domingo, 17 de julho de 2016

O desenvolvimento do capitalismo no Brasil

No Brasil, a evolução do processo político
chega sempre com o atraso de muitos anos,
às vezes até de uma geração”. 
(Extraído do texto:
Ao proletariado a tática eleitoral
dos bolcheviques-leninistas, da
 Liga Comunista Internacionalista)

I
Introdução

         Há uma compreensão comum entre as organizações de esquerda que reconhece o Brasil como um país periférico no mercado mundial. Esta dependência internacional não se constitui em uma casualidade, mas no resultado inevitável de todo o seu processo histórico de desenvolvimento. Entre a esquerda, ninguém contesta que a nação é dependente dos países imperialistas em razão das diversas formas de dominação externa: dívida pública, busca de investimentos, ausência de indústria e de tecnologia próprias, a manipulação midiática política da opinião pública, que torna o país refém das agências de classificação de risco financeiro; dentre outros meios. A burguesia nacional especializou-se na produção de matérias-primas para o mercado mundial e manteve o poder político como protetor e incentivador exclusivo destas práticas econômicas.
A mentalidade atual que vê o Brasil como um país “sem solução”, “corrupto por natureza” e incomparável aos centros internacionais – EUA e Europa –, é um reflexo, mais ou menos direto, deste impasse econômico em que a nossa débil burguesia afundou o país. Sem poder livrar o Brasil da herança colonial, a burguesia brasileira sempre se demonstrou fraca e incapaz de realizar uma revolução no país, seguindo a “via clássica” dos franceses em 1789 ou dos norte-americanos em 1776. As suas características marcantes se expressam em uma mentalidade conservadora, que mesclava liberalismo econômico e escravidão negra; pouca ou nenhuma iniciativa política e econômica; ausência de empreendedorismo social ou econômico; apego ao patrimonialismo. No âmbito político, não passou de capataz do imperialismo, trabalhando como gerenciadora da força de trabalho do povo e administradora da pobreza econômica e cultural da maioria da população. Em razão deste atraso político, a burguesia nacional vê a força do seu Estado escapar constantemente de suas mãos, sendo condenada a ceder o controle político à ação internacional imperialista, sobretudo devido a sua incapacidade histórica de agir coletivamente enquanto classe a nível internacional. As suas picuinhas econômicas internas para melhor explorar o proletariado nacional e servi-lo de bandeja ao amo imperialista, a impede de olhar o futuro com confiança.
Em todas as encruzilhadas históricas, por conveniência e medo, a burguesia brasileira sempre aliou-se ao imperialismo contra o povo de seu próprio país. Refletindo a sua debilidade econômica, ela naturalmente percebe-se menor, mais fraca e menos importante do que a burguesia imperialista. Passa indiretamente este sentimento de inferioridade para toda a população, gerando aquela “mentalidade” que afirma: o Brasil será sempre um país fraco que nunca poderá competir com os países centrais; pode ser “apenas o Brasil”, um país chafurdado na corrupção e no inativismo político, sem filósofos e cientistas, que apenas se preocupa com a formação de jogadores, cantores e parasitas em busca de um cargo de confiança.
Por tudo isso, a burguesia brasileira foi e é inapta para gerar um sentimento de patriotismo no povo, a não ser na elite mais próxima ao poder e em parte da classe média, que identifica patriotismo com exaltação do exército. O resultado é um inevitável sentimento de descrédito em relação ao país, que tem implicações políticas nocivas de paralisia, abstencionismo e hipocrisia. Suas tradições históricas são “patrioteiras”; ou seja, elas baseiam-se em alguns combates às invasões estrangeiras num passado longínquo, se constituindo de lutas episódicas que nunca se estenderam a todo o país, conservando um caráter regional.
Ao aparecer na arena histórica, atrasada e desnorteada, a burguesia brasileira já nasceu velha e reacionária, com ideais democráticos corruptos e paternalistas. Teve de se formar e “lutar” contra outras forças e tendências econômicas regionais e atrasadas em meio ao turbilhão do surgimento do imperialismo internacional, subordinando a sua própria defesa à defesa do capitalismo imperialista. A burguesia brasileira só começa a adquirir consciência de classe em razão do seu pavor à revolução social[1]. Sendo assim, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil se deu mais por uma “invasão econômica” estrangeira – sobretudo da Inglaterra, em meados do século 19, seguida pelo imperialismo norte-americano –, do que por uma ação da burguesia brasileira, que nasceu raquítica e dependente no turbilhão deste processo extremamente contraditório.

II
A colonização do Brasil
        
         A colonização do Brasil por Portugal, apesar de ter começado um século antes do que a norte-americana, guiou-se por outros princípios. O primeiro estabelecimento colonial na América do Norte foi um posto avançado de comércio fundado em Jamestown, em 1607, em uma região que logo se desenvolveria numa florescente economia baseada nas plantações de fumo, que encontrava sempre um bom mercado na Inglaterra. O comércio com a Europa, além de ser livre comparado à situação das colônias portuguesas e espanholas da América, era vital para que os colonos pudessem importar tudo aquilo que ainda não conseguiam produzir.
Em contraste com as políticas de colonização de outros países – como a do Brasil e da América espanhola –, a emigração de colonos que sobrevinha da Inglaterra não era patrocinada pela coroa, mas sim por grupos particulares, cuja principal motivação era o lucro e a liberdade política e religiosa. Os perseguidos políticos fugiam do ambiente de opressão do velho mundo, se estabelecendo em pequenas propriedades que valorizavam a formação de um mercado interno. Muitos protestantes puderam se instalar na América do Norte se livrando dos pesados grilhões da Igreja Católica, que ainda se mantinha como uma camisa de força para o livre desenvolvimento do capitalismo na Europa e no mundo. As 13 colônias eram comunidades auto-suficientes com saídas próprias para o mar. Cada uma delas se tornou uma entidade distinta, marcada por uma forte individualidade, que, no entanto, soube se unir na resolução de problemas comuns sobre comércio, navegação, fabricação, moeda e da independência nacional. Compartilhando as coisas duras da vida, cultivando o mesmo solo pedregoso e praticando o mesmo comércio ou profissão, os colonos da Nova Inglaterra rapidamente adquiriram características políticas que os tornavam autoconfiantes e independentes[2].
Na contramão disso tudo estava o Brasil, que teve uma colonização absolutista e retrógrada. Baseado no regime de latifúndios cedidos pela coroa portuguesa a fidalgos e no trabalho escravo, o Brasil não contava com nenhum tipo de autonomia comercial e cultural. A grande propriedade agrícola levou à instauração do regime escravista; e estes elementos foram a base da economia colonial brasileira por séculos. O império colonial português da época dos “descobrimentos”, da expansão marítima e da conquista, organizava-se como um complexo Estado patrimonial, baseado em estamentos[3]. A falta de trabalhadores braçais levou a coroa portuguesa à introduzir a escravidão negra, o que veio a esvaziar a ordem estamental portuguesa de muitas de suas funções econômicas e sociais, porém, manteve os fortes traços patrimonialistas. Dentro dos estamentos, a coroa transferia terras aos nobres e aos colonos fiéis. As concessões de sesmarias demarcavam as estruturas de poder que não podiam ser tocadas ou modificadas, como condição histórica para manter a estratificação estamental que servia de base social à existência e ao fortalecimento do Estado patrimonial. Portanto, as doações da coroa (ou feitas em seu nome) traduziam uma política de concentração social da propriedade da terra. Tal política não criou apenas o latifúndio. Ela excluiu, desde o início, a massa da população livre, pertencente ou não à ordem estamental, da posse da terra e, por aí, do controle do poder local e do direito de ter vínculos diretos com o Estado[4].
Controlado com mãos de ferro por uma santa aliança entre Portugal e a Igreja Católica, o país nasceu sob o selo da grande propriedade da terra (as sesmarias), do obscurantismo religioso, da proibição de construir fábricas, universidades e de publicar ou ler livros. As iniciativas individuais não eram incentivadas e bem vistas por parte dos governadores locais, que não titubeavam em questionar, exilar ou executar qualquer tipo de colono que praticasse uma ação intolerável ou dissonante ao que mandava a metrópole.
Os ciclos econômicos se baseavam nas necessidades de Portugal, sempre visando o mercado internacional e nunca a criação de um mercado interno, a não ser aonde isso fosse inevitável no sentido de garantir a economia de exportação. Qualquer tipo de produção interna – como a agricultura e a pecuária – servia única e exclusivamente para sustentar a produção principal, voltada para o mercado europeu em expansão. Todos os produtos eram primários; reles matérias-primas que serviam apenas para enriquecer a metrópole às custas da exploração predatória da colônia. Não casualmente, o rei D. João IV dizia: “o Brasil é a vaca leiteira de Portugal”.
No período colonial a produção econômica pautou-se pelo pau-brasil, açúcar, ouro e algodão; no período imperial e republicano, pelo café, borracha, minério e petróleo. Podemos destacar ainda alguns produtos agrícolas secundários que serviram para mover uma economia regional, tais como: cacau, tabaco, arroz, anil e a pecuária[5]. A produção, baseada em latifúndios, no trabalho escravo, moldada e dirigida segundo as conveniências da coroa portuguesa, impediu a criação de um mercado interno, que só pôde ter seus germes livres para fermentar no final do século 19 e início do 20.
Para piorar a situação brasileira, Portugal ainda endividou-se com a Inglaterra a partir do Tratado de Methuen, mais conhecido como “tratado de panos e vinhos”. Celebrado em 1703, o tratado obrigava Portugal a comprar roupas da Inglaterra e esta a comprar vinhos de Portugal. É sabido que a produção têxtil inglesa foi a alavanca da Revolução Industrial, que mudou a face da Europa e abriu alas para o desenvolvimento do capitalismo industrial. As dívidas de Portugal com a Inglaterra, que aumentaram progressivamente, foram pagas com o ouro brasileiro, às custas do sangue e do suor dos escravos negros. A acumulação de capital na Europa se deu, portanto, a partir da exploração escravocrata em toda a América colonial (incluso o sul dos EUA e as Antilhas).
A célula econômica do Brasil colonial desenvolveu-se em torno da família, cujo topo da pirâmide era o patriarca, geralmente senhor de vários escravos. Nos seus domínios rurais imperava o tipo de família organizada segundo as normas clássicas do velho direito romano-canônico, mantidas na Península Ibérica através de inúmeras gerações, e que foi estabelecida no Brasil pela tradição milenar portuguesa. É este o centro e a base de toda a organização política e econômica. Os escravos das plantações e das casas, os agregados e os “clientes”, dilatavam o círculo familiar e, com ele, a autoridade do patriarca. Toda esta estrutura tem o seu apogeu com o Rei de Portugal e o Papa, os patriarcas maiores. À mulher cabia uma condição subalterna de opressão, de criação dos filhos e de tarefas domésticas. Socialmente abaixo dos senhores de engenho estavam os lavradores “livres”, que não podem ser considerados como pequenos produtores porque também possuíam escravos, embora em menor número, além de sua unidade familiar social reproduzir, numa escala menor, a mesma lógica dos grandes engenhos e plantações. Estes lavradores situavam-se entre os dois extremos – senhores e escravos –, considerando-se como parte da “população livre”, predominantemente composta de mestiços (brancos e indígenas), e se identificando com o segmento dominante em termos de lealdade e de solidariedade.
Enquanto nos EUA floresceram ideias e políticas de pensadores como Benjamin Franklin, que era não apenas um inventor que encontrou terreno fértil para criar e desenvolver projetos inovadores, mas um incentivador da cultura através de clubes literários e filosóficos, além de um exímio empreendedor econômico e científico; no Brasil, lideranças como Barão de Mauá – tido por muitos como o “primeiro burguês” brasileiro – e Jorge Street não conseguiram romper com as amarras políticas e econômicas coloniais. Muitas das grandes iniciativas progressistas de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, puderam ser toleradas e até admiradas enquanto não comprometiam os padrões imperiais, patriarcais e clientelistas em que a nação foi edificada. Os choques políticos nem sempre eram evitáveis e, nestes casos, a tolerância se transformava em desconfiança e em oposição calorosa[6].
As instituições políticas foram alicerçadas na pantanosa herança colonial e a burguesia progressista era logo esmagada por uma coalizão entre a monarquia e os senhores de escravos, ligada entre si por vínculos clientelistas que não podiam ser questionados. Nem o próprio Barão de Mauá teve forças ou foi tão progressista a ponto de protestar contra a monarquia imperial e as suas instituições. Ao contrário, se beneficiou delas. De certo modo, o malogro comercial de Mauá também é um indício eloqüente da radical incompatibilidade entre as formas de vida copiadas das nações capitalistas centrais, de um lado, e o patriarcalismo e o personalismo fixados no Brasil por uma tradição de origens seculares, por outro[7].
Ao contrário do que muitos teóricos reformistas apontam – sobretudo os de tradição stalinista –, o Brasil nunca teve um “passado feudal”. O Brasil foi descoberto e entrou no ciclo de exploração colonial já na época do chamado mercantilismo, que foi uma formação econômica de transição entre o feudalismo e o capitalismo comercial. Caio Prado Jr. deu uma definição mais adequada sobre a formação econômico-social da era colonial brasileira, identificada por ele como “um escravismo mercantil fundado na grande exploração rural, produtora de valores de troca para o mercado internacional”[8]. As grandes propriedades fundiárias (os engenhos de açúcar, as plantations, as plantações de café, as minas de ouro, etc.) sempre estiveram voltadas para o exterior, e nunca fechadas em si mesmo, como um feudo. Os senhores de engenho e de escravos do Brasil colonial eram dirigidos pelos interesses de Portugal, sintonizados com o nascimento do mercado capitalista mundial.
Analisando a colonização espanhola da América, o historiador argentino Milcíades Peña, define precisamente o “mito da colonização feudal” baseando-se em uma série de outros trabalhos historiográficos: “(...) o regime colonial [na América] se assemelha muito mais ao capitalismo do que ao feudalismo. Bem entendido, não se trata do capitalismo industrial. É um capitalismo de fábrica, ‘capitalismo colonial’, que ao contrário do feudalismo não produz em pequena escala e antes de tudo para o consumo local, senão em grande escala, utilizando grandes massas de trabalhadores e com vistas ao mercado; geralmente ao mercado mundial ou, na sua falta, ao mercado local estruturado em torno dos estabelecimentos que produzem para a exportação. Estas são características decisivamente capitalistas, ainda que não do capitalismo industrial que se caracteriza pelo salário livre. Neste sentido, a colonização espanhola [e a portuguesa] antecipou [aram] a obra que o capital imperialista realizaria na África, na Ásia e em algumas zonas da América durante as últimas décadas do século 19 e as primeiras do século 20, quando os grandes consórcios imperialistas montaram sistemas de produção híbridos, que sendo no essencial capitalistas, se assemelhavam bastante à escravatura”[9].

III
As “revoluções passivas” (a chamada “modernização dependente” ou “via prussiana”)

         O marxismo constatou duas formas principais de passagem dos antigos regimes econômicos pré-capitalistas (feudais, no caso da Europa, ou escravocrata-mercantil, no caso do Brasil) para o capitalismo. A chamada “via clássica” se caracteriza por uma revolução que destrói as antigas instituições absolutistas, acaba com o latifúndio, realiza a reforma agrária visando a criação de um mercado interno e instaura uma república democrático-burguesa. Por estas razões foram batizadas pelo marxismo de “revoluções burguesas”, que cumprem o papel de abrir o caminho ao capitalismo. Os exemplos mais categóricos desta via se deram na Revolução Francesa de 1789 e na Independência norte-americana, em 1776. A chamada “via prussiana”, oposta pelos seus métodos à “via clássica”, foi assim batizada por Lenin em razão do modo pelo qual a evolução ao capitalismo resolveu a questão agrária na antiga Prússia (nome de uma parte da Alemanha no século 19).
         No livro intitulado “O programa agrário da social-democracia”, Lenin assim define a “via prussiana”: “Marx já dizia que a forma de propriedade agrária que o modo de produção capitalista encontra na história, ao começar a desenvolver-se, não corresponde ao capitalismo. O próprio capitalismo cria para si formas correspondentes de relações agrárias, partindo das velhas formas de posse da terra. Na Alemanha [antigamente chamada de Prússia], a transformação das formas medievais de propriedade agrária se processou, por assim dizer, seguindo a via reformista, adaptando-se à rotina, à tradição, às propriedades feudais, que se foram transformando lentamente em fazenda de Junkers. Nos EUA, a transformação foi violenta. As terras [dos latifundiários] foram fracionadas; a grande propriedade agrária feudal se converte em pequena propriedade burguesa”.
         Resumidamente podemos afirmar que a “via clássica” implica uma radical transformação da estrutura agrária: a antiga propriedade pré-capitalista é destruída, convertendo-se em pequena exploração camponesa; isto é, ocorre a reforma agrária e a mudança das instituições políticas. Já a “via prussiana” conserva a dimensão da velha propriedade rural, se tornando gradativamente empresa agrária capitalista, mas no quadro da manutenção de formas de trabalho fundadas na coerção extra econômica, em vínculos de dependência ou subordinação que se situam fora das relações “impessoais” de mercado. É evidente que isso permite a conservação ou até mesmo o fortalecimento do poder político do velho tipo de proprietário rural, que continua a ocupar postos privilegiados no aparelho de Estado da “nova ordem” capitalista[10].
         O desenvolvimento do capitalismo no Brasil seguiu a “via prussiana”. As transformações ocorridas na história brasileira não resultaram de autênticas revoluções burguesas, de movimentos independentes provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população e abrindo o caminho para o capitalismo; mas se processaram através de “acordões” de bastidores entre as elites, de uma conciliação entre os representantes de grupos opositores dominantes economicamente. Conciliação esta que se expressa sob a figura política das “reformas pelo alto”. Esta conciliação pelo alto jamais escondeu a intenção de manter marginalizadas e reprimidas as classes e camadas sociais “de baixo”[11]. O conceito de “revolução passiva”, adotado por Gramsci para explicar o desenvolvimento do capitalismo na Itália, expressa o mesmo conteúdo que pretende sintetizar a ausência de participação popular nestes movimentos sociais.
         Analisando os principais momentos de transição política e econômica da história do Brasil percebe-se claramente que se deram sob este estigma de “revolução passiva” ou da “modernização dependente”. Os movimentos de caráter nacional ocorridos nos séculos passados foram sempre agitações superficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e popular. O processo de independência foi instigado por um grande setor da elite colonial e dirigido pela figura de D. Pedro I, filho do rei de Portugal, D. João VI, e herdeiro do trono português. As camadas populares – sobretudo a grande massa de escravos – ficaram completamente alheias a tal movimento independentista, que não passou de um “arranjo de cúpula” entre as classes dominantes. Os senhores já tinham alcançado solidariedade política estamental suficiente para impor a sua própria posição, contendo uma possível mudança radical e transformando-a em uma “revolução política dentro da ordem”, ou seja, numa mudança com a preservação do monopólio da terra, da escravidão e de todos os privilégios da aristocracia. A grande propriedade rural, herança da colônia, foi totalmente conservada. A “independência do Brasil” constituiu-se no oposto da Revolução Francesa, que realizou a reforma agrária, destruiu as velhas instituições políticas e separou a Igreja do Estado; ou da independência norte-americana, que abriu o caminho para o desenvolvimento econômico industrial. Para reconhecer a “independência do Brasil”, Portugal obrigou o novo governo a assumir a sua dívida com a Inglaterra, o que foi aceito naturalmente por D. Pedro I e pela elite brasileira. Para pagá-la, contraíram empréstimos com a própria Inglaterra. Assim, o pacto colonial se transformou em dívida externa e a dependência internacional, ao invés de ser liquidada, apenas mudou de metrópole. A Inglaterra e outros centros dominantes internacionais competiram entre si pela partilha dos despojos coloniais, mas tinham o mesmo interesse pela continuidade da produção de “gêneros coloniais” no Brasil e de sua exportação para o mercado europeu.
As revoltas coloniais e do período imperial, apesar de ocorrerem em grande quantidade, foram limitadas e organizadas pela cúpula. Em sua maioria, tinham um programa dúbio ou mesmo contrário ao fim da escravidão. Possuíam, no geral, com algumas exceções, um caráter elitista, confuso, e não tinham a preocupação de angariar apoio popular. Às que possuíam um caráter popular, faltava esclarecimento, consciência, organização e extensão nacional. Por todas estas debilidades não tiveram condições de derrubar o poder colonial e imperial.
Ainda que a escravidão negra no Brasil tenha ficado muito longe de ser pacata, como dá a entender a historiografia oficial, a abolição da escravatura se deu, novamente, por acordos de cúpulas entre as classes dominantes e, sobretudo, por pressões internacionais. A grande quantidade de imigrantes europeus preparou a base do regime de trabalho assalariado que entraria em vigor no lugar da escravidão. Os quilombos, que se proliferaram ao longo do tempo e de todo o território nacional, não tiveram a força e a unidade capaz de derrubar por sua própria organização o regime escravista, nem tiveram consciência e condições de criar um governo substituto para o país, tal como fizeram os escravos haitianos na sua revolução em 1791. Tampouco a burguesia brasileira foi “progressiva” se propondo a liquidar a escravidão por vias revolucionárias, tal como fez a burguesia industrial norte-americana liderada por Abraham Lincoln. Ela preferiu selar um acordo espúrio com a velha oligarquia escravista ao invés de um enfrentamento decisivo.
         A proclamação da República, em 1889, veio na esteira da Lei Áurea, de 1888; isto é, como reflexo dos “acordões de cúpula” para abolir a escravidão e ingressar num híbrido regime de trabalho assalariado e patrimonialismo coronelista. A grande figura desta proclamação, o Marechal Deodoro da Fonseca, até as vésperas do golpe de Estado era um monarquista e amigo de D. Pedro II. O governo provisório republicano manteve os compromissos financeiros internacionais contraídos pela monarquia brasileira – isto é, não apenas manteve, mas aprofundou a dívida externa ilegítima – e suas despesas, sobretudo em relação à criminosa guerra do Paraguai, que interessava apenas à elite nacional e internacional. Ao proclamarem a República, os antigos senhores sob orientação da burguesia paulista apenas resolveram os problemas dos braços para as lavouras, bem como salvaram o monopólio da terra e o poder oligárquico, impondo à “revolução burguesa” os seus próprios ritmos históricos arcaicos e o padrão coronelista que iria minar a ordem republicana[12]. Com o advento da mudança de regime político não houve nenhuma transformação social, apenas o início do ingresso do país na era imperialista do capitalismo, condicionando o Brasil à produção de matérias-primas para o mercado mundial. Tampouco podemos constatar mudanças institucionais que indicassem maior democracia para o povo, pois a estrutura econômica capitalista, baseada no agrarismo coronelista, não o permitia. O sistema político de castas aristocráticas do Império não acabou, apenas cedeu lugar ao coronelismo, que fortaleceu o regionalismo em detrimento da união federativa (é aqui que muitos teóricos enxergam os resquícios do “feudalismo brasileiro”). O voto censitário transformou-se em voto a cabresto. Os antigos senhores de escravos cederam o lugar para os cafeicultores paulistas, que conduziram a conclusão da introdução do trabalho assalariado no país e lideraram uma incipiente industrialização visando o incremento de sua própria produção.
         A crise econômica de 1929 intensificou a crise política do Brasil em razão da queda do valor do café no mercado internacional. O enfraquecimento da oligarquia cafeeira paulista contribuiu para desestruturar a organização do poder da República Velha, que já vinha em crise desde o início da década de 1920. A burguesia dos demais estados, a classe média e os setores populares urbanos reivindicavam maior participação política, pois até o momento a hegemonia política pertencia ao Partido Republicano Paulista (PRP) e, regionalmente, aos coronéis, que sustentavam a política do “café com leite”. Rompeu-se o acordo entre as lideranças de Minas Gerais e São Paulo. Não houve entendimento para indicar o candidato à sucessão de Washington Luís. O rompimento da política do “café com leite” agitou o país, abrindo possibilidades revolucionárias. O correligionário de Vargas, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, membro da Aliança Liberal e um dos líderes da “Revolução de 30”, disse durante um discurso em 1929: “Façamos a revolução pelo voto antes que o povo a faça pelas armas”. A declaração sintetiza a história do Brasil e traduz bem o significado da “revolução passiva”.
Após tomar o poder, não pelo voto, mas por intermédio das armas e sem o povo, o governo de Vargas implantou algumas medidas para neutralizar o combate das elites locais em defesa de sua autonomia regional: a suspensão da Constituição de 1891; o fechamento do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais; a indicação de interventores militares para chefiar os governos estaduais. A guerra civil entre elites, que ficou conhecida como “Revolução de 1930”, quase levou à divisão do país, que foi mantida em razão das inúmeras manobras e concessões do governo provisório. Entregando o poder dos governos estaduais aos interventores, Getúlio Vargas pretendia desmontar a estrutura oligárquica da República Velha, baseada no poder dos coronéis, não em benefício dos trabalhadores e do povo, mas de uma nova elite política nacional.
“Revolução de 1930” tencionou pela remoção de obstáculos para a industrialização e a criação plena de um mercado interno que a “evolução” histórica anterior não logrou alcançar justamente porque os métodos da “revolução passiva” postergaram a agonia e as contradições. Por sua vez, o governo varguista também não conseguiu resolver plenamente tais problemas porque se utilizou dos mesmos métodos limitados da “revolução pelo alto” e da “modernização dependente”, seguindo como um refém voluntário da chantagem e da sabotagem imperialista. Apesar da iniciativa de modernização e industrialização iniciada com a “Revolução de 1930”, nada de essencial foi modificado na evolução estrutural do país. O Estado Novo acabou com a monopolização do poder por parte das velhas oligarquias agrárias, mas deu a possibilidade de restauração do seu poder político e econômico sob novas bases e limitações.
O imperialismo norte-americano ainda tolerou alguns governos da chamada “República Populista”, que tentaram criar uma imagem distinta de Vargas para atrair capitais internacionais, escancarando o mercado interno brasileiro às multinacionais imperialistas e endividando assustadoramente o país. Os presidentes Gaspar Dutra e JK foram os campeões destas “tenebrosas transações”.
Uma vez que esta política nefasta aumentou a miséria e o descontentamento do povo, os presidentes Jânio Quadros e João Goulart tentaram retomar algumas políticas populistas de Vargas, tais como o aumento do salário mínimo, a lei que restringia o envio de lucro ao exterior e algumas tímidas reformas de base, como a expropriação de determinadas terras e refinarias de segunda ordem, bem como certas pretensões industrializantes. Estas tímidas reformas, somadas ao “perigo” da Revolução Cubana (1959), fizeram soar o alarme para que o exército brasileiro, patrocinado pelo imperialismo ianque, protagonizasse um golpe de Estado e derrubasse estes setores da burguesia do governo para colocar em seu lugar uma junta militar contra-revolucionária fascista, que desencadearia uma repressão nefasta sobre o povo. Tal medida foi seguida em toda a América Latina, cabendo um destaque especial para o Chile, que sofreu com uma repressão brutal em razão da tentativa de aplicação de uma “política nacionalista” pelo presidente Salvador Allende.
A ditadura militar brasileira (1964-1985) vendeu o seu golpe como “revolução” e teve o papel de concluir – de forma autoritária, naturalmente – a transição do Brasil da etapa do capitalismo industrial-concorrencial para a fase imperialista. Todos os principais setores da economia, com importante destaque para a grande mídia, tornaram-se monopólios através de uma política permanente de fusão e incorporação. O “sonho” nacionalista foi definitivamente enterrado e o destino de semi-colônia autoritariamente selado.
A transição da ditadura para a democracia burguesa – bem como a promulgação da Constituição de 1988 – também se deu sob uma nova “revolução passiva”, feita pelo alto e à revelia dos interesses do povo, ainda que ela tenha se iniciado em razão da pressão popular das greves operárias, sobretudo as do ABC paulista. O PT e a CUT surgiram neste processo, mas terminaram cooptados pelo Estado burguês em razão da opção pelo programa reformista (que será analisado mais adiante). Com bastante êxito, a burguesia brasileira conseguiu evitar a explosão de uma revolução socialista e, de quebra, ainda ganhou a maior parte da esquerda brasileira e o movimento sindical dirigido por ela para defender acriticamente o “novo” regime democrático-burguês e sustentar suas instituições.

IV
O desenvolvimento do capitalismo no Brasil

         A questão fundamental para identificarmos o processo de desenvolvimento do capitalismo em um país é a criação do seu mercado interno. Sob a “economia natural”, agrícola, as sociedades se compunham de uma massa de unidades econômicas homogêneas (famílias camponesas patriarcais, comunidades rurais primitivas, domínios feudais) e cada uma dessas unidades executava todos os tipos de trabalho, desde a obtenção das matérias-primas até a sua preparação definitiva para o consumo. Uma das características da criação do mercado interno, segundo Marx e Lenin, se dá quando a força de trabalho se converte em mercadoria, isto é, surge o regime de trabalho assalariado, explorado por um dono de um meio de produção (capitalista) visando à venda no mercado, e a divisão social do trabalho. Com a economia mercantil capitalista, a indústria de transformação se separa da indústria extrativa e cada uma delas se subdivide em pequenas categorias e subcategorias, que fabricam produtos particulares na forma de mercadorias, trocando-os com todos os outros produtos.
         “O processo fundamental de criação do mercado interno (ou seja, de desenvolvimento da produção mercantil e do capitalismo) – escreveu Lenin – é a divisão social do trabalho. Esta consiste em que diferentes tipos de transformação de matérias-primas se separam sucessivamente da agricultura e constituem ramos independentes da indústria, trocando seus produtos (agora convertidos em mercadorias) pelos produtos agrícolas. Desse modo, a própria agricultura torna-se indústria (isto é, passa a produzir mercadorias) e também nela o mesmo processo de especialização se efetiva”[13].
        No Brasil, em razão dos métodos da “revolução passiva”, esta evolução econômica foi se dando espaçadamente no tempo, de forma semi-espontânea, sendo mais um resultado das pressões internacionais do que um planejamento político e social da burguesia nacional. A economia brasileira sempre ficou na dependência de um afluxo regular e crescente de capitais estrangeiros, o qual não pôde mais escassear sem graves perturbações. Esta dependência leva ao enfraquecimento industrial e comercial. Afora a produção dos referidos gêneros de matérias-primas destinadas à exportação, o Brasil nunca pôde concorrer com as mercadorias importadas do estrangeiro. Para além dos seus defeitos de organização produtiva e a escassez de capitais, o Brasil está totalmente desarmado para fazer restrições à produção estrangeira. A “independência” nacional estabelecerá a economia em função dos interesses comerciais ingleses durante todo o século 19. Aos ingleses caberão, sobretudo, o grande comércio e as transações financeiras; aos franceses, o negócio de luxo e de modas.
Esta dependência econômica do Brasil foi tornando necessário a transformação do trabalho escravo em trabalho assalariado, fruto dos interesses do capital internacional. O primeiro e decisivo passo para este desenvolvimento capitalista foi abolir a escravidão, sem o qual não haveria a possibilidade de instituir o trabalho assalariado e a divisão social do trabalho no sentido que o capitalismo lhe confere. Mas esta medida se deu muito antes da industrialização mais básica da própria agricultura, que só viria a acontecer em meados da República Velha e, dado a baixa densidade demográfica e a grandeza geográfica do país, somente em algumas regiões, como o oeste paulista. Foi a partir da monocultura do café que a economia paulista foi transformando-se plenamente em uma empresa capitalista nacional. O desenvolvimento da cultura cafeeira no Brasil representa já, tipicamente, um desenvolvimento capitalista. O tipo de exploração determinou uma prosperidade favorável ao desenvolvimento do capitalismo sob todas as suas formas. Desde o sistema de créditos, o crescimento da dívida hipotecária, o comércio nos portos de exportação; até a importação dos braços que faltavam (os imigrantes italianos, alemães, dentre outros), que adquiriu, a partir daí, um caráter de empresa industrial.
A introdução do trabalho assalariado aumentou em fins do século 19 com a imigração européia, que substituiu o trabalho escravo, e a mecanização da produção cafeeira se deu plenamente apenas no século 20, contribuindo para a lenta transformação do Brasil de um país rural em um país urbano. O senhor de escravos tornou-se “homem de negócios”, trazendo consigo a mentalidade colonial para a economia moderna. O crescimento das economias urbanas e o mundo dos negócios criado pela produção cafeeira nas cidades de Rio de Janeiro e São Paulo possibilitaram as condições para o senhor de escravos intervir em outras esferas da vida econômica. O aumento populacional das cidades em detrimento do campo é outra necessidade fundamental para o desenvolvimento de um mercado interno e do próprio capitalismo.
         Apesar do desenvolvimento econômico já estar se direcionando no sentido do capitalismo, o pleno ingresso do Brasil neste sistema só se deu com a proclamação da República, que era uma exigência e uma imposição da burguesia de São Paulo visando implantar a sua hegemonia sobre a federação. A República especificou e acelerou a diferenciação dos estados. O sul, com a monocultura cafeeira, preparava as bases do surto industrial e foi deixando para trás as províncias do centro-nordeste. À medida que progredia economicamente, o Brasil integrava-se cada vez mais à economia mundial e entrava na esfera de atração imperialista. O imperialismo altera constantemente a estrutura econômica dos países neocoloniais, impedindo o seu desenvolvimento capitalista clássico, não permitindo que esse desenvolvimento se realize de maneira formal nos limites do Estado
         Neste momento histórico os partidos brasileiros eram regionais, não havendo, portanto, possibilidade de traçar uma política nacional. A burguesia de São Paulo, organizada no Partido Republicano Paulista (PRP), tomou a frente da nação aliada à de Minas Gerais, e conquistou o governo federal, instituindo o que veio a ser conhecido como a política do “café com leite”, que controlou o governo do Rio de Janeiro durante toda a República Velha. A burguesia paulista pôde, então, combinar elementos de acumulação primitiva com os processos de acumulação capitalista que só “a força concentrada da sociedade”, isto é, o poder do Estado, permite sistematizar: a dívida pública, o sistema tributário e o protecionismo. A política da burguesia paulista orientava-se, até então, no sentido da manutenção do monopólio da produção cafeeira no mercado mundial. O aparecimento das indústrias, transformando as bases econômicas mais atrasadas do Brasil, acentuou as tendências centralizadoras do Estado, à medida que se fez mais premente a necessidade de mercados internos.
         O que uma burguesia interessada na monocultura do café poderia oferecer em termos de desenvolvimento econômico, político e social para o resto do país?
Os governantes dos estados secundários tornaram-se meros representantes do poder central nas suas regiões. Quando o capitalismo atingiu um maior desenvolvimento, outros estados (Rio Grande do Sul, Paraíba, Bahia e, inclusive, Minas Gerais) foram forçados a lutar por uma forma política de equilíbrio, o que veio a desencadear a “Revolução de 1930” e o fim da República Velha. O Estado Novo varguista cumpriu o papel histórico de centralizar as oligarquias regionais ao poder federal, criando assim, um forte poder estatal centralizador. Esta é a base de sua ação política.
O resultado do conflito político e econômico entre São Paulo e os demais Estados liderados pelo Rio Grande do Sul foi resolvido através das armas. A guerra civil de 1930 levou Vargas ao poder, mas imediatamente a burguesia paulista preparou a reação armada através da chamada “revolução constitucionalista” (conhecida também como “guerra paulista”) de 1932. O movimento se desencadeou a partir do descontentamento com o fato de Vargas governar por decreto, sem uma Constituição e em um governo provisório. A ditadura varguista também afetou São Paulo ao corroer a autonomia que os estados brasileiros gozavam durante a vigência da Constituição de 1891; fato que interessava profundamente à burguesia cafeeira paulista. Esta insuflou na pequena burguesia local uma ideologia separatista somado a um patriotismo paulista, organizando uma frente partidária semimilitarizada, subornando com sucesso os delegados da ditadura varguista com a permanência de um regime de ordem e outros argumentos mais sonantes.
Apesar de derrotada pela ditadura varguista, a reação paulista tirou vantagens políticas da derrota. Frente ao poderio econômico da burguesia paulista, o varguismo tenta conciliar os interesses opostos próprios da indústria e das lavouras paulistas. O confronto destas forças, desprovido de decisão e inflexibilidade por parte do desenvolvimento industrial de Vargas, inevitavelmente leva água ao moinho dos interesses da monocultura cafeeira de São Paulo. Este freio da ditadura varguista reflete as características da “revolução passiva”, que procura acomodar interesses auto excludentes e que, inevitavelmente, faz estancar o desenvolvimento econômico geral. Mesmo com a derrota, a burguesia cafeeira paulista conseguiu impor eleições para a Assembleia Constituinte onde asseguraria em parte, com o seu milhão de eleitores, a velha hegemonia nas questões fundamentais.
Frente a ausência de uma estratégia consequente e de uma análise justa da situação do país, o PCB veio a tornar-se o sustentáculo da pequena burguesia intermediária (o movimento tenentista, dentre outros) e, a partir desta, da grande burguesia. O proletariado não atuou com consciência e independência de classe. Foi usado como massa de manobra pelos dois setores burgueses em luta, terminando por ser eliminado da cena política. Para isso, concorreram dois fatores: 1) o fraco desenvolvimento do capitalismo no país, o que inevitavelmente tem reflexos na própria formação econômica e, consequentemente, política, do proletariado; 2) a linha política aventureira e equivocada da III Internacional stalinista. Seguindo um pensamento burocrático e esquemático (que será analisado mais a frente), o PCB manteve um alheamento total do movimento político geral do país, levantando palavras de ordem esquemáticas e descoladas da realidade concreta dos trabalhadores. Assim, o proletariado brasileiro foi obrigado a se alimentar dos “restos ideológicos mastigados pela pequena burguesia messiânica”[14].
         A ditadura varguista, seguindo o modelo fascista, destruiu o movimento sindical institucionalizando-o e ligando-o ao Estado, que passou a tutelar os sindicatos a partir do Ministério do Trabalho. A autonomia do movimento sindical, que já era pequena, foi totalmente arruinada e, ainda hoje, em pleno século 21, não foi superada. O governo perseguiu e exilou os militantes do PCB, proibindo o seu funcionamento; não pela sua política, que beneficiava o governo, mas pelo que representava a ideia do comunismo a nível internacional. Utilizando-se do “perigo comunista”, apavorou a burguesia para poder intensificar a sua ditadura. Ao mesmo tempo, legalizou e se apoiou no movimento integralista, baseado no fascismo. Em razão da crise internacional do período entre guerras, Vargas colocou-se como um árbitro entre as classes sociais, ora jogando migalhas aos trabalhadores, arrancando alguma reivindicação do empresariado em “benefício” dos trabalhadores, ora dando grandes benefícios ao empresariado, aumentando a exploração dos trabalhadores. Daí surgiram a CLT, o 13º, as férias. Mas também sobrevieram os grandes lucros dos empresários ligados ao Estado Novo, a corrupção, a perseguição ao movimento sindical independente.
         Com o afastamento das oligarquias regionais que tinham interesses comerciais agrários, a ditadura varguista mudou, em parte, a orientação econômica do país. Inicialmente investiu na criação de uma infraestrutura básica para a indústria a partir das seguintes obras: Conselho Nacional do Petróleo (1938), que foi decisivo para a futura criação da Petrobrás; Companhia Siderúrgica Nacional (1941); Companhia Vale do Rio Doce (1943); e Companhia Hidrelétrica do São Francisco (1945). A indústria brasileira nasceu umbilicalmente ligada ao Estado. As exigências do desenvolvimento industrial, em um país atrasado e de dimensões continentais como o Brasil, buscou, como condição essencial de existência, o apoio direto do Estado. Somente através dele foi possível lançar os alicerces do que ficou conhecida como a “Revolução Industrial” brasileira; isto é, uma tímida e limitada política de expansão industrial que se aproveitou da disputa interimperialista no período entre guerras.
Um traço básico da evolução de nosso “capitalismo não-clássico” se dá justamente na industrialização: ela demandou uma ampla e precoce participação do Estado na acumulação de capital, não só através de processos de regulação, mas também da criação de empresas diretamente produtivas. A intervenção do Estado foi o elemento decisivo na acumulação de capital e, em particular, no processo de industrialização, constituindo assim um traço de nossa “modernidade”. Não é casual que a “revolução passiva” que se inicia em 1930, se fortaleça com o Estado Novo e prossiga na época populista. Uma “revolução” que, industrializando o país com o apoio da intervenção estatal, consolidou definitivamente o modo de produção capitalista no Brasil, pelo viés dependente e periférico.
         Os governos varguistas corresponderam à mudança de hegemonia internacional. O imperialismo inglês passa definitivamente o bastão para o imperialismo norte-americano. Vargas tentou industrializar setores básicos da economia brasileira durante a disputa que precedeu e desencadeou a Segunda Guerra Mundial. Mas uma vez que esta chegou ao fim, o imperialismo ianque deu o seu ultimato ao agonizante nacionalismo varguista. O país foi alinhado definitivamente às diretrizes de Washington e Vargas deposto por duas vezes.
         Como ficou atrasado no desenvolvimento econômico em razão do colonialismo e de todas as suas conseqüências analisadas até aqui, o Brasil não teve condições de industrializar-se e desenvolver tecnologia própria. Desde o início foi completamente dependente dos centros financeiros e tecnológicos imperialistas. A burguesia nacional não teve capacidade nem plena possibilidade de desenvolver a indústria sem chocar-se com o imperialismo e sem ser derrubado por ele. A questão agrária novamente ficou sem solução. O latifúndio escapou ileso da reforma agrária e das reformas de base de Jango. Foi salvo pela ditadura militar e incorporado na etapa do capitalismo imperialista, voltado exclusivamente para o mercado externo e para e especulação fundiária. A burguesia nacional, fraca e covarde, voltou as costas para o povo brasileiro e não aproveitou o desenvolvimento do capitalismo para liquidar a herança colonial. O nacionalismo burguês nasceu atrasado, desenvolveu-se no populismo e morreu na casca, asfixiado pelo imperialismo. Ao Brasil, restou a periferia do mercado capitalista internacional; papel ao qual a burguesia nacional não apenas se submeteu de bom grado, como quer fazer crer que seja algo eterno e imutável.
        A burguesia brasileira não pode solucionar a crise econômica e política em que o país vive permanentemente porque sua incumbência principal é produzir matérias-primas para o mercado mundial (tais como petróleo, minérios, soja, produtos agropecuários). Ela não só manteve, mas aprofundou a dependência do Brasil dos centros financeiros internacionais e da tecnologia importada dos países imperialista. Este foi o papel nefasto cumprido pela era FHC (1994-2002) na política nacional com as suas privatizações de empresas estatais estratégicas, a abertura irrestrita ao capital internacional e a subordinação à chantagem da dívida pública do FMI, Banco Mundial e demais organismos financeiros imperialistas. A indústria de tecnologia do Brasil é toda estrangeira. O real pauta-se pelo dólar; e os setores exportadores estão muito satisfeitos com isso. As diretrizes econômicas do comércio exterior são movidas pelos interesses dos grandes monopólios multinacionais que aqui operam (montadoras de automóveis, fábricas de eletro-eletrônicos, computação, etc.), somados aos interesses de seus sócios menores, isto é, a burguesia tupiniquim (empreiteiras, agronegócio, latifundiários). É por todas estas condições que o Brasil vive um déficit orçamentário forçoso e permanente. Os governos do PT (2003-2016) não mudaram esta lógica.

V
As limitações e peculiaridades do desenvolvimento do capitalismo no Brasil

         Fruto desta realidade social e econômica contraditória, o capitalismo brasileiro possui peculiaridades que o afastam do “capitalismo clássico”, cujas características gerais desenvolveram-se nos países imperialistas. Durante o século 19, a burguesia brasileira manteve, sem nenhum tipo de constrangimento, um discurso e uma prática que mesclavam liberalismo e escravidão, como se não fossem categorias econômicas contrárias e excludentes. A Inglaterra assistiu o trono dos Pedros I e II vegetar por quase um século em torno dos interesses econômicos da aristocracia agrária, enquanto trabalhava para alicerçar os seus interesses imperialistas no continente. Brasil, Argentina e Uruguai foram a porta de entrada para o seu domínio na América do Sul. A crise do sistema escravista de trabalho e a transição para uma república coronelista foi o desfecho “natural” de uma situação rigorosamente insustentável nascida da ambição de vestir um país ainda preso à economia escravocrata com os trajes modernos de uma grande democracia burguesa. Soma-se a isso o fato de uma burguesia nascente e débil se organizar na maçonaria; isto é, numa “sociedade secreta” e ritualística que estava de costas para o povo e voltada para a defesa dos seus próprios interesses de classe, conciliando com os restos oligárquicos dos antigos regimes brasileiros. Muitos movimentos políticos nacionais foram dirigidos segundo suas orientações, cabendo destaque à proclamação da República e à Revolução Farroupilha.
         Alguns estudiosos da história do Brasil – tais como Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda – afirmam que o Brasil, nas épocas colonial e imperial, não era capitalista, razão pela qual sua classe dominante, formada pelos latifundiários escravistas, não se movia com base numa lógica burguesa, mas se orientava por outra “racionalidade”, chamada por eles de “patrimonialista”. Na verdade, as características paternalistas e patrimonialistas do capitalismo brasileiro não lhes retiram a dinâmica dos interesses burgueses. O latifúndio e a escravidão estavam voltadas, em última análise, para o mercado mundial e, portanto, para a produção de valores de troca. Este fato também não exclui as peculiaridades e o desenvolvimento limitado e defeituoso do capitalismo brasileiro, que misturou elementos estranhos na sua formação nacional, lhe conferindo, por isso mesmo, uma posição periférica no mercado mundial. É a partir desta compreensão que podemos analisar a expansão das relações comerciais na época imperial, destacando-se a emergência de duas novas camadas sociais: a dos fazendeiros de café e a dos imigrantes. Embora sem romper inteiramente com a “velha ordem” patrimonialista, tais camadas começaram a agir segundo uma racionalidade propriamente capitalista, o que lhes possibilitou desempenhar – não sem profundas contradições – o papel de protagonistas de uma “meia revolução burguesa”.
         A burguesia brasileira não se pautou pelo empreendedorismo (com raríssimas exceções); nem se colocou abertamente na disputa pelo mercado mundial, pelo desenvolvimento de tecnologia própria e da intelectualidade nacional. Sua mentalidade e preocupação versavam sobre interesses oligárquicos e aristocráticos, de manutenção da velha estrutura agrária e política – de onde provinha o seu lucro e os seus privilégios; e, portanto, nasceu centrada em conservar as manobras de bastidores para manter o status quo. Na época da Revolução Industrial, era impensável um autêntico capitalismo que desconsiderasse ou menosprezasse a lei da oferta e da procura, a busca por novos mercados, o empreendedorismo social e econômico ou a criação de instituições políticas que facilitassem este tipo de desenvolvimento. As estratégicas indústrias têxtil e metalúrgica não progrediram pela covardia e negligência da burguesia nacional. Até a abertura dos portos às nações amigas, em 1808, as deficiências do comércio português, somados ao seu autoritarismo do pacto colonial, tinham operado como uma barreira protetora de uma pequena indústria local que, apesar de pequena, supria uma parte do consumo interno. Esta indústria regional foi totalmente destruída pela “livre” concorrência da indústria inglesa, que passou a suprir até mesmo os artigos mais insignificantes. Esta situação levou à estagnação econômica e à acomodação política por parte da burguesia nacional, se agravando ao correr dos anos em razão do aperfeiçoamento contínuo da indústria européia.
Outro exemplo disso pode ser visto na produção de algodão: enquanto os EUA difundem largamente já em 1792 uma nova máquina para o descaroçamento do algodão, no Brasil se continuará a empregar por decênios o velho princípio do descaroçador de origem imemorial, a churka, que remonta o Oriente antigo. Ignorou-se por completo a descoberta tecnológica que revolucionaria a cultura algodoeira. Outra indústria promissora – a naval – esbarrou no mesmo problema. Por falta de técnica e de organização eficiente, manteve-se estacionária depois do primeiro surto e vegetou daí por diante.
         Uma das razões desta estagnação científica e tecnológica, como já foi dito, está na natureza do colono português – completamente diferente do colono inglês na América do Norte – e, sobretudo, no regime político e administrativo que a metrópole impôs à sua colônia. Este se caracterizou por isolar o Brasil, mantê-lo afastado do mundo e impedindo, portanto, que aqui chegasse outra coisa qualquer que não os reflexos do já baixo nível intelectual de Portugal. O sistema educacional brasileira era um caos. Os poucos expoentes intelectuais da colônia e do império que se destacavam pairavam num “outro mundo”, ignorados por um país que não podia compreendê-los. E sobre tudo isso pesava uma administração mesquinha, preocupada unicamente nos rendimentos do fisco e dos particulares desta camarilha de burocratas incapazes e pouco escrupulosos que governava o país[15].
Os valores políticos republicanos e “capitalistas” do Brasil foram fundados e se baseiam no apadrinhamento, no patriarcalismo e no clientelismo. Estas práticas, estranhas à meritocracia capitalista, foram automaticamente incorporadas ao capitalismo brasileiro e às suas instituições democrático-burguesas. Novamente conceitos econômicos e políticos contraditórios são fundidos como se pudessem representar a mesma coisa. A burguesia que se formou neste processo e o liderou, mantém estas instituições e não vê nada de anormal nelas, senão que conquistou esta estabilidade política e econômica e quer mantê-la a qualquer preço, mesmo que o país fique à margem do mercado mundial e dependente dos países imperialistas. Joga toda a responsabilidade pelo atraso do país nas costas do povo e no seu suposto apreço intrínseco à preguiça, à festa e à apatia.
         Assim, podemos concluir que o Brasil moderno já é plenamente capitalista, apesar de conservar elementos da velha ordem colonial. O desenvolvimento do capitalismo, que se processou sem rupturas com a economia pré-capitalista, não apresentou as mesmas características revolucionárias que teve na Europa Ocidental: em vez de contribuir para romper as amarras daquele mundo antigo, mais ainda as fortalecia, colaborando para transformar o isolamento e a solidão passivos em um individualismo prático e reacionário. Eis aí uma das bases materiais para o surgimento da mentalidade da classe média brasileira, que por não encontrar um contraponto, se alastra para o povo.
Impossibilitada de realizar a sua revolução democrática, a burguesia brasileira jamais tentou criar o citoyen[16] (ou seja, o ser-humano que sintetiza em si a vida pública e a vida privada). Sendo assim, no Brasil, a penetração e a evolução do capitalismo ganharam características bastante originais pela existência simultânea e contraditória de vários dos seus estágios anteriores: em determinados casos, ele representa um estímulo à perpetuação de nossa velha sociedade estagnada, retrógrada e miserável; em outros, apresenta-se como possibilidade de renovação e do progresso; finalmente, revelando prematuramente as suas naturais limitações e contradições internas, cria condições para a abertura de uma perspectiva rumo à nova sociedade pela qual deve ser superado, o socialismo[17]. O numeroso proletariado brasileiro surgiu e se consolidou ao longo do século 20 como o reflexo das contradições do desenvolvimento econômico nacional. A ele cabe a difícil incumbência de superar as tarefas históricas não cumpridas pela débil e covarde burguesia nacional.
Para superar as deficiências tecnológicas e industriais do país é necessário um gigantesco esforço em dois sentidos: 1) mudar as relações sociais de produção, caminhando no sentido do socialismo – único sistema capaz de romper com a situação econômica periférica em que o país se encontra; e 2) transformar a sociedade brasileira em uma grande escola técnica e filosófica, investindo em ciência e tecnologia e criando outra dinâmica econômica capaz de mudar a atual mentalidade social, que é pautada pela imutabilidade da dependência. Em todos os casos, é fundamental criar as condições políticas e sociais para romper com o capitalismo e avançar para uma revolução socialista, pois a sociedade capitalista brasileira, com os seus traços peculiares de desenvolvimento, apesar de nos ter trazido até aqui e formado um grande mercado interno – reconhecido como a 8ª economia do mundo –, não pode solucionar as graves contradições e crises na qual o Brasil definha e agoniza há décadas sob o controle de uma burguesia parasitária, covarde e inútil.

VI
A criação cultural, a formação da intelectualidade e a mentalidade da classe média

         No campo cultural e intelectual o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, contraditório e híbrido, não deixou de ter os seus impactos, causando asfixia e atrofia no pensamento independente. Uma vez que os grupos dominantes alternaram-se no poder, procurando manter e desenvolver a sua estabilidade política e econômica – fato que se convencionou chamar de “revolução passiva” –, os intelectuais que poderiam cumprir um papel independente acabaram se subordinando a um deles para garantir seus meios de subsistência. O modelo desta evolução econômica e os seus resultados determinaram o relacionamento entre os intelectuais e as classes sociais.
         Um dos modos de isolar os grupos populares dos processos políticos constitui precisamente em “assimilar” os seus possíveis representantes ideológicos conscientes, incluindo-os nos novos blocos de poder que iam resultando dos processos de conciliação pelo alto. Isso se faz, essencialmente, através dos vários mecanismos de cooptação das camadas médias – em particular, dos intelectuais – pelas classes dominantes. Esses mecanismos variam desde o “favor” concedido a homens livres, mas não proprietários, na época da escravidão, passando pelo recrutamento da burocracia civil e militar a partir da época do 2º Império e, sobretudo, do período varguista, chegando até a criação pela ditadura militar, mediante mecanismos de distribuição de renda, de um setor privilegiado de tecnocratas dotados de alto poder de consumo. Em uma evolução social em que o Estado era tudo e a sociedade civil primitiva e gelatinosa, com escassos aparelhos privados de hegemonia, bem como de partidos políticos independentes, os intelectuais que se recusassem a cooptação estavam condenados pelo capitalismo à marginalidade no plano cultural e a seríssimos problemas no plano da subsistência econômica. Dispensados de qualquer papel na produção, ao longo da história do Brasil os intelectuais sustentaram-se através de empregos burocráticos, doações, prêmios, mecenato, e outros. Com maior ou menor boa vontade, consciente ou inconscientemente, voluntariamente ou a contragosto, e mesmo com raras exceções honrosas, os intelectuais brasileiros aderiram à ideologia da classe dominante e procuraram não enfrentar o Estado, do qual depende diretamente sua subsistência. O mesmo processo se passou com os sindicatos.
         A cooptação não obriga necessariamente o intelectual a se colocar diretamente a serviço das classes dominantes enquanto ideólogo. O que esta cooptação faz é induzi-lo através de várias formas de pressão consciente ou inconsciente a optar por formulações culturais “neutras”, capazes de ajudar a mitificar ou naturalizar a exploração oligárquica e/ou burguesa. Há um compromisso tácito em não por em discussão e, evidentemente, não combater os fundamentos do poder do qual depende. A “neutralidade” da produção intelectual, artística, filosófica e científica preconizada pela classe dominante brasileira é uma farsa, pois apenas esconde que ela pressupõe uma unidade contra o povo: todas as correntes conservadoras, religiosas ou leigas, otimistas ou pessimistas, metafísicas ou sociológicas, moralistas ou cínicas, cientificistas ou místicas, concordam em um determinado ponto essencial: impedir que as massas populares se organizem, reivindiquem, façam política e criem a democracia socialista.
         Esta condução autoritária na formação da intelectualidade brasileira – baseada na ameaça da morte por inanição daqueles que ousam pensar, criticar e produzir cultura de forma independente – atingiu o seu ápice na ditadura militar. A prática sistemática da censura, que sempre existiu, mas que durante o regime militar se intensificou, aliou-se a um claro terrorismo ideológico, podendo ser considerado como a face aberta da política cultural vigente após 1964. A ditadura militar representou no campo econômico o pleno ingresso do Brasil na fase imperialista; e no campo cultural, incentivou a criação de tendências que estimulariam o florescimento de uma cultura “neutralizadora” e socialmente desagregadora. As universidades nasceram com uma missão limitada e unilateral; e na ditadura militar não apenas foram submetidas a processos repressivos diretos, como também sofreram com uma crescente “racionalização” capitalista, preparando a futura onda estéril pós-moderna.
         Em síntese, podemos dizer que as contradições do desenvolvimento do capitalismo no Brasil criaram, no geral, uma intelectualidade acomodada, deformada e covarde, de costas para o povo. Basta olhar o que produz a grande imprensa brasileira: uma “censura democrática” por diversos meios eletrônicos, voltada a defender e sustentar a hegemonia burguesa sobre a sociedade. Toda a grande imprensa burguesa do Brasil, transformada em uma empresa altamente lucrativa, dependente do aval dos grandes centros imperialistas internacionais, produzindo um jornalismo idêntico no essencial. A grande mídia e a intelectualidade brasileira sempre cumpriram o papel de cultivar na classe média[18] uma mentalidade limitada, sádica, abstrata, abstencionista e voltada a defender os interesses da grande burguesia como se fossem seus, mesmo que sua realidade material seja, na maioria dos casos, completamente inferior. Ajudam a oprimir, explorar e humilhar o seu próprio povo atrás de um pensamento que julgam “neutro”, “ético” e “justo”. Em alguns casos humilham a si próprios. Não acreditam que o povo organizado possa ter força e representar uma saída, mas apenas numa homeopática ética, abstrata e distante do campo de batalha da realidade. Desprezam o coletivo e voltam-se para si mesmos. Não compreendem o papel limitado da grande burguesia e nem o lugar do capitalismo brasileiro na história. Compram uma ideia de progresso utópica e reacionária, que cria o caos social e ajuda, no concreto, a manutenção de um capitalismo dependente, que não pode sair desta condição em razão de todo o exposto até aqui. Um manto de hipocrisia e confusão faz o capitalismo parecer a esta classe média como a única saída política e econômica possível para o país, mas ela não enxerga que é este mesmo sistema que mantém o país como uma semi colônia, explorada e estagnada. A miséria reinante nas periferias das grandes cidades – ou seja, um dos resultados nefastos do capitalismo brasileiro – faz aumentar a violência social, cujo reflexo se volta contra a própria classe média; que não combate as suas causas, mas somente exige maior repressão policial. A sua produção intelectual reflete os seus medos e a sua condição social. Por isso, não pode se tornar num guia seguro para o desenvolvimento do país.
         O pensamento pequeno burguês sustenta que é possível haver desenvolvimento apenas por dentro do capitalismo – rechaça, por várias razões ideológicas (dentre as quais a ignorância e a lavagem cerebral), o socialismo. Sempre vê o problema no “povo”, que segundo este pensamento, é classificado como despreparado para votar, preguiçoso, ignorante, apático e festeiro. Exime totalmente o papel da burguesia brasileiro no desenvolvimento histórico do país – inclusive na (de)formação intelectual, política e econômica do próprio povo. A análise feita até aqui demonstra que não é possível desenvolver o país dentro do capitalismo. As estruturas econômicas e políticas do sistema não o permitem, a não ser até determinados e rebaixados limites. A única possibilidade de evolução do Brasil dentro desta lógica é continuar sendo um país periférico no mercado mundial, produtor de commodities (matérias-primas); isto é: uma semi colônia voltada a abastecer os países imperialistas com gêneros de primeira necessidade e a consumir deles produtos de alta tecnologia e de alto valor agregado. Achar que o Brasil pode se desenvolver nos limites do capitalismo pressupõe que o país possa se tornar imperialista (ou no eufemismo burguês: “desenvolvido”), capaz de competir com os demais países imperialistas, bem como disputar o monopólio de suas indústrias. Além disso, esta esperança dissemina a ilusão de que a burguesia brasileira pode ter outros interesses diferentes dos que desenvolveu até hoje; ou seja: a produção de matérias-primas para o mercado mundial. Nem os países imperialistas tolerariam tal pretensão, nem a burguesia nacional pode, em razão de sua “natureza”, desenvolver outros interesses diferentes daqueles que fizeram parte de sua formação histórica. A única política possível para o “desenvolvimento” é a que a burguesia aplicou até aqui, causando grandes sofrimentos para o povo: atração de capitais internacionais através da dívida pública, isenção de impostos à grande indústria, tolerância com a sonegação de impostos por parte dos grandes capitalistas, enquanto aumenta os impostos sobre o povo e a classe média; instituições “democráticas” que funcionam por intermédio do suborno e da corrupção.
         Por suas condições materiais e aspirações sociais, a pequena burguesia tende a seguir acriticamente a burguesia, mesmo que por inércia; mas estas mesmas condições de vida – melhores se comparadas ao povo em geral – são continuamente ameaçadas por este capitalismo terceiro mundista através do aumento de impostos, dos impasses econômicos, da ausência de uma possibilidade real de novas estratégias econômicas e políticas, do alto custo da corrupção, etc. A tarefa teórica do proletariado em relação ao pensamento pequeno burguês, amplamente disseminado na sociedade, é demonstrar esta situação sem saída em que a burguesia nacional jogou o país e da qual é incapaz de tirar. Somente o proletariado no poder, aplicando métodos de construção socialista, pode dar uma nova perspectiva política e econômica ao povo e à pequena burguesia. Para esta árdua tarefa é necessário coerência entre os atos e as palavras, entre a política e o programa, tenacidade e coragem, organização e consciência.
A formação de intelectuais autenticamente livres depende da sua ligação com o povo e, particularmente, com o proletariado. O primeiro passo é conquistar, via organização de um movimento proletário autônomo, o fortalecimento da sociedade civil na perspectiva socialista e a possibilidade material para que todos os intelectuais tenham independência financeira e de subsistência – fato negado pela ditadura do mercado capitalista. Hoje a desorganização dos trabalhadores impede que haja uma influência proletária maior na sociedade civil, que está majoritariamente dominada pelo pensamento burguês e pequeno burguês; mas uma vez que os seus instrumentos de organização voltem a se fortalecer e a se tornar verdadeiramente independentes no campo sindical e político, é possível começar a suprir esta demanda. Para que os sindicatos possam superar a burocratização e o afastamento das suas bases de representação, é preciso que rompam com a dependência estatal, voltando a se organizar pela base através do respeito à representação direta. Um sindicato capaz de incentivar a intelectualidade autônoma só pode surgir com o fim da dependência do Estado. No campo político, apenas um partido revolucionário pode trabalhar pela total independência de classe dos trabalhadores, pensando e criando um caminho político independente dos diversos campos burgueses no sentido de superação da sociedade de classes. Os intelectuais revolucionários comprometidos com os trabalhadores somente surgirão no bojo de um movimento que tenha estas premissas. São estes intelectuais e pensadores que ajudarão o Brasil a superar a limitação do seu desenvolvimento capitalista peculiar, limitado e dependente.

VII
A interpretação errônea da realidade brasileira por parte das organizações de esquerda
        
O grande entrave para a superação dos problemas sociais brasileiros continua sendo a crise de direção política. Muitas organizações de esquerda interpretaram erroneamente a realidade econômica e política do Brasil, propondo estratégias para supostamente superá-la. O que se passa, contudo, é que estas estratégias são equivocadas, baseadas em uma leitura errada da dialética marxista e da realidade brasileira. Através delas, os partidos de esquerda terminam por subordinar politicamente os trabalhadores à burguesia.
A degeneração da antiga URSS deu origem ao regime stalinista, que não apenas levou a Rússia à restauração do capitalismo na década de 1980, como orientou inúmeros Partidos Comunistas pelo mundo a seguirem estratégias catastróficas que desembocaram na traição aberta aos interesses históricos do proletariado. Alguns desses casos puderam ser vistos na China, na Alemanha, na Espanha, na França, na Iugoslávia, na Grécia, dentre outros. Em todos estes países a visão teórica esquemática do stalinismo rompeu com o marxismo e o leninismo – apesar do discurso em contrário – caindo num doutrinarismo grosseiro. No Brasil, esta orientação levou o PCB a sustentar um setor da burguesia, equivocadamente chamada por ele de “progressista”. Para sustentar tal política, os teóricos stalinistas afirmavam que o Brasil era um país semi-feudal, onde o capitalismo não havia se desenvolvido plenamente. Não enxergavam (ou não queriam enxergar) que as limitações do desenvolvimento do capitalismo no país eram reflexos da sua evolução tardia, combinando uma modernização dependente com estagnações e retrocessos. Esta evolução tortuosa foi o resultado da direção política de uma débil burguesia que não conseguiu superar o passado colonial e agrário, mantendo certas práticas econômicas ultrapassadas e uma localização periférica no mercado mundial.
Se por um lado a concepção teórica stalinista se baseava em elementos corretos da realidade (como a herança da grande propriedade, a insuficiente formação do proletariado brasileiro, a deficiência da instauração plena do regime de trabalho assalariado); por outro lado, ignorava não apenas a própria experiência da revolução russa de 1917, cuja débil burguesia não conseguiu destruir o regime monárquico czarista, como também desprezava o fato de que na época imperialista as burguesias coloniais se tornaram conservadoras e sócias menores das burguesias imperialistas. Ou seja, as tarefas da revolução burguesa recaem sobre os ombros do proletariado e só podem ser resolvidas por este. O stalinismo não foi apenas um regime burocrático ditatorial degenerado que esmagou o movimento operário russo; ele também jogou pelo ralo toda a experiência da revolução russa, ao mesmo tempo em que dizia ser sua maior representação.
Para o stalinismo, a tarefa do proletariado brasileiro seria ajudar a burguesia “progressista” a desenvolver o capitalismo “até o fim” para só depois, num futuro longínquo, realizar a revolução proletária com vistas ao desenvolvimento do socialismo. Assim, em 1930 o PCB passou de uma linha abstencionista, para o aventureirismo da malfadada intentona comunista de 1935, para, logo a seguir, dar apoio descarado a Getúlio Vargas segundo a orientação stalinista de “revolução por etapas”. Posteriormente apoiou os governos populistas baseados na mesma lógica teórica. O PCdoB[19], em pleno século 21, utiliza-se dos escombros destes argumentos teóricos para sustentar politicamente os governos do PT, vistos como “progressistas” e nacional-desenvolvimentistas.
Foi por estas características que Trotsky chamou a teoria stalinista de “revolução por etapas”, e a ela contrapôs a teoria da revolução permanente, baseada na experiência das revoluções russas (1905 e 1917). Durante a polêmica histórica entre o stalinismo e o trotskismo nos anos 1920-1930, quando a URSS ainda existia e era uma ameaça real à burguesia, muitos ativistas não conseguiam enxergar claramente o eixo central da divergência entre a posição dos defensores da possibilidade de construir “o socialismo em um só país” e a tática das “frentes populares” (stalinismo) e os defensores da teoria da revolução permanente (trotskismo). Hoje, passado quase 100 anos destas divergências, podemos constatar que a história deu razão ao trotskismo. O capitalismo foi plenamente restaurado na URSS, leste europeu, Cuba, China. Não é possível construir o socialismo em um só país.
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O Brasil segue com um capitalismo tão dependente e periférico quanto na década de 1930, apesar de todos os esforços do PCB para “desenvolver o capitalismo brasileiro” visando o “socialismo”. Os argumentos stalinistas, mantidos em pleno século 21, são mais retrógrados ainda, pois escondem que o país já desenvolveu todas as características do regime capitalista de produção, tornando a sua teoria, assim, em apenas mais uma ala da social-democracia que vive de um reformismo sem reforma. Está aí o PCdoB que não deixa margem à dúvidas.
A teoria da revolução permanente declarou guerra a essa ordem de ideias e a essa disposição de espírito. Ela demonstrava que, na época imperialista, o cumprimento das tarefas democráticas da revolução burguesa (reforma agrária, fim dos restos coloniais, criação de uma verdadeira república democrática) conduzia diretamente à revolução proletária e à ditadura do proletariado, que colocam as tarefas socialistas na ordem do dia. Enquanto a opinião stalinista considerava que o caminho para a ditadura do proletariado passaria por um longo período de democracia burguesa, a teoria da revolução permanente proclamava que, para os países atrasados, o caminho para a democracia passaria pela ditadura do proletariado, que instauraria as instituições capazes de garanti-la – os conselhos operários – e tiraria o poder econômico das mãos da burguesia, sem o quê qualquer discurso sobre “democracia” é uma ilusão. Por conseguinte, a democracia não poderia ser considerada como um fim em si, que deveria durar dezenas de anos, mas como o prólogo imediato da revolução socialista, à qual se ligava por vínculo indissolúvel. Dessa maneira, tornava-se permanente o desenvolvimento revolucionário que ia da revolução democrática à transformação socialista da sociedade em um mesmo processo, ainda que a escala de tempo possa variar de país para país.
Na nossa época, somente atacando a propriedade privada burguesa – isto é, os grandes monopólios industriais – poderemos resolver as questões democráticas mais básicas e elementares. A conclusão da revolução burguesa em um país semi colonial como o Brasil só poderá realizar de fato as suas tarefas no caso de o proletariado tomar o poder em suas mãos e instaurar uma ditadura revolucionária (que nada tem a ver com o regime stalinista). Em outras palavras, a ditadura do proletariado tornar-se-á a arma com a qual serão alcançados os objetivos históricos da revolução burguesa retardatária (reforma agrária, fim dos restos coloniais, verdadeira independência nacional, etc.). Mas, uma vez no poder, o proletariado não poderia se conter nestes pontos: ele seria obrigado a fazer incursões cada vez mais profundas no domínio da propriedade privada em geral – sobretudo nos grandes monopólios –, ou seja, o proletariado deverá empreender o rumo das medidas socialistas concomitantemente à solução dos problemas retardatários da revolução burguesa inconclusa.
O menchevismo e a teoria stalinista de “revolução por etapas” partem do ponto de vista formal de que o papel dirigente numa revolução burguesa só pode pertencer à burguesia. Mas os tempos são outros! Uma vez que a burguesia dos países semi coloniais está ligada à grande propriedade fundiária e aos restos coloniais por numerosos laços, a libertação verdadeiramente democrática dos trabalhadores e do povo só pode realizar-se pela cooperação destes contra a burguesia, que se tornou covarde e abertamente reacionária, interessada na manutenção dos seus privilégios tais como são; nem que para isso tenha que vender todo o país aos interesses imperialistas.
Na nossa época o grande capital imperialista domina todos os países. Não existem mais monarquias absolutistas ou vestígios de feudalismo. Todas as formas econômicas atrasadas estão plenamente integradas ao capitalismo. A independência nacional – uma tarefa democrático-burguesa inconclusa no Brasil – e a luta anti-imperialista estão relacionadas não só com a expulsão militar do imperialismo, mas também com a expropriação das multinacionais, que é uma tarefa socialista. A independência nacional é impossível sem a expropriação do grande capital. No Brasil ainda existe o latifúndio; mas é um latifúndio capitalista, onde predomina a empresa capitalista (geralmente o agronegócio). O campo está esvaziado se comparado às grandes cidades. É por essa característica da época imperialista que não é mais possível a revolução democrática (ou “por etapas”), embora existindo ainda importantes tarefas democrático-burguesas a serem completadas. A ditadura do proletariado é a herdeira da revolução burguesa inconclusa.
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Os atuais partidos ditos “marxistas” que ignoram esta realidade cumprem o melhor papel de cúmplices da burguesia. Uma das teorias de conciliação de classes mais nefasta no Brasil atualmente se deu com o PT – em particular, com as teorias defendidas por Carlos Nelson Coutinho (CNC) –, que resgataram a política stalinista de frente popular. Esta tática, que levou o proletariado internacional à inúmeras derrotas na França, Espanha, Chile, China, dentre outros, também serviu para afundar os trabalhadores brasileiros no lamaçal da politicagem burguesa. A frente popular se caracteriza por ser uma coligação entre partidos e organizações dos trabalhadores com forças políticas burguesas. A despeito da participação dos trabalhadores nesta frente levantando algumas reivindicações, o programa político é burguês.
Baseando-se na compreensão gramsciana de que no ocidente os partidos comunistas deveriam adotar uma “tática diferente” do que o enfrentamento revolucionário, buscando alianças na sociedade civil no sentido de uma transição semi-pacífica, sobretudo eleitoral, CNC sustentou esta tese de forma bastante obscura nos dois partidos em que ajudou a fundar e foi exímio teórico-militante: PT e PSOL. Ora citava Lenin, procurando justificar uma possível saída revolucionária; ora citava Gramsci, tentando conciliar uma transição moderada e pacífica. Na verdade, CNC e o PT, procurando explicar a sua conciliação de classes com uma justificativa de que no Brasil as transições se deram a partir de uma “revolução passiva”, propuseram tacitamente uma “revolução passiva” também para o socialismo, como se os trabalhadores organizados em partido político pudessem disputar as instituições políticas burguesas por dentro e fossem, pouco a pouco, modificando a correlação de força em benefício do povo. Esta tática, conhecida como estratégia “democrático popular”, que nada mais é do que o reformismo bersteiniano adaptado ao Brasil de fins do século 20 e início do 21, levou o proletariado brasileiro a se alimentar de inúmeras ilusões e a cultivar uma consciência pequeno-burguesa. Os sindicatos foram “acalmados” e incorporados à ordem democrático-burguesa, passando a ser uma correia de transmissão dos interesses das instituições burguesas no seio dos movimentos de base dos trabalhadores. O grande objetivo sindical passou a ser eleger parlamentares e governos petistas (como continua sendo até hoje). O PT, que iniciou esta adaptação em fins de 1980, teve o seu coroamento na eleição de Lula em 2002.
Os governos petistas não apenas não reformaram nada da sociedade burguesa, como as instituições burguesas cooptaram o partido e todas as suas organizações satélites (CUT, UNE, MST). Os limitados programas sociais não representaram reformas estruturais, pois são apenas migalhas jogadas a um povo miserável, podendo ser retirados facilmente através de uma política de cortes orçamentários. A defesa do “socialismo” foi sendo gradativamente esquecida, até se transformar totalmente numa capciosa e pragmática defesa de um “capitalismo humanitário”. Os governos petistas, buscando alianças com toda a velha elite decrépita do país, cavaram a própria cova e terminaram por sofrer o golpe do impeachment, dado pelos aliados “confiáveis” de ontem, encerrando não apenas um governo reformista sem reformas, mas enterrando também as ilusões da própria estratégia reformista (democrático popular) que pregava sutilmente a possibilidade de uma “revolução passiva” e de uma transição pacífica para o socialismo em aliança com a burguesia.
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Outras organizações que se situam no campo da esquerda revolucionária cometem erros teóricos semelhantes à orientação stalinista e reformista. Eles afirmam que os erros do petismo se situam na falta de iniciativa do governo. Segundo este pensamento, durante o período de 2000 a 2008 (antes do estopim da crise capitalista internacional), quando o preço das commodities era elevado e promissor, a burguesia latino-americana não utilizou as receitas para “avançar num processo de industrialização”. A grande renda oriunda do petróleo e dos minérios foi utilizada apenas para os programas assistencialistas e não para transformar a estrutura social de atraso e dependência.
Ora, atribuir à burguesia frente populista dos países neocoloniais a tarefa de liquidar o atraso e a dependência é um contrassenso teórico ou uma enganação. Como foi dito, a atual conjuntura histórica delegou à burguesia dos países atrasados a tarefa de sócias menores do imperialismo. É justamente o capitalismo periférico sustentado por estas burguesias nacionais que garante a estrutura do atraso e da dependência, ao mesmo tempo em que vendem ilusões de que estes países “podem vir a se tornar nações desenvolvidas”, tais como os países imperialistas. As burguesias dos países semi coloniais já deram inúmeras provas de que não estão dispostas a romper o seu acordo com o imperialismo.
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         Outro setor da esquerda, que segue a orientação teórica de Nahuel Moreno, defende o que ele designa como “revolução democrática” ou de “fevereiro” (em alusão à revolução russa de fevereiro de 1917). Este setor é composto por PSOL (MES, CST e outros), PSTU e correntes políticas menores. O morenismo se caracteriza por fazer uma revisão radical no pensamento de Trotsky, negando não apenas o Programa de Transição – que ele julgou “atualizar” –, mas, também, a teoria da revolução permanente. As correntes morenistas dissociam a revolução democrática da revolução socialista. Atribuem a direção destas revoluções a qualquer partido, seja ele reformista, pequeno-burguês ou, até mesmo, burguês. Chegam ao absurdo de delegar esta tarefa ao imperialismo, como se pôde ver no caso da Líbia e da Síria. O processo revolucionário, em um primeiro momento estaria dissociado da revolução socialista, passando por uma etapa democrático-burguesa que o proletariado deveria se utilizar para preparar as bases da revolução proletária futura.
Isso não tem nada de novo. Dissociando as “revoluções democráticas” da revolução socialista, o “trotskista” Nahuel Moreno liquida com o método da revolução permanente. E ao negar os princípios básicos da revolução permanente, o morenismo cai na mesma tática da “revolução por etapas” do stalinismo, só que com outro nome e disfarçando-se com uma roupagem trotskista.
Indo mais além, o morenismo atribui um poder mágico às palavras de ordem e tarefas democrático-burguesas retardatárias. Para Moreno, basta levantar uma palavra de ordem democrática (por exemplo: defesa da reforma agrária) para lhe atribuir um caráter socialista por si só, não precisando levantar as palavras de ordem autenticamente socialistas (controle operário da produção, expropriação dos meios de produção, etc.). Sendo assim, o morenismo cai no espontaneísmo mais rasteiro e ainda esconde-se atrás do nome de Lenin e Trotsky.
         Dentro da lógica desta “revolução democrática”, o morenismo constata que uma mudança de regime dentro de um estado burguês e do próprio capitalismo seria uma vitória das massas, mesmo que levasse ao poder setores da burguesia “democrática” apoiada pelo imperialismo. Por exemplo: para Moreno, a queda da ditadura militar brasileira e argentina representou uma colossal revolução democrática, mesmo que tenha mantido o regime democrático burguês e o próprio capitalismo, afastando os trabalhadores de qualquer perspectiva de poder. Com estas “brilhantes” estratégias é bastante compreensível a desorientação da esquerda brasileira.
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         É dentro destas perspectivas teóricas oportunistas que a vanguarda proletária brasileira tem sido educada. Não foi casual, portanto, que nenhuma organização de esquerda tenha conseguido cumprir um papel dirigente do conjunto do proletariado brasileiro no sentido de prepará-lo para a revolução socialista. Temos a necessidade histórica de passar o pente fino nestas teorias e criticá-las, para que as gerações futuras de ativistas de esquerda possam tirar as devidas lições e colocar o debate sobre a revolução brasileira numa perspectiva teórica correta.

VIII
Conclusões

         As iniqüidades e injustiças contra o povo brasileiro são seculares e não serão solucionadas com reformas ou acordos de bastidores entre as elites e os “representantes” do povo. Este sonho colorido e cômodo não tem outra finalidade a não ser enganar os trabalhadores e preservar a atual estrutura social. Não basta defender o “socialismo” em palavras. É preciso dizer como chegaremos até ele. A esquerda brasileira cai naquilo que Rosa Luxemburgo qualificou como “perseguir o possível”. Rebaixam toda a luta teórica e política do proletariado brasileiro à mediocridade do possível, daquilo que supostamente se consegue a partir de alianças espúrias e de concessões de princípios, que nada mais é do que o aceitável... para a burguesia!
         Toda a estrutura destas organizações, sua propaganda e formação teórica, levam seus militantes a conformar os trabalhadores brasileiros. Alimentam aquela consciência de escravo – “pelo menos o PT deu bolsa família”, “pelo menos o PT olha pelos pobres”, “pelo menos...” – que precisa urgentemente ser superada. A demagogia e a bajulação, sem nunca falar a verdade abertamente, fazem parte do seu método. É preciso dizer ao proletariado que as nossas ilusões são grandes entraves à consciência de classe; que não tem saída fora da perspectiva socialista e que só chegaremos até ele através de uma revolução proletária. Para isso, é preciso um longo e paciente trabalho político de educação e formação teórica. Nesta luta não existem atalhos e nem aliados no campo da burguesia. A estratégia de frente popular do PT e de outros partidos de esquerda pavimentam o caminho dos trabalhadores para a derrota e apenas fortalecem a ascensão da direita. Toda a experiência política com o PT não deixa dúvidas.
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         Em sua “crítica” ao Brasil, o senso comum pequeno-burguês, que lamentavelmente impera na sociedade brasileira e foi alimentado pelo PT, ignora toda a estrutura econômica em que o país foi fundado. Para ele, trata-se apenas da corrupção dos políticos e da “vocação” do país para ser atrasado. Existe sim uma moral degenerada que embasa e facilita a corrupção, que é a marca da política burguesa no Brasil, mas ela está alicerçada na referida estrutura econômica do país, cuja raiz é manter a exploração internacional sobre o povo e as suas riquezas naturais.
         Para superar a dependência econômica o Brasil precisa industrializar-se, desenvolver tecnologia e capacidade de produzir ciência por conta própria. Como vimos, a burguesia à frente do país é incapaz de criar estas condições. Como toda a história do país atesta, seus interesses são outros.
         Sendo assim, aquele discurso que sustenta que o Brasil é um “país em desenvolvimento” é mentiroso e cínico. O Brasil nunca poderá se constituir em uma nação “desenvolvida” dentro do capitalismo, que reservou para o nosso país o papel de produtor de matérias-primas na divisão internacional do trabalho. Somente com a destruição do imperialismo e a cooperação socialista internacional entre o proletariado de todos os países poderemos tirar o Brasil e as nações dependentes desta condição de desigualdade, penúria e miséria. A democracia burguesa e suas instituições já nasceram limitadas e corrompidas pela evolução política e social da história do país e do surgimento da burguesia. Nada podemos esperar delas, ainda que se possa usá-las como tribuna revolucionária para mobilizar os trabalhadores e destruí-las por dentro.
         A revolução brasileira deve se dar na perspectiva da revolução permanente. Não devemos buscar alianças com a burguesia, mas com a massa de trabalhadores nas periferias, com os desempregados, com a pequena-burguesia proletarizada dos grandes centros urbanos. Um futuro partido revolucionário precisa lançar-se corajosamente em uma longa campanha de propaganda teórica do socialismo e dos métodos revolucionários. Deve inserir-se num paciencioso trabalho sindical, para arrancá-los das mãos da burocracia e transformá-los em escolas de guerra do socialismo revolucionário. A vanguarda proletária e parte da massa trabalhadora estão desorientadas e descrentes no socialismo em razão da sua associação com os crimes do stalinismo. É preciso desfazer a campanha midiática e acadêmica da burguesia contra o socialismo. É preciso ganhar a vanguarda do proletariado brasileiro para o autêntico projeto político de Marx, Engels, Lenin e Trotsky.
         A crise política e econômica que se arrasta por séculos no Brasil é fruto do seu capitalismo dependente. Com todas as suas contradições o desenvolvimento do capitalismo brasileiro nos trouxe até aqui, mas não pode ir além. Temos a necessidade imprescindível e inadiável de preparar as bases para o desenvolvimento do socialismo.

Bibliografia:

- “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, de V.I. Lenin. Editora Abril Cultural, São Paulo, 1982.
- “História econômica do Brasil”, de Caio Prado Jr. Editora brasiliense, São Paulo, 2004.
- “A revolução permanente”, de Leon Trotsky. Expressão Popular, São Paulo, 2007.
- “Na contracorrente da história – documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940”, de Fúlvio Abramo e Dainis Karepovs (Orgs.). Editora José Luis e Rosa Sundermann, São Paulo, 2015.
- “Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios sobre ideias e formas”, de Carlos Nelson Coutinho. Expressão Popular, São Paulo, 2011
- “Florestan Fernandes, sociologia crítica e militante”, de Octavio Ianni (Org.). Expressão Popular São Paulo, 2013.
- “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. Companhia das Letras, São Paulo, 2013.
- “Historia del pueblo argentino (1500 – 1955)” – Edición definitiva. Milcíades Peña, editora Emecé, Buenos Aires, 2014.
- “Panorama da história dos EUA”, de Wood Gray & Richard Hofstadter. Editado pelo Departamento Cultural da embaixada dos EUA no Brasil.





NOTAS
[1] Adaptado de “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”, de Mario Pedrosa e Lívio Xavier (dirigentes da Liga Comunista), escrito em outubro de 1930. A Liga Comunista se tornaria a sessão brasileira da IV Internacional. Nesta época era uma fração de esquerda do PCB, correspondente à Oposição de Esquerda trotskista no seio da III Internacional.
[2] Adaptado de “Panorama da história dos EUA”, de Wood Gray & Richard Hofstadter. Editado pelo Departamento Cultural da embaixada dos EUA no Brasil.
[3] É um tipo de estratificação muito antigo, semelhante as castas indianas, mas ainda presente em algumas sociedades, onde o indivíduo desde o nascimento está obrigado a seguir um estilo de vida predeterminado, reconhecido por lei e geralmente ligado ao conceito de honra e nobreza, dificultando a mobilidade social. Historicamente, os estamentos caracterizaram a sociedade feudal durante a Idade Média europeia. Na sociedade colonial brasileira, os estamentos caracterizam a sociedade escravocrata, onde a oligarquia branca era dona de terras e dos engenhos, os agricultores livres constituíam uma espécie de "classe média" dependente dos senhores de engenho, mas acima dos escravos, e estes trabalhavam para sustentar todo o ordenamento social e não podiam sair desta condição, a não ser com a morte.
[4] “A sociedade escravista no Brasil”, de Florestan Fernandes, in “Florestan Fernandes, sociologia crítica e militante”, de Octavio Ianni (Org.). São Paulo, 2013, Editora Expressão Popular.
[5] “História econômica do Brasil”, de Caio Prado Jr. Editora brasiliense, São Paulo, 2004.
[6] “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. Companhia das Letras, São Paulo, 2013.
[7] Idem.
[8] “A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior”, in Carlos Nelson Coutinho, Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios sobre ideias e formas. Expressão Popular, São Paulo, 2011
[9]Historia del pueblo argentino (1500 – 1955)” – Edición definitiva. Milcíades Peña, editora Emecé, Buenos Aires, 2014. Portanto, a análise stalinista força uma visão equivocada para que a “realidade” coincida com a sua proposta política de “revolução por etapas”.
[10] Adaptado de “Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios sobre ideias e formas”, de Carlos Nelson Coutinho. Expressão Popular, São Paulo, 2011
[11] Idem.
[12] Conforme: “A revolução burguesa” de Florestan Fernandes, in Octavio Ianni. Florestan Fernandes: sociologia crítica e militante. Editora Expressão Popular: São Paulo, 2013.
[13] “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, V.I. Lenin. Editora Abril Cultural, São Paulo, 1982.
[14] “Projeto de teses sobre a situação nacional”, Liga Comunista Internacionalista, escrito em 1933.
[15] “História econômica do Brasil”, de Caio Prado Jr. Editora brasiliense, São Paulo, 2004.
[16] Cidadão, em francês: é sinônimo do protótipo do ser-humano atuante na sociedade. Era o que se esperava criar com a Revolução Francesa de 1789.
[17] Adaptado de “Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios sobre ideias e formas”, de Carlos Nelson Coutinho. Expressão Popular, São Paulo, 2011
[18] Neste texto a expressão genérica “classe média” é entendida como sinônimo de “pequena burguesia”, procurando ter a mesma compreensão sociológica que o marxismo tem a respeito desta classe.
[19] Criticam-se aqui apenas os partidos de “esquerda” (PCB, PCdoB, PT, PSOL, PSTU) por falarem, de alguma forma, em estratégias “socialistas”. Foram excluídos os partidos de “socialismo burguês”, que nem sequer falam em socialismo ou criticam o capitalismo, mas apenas ajudam a administrá-lo usando uma couraça de “socialismo”. São eles: PSB, PDT, PPS e PPL. A crítica feita ao PCB e ao PCdoB se estende ao PCR (partido não legalizado, mas com origem comum com os outros dois).