO, Tarso. Na contra mão da pré-história. Editora Artes e Ofício, Porto Alegre, 1992 (página 12).