hipocrisia
1.
característica do que é hipócrita; falsidade,
dissimulação.
2.
ato ou efeito de fingir, de dissimular os verdadeiros
sentimentos, intenções; fingimento, falsidade.
Egoísmo não significa
viver como se deseja, mas sim pedir aos outros
que vivam como a gente deseja. E altruísmo
significa
deixar a vida de
outrem em paz, não interferir nela.
O egoísta sempre visa
criar em torno de si uniformidade absoluta.
(Oscar Wilde)
Prólogo
A classe média brasileira é um excelente
protótipo para se explicar o significado da palavra hipocrisia.
Em 2016, ao contrário de todas as evidências
e sem nenhum tipo de escrúpulos, apoiou a deposição de um governo em nome do
“combate à corrupção” e a instauração de um novo que apresentou novos e piores escândalos
de corrupção, sem fazer absolutamente nada. Que ela queira apoiar qualquer tipo
de quadrilha política em nome dos seus próprios interesses, que o faça, mas que
não minta que é em nome do “combate à corrupção”.
No início de 2018 apoiou, pela enésima vez, uma
nova falácia política. Em nome da suposta ordem social no Rio de Janeiro sustentou
uma medida de intervenção militar, como tantas outras, que sem sombra de
dúvidas, não resolverá nenhum problema real da criminalidade e da violência
social. Servirá, novamente, para toda a sociedade, como os “testas de ferro”
dos interesses maiores da decrépita elite nacional e do capital financeiro
internacional.
Tudo isso é uma pequena peça do grande quebra
cabeça que este texto pretende (des)montar.
I
A hipocrisia social é parte da peste
emocional que assola a humanidade e corrói a possibilidade de construção de uma
política justa para tentarmos mudar o mundo. É um escudo a serviço dos
interesses da classe dominante, que tem o total interesse em manter o Brasil na
periferia do mercado mundial, restrito à produção de matérias-primas (comodities), e os trabalhadores reféns
da exploração internacional. A burguesia brasileira não é capaz de sustentar um
caminho econômico independente para o país, reproduzindo as práticas e o
pensamento econômico neoliberal dos centros políticos e financeiros
imperialistas. A classe média brasileira foi criada à sombra desta burguesia
entreguista. Reproduz, no geral, o que há de pior no pensamento político e econômico
da burguesia imperialista dos países centrais. Tudo o que vem por intermédio
destas escolas econômicas é visto como positivo e avançado; tudo o que se opõe
a estes interesses é visto como atrasado, “socialista” e, portanto, merece ser
combatido.
Mário, Ricardo e Juliano são três representantes
desta classe média brasileira que analisaremos a seguir. Brancos caucasianos,
cada um tem, respectivamente, 56, 47 e 39 anos. Mário e Ricardo moram em Porto
Alegre; Juliano no Rio de Janeiro. O sobrenome deste trio (omitido aqui) denota
a descendência de diferentes regiões da Europa. Todos os três moram em bairros
de alto nível em suas respectivas cidades, com água encanada, luz elétrica e um
bom grau de civilidade e urbanização. Vivem, evidentemente, com medo da violência
urbana e da insegurança subsequente, seja ela real ou imaginária; por isso seus
condomínios residenciais possuem cercas elétricas, câmeras e porteiros. Mário é
um representante comercial de uma grande multinacional norte-americana; Ricardo
é profissional liberal que trabalha para empresas de comunicação; e Juliano é
engenheiro de produção. Seus círculos de amizade reúnem pessoas do mesmo nível
econômico e social, tais como advogados, profissionais liberais, médicos,
professores universitários, donos de micro e grandes empresas. Mário, Ricardo e
Juliano conhecem muitos países da Europa e dois, destes três, já visitaram diversas
regiões dos EUA. O círculo de amigos do trio também é bastante viajado pelos
países centrais.
Em razão de suas crises econômicas e
sociais, a corrupção, mas, sobretudo, em relação à insegurança e o medo da
violência social resultante da miséria da maioria da população do país, muitos
deles falam frequentemente em sair do Brasil, embora sejam apaixonados pelo seu
clima, suas praias, círculos de amizade, bem como outros laços culturais e
sociais que lhes são caros. Grande parte destas queixas e intenções de mudança
para o exterior nunca se concretizam por várias razões, tornando-se, por isso
mesmo, uma forma de reclamação sem fim, passando-se esta mentalidade, muitas
vezes, de pai para filho. Em nenhum caso se coloca a necessidade de se
modificar as estruturas políticas e econômicas do país. Isto é quase um tabu: para
eles o Brasil é incapaz de mudar!
Esta afirmação – muito segura de si –
representa, como veremos a seguir, o medo de que o país mude, pois desta
mudança adviria uma possível modificação de sua posição social. Os três
tornam-se, portanto, reféns de uma estrutura que não pode gerar desenvolvimento
independente para o país, nem a resolução das mazelas sociais, das quais a
violência urbana e a corrupção política são parte integrante e indissociável.
II
O resultado da política econômica
neoliberal em um capitalismo periférico, paternalista e cheio de deficiências
políticas e dependências industriais, é a manutenção de uma estrutura
agroexportadora, baseada no latifúndio, e dos privilégios de uma elite,
tipicamente colonial, com mentalidade e ações entreguistas de recursos naturais
e de trabalho humano alheio, totalmente subordinado ao sistema financeiro
internacional, que engessa o país e não permite nenhum tipo de desenvolvimento
autônomo. A desigualdade social é um reflexo destas discrepâncias. A população
brasileira poderia ter outra sorte, caso os meios de produção de riqueza fossem
socializados, mas Mário, Ricardo e Juliano são ferrenhos adversários do
socialismo. Nunca o estudaram a fundo, tal como uma ciência exige; apenas reproduzem
preconceitos passados, incrementados pela grande mídia e pela nova
intelectualidade a soldo do grande capital.
Para viver em uma sociedade de
classes, cheia de ganâncias, violências e inseguranças, a hipocrisia e o medo
se alimentam reciprocamente. Não podem pensar ou sequer falar em outra forma de
sociedade sem chocar-se com seus privilégios e ameaçá-los. Reproduzem e
alimentam a injusta segregação social e moral que o capitalismo cria
continuamente. Para isso é necessário uma duplicidade hipócrita no seu modo de conceber
o mundo.
III
O pensamento político e econômico
desta classe média é metafísico. Isto é, quando não se trata de cinismo e de má
fé plenamente conscientes, ele segue uma lógica mecanicista e cartesiana. Isola
apenas um elemento da realidade e lhe dá uma força sobrenatural para reforçar
os seus argumentos. Não possui uma visão dialética, que busca uma interpretação
da totalidade e inter-relação de todos os fenômenos. Com o seu método oportunista
de discussão se pode provar qualquer absurdo. Assim, nunca se chega à essência
da questão, tirando o problema do seu contexto para facilitar a sustentação de
qualquer tese ou posição política.
Há, certamente, elementos emocionais
mal resolvidos que dificultam ou impedem que esta classe média tenha capacidade
e humildade de interrogar seu estilo de vida e suas certezas. No fundo há uma
grande força emocional que cria uma barreira mista, metade consciente, metade
inconsciente. O medo de cair num abismo de incertezas – que muitas vezes é
apenas uma ameaça que nem chega a se concretizar – faz soar o alarme do medo,
que é logo substituído pelo ódio incontido.
O pensamento desta classe média,
então, naturalmente identifica-se com o conservadorismo, visto como a única
força capaz de manter e garantir suas certezas e, é claro, o seu padrão de
vida. A direita, que no geral não possui escrúpulos, nem preocupações “éticas”
(embora afirme ter), se dá a fiança de assumir uma posição política ou
ideológica que não é a sua – e que muitas vezes inclusive combate – para poder
sustentar uma argumentação de ocasião e vencer aparentemente um embate teórico.
Este método escuso, sem princípios, lhe permite “provar” qualquer tese, com o
único propósito de confundir todas as premissas e ajudar a manter o status quo.
***
As resistências que ocorrem na
psicanálise ao desvendamento do inconsciente humano, tal como Reich nos
demonstrou na obra Análise do Caráter
(1933), se repetem no campo político com estes típicos representantes da classe
média brasileira. Ignoram premissas fundamentais da argumentação do oponente,
levam em consideração ou se apoiam em preconceitos; sua análise política,
econômica e social tem como método a metafísica cartesiana, onde tudo é
mecanicamente analisado e separado das suas relações reais, concretas, sociais.
Por exemplo:
Se falam da dívida pública ignoram
os gastos do governo com os juros estratosféricos cobrados pelo sistema
financeiro, como se fosse algo necessário e até mesmo justo. Alguns mais
descarados, afirmam que os juros nada têm a ver com a dívida pública, podendo,
ser considerados de forma separada. Se falam em previdência pública não
analisam todos os gastos do governo com outras áreas, que são roubadas da
previdência (como a grande parte que é drenada para pagar a própria dívida
pública, dentre outros).
Suas palavras de ordem são
privatizações, segregação social, ódio à qualquer ideia de esquerda (mesmo que
lhe faça sentido), preconceito com tudo o que rompa com esta ordem social, da
qual são beneficiários minoritários e da qual a estabilidade econômica lhe
confere estabilidades emocionais. Todos estes elementos criam um muro contra
qualquer discussão sadia, descambando, por sua própria iniciativa, para um
terrível “diálogo de surdos”.
Somente um grau agudo de hipocrisia
(e ódio sádico incontido e recôndito) como este poderia servir de base para
cimentar a institucionalização da barbárie em cidades como o Rio de Janeiro,
por exemplo, onde o luxo da zona sul convive chacinas nas periferias, tudo
naturalizado pelo Estado, grande mídia e cotidiano. Como sustentar tudo isso
sem distorcer ou ignorar argumentos, sem essa capacidade cínica de estar
completamente alheio ao sofrimento dos outros (principalmente o dos
trabalhadores e do povo pobre)?
***
No campo argumentativo Mário,
Ricardo e Juliano estão sempre dispostos a relativizar todas as ações bizarras
do imperialismo, as mazelas econômicas do sistema e as políticas dos “seus” governos.
Condenam dura e inexoravelmente qualquer escorregão na tentativa de se mudar a
sociedade e, em particular, censuram as revoluções socialistas. Neste caso,
nunca relativizam nada e são extremamente críticos, inclusive com os seus
pontos positivos.
Geralmente quando estão debatendo política,
mas em assuntos triviais também – tal como um raio em céu sereno – os nossos
três representantes da classe média seguidamente fazem troça de um assunto
sério, ridicularizando ou caricaturizando posições da esquerda, demonstrando, pela
insistência nestas “piadas”, que elas lhe são profundamente incômodas. É a sua
“resposta” para algo que de fato eles não podem responder.
***
A classe média não produz uma
intelectualidade com algum pensamento original e independente, seja ele
artístico, científico ou filosófico. Ao longo da história tem se caracterizado
por combater o pensamento independente, vivendo, como dizia Carlos Nelson
Coutinho, “um intimismo à sombra do poder”. Para ilustrar, basta dizer que ela
tem combatido sem tréguas pensadores do porte de Paulo Freire, Florestan
Fernandes e Caio Prado Jr., porque, segundo suas tacanhas concepções, eles são
esquerdistas, mesmo que estes autores tenham sido reconhecidos como notáveis a
nível internacional. Em contraposição, apoiam tudo o que há de mais podre no
campo filosófico e político, como Olavo de Carvalho, Arnaldo Jabor e chegam ao
cúmulo de apoiar até mesmo Alexandre Frota!
Sua filosofia é a seguinte: apoio toda a
elite decrépita, todos os abutres insaciáveis do povo trabalhador, toda a
medida econômica de espoliação internacional que me beneficie e sustente minhas
condições materiais, mesmo que a minha diferença de renda com os trabalhadores
seja de mais ou menos 10 mil reais e com a burguesia mais de 10 milhões.
***
Quem poderia se utilizar da fome dos povos do
mundo como argumentos de ocasião?
O leitor consciente responderia: uma pessoa sem
caráter! Todos nós concordaríamos, embora nem todos iriam até as últimas
consequências nesta conclusão. Baseado no seu tradicional método de
desconsiderar as premissas de uma argumentação quando convém, a direita tem
levantado (desesperadamente, diga-se de passagem) a acusação de que nos
supostos "regimes socialistas" da Venezuela e de Cuba (sempre Cuba!
Esta pequena ilhazinha que ainda hoje é uma pedra no sapato) o povo passa fome.
Em alguns casos de mentes doentias e mais desesperadas ainda, temos ouvido
aquela infindável cantilena que "comunista come criancinha" (e isso,
meus amigos, em pleno século 21!).
Ora, todos nós sabemos que o capitalismo é o
principal responsável pela fome no mundo. Mais do que isso: produz muita comida,
mas engendra, ao mesmo tempo, a fome em escala planetária. É preciso exemplos?
Os nossos amigos da direita fariam bem em olhar um pouquinho mais à esquerda no
nosso sub continente, para o Peru, o Equador, a Colômbia, o Chile, a Argentina,
o Paraguai, a Bolívia, o México, o Haiti! Acaso é o "regime
socialista" que gera os esfomeados latino americanos, cuja presença é tão
forte e tão marcante que se transformou num aclamado seriado de TV: Chaves (o
menino abandonado que só sente fome)?! E o que falar da África, do Oriente
Médio, da Ásia? Seriam uma realização?
E o Brasil? Acaso os esfomeados brasileiros,
que se contam na casa dos milhões e que ocupam em grandes contingentes as ruas
de Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, como um problema crônico, urgente e
insolucionável dentro do atual regime "democrático", serão culpa dos
"regimes socialistas" também? E os assassinatos de negros e negras
nas periferias das grandes cidades do Brasil e dos EUA? Seriam crimes do
"comunismo"?
Muitas mentes doentias, que sofrem com uma
epidemia degenerativa, chamada de Peste Emocional (cujo ensejo prepara o
fascismo), dirão que estão na rua porque querem. Acreditam eles não apenas no
papai noel, no coelhinho da páscoa, mas, também, na mão invisível do mercado e
na meritocracia! Para estes senhores, corrompidos e, talvez, incuráveis nessa
corrupção moral, já tão desumanizados pelas suas "crenças"
econômicas, os esfomeados da Venezuela, de Cuba, bem como as vítimas da fome da
guerra civil russa (1918-1921), que nada mais foi do que o resultado da invasão
de 14 exércitos imperialistas para derrubar e sabotar um governo revolucionário,
valem mais do que todos os outros esfomeados dos 5 continentes juntos!
Que papel patético! Utilizando-se de métodos
escusos, que vão desde o exagero desesperado até a ridicularização do argumento
adversário justamente porque não pode respondê-lo, estes indivíduos estão
definitivamente empenhados em puxar a roda da história para trás, defendendo o
"cristianismo", a "democracia" e a "civilização".
Pelo visto, além de "combater" seletivamente a corrupção, estes
"cidadãos do bem" também combatem seletivamente a fome!
IV
Os três personagens que selecionamos
para representar a classe média brasileira são bastante cultos, embora de uma
cultura vaga e imprecisa, sendo mais pedante do que sadia (é mais uma cultura
pragmática e individualista, que é o reflexo de uma sociedade consumista). A
sua posição cultural também é parte de uma herança aristocrática de se achar
superior. Sua situação econômica privilegiada e sua cultura não são usadas com
a finalidade de servir ao desenvolvimento social de seu próprio país. Mário é
ignorante em qualquer tema relacionado à economia, filosofia ou socialismo, mas
mesmo assim não se furta em dar opiniões; Ricardo possui um conhecimento
sofisticado mais em razão das suas viagens e por falar outra língua do que por
estudos ou busca filosófica, pois suas opiniões políticas se baseiam em
preconceitos; Juliano é bastante intelectualizado, vegetariano “nas horas
livres”, conhecedor de algumas correntes e pautas do pensamento socialista,
mas, ainda assim, com um conhecimento bastante limitado pelo seu método
preconceituoso de conceber a realidade, isto é, sua capacidade de interpretar a
economia e a política são feitas através de um olhar mecânico, cartesiano; numa
palavra: metafísico. Os três possuem visões pautadas por preconceitos ao invés
de opiniões políticas e filosóficas.
Em discussões com todos eles se percebe
a falta de qualquer respeito às premissas das argumentações, que podem ser
ignoradas ou retomadas quando as necessidades de sustentação de suas posições
lhes exigem.
***
A sua moral ética e religiosa é
totalmente incoerente (e, portanto, hipócrita). Muitos defendem o cristianismo,
mas acumulam riquezas, tem inúmeras propriedades, disseminam o ódio, frequentam
prostíbulos, traem conjugues e a própria moral que ostentam socialmente. Não se
furtam a cobrar um comunista por usar celular ou outras tecnologias
disseminadas pelo capitalismo, como se estes tivessem feito algum dia voto de
pobreza e seu objetivo não fosse justamente possibilitar o acesso à tecnologia
e à riqueza produzida pelos próprios trabalhadores a todos membros da sociedade.
Quem deveria se preocupar com o voto de pobreza é justamente esta classe média
que prega – de cuecas – a moral cristã. Cobra dos outros o que deveria ser o
primeiro a dar o exemplo. Isto é, quer acusar primeiro para não ser acusada.
Muitos outros acabam abandonando a
religião por ser um entrave a sua real consciência política e conduta “ética”;
outros ainda levam o pragmatismo para o campo religioso: constroem o
sincretismo religioso que melhor convier às suas aspirações econômicas e que
melhor justifiquem (positivamente) suas ações e posições. Mas não se sentem
nenhum pouco constrangidos ou sequer veem contradição em fazer parte de um
movimento reacionário, como o evangélico, católico, direitista, etc. Um exemplo
disso pode ser visto nas páginas do facebook como a “Rio Conservador”.
Mário, Ricardo e Juliano são
casados, mas somente Mário e Juliano possuem filhos. Os valores sociais do
patriarcado são defendidos por todos, ainda que de uma maneira bastante eclética,
lembrando uma espécie de sincretismo moral. Esta moral lhes permite
institucionalizar uma hipocrisia: manter o casamento e a infidelidade conjugal,
ainda que isso, evidentemente, jamais seja dito abertamente.
***
Sua concepção religiosa é como a
religiosidade da burguesia: cristãos nas declarações e pretensões, mas
hipócritas nas ações. Não praticam o que pregam. Defendem uma moral, mas a
família patriarcal é hipócrita, com amantes e prostituição, ao mesmo tempo que
frequentam Igrejas e pregam a “palavra de Cristo”. Cristãos, como Bolsonaro e
cia, defendem a violência contra os pobres, a pena de morte formal e informal,
a segurança como bandeira política prioritária e a concentração de renda
através da defesa do neoliberalismo, privatizações e do próprio capitalismo, a
partir de um anti-comunismo neurótico e obsessivo. Eles não enxergam nenhuma
contradição nisso tudo.
Mário e Juliano são católicos
declarados, frequentadores eventuais de missas dominicais; Ricardo diz não ter
religião, embora sempre se cale, respeitosamente, sempre que o assunto é
colocado na pauta do grupo de amigos ou da família. Poderia ser considerado
agnóstico, embora não tenha total clareza sobre o assunto para poder
declarar-se enquanto tal. Mário e Ricardo já frequentaram prostíbulos ou
realizaram adultério no casamento; Juliano, em função da criação repressora e
da subsequente timidez, não chegou a tal ponto, embora não se furte a utilizar
a prostituição virtual: a pornografia.
V
O caso do impeachment de Dilma Roussef (PT) é bastante emblemático. Todos os
nossos 3 personagens foram ativos militantes do “Fora Dilma”. Durante os 2
primeiros governos Lula e o primeiro mandato de Dilma guardaram um silêncio
sepulcral que coincidia com o “crescimento econômico” vendido pela grande
mídia. O que era este “crescimento econômico”? Uma economia baseada na venda
das comodities (matérias-primas) e
produtos do agronegócio. Ou seja, o Brasil continuou tal como era quando foi
colônia portuguesa: fabricante exclusivo de produtos primários para o mercado
internacional. Antes produzia pau-brasil, açúcar, ouro e café; hoje produz
minérios, petróleo, carne, suco de laranja e produtos agropecuários. Nenhuma
indústria de tecnologia é brasileira (à exceção da EMBRAER, que
neste momento está sendo entregue ao capital privado pelo governo Temer). Este
mercado, bem como o setor financeiro, automobilístico e eletroeletrônico, estão
totalmente subordinados aos ditames da burguesia imperialista. A maior parte da
classe média brasileira sequer se aproxima desta consciência (como é o caso de
Mário); e o setor que se aproxima dela ou não se importa ou a justifica (como é
o caso de Juliano e Ricardo).
A classe média brasileira sempre
esteve com um grito contra os governos petistas engasgados na garganta, mas
mantinha-se em silêncio porque não tinha condescendência para isso. Bastou a
crise econômica internacional devastar o país, fazendo os preços das comoditties despencar, para que a grande
mídia começasse a insuflar estes setores contra os governos petistas. Nada de
substancial tinha mudado no país. O PT sempre zelou pela propriedade privada,
pelos interesses do sistema financeiro nacional e internacional, pelo lucro das
grandes multinacionais e, inclusive, por “reformas” neoliberais. O seu crime,
na verdade, foi se aproximar da China e da Rússia, esboçando uma política
relativamente independente dos EUA no cenário internacional. Além disso, a
burguesia nacional e o imperialismo internacional teriam que disputar o butim
estatal das parcas verbas públicas com os programas sociais de governo (Bolsa
Família, ProUni, FIES, Minha Casa Minha Vida, etc.). Segundo a lógica da grande
mídia e da elite nacional, tudo isso se evitaria desmoralizando os governos
petistas e os impedindo de voltar ao poder.
Bastou o sinal verde dado pela
grande mídia para que as ruas se enchessem de “ativistas” e “militantes”
fardados com a camiseta da seleção brasileira, que não se horrorizavam em nada
com os escandalosos benefícios dados pelos governos petistas aos bancos e
grandes empresas, mas que se assustavam seletivamente com a “corrupção” do
governo e as suas administrações de estatais (como a Petrobrás – esquecida até
as vésperas do golpe). Mesmo ciente de tudo isso, o PT passou a ser
caracterizado por estes “ativistas” da classe média como “comunista” e
“socialista”. O fantasma do “comunismo” novamente foi requentado para dar
unicidade a esta classe média, amante da moral, dos bons costumes e da
propriedade privada.
No velho estilo do samba de
Marquinhos Satã “me engana que eu gosto”, esta classe média sabia que os casos
de corrupção dos governos de PSDB, Democratas, MDB, PP e outros eram iguais ou
piores do que os do PT, mas quiseram se iludir no sentido de que punir o PT
seria punir os demais partidos e preparar as bases para combater a corrupção no
país. Como se demonstrou, bastou passar o período do impeachment e novos casos de corrupção não apenas pipocaram por
todos os lados, como esta classe média manteve-se num silêncio sepulcral,
guardando a sua indignação seletiva para uma outra oportunidade em que for
convocada pela elite nacional ou pelo imperialismo.
Durante o movimento “fora Dilma”, organizações
ligadas ao PSDB, como o MBL (Movimento Brasil Livre), lançou palavras de ordem abertamente
neoliberais de privatização, dando a tônica do que eram os verdadeiros
interesses deste movimento e dos setores conscientes dessa classe média
“indignada”. Muitos outros deixaram se utilizar como massa de manobra porque no
fundo são alimentados pelo mesmo sentimento aristocrático de superioridade da
burguesia semicolonial brasileira e, sobretudo, pelo ódio sádico.
Como se não bastasse esse show de
horror, no auge da sua hipocrisia, levantaram bandeiras abstratas como “ética”
(questão da corrupção), “cidadania”, “moralidade na vida pública”, mas, para
tudo isso, se apoiaram em notórios corruptos (como o caso escandaloso de
defender Eduardo Cunha, do MDB como o “meu malvado favorito”). Em compensação,
não foram pra rua quando se tornou público os inúmeros escândalos de corrupção
do governo Temer (MDB). Que tipo de ética, moral e cidadania poderiam defender
então?
Uma parcela da classe média do país possui
uma ingenuidade política e econômica autêntica, como o reflexo de sua criação,
educação e valores impostos, sobretudo os religiosos e os propagados pela mídia.
Porém, outra grande parte desta classe média não é mais ingênua, nem política,
nem economicamente. Já foi corrompida pelos métodos imorais e de exploração de
mercado. Pegou os piores vícios do “fundamentalismo econômico neoliberal”.
Sabe, empírica e inconscientemente, que a política está associada com a
economia. Que nestes bastidores, onde operam as “mãos invisíveis do mercado”, a
politicagem corre solta. Possuem um profundo medo de que os alicerces de suas
condições de vida (isto é, seus privilégios em comparação com os trabalhadores
e o povo mais pobre) sejam abalados.
Votam em políticos sabidamente
corruptos e em partidos que abrigam voluntariamente corruptos e depois
relativizam ou negam seus atos e suas políticas bizarras. Atribuem ao “povo”
não saber votar, mas como não conseguem ir além da democracia burguesa e das
suas instituições, votam em qualquer político e partido que subjacentemente
defenda seus interesses, o status quo
e, consequentemente, as bases de sua hipocrisia.
***
Mário, Ricardo e Juliano são
eleitores do PSDB, MDB ou qualquer partido que represente a possibilidade de
derrotar o PT ou outro partido que supostamente represente a esquerda. Vestindo
suas camisetas da seleção brasileira, Ricardo e Juliano participaram dos atos
pelo “Fora Dilma, impeachment já”;
Mário não saiu de casa para tanto, mas apoiou entusiasticamente o movimento em
conversas pessoais e informais, nas redes sociais e no meio familiar, ou
simplesmente compartilhando e divulgando colunas e reportagens da grande mídia
sobre o assunto.
Quando se tratou dos escândalos de
corrupção do governo Temer (MDB) nenhum deles teve a coragem de sair para a rua
novamente. Mário e Juliano, levemente constrangidos, deram justificativas
curtas e evasivas; Ricardo segue defendendo o governo Temer como o melhor e o
único possível. Todos eles dissociam a crise internacional do próprio capitalismo
e, segundo a campanha induzida da grande mídia, a associam exclusivamente aos
governos do PT.
VI
Juliano e Ricardo reivindicam os economistas
burgueses clássicos (Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill) sem nunca terem
lido uma única página de suas obras e, como sempre, descontextualizando-os
totalmente. Ainda assim, pensam que dominam a situação, que possuem opinião política
e econômica, e que estão em perfeita sintonia com a realidade econômica do
Brasil e do mundo. Falam com desdém sobre "socialismo" e reivindicam
liberdade econômica (oferta e procura), liberdade individual, a propriedade
privada, o desenvolvimento tecnológico como principal fator para considerar se
um sistema econômico “deu certo” ou não.
Mal sabem eles, do alto do seu pedestal de
mármore, que o PSDB não defende efetivamente nenhum desses valores, apesar de
também reivindicá-los em discursos vazios. Esta classe média (e lamentavelmente
muitos trabalhadores) não se importam com a coerência entre discurso e prática.
Consomem qualquer discurso que sacie sua argumentação de ocasião. O PSDB, tal
como MDB e todos os outros partidos burgueses brasileiros, não possuem a mínima
conexão entre aquele discurso e a sua prática concreta, pautada no velho estilo
coronelista e paternalista do Brasil. São totalmente reféns dos dogmas
neoliberais, decretados de cima para baixo pelo FMI, Banco Mundial, OMC e
outros órgãos imperialistas para o Brasil, o que torna seu discurso sobre “liberdade
econômica, individual” e “avanço tecnológico” um disparate cínico, que não
apenas não gera liberdade ou desenvolvimento de espécie alguma, senão que
apenas aprofunda a dependência do país.
A começar pelo fato de que Adam Smith, David
Ricardo e John Stuart Mill analisavam e pensavam a realidade histórica e
econômica dos seus países, não uma abstração repetida como papagaios
semi-coloniais, importada acriticamente de países estrangeiros. Desde que
adentramos a época do capitalismo imperialista não existe mais “liberdade de
mercado”. Os preços são decididos pelos conselhos acionários das grandes
empresas multinacionais numa disputa entre o grande capital financeiro; logo
depois são tornadas oficiais através do lobby
sobre os políticos, os partidos burgueses e o parlamento. O PSDB não defende
nenhuma política que garanta um espaço para o Brasil neste cenário
internacional, ou mesmo nacional. Ao contrário: sustenta a incondicional
submissão ao mercado financeiro, vendido como a única política possível. Isto
significa submeter o país às privatizações, à retirada de direitos dos
trabalhadores (destruir a legislação trabalhista em vigor no país, por
exemplo), o sucateamento dos serviços públicos (não investimento, destruição de
planos de carreira, de condições de trabalho de servidores). Os bancos
públicos, por exemplo, dentro desta lógica não poderiam disputar o mercado com
os bancos privados, visando uma política de investimento e de desenvolvimento social.
Isto contraria os dogmas neoliberais e a ditadura do mercado financeiro.
Sem dúvida podemos comparar os governos do
PSDB aos antigos colonos portugueses, que governaram o país sob o comando da
metrópole europeia e temendo a deus tanto quanto qualquer acusação de infração
ao pacto colonial. Vejamos um singelo exemplo: em todas as eleições,
particularmente na de 2016 que elegeu o prefeito playboy do PSDB em Porto
Alegre (com o voto de Mário e Ricardo), sempre ouvimos o discurso de
“modernização”. Mas o que seria essa modernização? Seria, por exemplo, um
ambicioso projeto de construção de um metrô que ligasse todos os principais
bairros da capital gaúcha à sua região metropolitana, facilitando a integração
e o desenvolvimento econômico, social e cultural (e de quebra ainda poderia se
autofinanciar)? Não! O PSDB não fala em metrô em Porto Alegre porque isso
significa se chocar contra o cartel das empresas de ônibus, que controlam a
circulação de passageiros e tem o poder absolutista de definir tarifas (tudo
isso sem licitação); nem Mário e Ricardo exigem do seu prefeito isso ou sequer
veem problema. Em contrapartida, o PSDB fala em “modernizar” a justiça, o que
pra este partido significa acabar com a justiça do trabalho, que segundo a
lógica do prefeito pequeno-burguês é “desperdiçar milhões” por ano.
A classe média fecha os seus olhos a
tudo isso. Idolatra o PSDB, MDB ou qualquer outro partido que fale contra o PT,
porque este partido supostamente representaria a “esquerda”, o “comunismo”, em
última análise, o “fim dos seus privilégios”. 13 anos de governos petistas não
foram suficientes para demonstrar que mais da metade das ações de governo do PT
foram, no campo macroeconômico, idênticas as do PSDB. Preferem continuar
elegendo “bruxas” para queimarem e “cristos” para crucificarem. Exemplos não
faltam. Estão por aí, nas redes sociais. Os dogmas econômicos neoliberais e o
sistema capitalista como um todo “não dão certo” para a maioria do povo e,
consequentemente, para o desenvolvimento do país. Isso não impede que o PSDB e
a classe média os defendam arduamente, justamente porque estes são indicados
pelos órgãos neo-colonizadores internacionais. A política neoliberal e a
decadência do capitalismo apenas tem aumentado a recessão econômica, a
desigualdade social, a pobreza, o desemprego, a violência urbana, o baixo
desenvolvimento e desempenho da saúde e educação públicas, a espoliação
internacional e, novamente, o não desenvolvimento do país. Até porque para
"desenvolvermos" o país, necessitamos romper com uma política e uma
estrutura que submetem e impedem este desenvolvimento.
VII
Outro elemento que denota sua
hipocrisia política é que esta classe média enxerga problemas, corrupção,
violência, miséria, perseguição política e morte apenas no “comunismo”, mas
nunca no capitalismo, que pela sua ótica é um sistema “natural” e “eterno”. Quando
reconhece algum problema é sempre condescendente e piedosa, relativizando
verdadeiros horrores. Para esta classe média o capitalismo não teria relação alguma
com a base da corrupção, da política, da miséria, do paternalismo
político, da perseguição política e morte nas periferias das grandes cidades no
Brasil de hoje. Ao contrário: jogam tudo para o campo individualista. Nesse
sentido, a sua obsessão pela “meritocracia” ajuda a embaçar a visão e facilita
suas desculpas políticas.
Mário só reconhece os “fuzilamentos
de Cuba” (desconsiderando todo o contexto histórico e, também, os erros fruto
da degeneração ocasionada pela burocratização) e as guerras, repressões e
torturas da época stalinista da URSS; Ricardo fala raivosamente contra a Coréia
do Norte, sem nem saber ao certo o que se passa lá, além do óbvio de
autoritarismo e repressão de um governo militar, com imagens e análises políticas
pejorativas veiculadas quase que diariamente pela grande mídia; Juliano ataca
em todas as frentes, inclusive classificando a Venezuela como “socialista”
(mesmo que esta não tenha avançado contra a propriedade privada dos meios de
produção) e lembrando, é claro, que somente o governo “socialista” venezuelano
reprime manifestações e ataca os trabalhadores.
Esquecem os casos vergonhosos de
corrupção patrocinados pelos partidos dos quais foram eleitores, não enxergam
os crimes das guerras imperialistas (incluso a atual guerra na Síria e
anteriormente na Líbia), nem as mortes de negros nas periferias norte-americanas,
bem como o aumento assustador da miséria nas grandes cidades dos EUA e dos
países europeus; não reconhecem também as torturas do regime militar brasileiro
contra manifestantes de esquerda, porque certamente as apoiam em seu íntimo; as
manifestações reprimidas no Brasil e na Venezuela (no caso a repressão e a
morte de sindicalistas e apoiadores do chavismo pela oposição de direita ao
governo Maduro), a fome do povo, as mortes de manifestantes, destacando-se os
atrozes assassinatos de camponeses que lutam pela reforma agrária no norte e
nordeste do Brasil. Tudo isso é cinicamente esquecido por eles. Não reconhecem
a ditadura dos locais de trabalho, expressa pelo assédio moral diário e a
chantagem permanente do desemprego. O seu “pragmatismo” os impede de vislumbrar
o que é inconveniente no sentido de manter a sua condição social e a chamar de
“utopia” tudo aquilo que signifique uma ruptura com a sociedade que sustenta o
seu modo de vida.
Esta classe média é como o paciente
resistente em psicanálise, que se nega a olhar para o seu próprio “espelho profundo”. Para ela todo o efeito colateral da sociedade capitalista – a
exploração, o desemprego, o aumento da prostituição, do subemprego, da miséria
e da consequente violência urbana – nada teria a ver com a forma de
funcionamento e os valores do sistema; tudo seria obra da “vagabundagem
individual”, do mero acaso ou da vontade divina.
***
Ricardo sustenta que o socialismo é uma
doutrina inventada por aproveitadores preguiçosos que não querem trabalhar, por
isso pretendem dividir a riqueza para que trabalhem o mínimo e ganhem o máximo
possível. Não reconhece isso nos capitalistas e no capitalismo, pois para ele
este é o sistema mais justo que existe. Nada, nem ninguém, o fará pensar de
maneira diferente, mesmo que leia todo um compêndio sociológico sobre o tema (o
que, de fato, jamais ocorrerá). Está definitivamente ganho para esta
interpretação radicalmente equivocada e, provavelmente, a levará para o túmulo.
Juliano afirma que a esquerda está presa às
questões políticas da década de 1960. Em parte tem razão, embora nem de longe
sua intenção seja realmente corrigir estes problemas. Ele também não especifica
bem quais organizações, partidos e programas estariam presos ao passado. Sua
crítica soa cínica, justamente por apresentar um problema que não pretende buscar
solução. Apenas destila preconceito, cuja razão principal é substituir o
programa “fora de moda” por um programa liberal burguês. Por todas as suas
conclusões e posições políticas, “se atualizar” significa seguir a tática de
adaptação do PT à estrutura política do sistema; sem, é claro, admitir isso.
Classifica, naturalmente, o socialismo com o “utópico” e “irrealizável”, também
se sustentando ora nas experiências stalinistas, ora no discurso niilista
pós-moderno de que o ser humano é o problema central, pois “nunca estará
satisfeito em seu egoísmo” (também não é capaz de reconhecer publicamente o seu
próprio egoísmo e o de seus pares). Juliano repetiu inúmeras vezes, inclusive
nas redes sociais, que queria que o Brasil fosse uma Finlândia, Suécia, Noruega
ou Inglaterra; em suma, gostaria que o Brasil fosse um “país desenvolvido”.
Para isso, ignora toda a constituição desses países, suas relações e
construções históricas (e, principalmente, esquece a formação histórica do
Brasil e do seu papel periférico no capitalismo mundial). Ignora ou desconhece o
papel que aqueles países possuem como imperialismos periféricos no mercado
mundial. Situação bem distinta do Brasil, que se constitui historicamente como
uma nação dependente e que num mundo dominado pelo imperialismo financeiro não
pode mais se desenvolver sem romper com os grilhões do capital.
Mário possui uma indescritível “confusão
conveniente”. Seus argumentos não têm um grama de coerência, não respeitando
nem suas próprias premissas. Para ele tudo o que “cheire” a socialismo é ruim e
ineficaz, sem sustentar nada disso (apenas fazendo menções genéricas à
“ditaduras”, o que na verdade apenas escutou de outros). Afirma, inclusive,
chegando ao auge do seu delírio hipócrita, que a “direita nunca esteve no
poder”. Pessoas como FHC, Aécio Neves, José Serra e, até mesmo, Michel Temer,
seriam de “esquerda” (segundo a sua lógica, senão declaradamente, pelo menos
disfarçadamente). Ou seja, pretende vincular tudo o que há de ruim à esquerda
(e, indiretamente, ao socialismo) e tudo o que há de bom à direita (e ao
capitalismo).
É consenso entre todos eles que o socialismo
“não dá certo”, ignorando, evidentemente, que se tratou de uma primeira
experiência em um país que foi isolado e combatido pela burguesia imperialista
mundial. O capitalismo necessitou de, pelo menos, 4 séculos para criar as
condições do seu funcionamento político, econômico e social para, então, lançar
a humanidade num inferno de guerras, miséria, desemprego, prostituição onde a
maioria de seres humanos está submersa; e ilhas de prosperidade e luxo para desfrute
de alguns poucos. No meio disso tudo está a classe média, que desfruta de
benesses materiais, mas não vai sequer à esquina a pé por medo da violência
urbana gerada pelo sistema que “deu certo”. Isto, segundo estes geniais representantes
da classe média, é “dar certo”. Algumas vezes eles conseguem ter a compreensão
lúcida de que o capitalismo é um sistema voltado para “dar certo para alguns”;
mas isso parece não incomodá-los, nem mesmo por aqueles que se reivindicam
cristãos (e que sabem, ou deveriam, que é mais fácil um camelo passar por um
buraco de agulha do que um rico entrar nos reinos dos céus).
***
O programa político e econômico desta classe
média seria perfeitamente contemplado pelo programa do PT, que defende que “a saída reformadora passa evidentemente por
setores da burguesia brasileira, ligados às necessidades internas de um mercado
brasileiro”[i].
A partir dessas reformas em aliança com a burguesia, possibilitando um
“crescimento econômico” dentro do capitalismo periférico brasileiro, o PT
propunha mudanças graduais no sentido de ir melhorando paulatinamente as
condições de vida do povo. Sabemos que esse programa é inexequível pela
experiência com os governos Lula e Dilma, em que o PT foi praticamente expulso
do governo assim que a conjuntura mudou e a burguesia exigiu a sua sentença. Ao
invés desse programa, essa classe média, que se entende como expert em macroeconomia, defende
exatamente a especulação financeira improdutiva, que condena o Brasil à
periferia do sistema e à completa dependência internacional.
Por toda a lógica de suas posições
políticas, a classe média brasileira deveria apoiar o PT. Este partido quer
(utopicamente) “humanizar o capitalismo”, ainda que nem sempre diga isso
abertamente. Muitos teóricos desse partido já afirmaram querer taxar as grandes
fortunas, distribuir renda (e não meios de produção), fazer reforma política e
reforma agrária sem romper com a propriedade privada, o capitalismo e a sua
estrutura política hegemônica no Brasil. Existe aí todo um programa de
administração do capitalismo, não colocado em prática porque evidentemente se
choca com os interesses da elite mais retrógrada e decrépita que possui
incontáveis privilégios econômicos e políticos e que depende do funcionamento
deste capitalismo predatório e submisso à exploração do sistema financeiro
internacional. Este programa não rompe com o capitalismo sob nenhum ponto de
vista, preservando, portanto, as condições materiais desta classe média. Ao
contrário, busca preservar o sistema e tenta conciliar interesses opostos,
mantendo a supremacia da burguesia neocolonial e da velha elite parasitária, em
total submissão ao imperialismo.
Mas, ao contrário de apoiar o PT, a maior
parte desta classe média o odeia. Usa-o como espantalho político e a suposta
encarnação de tudo o que há de ruim no país (é claro, sem nunca se olhar no
espelho). Sustenta, de forma ignorante e intransigente, que este partido
representa o “socialismo”. Trata-se, então, de um incontido ódio de classe, que
se apega a dogmas e é incapaz de olhar a realidade concreta. Ao mesmo tempo em
que serve de apoio político à elite brasileira mais atrasada (expressa pelo
PSDB, MDB, Dem, PP, etc.), ela mantém um objeto externo para descarregar a
energia retida de todo o seu sadismo mal resolvido.
***
Os
estratos mais abastados da classe média – mas também setores mais empobrecidos
e mesmo muitos trabalhadores – são visceralmente antipetistas. Mário, Juliano e
Ricardo, seguindo as orientações midiáticas, atribuem todos os problemas sociais
do Brasil ao PT. Na verdade, um olhar mais atento e crítico veria que os
problemas sociais do país começaram há muito tempo atrás (os três sabem
perfeitamente disso); e o PT, ao invés de combatê-los, se adaptou a eles
através de alianças macabras com o MDB, PP, PTB, PSC, PPS e outros partidos
burgueses. O assustadoramente curioso é que este leque de alianças e muitas
medidas neoliberais dos governos Lula e Dilma (a despeito de suas “medidas
sociais”), bem como a declaração do primeiro sobre o fato de que “os banqueiros
nunca ganharam tanto dinheiro como nos governos do PT”, não os deixa com
nenhuma crise de consciência sobre suas acusações e caracterizações de que este
partido seria de “esquerda” ou representaria uma “ameaça comunista”.
Os 13 anos de governos petistas apenas
reforçaram a classe média e a sua mentalidade. O petismo comemorou (também
cinicamente) junto com a grande mídia que grande parte dos “pobres” tinha se
tornado membro da “classe C” (isto é, uma fictícia classe média, fabricada pelas
estatísticas e pela mídia). Como poderíamos avançar para o socialismo fazendo
parte dos trabalhadores tornarem-se supostos membros desta “classe C” através
do consumismo? Não seria tudo isso um grande contra senso para esconder o seu
abandono total da estratégia socialista e justificar suas alianças?
A esmagadora maioria das políticas de governo
do PT não combateu a hipocrisia da classe média. Ao contrário: o alimentou de
diversas formas, transformando este monstro horrendo no seu algoz através do
processo do impeachment. Em nenhum
momento ameaçou a propriedade dos meios de produção (único e decisivo argumento
que poderia demonstrar seu caráter “comunista”). Nos sindicatos e movimentos
sociais cumpriu o melhor freio para preservar a sociedade capitalista; ao invés
de educar os ativistas na teoria revolucionária socialista, insuflou nos
movimentos sociais uma desprezível consciência pequeno-burguesa. Mesmo após o impeachment, em todas as oportunidades
que colocou massas na rua foi apenas para fazer “demonstrações democráticas” de
força, preservando e reivindicando a democracia burguesa, onde insiste em
apostar todas as suas fichas, mesmo que a burguesia já tenha dado mostras
claras de que não poupará esforços para burlar as suas próprias regras
eleitorais para impedir o PT de disputar as eleições. Todo o esforço de
mobilização de centenas de milhares de militantes é levado para o leito morto
do viciado jogo democrático-burguês.
Em suma, os governos petistas serviram para
acordar, dar força e consciência à esta classe média, mais convencida do que
nunca da sua missão hipócrita de conservar o país como uma plataforma
semicolonial de commodities, enquanto
reclama infindavelmente dos problemas sociais do país. Afirma, como um disco
quebrado, que abandonará o país, mas sem nunca o fazer efetivamente.
VIII
Reclamação sem ação – este é o resumo
da prática desta classe média; a não ser, é claro, quando é convocada pelas
forças conservadoras e de direita para sair às ruas (tal como foram as “marchas
por deus, pela pátria e a família”, que precederam a ditadura militar de 1964;
ou o movimento “fora Dilma” de 2016). A classe média brasileira prefere viver
se queixando eternamente sobre a “vergonha de ser brasileiro”, dos escândalos
de corrupção, comprando todos os engodos da grande mídia, do que realmente se
chocar com os reais problemas políticos e econômicos do nosso país e do mundo.
Na verdade, o resultado dos escândalos de corrupção e da “vergonha de ser
brasileiro” tem a ver com suas próprias escolhas e opções políticas. Como seu
modo de pensar é metafísico, ela não consegue estabelecer uma conexão entre
causa e efeito (com exceção, é claro, dos seus setores que já possuem plena
consciência política dos seus atos; estes já agem de forma ardilosa e
premeditada).
Vale dar um exemplo singelo, porém,
ilustrativo: a classe média vota em partidos como o PSDB em Porto Alegre, que
trabalha para reduzir ou cortar verbas dos serviços públicos. O resultado?
Matagal e grama crescendo pelas ruas e pelos parques da cidade. Não foram poucas as vezes em que vimos membros da classe média se horrorizando com o desleixo e,
novamente reclamando sobre “como a cidade está largada”. As conexões não são
estabelecidas em razão da maneira como lê a realidade; isto é, como se o fato
de votar em um partido de programa neoliberal, reduzir as verbas e impedir o
funcionamento de serviços públicos básicos fossem coisas completamente
dissociadas.
Em 2016 esta classe média só agiu
politicamente a partir de uma injeção de ânimo dada pela mídia e por movimentos
financiados pelo imperialismo, como o MBL. Não fosse “o sinal verde” acenado
por estes setores, que acabavam de romper com o “pacto” de estabilidade do
regime democrático burguês e, portanto, com a estabilidade dos governos
petistas, esta classe média continuaria reclamando sozinha em casa, acumulando
energia sádica para descarregar em outros tipos de preconceitos ou mesmo contra
o PT e a “esquerda”, só que de forma isolada. Como estava sendo mobilizada, foi
descarrega-la nas ruas.
***
Frente aos escândalos de corrupção
do governo Temer, que explodem por todos os lados, nada fizeram e nem
reclamaram. Lembram-se apenas da corrupção de Lula, mas fazem vistas grossas à
corrupção de Aécio Neves e Michel Temer. Neste caso a “vergonha de ser brasileiro”
é tolerável. Jamais farão a ligação política que cai de maduro aos olhos de
qualquer indivíduo que tenha um pingo de honestidade, que é o fato de todo o impeachment ter sido tramado e dirigido
nos bastidores por um notório corrupto, Eduardo Cunha (do MDB). Até as vésperas
do impeachment esta classe média
dizia que Cunha era o seu “malvado favorito”. Derrubaram um governo corrupto
para por outro pior; e não falam nada a respeito disso, nem sequer sentem
“remorsos morais” por todo o processo ter sido comprado por R$1 milhão, dado a
cada parlamentar que votou a favor do afastamento de Dilma, segundo delação
premiada de Lúcio Funaro.
A total certeza de estarem sempre
certos e os outros errados é parte integrante das convicções políticas de Mário
e Juliano. Ricardo é um pouco mais resguardado, mas, no fundo, também possui
certezas absolutas, como a de que está sempre certo em qualquer debate político
contra a “esquerda”.
***
A arena tradicional em que esta
classe média destila o seu ódio-sádico acumulado tem sido a internet e as redes
sociais, onde se pode falar o que se bem entende, sem provar nada, e ainda
ficar protegido por estar a quilômetros de distância de qualquer indivíduo,
partido ou movimento social que se ofenda (não se trata de debate político, mas
de simples ofensas morais ou de baixo calão; verdadeiras agressões verbais que
denotam um sofrimento interior agudo, que se expressa através de um ódio sádico
incontido). Um número assustador de correntes e piadinhas tem sido criado e
disseminado pelos 4 cantos por estes verdadeiros “militantes do ódio virtual”.
IX
Qual é, em linhas gerais, o modo de
vida desta pequena burguesia? É bastante característico: baseia-se na ostentação,
no sentimento de superioridade (aristocrático) – dentre os quais, por se
acharem mais esclarecidos por terem estudado (sendo que na maioria das vezes
este estudo universitário nada mais é do que uma reprodução medíocre do
conhecimento produzido nos grandes centros imperialistas internacionais) –, no individualismo
(não no individualismo capaz de gerar autonomia de pensamento, mas no
individualismo baseado no egoísmo; algo, inclusive, que contraria os preceitos
básicos do cristianismo, que alguns deles dizem reivindicar). Todos os 3
personagens possuam casa e carros próprios e uma relativa segurança no
trabalho.
Como sabemos, mesmo esta classe média sofre
com medidas econômicas da grande burguesia, sobretudo em momentos de crise.
Sobre a maneira de resistir à esta carestia de vida imposta pela burguesia à
classe média, cabe alguns destaques: o representante comercial sonega impostos;
o segundo tem uma micro empresa pessoal, em que ele trabalha e explora pessoas
de classes mais baixas, defendendo o fim de qualquer resquício de direitos
trabalhistas; Juliano é empregado de uma grande empresa de engenharia, paga
seus impostos, mas critica a cobrança em si, sem levar em consideração o
pagamento dos juros e amortizações da dívida pública (e como se bastasse
simplesmente equacionar melhor os impostos. Não que isso não seja necessário,
mas a grande sangria desatada dos recursos públicos é a dívida pública, a qual
Juliano se nega a reconhecer). Todos os 3 não questionam o poder econômico supremo
dos demais países sobre o Brasil, os quais podem espoliá-lo livremente,
inclusive impondo políticas econômicas que resultam em aumento de impostos
(nunca reconhecidos por estes membros da classe média – estes gastos são
vistos, hipocritamente, como necessários).
***
Vendo o quadro de horror apresentado
ao longo do texto, se pode objetar perguntando: não existe nenhum setor social
que seja progressivo nesta classe média? Sim, existem, embora se constituindo
em minoria, infelizmente. Esta minoria, geralmente, está mais próxima dos estratos
do proletariado e não costuma se expressar politicamente. É por isso que os
seus estratos mais altos e mais reacionários fazem muito mais barulho e, por
isso mesmo, se destacam.
O que a classe média consciente precisa
entender é que as suas decisões políticas repercutem de forma nefasta sobre a
classe trabalhadora e o povo pobre (alguns fazem isso conscientemente, de forma
sádica e perversa, outros por ingenuidade), influenciando-os negativamente. No
geral a classe média não percebe (ou não quer perceber) que a política
neoliberal de privatizações é recessiva, agravando problemas econômicos e sociais
internos. Em momentos de crise econômica privatizar e restringir mercados,
dificultando investimentos públicos, gera uma bola de neve, intensificando a
recessão econômica. Isso só pode ter consequências nefastas sobre a sociedade
que, geralmente, se voltam contra a própria classe média.
Por fim, ainda se pode objetar: por que centrar
uma análise sobre a classe média e não sobre a burguesia? Ora, a grande
burguesia, em sua maioria, tem uma política consciente e deliberada de manter e
alimentar a classe média. Esta última, sendo uma classe instável e vacilante,
pois reflete a luta e a pressão caleidoscópica das duas maiores classes da
sociedade capitalista (a burguesia e o proletariado), se tomar consciência do papel
nefasto que joga contra si própria, pode desempenhar uma função social bem mais
progressiva para o desenvolvimento do país e, em última análise, para si
própria. Isto, contudo só será possível se ela entender os fundamentos da
sociedade em que vivemos e se posicionar politicamente ao lado dos
trabalhadores conscientes. Sabemos que não é uma tarefa fácil, pois a burguesia
joga pesado, utilizando-se do seu método preferencial, que é a corrupção através
do seu poderio material, financeiro e de inúmeras promessas que jamais se
realizarão, além de se apoiar na grande mídia, no seu discurso de terrorismo
psicológico, etc.; por outro lado, sabemos que a consciência ética cumpre um
papel decisivo para muitos dos seus estratos sociais (basta lembrar que grandes
teóricos marxistas vieram desta classe média). A crítica deste texto visa
contribuir para que a classe média brasileira se olhe no seu espelho profundo. Se
pelo menos alguns setores – mesmo que muito minoritários – conseguirem resistir
e fixar o olhar nele, já terá valido a pena.
NOTAS
[i]
GENRO, Tarso. Na contra mão da pré-história. Editora Artes e Ofício, Porto
Alegre, 1992 (página 12).