A grande
mídia – em particular a RBS – e os governos neoliberais financiaram por décadas
a propaganda ideológica de que os serviços públicos são inviáveis. A solução
que apresentam para “resolver seus problemas” é sempre a mesma: privatizá-los;
isto é, transferi-los, um a um, para a iniciativa privada. Se isso acontecesse,
significaria que os atuais funcionários públicos seriam regidos por um regime
de trabalho de empresa privada, passíveis de demissões, descontos e remoções
arbitrárias, bem como trabalhar segundo os índices de produtividade
estabelecidos pelos patrões.
Ininterruptamente veiculado
na grande mídia, o discurso neoliberal acabou por se impor; e, por isso, a
solução aceita como natural pelo
senso comum e pela tacanhice da classe média é a de que só existiria o caminho
da privatização dos serviços públicos. Todos os governos governaram tendo como
objetivo único o pagamento da dívida
e o suposto enfrentamento ao déficit
orçamentário, o que levou a uma drástica diminuição dos recursos investidos em
áreas sociais, como saúde e educação. Os governos que privatizaram todos os
serviços públicos passaram por grandes crises sociais: EUA, Inglaterra, Chile e
Argentina são alguns destes exemplos. Nos EUA e na Inglaterra há uma grave
crise na saúde pública, muito bem retratada no documentário S.O.S. Health, de Michael Moore; o Chile
vive uma profunda crise na educação, que tornou-se privilégio; a Argentina vive
um aumento exponencial da pobreza nas periferias de Buenos Aires, tal como no
Brasil.
O
resultado é que com a política neoliberal aplicada nas últimas décadas, os
serviços públicos se degeneraram, com péssimas condições de trabalho e os
salários arrochados, rebaixando a qualidade dos serviços prestados. Isto serviu
por anos como exemplo de que o “público
não funciona” e o “privado é a
solução”. Porém, as raízes perversas desta lógica nunca foram desenterradas
amplamente e combatidas abertamente. Os servidores públicos acabaram reféns dela.
Isto é, os sindicatos e os partidos de “esquerda” não foram capazes de
enfrentar estes ataques ideológicos e deixaram os trabalhadores a mercê deles. A visão meritocrática paira sobre as nossas
cabeças triunfalmente por falta de um contraponto ideológico e de um plano para
combatê-la. Mesmo alguns servidores abraçam acriticamente a defesa das
privatizações ou da meritocracia contra si próprios, ou são coniventes com
estes ataques por não quererem mudar, repensar, renovar; mas apenas reclamar!
Grande
contingente de servidores públicos se adaptou oportunistamente ao discurso do menor esforço e a aceitação deste
estado de coisas: “não ganho bem, então
não trabalho mesmo”; ou “não podem me
demitir, que se danem!”. Isso significa que muitos servidores públicos não
procuram ou não querem entender as raízes destes problemas e viram as costas
para a sua responsabilidade social, sobretudo em razão da estabilidade – não
casualmente, um dos focos dos ataques da
mídia e dos partidos neoliberais. Assim, decai ainda mais a qualidade dos serviços
públicos prestados; e agora por outros motivos.
Mas não
necessariamente deveria ser assim. O alegado caminho da privatização é uma
enganação, servindo apenas para cortar gastos em nome dos grandes banqueiros e
empresários, deixando a população desassistida. É preciso pensar a prática de
todo o funcionalismo público a partir de uma perspectiva socialista, de
valorização do Estado e do público. O sectarismo reinante no trato destas
questões e a fuga deste debate por parte de sindicatos, partidos de “esquerda” e
dos próprios servidores, apenas podem beneficiar a grande mídia e os partidos
da direita neoliberal, que tiram vantagem desta omissão. É preciso um corajoso
plano de desconstrução da ideologia neoliberal e a demonstração de que o
principal problema dos serviços públicos é o baixo investimento e as péssimas
condições de trabalho. Porém, é preciso combater também a acomodação e a apatia
daqueles servidores que estagnam atrás da estabilidade (e nos contratos "emergenciais" também), deixando um importante
flanco aberto para a mídia e os partidos da direita neoliberal. Todo aquele que
deixa de meditar sobre sua prática profissional e se adapta negativamente a
qualquer situação, está prestando um desserviço para a própria luta em defesa
dos serviços públicos. Não há problemas em desenvolvermos uma escala de mérito
no trabalho, para qualificá-lo cada vez mais. O problema é o mérito visando à
demissão, ao fim do direito ao trabalho.
Cabe
ressaltar que nunca poderemos resolver plenamente os problemas do serviço
público mantendo o capitalismo, pois retirar direitos e privatizar é a sua
lógica econômica intrínseca, o seu DNA. Enquanto ele existir, ameaçará
permanentemente a existência dos serviços públicos ao povo. Dentro deste
contexto, contudo, seria possível pensar e apresentar um outro caminho enquanto
ainda não se pode superá-lo, para contrapormos àquela cantilena neoliberal de
que os “serviços públicos não funcionam”. Se as privatizações resolvessem
alguma coisa, ao privatizar Vale do Rio Doce, Telebrás, Eletrobrás, Petrobrás e
Embraer, teríamos gerado mais riqueza e desenvolvimento para o país, e não uma
nova e pior “crise financeira” para os cofres públicos. Além disso, a
privatização total do setor de telefonias gerou altos índices de reclamação pelo
péssimo atendimento e serviços prestados. Por acaso não existem inúmeros
problemas de qualidade nas empresas privadas também?
A demissão resolve alguma coisa?
A possibilidade
de demitir servidores é a única “solução” apresentada pelos neoliberais,
defensores da privatização e do fim dos serviços públicos. É, também, o
principal objetivo deles. Quem traça as diretrizes do pensamento neoliberal não
são as demandas profissionais do serviço público, mas a agenda econômica.
Enquanto
os trabalhadores não têm condições políticas e econômicas para superar o
capitalismo, é muito importante apresentar um contraponto para servir como
trincheira de defesa do que é público. Seria importante debatermos uma
reutilização dos servidores com baixo desempenho em outras funções ou mesmo em
outras unidades de trabalho, tenham eles estabilidade ou não. A estabilidade
deve ser uma garantia contra a arbitrariedade e tirania das demissões, bem como
garantia do direito ao trabalho, mas nunca uma imunidade à críticas e aos
balanços. E estas críticas não podem ser o álibi para se cortar custos e
destruir o setor público. Se poderia pensar numa forma em que alunos, pais e
pacientes, enfim, os usuários e dependentes dos serviços públicos, cumpririam o
papel de avaliadores, levando em conta a aprendizagem, o respeito, o desempenho
geral, no sentido de melhorar a qualidade dos serviços públicos; e nunca a sua
mera e simples demissão, que é sempre o objetivo dos governos neoliberais
seguindo diretrizes econômicas internacionais. É preciso perguntar: seria a
demissão um solucionador dos
problemas sociais na prestação de qualquer serviço ou uma excelente forma dos
patrões e governos se livrarem de encargos sociais?
O
servidor que ao final de um período fosse aprovado, se manteria no seu posto,
ganhando outras atribuições e podendo escolher certas condições de trabalho;
enfim, tendo um pouco mais de liberdade no seu trabalho; os “reprovados” seriam
deslocados para “reciclagem” em outras funções, mantendo o emprego, mas
perdendo o posto anterior. Deveriam passar por cursos de formação e aprimoramento;
isto é, deveriam começar de novo, levando em consideração as lições de sua
“reprovação”. Quanto mais reincidente um reprovado se tornasse, mais ele seria
tirado de circulação e do contato com o público, fazendo serviços
administrativos, burocráticos, corriqueiros, mas, evidente e necessariamente,
sendo acompanhado por uma equipe de Recursos Humanos, tentando elevar sua
moral, e não simplesmente atirando-o num canto como “coisa inútil”.
No pior
das hipóteses existiria a possibilidade de supervisão permanente e do desconto
salarial, que são mecanismos que precisam ser utilizados com sabedoria para não
desgastá-los desnecessariamente.
A questão do corte do ponto e do desconto salarial
O
mecanismo de desconto salarial precisa ser utilizado com parcimônia e
sabedoria. É certo que existem muitos dirigentes do serviço público que caem
num “amiguismo” e tem medo de descontar omissões, faltas e problemas de outra
ordem dos colegas mais próximos. Entramos numa sinuca de bico, que gera um mal
estar muito grande e abre precedentes para a “ditadura do descaso”. O regime de
trabalho se afrouxa a tal ponto de perder o controle da entidade pública,
aprofundando o caos que vem de cima. Em outros casos, “gestores públicos” tentam
agir como um patrão: descontam greve, não procuram saber ou desconsideram motivos
de faltas, nem tentam solucionar o
problema de outra forma. Simplesmente riscam o ponto e está tudo resolvido.
Em ambos
os casos temos problemas sérios que levam ao desleixo total ou ao medo e ao
assédio moral autoritário. O primeiro afrouxa o regime de trabalho; o segundo
não é eficiente, pois com a atual estrutura do serviço público se desenvolvem
várias formas de resistências (boas e más), mesmo ao autoritarismo de direções
e gestores.
O
caminho para o desconto salarial deve ser construído de forma coletiva, como
fruto de um novo trabalho entre colegas, onde se percebem os graves problemas
e, pelo menos, a maioria, compreende a necessidade da mudança. O corte do ponto
e o desconto salarial devem ter seus critérios também construídos
democraticamente. Isto é, precisam ser precedidos por mecanismos para suprir a
falta e não simplesmente o corte do ponto de forma nua e crua. É preciso o
diálogo entre a coletividade no sentido de se mostrar que é preciso fazer
alguma coisa frente à omissão e as ausências reincidentes. Caso nada seja
feito, é um novo triunfo da grande mídia e dos governos neoliberais na sua luta
pela desmoralização dos serviços públicos. A argumentação destes sobre a
necessidade de se privatizar os serviços públicos ganha força e apoio. É importante
lembrar que o aprimoramento e melhoramento dos serviços públicos serve,
fundamentalmente, para atender o povo mais pobre e desassistido, os
trabalhadores e seus filhos.
Antes
de tudo, é preciso ter a coragem que o movimento sindical não tem, de pautar
estes temas incômodos no sentido de defender o serviço público contra os
brutais ataques da mídia e do governo, mas também reconhecer nossos erros e
falhas. O desconto salarial é um mecanismo ditatorial nas mãos de um individuo,
que o utiliza para explorar, adestrar e subjugar indivíduos, mas, como
lamentavelmente vivemos numa sociedade dividida em classes, com inúmeros
problemas, podemos e devemos utilizá-lo no “bom sentido”, visando elevar a
qualidade dos serviços públicos e o comprometimento com ele. Por tudo isso, o
corte do ponto é apenas um meio possível de utilização, e não a solução dos
problemas, como muitos “gestores públicos” pensam. Caso o corte salarial
resolvesse todo o problema, a privatização total seria a solução.
É preciso uma gestão horizontal e transparente, respeitando as decisões
coletivas e trabalhando para que elas sejam concretizadas honestamente
A
solução para melhorar os serviços públicos está numa forma de gestão aberta,
transparente e voltada para o social, com decisões democráticas e abertas. Os
pessimistas incuráveis ou os sabotadores conscientes dirão que isso é
impossível, pois só serviria para aprofundar o desleixo e o caos. Mas uma forma
de trabalho deste tipo nunca foi tentada
seriamente. No essencial, sempre foi sabotada pelas leis, pelo hierarquismo
e pelo burocratismo. Debater com o contraditório e procurar um caminho
diferente gera medo, porque é algo novo e difícil. Se for tentado seriamente,
principalmente com método e persistência, certamente dará frutos e tenderá ao aumento da
qualidade do serviço prestado. Ao mesmo tempo que o coletivo decide
democraticamente o que fazer, é necessário debater uma disciplina coletiva e as
punições a quem infringe esta disciplina, que pode ser corte salarial ou outras
formas. O debate democrático dará mais autoridade para este tipo de
procedimento do que a ação arbitrária de uma única pessoa ou direção.
Os
pessimistas e sabotadores insistirão que se houver ampla democracia, muitos
trabalhadores simplesmente dirão que “preferem não trabalhar”, mas é
importantíssimo ressaltar que esta opção não existe. Se somos uma escola
pública, por exemplo, e temos um calendário letivo a ser cumprido, como
construí-lo coletivamente? Como aproveitar os sábados (que são inevitáveis)?
Não existirá, por exemplo, a possibilidade de não trabalhar nos sábados.
Em suma,
não deverá haver a opção de não trabalhar e só ir empurrando com a barriga,
como pensam e fazem muitos; mas simplesmente debater democraticamente a melhor
forma de trabalhar e de prestar o nosso serviço para a população. Não é
possível fazer tudo isso tendo salários parcelados e péssimas condições de
trabalho, dirão alguns; o que é parcialmente correto. Mas como fazer o nosso
melhor dentro de condições difíceis? O que priorizar e o que secundarizar? Por
acaso devemos nós abrir mão de tudo, inclusive dos serviços públicos,
facilitando a vida da grande mídia e dos governos neoliberais?
Pois é
este o único caminho que nos espera, caso sejamos negligentes e desleixados.
Somente apresentaremos um caminho alternativo se nos unirmos democraticamente e
soubermos crescer, tropeçando e reconstruindo degraus em unidade. Se é difícil
construirmos uma gestão democrática e coletiva, é mais certo ainda que quando o
método for construído e solidificado em torno desta prática, a tendência é ir melhorando a qualidade do
trabalho – uma vez que será mais compreendido e pensado coletivamente – e o
conjunto de servidores tenderá a se ver como um corpo mais coeso e não numa
guerra de todos contra todos, entre grupo de amigos e os excluídos.
Por outro
lado, é certo também que a lei e a
arrogância de muitos servidores públicos serão um empecilho para estas
mudanças, mas toda e qualquer mudança começa com um primeiro passo, com uma
nova visão e uma nova forma de pensar sobre velhos problemas. Para tudo isso é
preciso, antes de qualquer coisa, coragem para se dar os primeiros passos!