“No Brasil, a evolução do processo político
chega sempre com o atraso de muitos anos,
às vezes até de uma geração”.
(Extraído do texto:
Ao proletariado a tática eleitoral
dos bolcheviques-leninistas, da
Liga Comunista Internacionalista)
I
Introdução
Há uma compreensão comum entre as organizações de
esquerda que reconhece o Brasil como um país periférico no mercado mundial. Esta
dependência internacional não se constitui em uma casualidade, mas no resultado
inevitável de todo o seu processo histórico de desenvolvimento. Entre a
esquerda, ninguém contesta que a nação é dependente dos países imperialistas em
razão das diversas formas de dominação externa: dívida pública, busca de
investimentos, ausência de indústria e de tecnologia próprias, a manipulação
midiática política da opinião pública, que torna o país refém das agências de
classificação de risco financeiro; dentre outros meios. A burguesia nacional
especializou-se na produção de matérias-primas para o mercado mundial e manteve
o poder político como protetor e incentivador exclusivo destas práticas
econômicas.
A mentalidade atual que vê o Brasil como um país
“sem solução”, “corrupto por natureza” e incomparável aos centros
internacionais – EUA e Europa –, é um reflexo, mais ou menos direto, deste
impasse econômico em que a nossa débil burguesia afundou o país. Sem poder
livrar o Brasil da herança colonial, a burguesia brasileira sempre se
demonstrou fraca e incapaz de realizar uma revolução no país, seguindo a “via
clássica” dos franceses em 1789 ou dos norte-americanos em 1776. As suas
características marcantes se expressam em uma mentalidade conservadora, que
mesclava liberalismo econômico e escravidão negra; pouca ou nenhuma iniciativa
política e econômica; ausência de empreendedorismo social ou econômico; apego
ao patrimonialismo. No âmbito político, não passou de capataz do imperialismo,
trabalhando como gerenciadora da força de trabalho do povo e administradora da
pobreza econômica e cultural da maioria da população. Em razão deste atraso
político, a burguesia nacional vê a força do seu Estado escapar constantemente
de suas mãos, sendo condenada a ceder o controle político à ação internacional
imperialista, sobretudo devido a sua incapacidade histórica de agir
coletivamente enquanto classe a nível internacional. As suas picuinhas
econômicas internas para melhor explorar o proletariado nacional e servi-lo de
bandeja ao amo imperialista, a impede de olhar o futuro com confiança.
Em todas as encruzilhadas históricas, por
conveniência e medo, a burguesia brasileira sempre aliou-se ao imperialismo
contra o povo de seu próprio país. Refletindo a sua debilidade econômica, ela
naturalmente percebe-se menor, mais fraca e menos importante do que a burguesia
imperialista. Passa indiretamente este sentimento de inferioridade para toda a
população, gerando aquela “mentalidade” que afirma: o Brasil será sempre um
país fraco que nunca poderá competir com os países centrais; pode ser “apenas o
Brasil”, um país chafurdado na corrupção e no inativismo político, sem
filósofos e cientistas, que apenas se preocupa com a formação de jogadores,
cantores e parasitas em busca de um cargo de confiança.
Por tudo isso, a burguesia brasileira foi e é inapta
para gerar um sentimento de patriotismo no povo, a não ser na elite mais próxima
ao poder e em parte da classe média, que identifica patriotismo com exaltação
do exército. O resultado é um inevitável sentimento de descrédito em relação ao
país, que tem implicações políticas nocivas de paralisia, abstencionismo e
hipocrisia. Suas tradições históricas são “patrioteiras”; ou seja, elas baseiam-se
em alguns combates às invasões estrangeiras num passado longínquo, se
constituindo de lutas episódicas que nunca se estenderam a todo o país, conservando
um caráter regional.
Ao aparecer na arena histórica, atrasada e
desnorteada, a burguesia brasileira já nasceu velha e reacionária, com ideais
democráticos corruptos e paternalistas. Teve de se formar e “lutar” contra
outras forças e tendências econômicas regionais e atrasadas em meio ao
turbilhão do surgimento do imperialismo internacional, subordinando a sua
própria defesa à defesa do capitalismo imperialista. A burguesia brasileira só
começa a adquirir consciência de classe em razão do seu pavor à revolução
social[1].
Sendo assim, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil se deu mais por uma
“invasão econômica” estrangeira – sobretudo da Inglaterra, em meados do século
19, seguida pelo imperialismo norte-americano –, do que por uma ação da burguesia
brasileira, que nasceu raquítica e dependente no turbilhão deste processo
extremamente contraditório.
II
A colonização do Brasil
A colonização do Brasil por Portugal,
apesar de ter começado um século antes do que a norte-americana, guiou-se por outros
princípios. O primeiro estabelecimento colonial na América do Norte foi um
posto avançado de comércio fundado em Jamestown, em 1607, em uma região que
logo se desenvolveria numa florescente economia baseada nas plantações de fumo,
que encontrava sempre um bom mercado na Inglaterra. O comércio com a Europa,
além de ser livre comparado à situação das colônias portuguesas e espanholas da
América, era vital para que os colonos pudessem importar tudo aquilo que ainda
não conseguiam produzir.
Em contraste com as políticas de colonização de
outros países – como a do Brasil e da América espanhola –, a emigração de
colonos que sobrevinha da Inglaterra não era patrocinada pela coroa, mas sim
por grupos particulares, cuja principal motivação era o lucro e a liberdade
política e religiosa. Os perseguidos políticos fugiam do ambiente de opressão
do velho mundo, se estabelecendo em pequenas propriedades que valorizavam a
formação de um mercado interno. Muitos protestantes puderam se instalar na
América do Norte se livrando dos pesados grilhões da Igreja Católica, que ainda
se mantinha como uma camisa de força para o livre desenvolvimento do
capitalismo na Europa e no mundo. As 13 colônias eram comunidades
auto-suficientes com saídas próprias para o mar. Cada uma delas se tornou uma
entidade distinta, marcada por uma forte individualidade, que, no entanto,
soube se unir na resolução de problemas comuns sobre comércio, navegação,
fabricação, moeda e da independência nacional. Compartilhando as coisas duras
da vida, cultivando o mesmo solo pedregoso e praticando o mesmo comércio ou
profissão, os colonos da Nova Inglaterra rapidamente adquiriram características
políticas que os tornavam autoconfiantes e independentes[2].
Na contramão disso tudo estava o Brasil, que teve
uma colonização absolutista e retrógrada. Baseado no regime de latifúndios
cedidos pela coroa portuguesa a fidalgos e no trabalho escravo, o Brasil não
contava com nenhum tipo de autonomia comercial e cultural. A grande propriedade
agrícola levou à instauração do regime escravista; e estes elementos foram a
base da economia colonial brasileira por séculos. O império colonial português
da época dos “descobrimentos”, da expansão marítima e da conquista,
organizava-se como um complexo Estado patrimonial, baseado em estamentos[3]. A
falta de trabalhadores braçais levou a coroa portuguesa à introduzir a
escravidão negra, o que veio a esvaziar a ordem estamental portuguesa de muitas
de suas funções econômicas e sociais, porém, manteve os fortes traços
patrimonialistas. Dentro dos estamentos, a coroa transferia terras aos nobres e
aos colonos fiéis. As concessões de sesmarias demarcavam as estruturas de poder
que não podiam ser tocadas ou modificadas, como condição histórica para manter
a estratificação estamental que servia de base social à existência e ao
fortalecimento do Estado patrimonial. Portanto, as doações da coroa (ou feitas
em seu nome) traduziam uma política de concentração social da propriedade da
terra. Tal política não criou apenas o latifúndio. Ela excluiu, desde o início,
a massa da população livre, pertencente ou não à ordem estamental, da posse da
terra e, por aí, do controle do poder local e do direito de ter vínculos
diretos com o Estado[4].
Controlado com mãos de ferro por uma santa aliança
entre Portugal e a Igreja Católica, o país nasceu sob o selo da grande
propriedade da terra (as sesmarias),
do obscurantismo religioso, da proibição de construir fábricas, universidades e
de publicar ou ler livros. As iniciativas individuais não eram incentivadas e
bem vistas por parte dos governadores locais, que não titubeavam em questionar,
exilar ou executar qualquer tipo de colono que praticasse uma ação intolerável
ou dissonante ao que mandava a metrópole.
Os ciclos econômicos se baseavam nas necessidades de
Portugal, sempre visando o mercado internacional e nunca a criação de um
mercado interno, a não ser aonde isso fosse inevitável no sentido de garantir a
economia de exportação. Qualquer tipo de produção interna – como a agricultura
e a pecuária – servia única e exclusivamente para sustentar a produção
principal, voltada para o mercado europeu em expansão. Todos os
produtos eram primários; reles matérias-primas que serviam apenas para
enriquecer a metrópole às custas da exploração predatória da colônia. Não casualmente,
o rei D. João IV dizia: “o Brasil é a
vaca leiteira de Portugal”.
No período colonial a produção econômica pautou-se
pelo pau-brasil, açúcar, ouro e algodão; no período imperial e republicano,
pelo café, borracha, minério e petróleo. Podemos destacar ainda alguns produtos
agrícolas secundários que serviram para mover uma economia regional, tais como:
cacau, tabaco, arroz, anil e a pecuária[5]. A
produção, baseada em latifúndios, no trabalho escravo, moldada e dirigida
segundo as conveniências da coroa portuguesa, impediu a criação de um mercado
interno, que só pôde ter seus germes livres para fermentar no final do século
19 e início do 20.
Para piorar a situação brasileira, Portugal ainda
endividou-se com a Inglaterra a partir do Tratado
de Methuen, mais conhecido como “tratado de panos e vinhos”. Celebrado em
1703, o tratado obrigava Portugal a comprar roupas da Inglaterra e esta a
comprar vinhos de Portugal. É sabido que a produção têxtil inglesa foi a
alavanca da Revolução Industrial, que mudou a face da Europa e abriu alas para
o desenvolvimento do capitalismo industrial. As dívidas de Portugal com a
Inglaterra, que aumentaram progressivamente, foram pagas com o ouro brasileiro,
às custas do sangue e do suor dos escravos negros. A acumulação de capital na
Europa se deu, portanto, a partir da exploração escravocrata em toda a América
colonial (incluso o sul dos EUA e as Antilhas).
A célula econômica do Brasil colonial desenvolveu-se
em torno da família, cujo topo da pirâmide era o patriarca, geralmente senhor
de vários escravos. Nos seus domínios rurais imperava o tipo de família
organizada segundo as normas clássicas do velho direito romano-canônico,
mantidas na Península Ibérica através de inúmeras gerações, e que foi
estabelecida no Brasil pela tradição milenar portuguesa. É este o centro e a
base de toda a organização política e econômica. Os escravos das plantações e
das casas, os agregados e os “clientes”, dilatavam o círculo familiar e, com
ele, a autoridade do patriarca. Toda esta estrutura tem o seu apogeu com o Rei
de Portugal e o Papa, os patriarcas maiores. À mulher cabia uma condição
subalterna de opressão, de criação dos filhos e de tarefas domésticas.
Socialmente abaixo dos senhores de engenho estavam os lavradores “livres”, que
não podem ser considerados como pequenos produtores porque também possuíam
escravos, embora em menor número, além de sua unidade familiar social
reproduzir, numa escala menor, a mesma lógica dos grandes engenhos e
plantações. Estes lavradores situavam-se entre os dois extremos – senhores e
escravos –, considerando-se como parte da “população livre”, predominantemente
composta de mestiços (brancos e indígenas), e se identificando com o segmento
dominante em termos de lealdade e de solidariedade.
Enquanto nos EUA floresceram ideias e políticas de
pensadores como Benjamin Franklin, que era não apenas um inventor que encontrou
terreno fértil para criar e desenvolver projetos inovadores, mas um
incentivador da cultura através de clubes literários e filosóficos, além de um
exímio empreendedor econômico e científico; no Brasil, lideranças como Barão de
Mauá – tido por muitos como o “primeiro burguês” brasileiro – e Jorge Street
não conseguiram romper com as amarras políticas e econômicas coloniais. Muitas
das grandes iniciativas progressistas de Irineu Evangelista de Souza, o Barão
de Mauá, puderam ser toleradas e até admiradas enquanto não comprometiam os
padrões imperiais, patriarcais e clientelistas em que a nação foi edificada. Os
choques políticos nem sempre eram evitáveis e, nestes casos, a tolerância se
transformava em desconfiança e em oposição calorosa[6].
As instituições políticas foram alicerçadas na
pantanosa herança colonial e a burguesia progressista era logo esmagada por uma
coalizão entre a monarquia e os senhores de escravos, ligada entre si por
vínculos clientelistas que não podiam ser questionados. Nem o próprio Barão de
Mauá teve forças ou foi tão progressista a ponto de protestar contra a
monarquia imperial e as suas instituições. Ao contrário, se beneficiou delas. De
certo modo, o malogro comercial de Mauá também é um indício eloqüente da
radical incompatibilidade entre as formas de vida copiadas das nações
capitalistas centrais, de um lado, e o patriarcalismo e o personalismo fixados
no Brasil por uma tradição de origens seculares, por outro[7].
Ao contrário do que muitos teóricos reformistas
apontam – sobretudo os de tradição stalinista –, o Brasil nunca teve um
“passado feudal”. O Brasil foi descoberto e entrou no ciclo de exploração
colonial já na época do chamado mercantilismo, que foi uma formação econômica de
transição entre o feudalismo e o capitalismo comercial. Caio Prado Jr. deu uma
definição mais adequada sobre a formação econômico-social da era colonial
brasileira, identificada por ele como “um
escravismo mercantil fundado na grande exploração rural, produtora de valores
de troca para o mercado internacional”[8]. As
grandes propriedades fundiárias (os engenhos de açúcar, as plantations, as plantações de café, as minas de ouro, etc.) sempre
estiveram voltadas para o exterior, e nunca fechadas em si mesmo, como um
feudo. Os senhores de engenho e de escravos do Brasil colonial eram dirigidos
pelos interesses de Portugal, sintonizados com o nascimento do mercado
capitalista mundial.
Analisando a colonização espanhola da América, o
historiador argentino Milcíades Peña, define precisamente o “mito da
colonização feudal” baseando-se em uma série de outros trabalhos
historiográficos: “(...) o regime
colonial [na América] se assemelha muito
mais ao capitalismo do que ao feudalismo. Bem entendido, não se trata do
capitalismo industrial. É um capitalismo de fábrica, ‘capitalismo colonial’,
que ao contrário do feudalismo não produz em pequena escala e antes de tudo
para o consumo local, senão em grande escala, utilizando grandes massas de
trabalhadores e com vistas ao mercado; geralmente ao mercado mundial ou, na sua
falta, ao mercado local estruturado em torno dos estabelecimentos que produzem
para a exportação. Estas são características decisivamente capitalistas, ainda
que não do capitalismo industrial que se caracteriza pelo salário livre. Neste
sentido, a colonização espanhola [e a portuguesa] antecipou [aram] a obra que o capital imperialista
realizaria na África, na Ásia e em algumas zonas da América durante as últimas
décadas do século 19 e as primeiras do século 20, quando os grandes consórcios
imperialistas montaram sistemas de produção híbridos, que sendo no essencial
capitalistas, se assemelhavam bastante à escravatura”[9].
III
As “revoluções passivas” (a chamada
“modernização dependente” ou “via prussiana”)
O marxismo constatou duas formas
principais de passagem dos antigos regimes econômicos pré-capitalistas (feudais,
no caso da Europa, ou escravocrata-mercantil, no caso do Brasil) para o
capitalismo. A chamada “via clássica” se caracteriza por uma revolução que
destrói as antigas instituições absolutistas, acaba com o latifúndio, realiza a
reforma agrária visando a criação de um mercado interno e instaura uma
república democrático-burguesa. Por estas razões foram batizadas pelo marxismo de
“revoluções burguesas”, que cumprem o papel de abrir o caminho ao capitalismo.
Os exemplos mais categóricos desta via se deram na Revolução Francesa de 1789 e
na Independência norte-americana, em 1776. A chamada “via prussiana”, oposta pelos
seus métodos à “via clássica”, foi assim batizada por Lenin em razão do modo
pelo qual a evolução ao capitalismo resolveu a questão agrária na antiga
Prússia (nome de uma parte da Alemanha no século 19).
No livro intitulado “O programa agrário da social-democracia”,
Lenin assim define a “via prussiana”: “Marx
já dizia que a forma de propriedade agrária que o modo de produção capitalista
encontra na história, ao começar a desenvolver-se, não corresponde ao
capitalismo. O próprio capitalismo cria para si formas correspondentes de
relações agrárias, partindo das velhas formas de posse da terra. Na Alemanha [antigamente
chamada de Prússia], a transformação das
formas medievais de propriedade agrária se processou, por assim dizer, seguindo
a via reformista, adaptando-se à rotina, à tradição, às propriedades feudais,
que se foram transformando lentamente em fazenda de Junkers. Nos EUA, a
transformação foi violenta. As terras [dos latifundiários] foram fracionadas; a grande propriedade
agrária feudal se converte em pequena propriedade burguesa”.
Resumidamente podemos afirmar que a
“via clássica” implica uma radical transformação da estrutura agrária: a antiga
propriedade pré-capitalista é destruída, convertendo-se em pequena exploração
camponesa; isto é, ocorre a reforma agrária e a mudança das instituições
políticas. Já a “via prussiana” conserva a dimensão da velha propriedade rural,
se tornando gradativamente empresa agrária capitalista, mas no quadro da
manutenção de formas de trabalho fundadas na coerção extra econômica, em
vínculos de dependência ou subordinação que se situam fora das relações
“impessoais” de mercado. É evidente que isso permite a conservação ou até mesmo
o fortalecimento do poder político do velho tipo de proprietário rural, que
continua a ocupar postos privilegiados no aparelho de Estado da “nova ordem”
capitalista[10].
O desenvolvimento do capitalismo no
Brasil seguiu a “via prussiana”. As transformações ocorridas na história
brasileira não resultaram de autênticas revoluções burguesas, de movimentos
independentes provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da
população e abrindo o caminho para o capitalismo; mas se processaram através de
“acordões” de bastidores entre as elites, de uma conciliação entre os
representantes de grupos opositores dominantes economicamente. Conciliação esta
que se expressa sob a figura política das “reformas pelo alto”. Esta conciliação
pelo alto jamais escondeu a intenção de manter marginalizadas e reprimidas as
classes e camadas sociais “de baixo”[11]. O
conceito de “revolução passiva”, adotado por Gramsci para explicar o
desenvolvimento do capitalismo na Itália, expressa o mesmo conteúdo que
pretende sintetizar a ausência de participação popular nestes movimentos sociais.
Analisando os principais momentos de
transição política e econômica da história do Brasil percebe-se claramente que
se deram sob este estigma de “revolução passiva” ou da “modernização dependente”.
Os movimentos de caráter nacional ocorridos nos séculos passados foram sempre agitações
superficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e popular. O processo
de independência foi instigado por um grande setor da elite colonial e dirigido
pela figura de D. Pedro I, filho do rei de Portugal, D. João VI, e herdeiro do
trono português. As camadas populares – sobretudo a grande massa de escravos – ficaram
completamente alheias a tal movimento independentista, que não passou de um “arranjo
de cúpula” entre as classes dominantes. Os senhores já tinham alcançado
solidariedade política estamental suficiente para impor a sua própria posição,
contendo uma possível mudança radical e transformando-a em uma “revolução
política dentro da ordem”, ou seja, numa mudança com a preservação do monopólio
da terra, da escravidão e de todos os privilégios da aristocracia. A grande
propriedade rural, herança da colônia, foi totalmente conservada. A
“independência do Brasil” constituiu-se no oposto da Revolução Francesa, que
realizou a reforma agrária, destruiu as velhas instituições políticas e separou
a Igreja do Estado; ou da independência norte-americana, que abriu o caminho
para o desenvolvimento econômico industrial. Para reconhecer a “independência do
Brasil”, Portugal obrigou o novo governo a assumir a sua dívida com a
Inglaterra, o que foi aceito naturalmente por D. Pedro I e pela elite brasileira.
Para pagá-la, contraíram empréstimos com a própria Inglaterra. Assim, o pacto
colonial se transformou em dívida externa e a dependência internacional, ao
invés de ser liquidada, apenas mudou de metrópole. A Inglaterra e outros
centros dominantes internacionais competiram entre si pela partilha dos
despojos coloniais, mas tinham o mesmo interesse pela continuidade da produção
de “gêneros coloniais” no Brasil e de sua exportação para o mercado europeu.
As revoltas coloniais e do período imperial, apesar
de ocorrerem em grande quantidade, foram limitadas e organizadas pela cúpula.
Em sua maioria, tinham um programa dúbio ou mesmo contrário ao fim da
escravidão. Possuíam, no geral, com algumas exceções, um caráter elitista, confuso, e não tinham a
preocupação de angariar apoio popular. Às que possuíam um caráter popular, faltava esclarecimento, consciência, organização e extensão nacional. Por todas estas debilidades não tiveram condições de derrubar o
poder colonial e imperial.
Ainda que a escravidão negra no Brasil tenha ficado
muito longe de ser pacata, como dá a entender a historiografia oficial, a
abolição da escravatura se deu, novamente, por acordos de cúpulas entre as
classes dominantes e, sobretudo, por pressões internacionais. A grande
quantidade de imigrantes europeus preparou a base do regime de trabalho
assalariado que entraria em vigor no lugar da escravidão. Os quilombos, que se
proliferaram ao longo do tempo e de todo o território nacional, não tiveram a
força e a unidade capaz de derrubar por sua própria organização o regime
escravista, nem tiveram consciência e condições de criar um governo substituto
para o país, tal como fizeram os escravos haitianos na sua revolução em 1791.
Tampouco a burguesia brasileira foi “progressiva” se propondo a liquidar a
escravidão por vias revolucionárias, tal como fez a burguesia industrial
norte-americana liderada por Abraham Lincoln. Ela preferiu selar um acordo
espúrio com a velha oligarquia escravista ao invés de um enfrentamento
decisivo.
A proclamação da República, em 1889,
veio na esteira da Lei Áurea, de 1888; isto é, como reflexo dos “acordões de
cúpula” para abolir a escravidão e ingressar num híbrido regime de trabalho
assalariado e patrimonialismo coronelista. A grande figura desta proclamação, o
Marechal Deodoro da Fonseca, até as vésperas do golpe de Estado era um
monarquista e amigo de D. Pedro II. O governo provisório republicano manteve os
compromissos financeiros internacionais contraídos pela monarquia brasileira –
isto é, não apenas manteve, mas aprofundou a dívida externa ilegítima – e suas
despesas, sobretudo em relação à criminosa guerra do Paraguai, que interessava
apenas à elite nacional e internacional. Ao proclamarem a República, os antigos
senhores sob orientação da burguesia paulista apenas resolveram os problemas
dos braços para as lavouras, bem como salvaram o monopólio da terra e o poder
oligárquico, impondo à “revolução burguesa” os seus próprios ritmos históricos
arcaicos e o padrão coronelista que iria minar a ordem republicana[12]. Com
o advento da mudança de regime político não houve nenhuma transformação social,
apenas o início do ingresso do país na era imperialista do capitalismo,
condicionando o Brasil à produção de matérias-primas para o mercado mundial.
Tampouco podemos constatar mudanças institucionais que indicassem maior
democracia para o povo, pois a estrutura econômica capitalista, baseada no
agrarismo coronelista, não o permitia. O sistema político de castas
aristocráticas do Império não acabou, apenas cedeu lugar ao coronelismo, que
fortaleceu o regionalismo em detrimento da união federativa (é aqui que muitos
teóricos enxergam os resquícios do “feudalismo brasileiro”). O voto censitário
transformou-se em voto a cabresto. Os antigos senhores de escravos cederam o
lugar para os cafeicultores paulistas, que conduziram a conclusão da introdução
do trabalho assalariado no país e lideraram uma incipiente industrialização
visando o incremento de sua própria produção.
A crise econômica de 1929 intensificou
a crise política do Brasil em razão da queda do valor do café no mercado
internacional. O enfraquecimento da oligarquia cafeeira paulista contribuiu
para desestruturar a organização do poder da República Velha, que já vinha em
crise desde o início da década de 1920. A burguesia dos demais estados, a classe
média e os setores populares urbanos reivindicavam maior participação política,
pois até o momento a hegemonia política pertencia ao Partido Republicano
Paulista (PRP) e, regionalmente, aos coronéis, que sustentavam a política do
“café com leite”. Rompeu-se o acordo entre as lideranças de Minas Gerais e São
Paulo. Não houve entendimento para indicar o candidato à sucessão de Washington
Luís. O rompimento da política do “café com leite” agitou o país, abrindo
possibilidades revolucionárias. O correligionário de Vargas, Antônio Carlos
Ribeiro de Andrada, membro da Aliança Liberal e um dos líderes da “Revolução de 30” , disse durante um discurso em 1929: “Façamos
a revolução pelo voto antes que o povo a faça pelas armas”. A declaração
sintetiza a história do Brasil e traduz bem o significado da “revolução
passiva”.
Após tomar o poder, não pelo voto, mas por
intermédio das armas e sem o povo, o governo de Vargas implantou algumas
medidas para neutralizar o combate das elites locais em defesa de sua autonomia
regional: a suspensão da Constituição de 1891; o fechamento do Congresso
Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais; a indicação de
interventores militares para chefiar os governos estaduais. A guerra civil entre elites, que ficou conhecida como “Revolução de 1930”,
quase levou à divisão do país, que foi mantida em razão das inúmeras manobras e
concessões do governo provisório. Entregando o poder dos governos estaduais aos
interventores, Getúlio Vargas pretendia desmontar a estrutura oligárquica da
República Velha, baseada no poder dos coronéis, não em benefício dos
trabalhadores e do povo, mas de uma nova elite política nacional.
A “Revolução de 1930” tencionou pela remoção de
obstáculos para a industrialização e a criação plena de um mercado interno que
a “evolução” histórica anterior não logrou alcançar justamente porque os
métodos da “revolução passiva” postergaram a agonia e as contradições. Por sua
vez, o governo varguista também não conseguiu resolver plenamente tais
problemas porque se utilizou dos mesmos métodos limitados da “revolução pelo
alto” e da “modernização dependente”, seguindo como um refém voluntário da
chantagem e da sabotagem imperialista. Apesar da iniciativa de modernização e
industrialização iniciada com a “Revolução de 1930” , nada de essencial foi
modificado na evolução estrutural do país. O Estado Novo acabou com a
monopolização do poder por parte das velhas oligarquias agrárias, mas deu a possibilidade
de restauração do seu poder político e econômico sob novas bases e limitações.
O imperialismo norte-americano ainda tolerou alguns
governos da chamada “República Populista”, que tentaram criar uma imagem
distinta de Vargas para atrair capitais internacionais, escancarando o mercado
interno brasileiro às multinacionais imperialistas e endividando
assustadoramente o país. Os presidentes Gaspar Dutra e JK foram os campeões
destas “tenebrosas transações”.
Uma vez que esta política nefasta aumentou a miséria
e o descontentamento do povo, os presidentes Jânio Quadros e João Goulart
tentaram retomar algumas políticas populistas de Vargas, tais como o aumento do
salário mínimo, a lei que restringia o envio de lucro ao exterior e algumas
tímidas reformas de base, como a expropriação de determinadas terras e
refinarias de segunda ordem, bem como certas pretensões industrializantes.
Estas tímidas reformas, somadas ao “perigo” da Revolução Cubana (1959), fizeram
soar o alarme para que o exército brasileiro, patrocinado pelo imperialismo
ianque, protagonizasse um golpe de Estado e derrubasse estes setores da
burguesia do governo para colocar em seu lugar uma junta militar
contra-revolucionária fascista, que desencadearia uma repressão nefasta sobre o
povo. Tal medida foi seguida em toda a América Latina, cabendo um destaque
especial para o Chile, que sofreu com uma repressão brutal em razão da tentativa
de aplicação de uma “política nacionalista” pelo presidente Salvador Allende.
A ditadura militar brasileira (1964-1985) vendeu o
seu golpe como “revolução” e teve o papel de concluir – de forma autoritária,
naturalmente – a transição do Brasil da etapa do capitalismo
industrial-concorrencial para a fase imperialista. Todos os principais setores
da economia, com importante destaque para a grande mídia, tornaram-se
monopólios através de uma política permanente de fusão e incorporação. O
“sonho” nacionalista foi definitivamente enterrado e o destino de semi-colônia
autoritariamente selado.
A transição da ditadura para a democracia burguesa
– bem como a promulgação da Constituição de 1988 – também se deu sob uma nova
“revolução passiva”, feita pelo alto e à revelia dos interesses do povo, ainda
que ela tenha se iniciado em razão da pressão popular das greves operárias, sobretudo
as do ABC paulista. O PT e a CUT surgiram neste processo, mas terminaram
cooptados pelo Estado burguês em razão da opção pelo programa reformista (que
será analisado mais adiante). Com bastante êxito, a burguesia brasileira
conseguiu evitar a explosão de uma revolução socialista e, de quebra, ainda
ganhou a maior parte da esquerda brasileira e o movimento sindical dirigido por
ela para defender acriticamente o “novo” regime democrático-burguês e sustentar
suas instituições.
IV
O desenvolvimento do capitalismo no
Brasil
A questão fundamental para
identificarmos o processo de desenvolvimento do capitalismo em um país é a
criação do seu mercado interno. Sob a “economia natural”, agrícola, as
sociedades se compunham de uma massa de unidades econômicas homogêneas
(famílias camponesas patriarcais, comunidades rurais primitivas, domínios
feudais) e cada uma dessas unidades executava todos os tipos de trabalho, desde
a obtenção das matérias-primas até a sua preparação definitiva para o consumo. Uma
das características da criação do mercado interno, segundo Marx e Lenin, se dá
quando a força de trabalho se converte em mercadoria, isto é, surge o regime de
trabalho assalariado, explorado por um dono de um meio de produção
(capitalista) visando à venda no mercado, e a divisão social do trabalho. Com a
economia mercantil capitalista, a indústria de transformação se separa da
indústria extrativa e cada uma delas se subdivide em pequenas categorias e
subcategorias, que fabricam produtos particulares na forma de mercadorias,
trocando-os com todos os outros produtos.
“O
processo fundamental de criação do mercado interno (ou seja, de desenvolvimento
da produção mercantil e do capitalismo) – escreveu Lenin – é a divisão social do trabalho. Esta
consiste em que diferentes tipos de transformação de matérias-primas se separam
sucessivamente da agricultura e constituem ramos independentes da indústria,
trocando seus produtos (agora convertidos em mercadorias) pelos produtos agrícolas. Desse modo, a
própria agricultura torna-se indústria (isto é, passa a produzir mercadorias) e
também nela o mesmo processo de especialização se efetiva”[13].
Esta dependência econômica do Brasil foi tornando necessário
a transformação do trabalho escravo em trabalho assalariado, fruto dos
interesses do capital internacional. O primeiro e decisivo passo para este
desenvolvimento capitalista foi abolir a escravidão, sem o qual não haveria a
possibilidade de instituir o trabalho assalariado e a divisão social do trabalho
no sentido que o capitalismo lhe confere. Mas esta medida se deu muito antes da
industrialização mais básica da própria agricultura, que só viria a acontecer
em meados da República Velha e, dado a baixa densidade demográfica e a grandeza
geográfica do país, somente em algumas regiões, como o oeste paulista. Foi a
partir da monocultura do café que a economia paulista foi transformando-se
plenamente em uma empresa capitalista nacional. O desenvolvimento da cultura
cafeeira no Brasil representa já, tipicamente, um desenvolvimento capitalista.
O tipo de exploração determinou uma prosperidade favorável ao desenvolvimento
do capitalismo sob todas as suas formas. Desde o sistema de créditos, o
crescimento da dívida hipotecária, o comércio nos portos de exportação; até a
importação dos braços que faltavam (os imigrantes italianos, alemães, dentre
outros), que adquiriu, a partir daí, um caráter de empresa industrial.
A introdução do trabalho assalariado aumentou em
fins do século 19 com a imigração européia, que substituiu o trabalho escravo,
e a mecanização da produção cafeeira se deu plenamente apenas no século 20, contribuindo
para a lenta transformação do Brasil de um país rural em um país urbano. O
senhor de escravos tornou-se “homem de negócios”, trazendo consigo a
mentalidade colonial para a economia moderna. O crescimento das economias urbanas
e o mundo dos negócios criado pela produção cafeeira nas cidades de Rio de
Janeiro e São Paulo possibilitaram as condições para o senhor de escravos
intervir em outras esferas da vida econômica. O aumento populacional das
cidades em detrimento do campo é outra necessidade fundamental para o
desenvolvimento de um mercado interno e do próprio capitalismo.
Apesar do desenvolvimento econômico já
estar se direcionando no sentido do capitalismo, o pleno ingresso do Brasil
neste sistema só se deu com a proclamação da República, que era uma exigência e
uma imposição da burguesia de São Paulo visando implantar a sua hegemonia sobre
a federação. A República especificou e acelerou a diferenciação dos estados. O
sul, com a monocultura cafeeira, preparava as bases do surto industrial e foi
deixando para trás as províncias do centro-nordeste. À medida que progredia
economicamente, o Brasil integrava-se cada vez mais à economia mundial e
entrava na esfera de atração imperialista. O imperialismo altera constantemente
a estrutura econômica dos países neocoloniais, impedindo o seu desenvolvimento
capitalista clássico, não permitindo que esse desenvolvimento se realize de
maneira formal nos limites do Estado
Neste momento histórico os partidos
brasileiros eram regionais, não havendo, portanto, possibilidade de traçar uma
política nacional. A burguesia de São Paulo, organizada no Partido Republicano
Paulista (PRP), tomou a frente da nação aliada à de Minas Gerais, e conquistou
o governo federal, instituindo o que veio a ser conhecido como a política do
“café com leite”, que controlou o governo do Rio de Janeiro durante toda a
República Velha. A burguesia paulista pôde, então, combinar elementos de
acumulação primitiva com os processos de acumulação capitalista que só “a força
concentrada da sociedade”, isto é, o poder do Estado, permite sistematizar: a
dívida pública, o sistema tributário e o protecionismo. A política da burguesia
paulista orientava-se, até então, no sentido da manutenção do monopólio da
produção cafeeira no mercado mundial. O aparecimento das indústrias,
transformando as bases econômicas mais atrasadas do Brasil, acentuou as
tendências centralizadoras do Estado, à medida que se fez mais premente a
necessidade de mercados internos.
O que uma burguesia interessada na
monocultura do café poderia oferecer em termos de desenvolvimento econômico,
político e social para o resto do país?
Os governantes dos estados secundários tornaram-se
meros representantes do poder central nas suas regiões. Quando o capitalismo
atingiu um maior desenvolvimento, outros estados (Rio Grande do Sul, Paraíba,
Bahia e, inclusive, Minas Gerais) foram forçados a lutar por uma forma política
de equilíbrio, o que veio a desencadear a “Revolução de 1930” e o fim da
República Velha. O Estado Novo varguista cumpriu o papel histórico de
centralizar as oligarquias regionais ao poder federal, criando assim, um forte
poder estatal centralizador. Esta é a base de sua ação política.
O resultado do conflito político e econômico entre
São Paulo e os demais Estados liderados pelo Rio Grande do Sul foi resolvido
através das armas. A guerra civil de 1930 levou Vargas ao poder, mas
imediatamente a burguesia paulista preparou a reação armada através da chamada
“revolução constitucionalista” (conhecida também como “guerra paulista”) de
1932. O movimento se desencadeou a partir do descontentamento com o fato de
Vargas governar por decreto, sem uma Constituição e em um governo provisório. A
ditadura varguista também afetou São Paulo ao corroer a autonomia que os estados
brasileiros gozavam durante a vigência da Constituição de 1891; fato que
interessava profundamente à burguesia cafeeira paulista. Esta insuflou na
pequena burguesia local uma ideologia separatista somado a um patriotismo
paulista, organizando uma frente partidária semimilitarizada, subornando com
sucesso os delegados da ditadura varguista com a permanência de um regime de
ordem e outros argumentos mais sonantes.
Apesar de derrotada pela ditadura varguista, a
reação paulista tirou vantagens políticas da derrota. Frente ao poderio
econômico da burguesia paulista, o varguismo tenta conciliar os interesses
opostos próprios da indústria e das lavouras paulistas. O confronto destas
forças, desprovido de decisão e inflexibilidade por parte do desenvolvimento industrial
de Vargas, inevitavelmente leva água ao moinho dos interesses da monocultura
cafeeira de São Paulo. Este freio da ditadura varguista reflete as
características da “revolução passiva”, que procura acomodar interesses auto
excludentes e que, inevitavelmente, faz estancar o desenvolvimento econômico
geral. Mesmo com a derrota, a burguesia cafeeira paulista conseguiu impor
eleições para a Assembleia Constituinte onde asseguraria em parte, com o seu
milhão de eleitores, a velha hegemonia nas questões fundamentais.
Frente a ausência de uma estratégia consequente e de
uma análise justa da situação do país, o PCB veio a tornar-se o sustentáculo da
pequena burguesia intermediária (o movimento tenentista, dentre outros) e, a
partir desta, da grande burguesia. O proletariado não atuou com consciência e
independência de classe. Foi usado como massa de manobra pelos dois setores
burgueses em luta, terminando por ser eliminado da cena política. Para isso,
concorreram dois fatores: 1) o fraco desenvolvimento do capitalismo no país, o
que inevitavelmente tem reflexos na própria formação econômica e,
consequentemente, política, do proletariado; 2) a linha política aventureira e
equivocada da III Internacional stalinista. Seguindo um pensamento burocrático
e esquemático (que será analisado mais a frente), o PCB manteve um alheamento
total do movimento político geral do país, levantando palavras de ordem
esquemáticas e descoladas da realidade concreta dos trabalhadores. Assim, o
proletariado brasileiro foi obrigado a se alimentar dos “restos ideológicos mastigados pela pequena burguesia messiânica”[14].
A ditadura varguista, seguindo o modelo
fascista, destruiu o movimento sindical institucionalizando-o e ligando-o ao
Estado, que passou a tutelar os sindicatos a partir do Ministério do Trabalho.
A autonomia do movimento sindical, que já era pequena, foi totalmente arruinada
e, ainda hoje, em pleno século 21, não foi superada. O governo perseguiu e
exilou os militantes do PCB, proibindo o seu funcionamento; não pela sua política,
que beneficiava o governo, mas pelo que representava a ideia do comunismo a
nível internacional. Utilizando-se do “perigo comunista”, apavorou a burguesia
para poder intensificar a sua ditadura. Ao mesmo tempo, legalizou e se apoiou
no movimento integralista, baseado no fascismo. Em razão da crise internacional
do período entre guerras, Vargas colocou-se como um árbitro entre as classes
sociais, ora jogando migalhas aos trabalhadores, arrancando alguma
reivindicação do empresariado em “benefício” dos trabalhadores, ora dando
grandes benefícios ao empresariado, aumentando a exploração dos trabalhadores.
Daí surgiram a CLT, o 13º, as férias. Mas também sobrevieram os grandes lucros
dos empresários ligados ao Estado Novo, a corrupção, a perseguição ao movimento
sindical independente.
Com o afastamento das oligarquias
regionais que tinham interesses comerciais agrários, a ditadura varguista mudou,
em parte, a orientação econômica do país. Inicialmente investiu na criação de
uma infraestrutura básica para a indústria a partir das seguintes obras: Conselho
Nacional do Petróleo (1938), que foi decisivo para a futura criação da
Petrobrás; Companhia Siderúrgica Nacional (1941); Companhia Vale do Rio Doce
(1943); e Companhia Hidrelétrica do São Francisco (1945). A indústria
brasileira nasceu umbilicalmente ligada ao Estado. As exigências do
desenvolvimento industrial, em um país atrasado e de dimensões continentais
como o Brasil, buscou, como condição essencial de existência, o apoio direto do
Estado. Somente através dele foi possível lançar os alicerces do que ficou
conhecida como a “Revolução Industrial” brasileira; isto é, uma tímida e
limitada política de expansão industrial que se aproveitou da disputa interimperialista
no período entre guerras.
Um traço básico da evolução de nosso “capitalismo
não-clássico” se dá justamente na industrialização: ela demandou uma ampla e
precoce participação do Estado na acumulação de capital, não só através de processos
de regulação, mas também da criação de empresas diretamente produtivas. A
intervenção do Estado foi o elemento decisivo na acumulação de capital e, em
particular, no processo de industrialização, constituindo assim um traço de
nossa “modernidade”. Não é casual que a “revolução passiva” que se inicia em
1930, se fortaleça com o Estado Novo e prossiga na época populista. Uma
“revolução” que, industrializando o país com o apoio da intervenção estatal,
consolidou definitivamente o modo de produção capitalista no Brasil, pelo viés
dependente e periférico.
Os governos varguistas corresponderam à
mudança de hegemonia internacional. O imperialismo inglês passa definitivamente
o bastão para o imperialismo norte-americano. Vargas tentou industrializar
setores básicos da economia brasileira durante a disputa que precedeu e
desencadeou a Segunda Guerra Mundial. Mas uma vez que esta chegou ao fim, o
imperialismo ianque deu o seu ultimato ao agonizante nacionalismo varguista. O
país foi alinhado definitivamente às diretrizes de Washington e Vargas deposto
por duas vezes.
Como ficou atrasado no desenvolvimento
econômico em razão do colonialismo e de todas as suas conseqüências analisadas
até aqui, o Brasil não teve condições de industrializar-se e desenvolver tecnologia
própria. Desde o início foi completamente dependente dos centros financeiros e
tecnológicos imperialistas. A burguesia nacional não teve capacidade nem plena possibilidade
de desenvolver a indústria sem chocar-se com o imperialismo e sem ser derrubado
por ele. A questão agrária novamente ficou sem solução. O latifúndio escapou
ileso da reforma agrária e das reformas de base de Jango. Foi salvo pela
ditadura militar e incorporado na etapa do capitalismo imperialista, voltado
exclusivamente para o mercado externo e para e especulação fundiária. A
burguesia nacional, fraca e covarde, voltou as costas para o povo brasileiro e
não aproveitou o desenvolvimento do capitalismo para liquidar a herança
colonial. O nacionalismo burguês nasceu atrasado, desenvolveu-se no populismo e
morreu na casca, asfixiado pelo imperialismo. Ao Brasil, restou a periferia do
mercado capitalista internacional; papel ao qual a burguesia nacional não
apenas se submeteu de bom grado, como quer fazer crer que seja algo eterno e
imutável.
V
As limitações e peculiaridades do
desenvolvimento do capitalismo no Brasil
Fruto desta realidade social e
econômica contraditória, o capitalismo brasileiro possui peculiaridades que o
afastam do “capitalismo clássico”, cujas características gerais desenvolveram-se
nos países imperialistas. Durante o século 19, a burguesia brasileira
manteve, sem nenhum tipo de constrangimento, um discurso e uma prática que
mesclavam liberalismo e escravidão, como se não fossem categorias econômicas
contrárias e excludentes. A Inglaterra assistiu o trono dos Pedros I e II
vegetar por quase um século em torno dos interesses econômicos da aristocracia
agrária, enquanto trabalhava para alicerçar os seus interesses imperialistas no
continente. Brasil, Argentina e Uruguai foram a porta de entrada para o seu
domínio na América do Sul. A crise do sistema escravista de trabalho e a
transição para uma república coronelista foi o desfecho “natural” de uma
situação rigorosamente insustentável nascida da ambição de vestir um país ainda
preso à economia escravocrata com os trajes modernos de uma grande democracia
burguesa. Soma-se a isso o fato de uma burguesia nascente e débil se organizar
na maçonaria; isto é, numa “sociedade secreta” e ritualística que estava de
costas para o povo e voltada para a defesa dos seus próprios interesses de
classe, conciliando com os restos oligárquicos dos antigos regimes brasileiros.
Muitos movimentos políticos nacionais foram dirigidos segundo suas orientações,
cabendo destaque à proclamação da República e à Revolução Farroupilha.
Alguns estudiosos da história do Brasil
– tais como Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda – afirmam que o
Brasil, nas épocas colonial e imperial, não era capitalista, razão pela qual
sua classe dominante, formada pelos latifundiários escravistas, não se movia
com base numa lógica burguesa, mas se orientava por outra “racionalidade”,
chamada por eles de “patrimonialista”. Na verdade, as características
paternalistas e patrimonialistas do capitalismo brasileiro não lhes retiram a
dinâmica dos interesses burgueses. O latifúndio e a escravidão estavam
voltadas, em última análise, para o mercado mundial e, portanto, para a
produção de valores de troca. Este fato também não exclui as peculiaridades e o
desenvolvimento limitado e defeituoso do capitalismo brasileiro, que misturou
elementos estranhos na sua formação nacional, lhe conferindo, por isso mesmo,
uma posição periférica no mercado mundial. É a partir desta compreensão que
podemos analisar a expansão das relações comerciais na época imperial,
destacando-se a emergência de duas novas camadas sociais: a dos fazendeiros de
café e a dos imigrantes. Embora sem romper inteiramente com a “velha ordem”
patrimonialista, tais camadas começaram a agir segundo uma racionalidade
propriamente capitalista, o que lhes possibilitou desempenhar – não sem
profundas contradições – o papel de protagonistas de uma “meia revolução burguesa”.
A
burguesia brasileira não se pautou pelo empreendedorismo (com raríssimas
exceções); nem se colocou abertamente na disputa pelo mercado mundial, pelo
desenvolvimento de tecnologia própria e da intelectualidade nacional. Sua
mentalidade e preocupação versavam sobre interesses oligárquicos e
aristocráticos, de manutenção da velha estrutura agrária e política – de onde
provinha o seu lucro e os seus privilégios; e, portanto, nasceu centrada em conservar
as manobras de bastidores para manter o status
quo. Na época da Revolução Industrial, era impensável um autêntico
capitalismo que desconsiderasse ou menosprezasse a lei da oferta e da procura, a
busca por novos mercados, o empreendedorismo social e econômico ou a criação de
instituições políticas que facilitassem este tipo de desenvolvimento. As
estratégicas indústrias têxtil e metalúrgica não progrediram pela covardia e
negligência da burguesia nacional. Até a abertura dos portos às nações amigas,
em 1808, as deficiências do comércio português, somados ao seu autoritarismo do
pacto colonial, tinham operado como uma barreira protetora de uma pequena
indústria local que, apesar de pequena, supria uma parte do consumo interno.
Esta indústria regional foi totalmente destruída pela “livre” concorrência da
indústria inglesa, que passou a suprir até mesmo os artigos mais
insignificantes. Esta situação levou à estagnação econômica e à acomodação
política por parte da burguesia nacional, se agravando ao correr dos anos em
razão do aperfeiçoamento contínuo da indústria européia.
Outro exemplo disso pode ser visto na produção de
algodão: enquanto os EUA difundem largamente já em 1792 uma nova máquina para o
descaroçamento do algodão, no Brasil se continuará a empregar por decênios o
velho princípio do descaroçador de origem imemorial, a churka, que remonta o Oriente antigo. Ignorou-se por completo a
descoberta tecnológica que revolucionaria a cultura algodoeira. Outra indústria
promissora – a naval – esbarrou no mesmo problema. Por falta de técnica e de
organização eficiente, manteve-se estacionária depois do primeiro surto e
vegetou daí por diante.
Uma das razões desta estagnação
científica e tecnológica, como já foi dito, está na natureza do colono
português – completamente diferente do colono inglês na América do Norte – e,
sobretudo, no regime político e administrativo que a metrópole impôs à sua
colônia. Este se caracterizou por isolar o Brasil, mantê-lo afastado do mundo e
impedindo, portanto, que aqui chegasse outra coisa qualquer que não os reflexos
do já baixo nível intelectual de Portugal. O sistema educacional brasileira era
um caos. Os poucos expoentes intelectuais da colônia e do império que se
destacavam pairavam num “outro mundo”, ignorados por um país que não podia
compreendê-los. E sobre tudo isso pesava uma administração mesquinha,
preocupada unicamente nos rendimentos do fisco e dos particulares desta
camarilha de burocratas incapazes e pouco escrupulosos que governava o país[15].
Os valores políticos republicanos e “capitalistas”
do Brasil foram fundados e se baseiam no apadrinhamento, no patriarcalismo e no
clientelismo. Estas práticas, estranhas à meritocracia capitalista, foram automaticamente
incorporadas ao capitalismo brasileiro e às suas instituições
democrático-burguesas. Novamente conceitos econômicos e políticos
contraditórios são fundidos como se pudessem representar a mesma coisa. A
burguesia que se formou neste processo e o liderou, mantém estas instituições e
não vê nada de anormal nelas, senão que conquistou esta estabilidade política e
econômica e quer mantê-la a qualquer preço, mesmo que o país fique à margem do
mercado mundial e dependente dos países imperialistas. Joga toda a
responsabilidade pelo atraso do país nas costas do povo e no seu suposto apreço
intrínseco à preguiça, à festa e à apatia.
Assim, podemos concluir que o Brasil
moderno já é plenamente capitalista, apesar de conservar elementos da velha
ordem colonial. O desenvolvimento do capitalismo, que se processou sem rupturas
com a economia pré-capitalista, não apresentou as mesmas características
revolucionárias que teve na Europa Ocidental: em vez de contribuir para romper
as amarras daquele mundo antigo, mais ainda as fortalecia, colaborando para
transformar o isolamento e a solidão passivos em um individualismo prático e
reacionário. Eis aí uma das bases materiais para o surgimento da mentalidade da
classe média brasileira, que por não encontrar um contraponto, se alastra para
o povo.
Impossibilitada de realizar a sua revolução
democrática, a burguesia brasileira jamais tentou criar o citoyen[16]
(ou seja, o ser-humano que sintetiza em si a vida pública e a vida privada).
Sendo assim, no Brasil, a penetração e a evolução do capitalismo ganharam características
bastante originais pela existência simultânea e contraditória de vários dos
seus estágios anteriores: em determinados casos, ele representa um estímulo à
perpetuação de nossa velha sociedade estagnada, retrógrada e miserável; em
outros, apresenta-se como possibilidade de renovação e do progresso; finalmente,
revelando prematuramente as suas naturais limitações e contradições internas,
cria condições para a abertura de uma perspectiva rumo à nova sociedade pela
qual deve ser superado, o socialismo[17].
O numeroso proletariado brasileiro surgiu e se consolidou ao longo do século 20
como o reflexo das contradições do desenvolvimento econômico nacional. A ele
cabe a difícil incumbência de superar as tarefas históricas não cumpridas pela
débil e covarde burguesia nacional.
Para superar as deficiências tecnológicas e
industriais do país é necessário um gigantesco esforço em dois sentidos: 1) mudar
as relações sociais de produção, caminhando no sentido do socialismo – único
sistema capaz de romper com a situação econômica periférica em que o país se
encontra; e 2) transformar a sociedade brasileira em uma grande escola técnica
e filosófica, investindo em ciência e tecnologia e criando outra dinâmica
econômica capaz de mudar a atual mentalidade social, que é pautada pela
imutabilidade da dependência. Em todos os casos, é fundamental criar as
condições políticas e sociais para romper com o capitalismo e avançar para uma
revolução socialista, pois a sociedade capitalista brasileira, com os seus
traços peculiares de desenvolvimento, apesar de nos ter trazido até aqui e
formado um grande mercado interno – reconhecido como a 8ª economia do mundo –,
não pode solucionar as graves contradições e crises na qual o Brasil definha e
agoniza há décadas sob o controle de uma burguesia parasitária, covarde e
inútil.
VI
A criação cultural, a formação da
intelectualidade e a mentalidade da classe média
No campo cultural e intelectual o
desenvolvimento do capitalismo brasileiro, contraditório e híbrido, não deixou
de ter os seus impactos, causando asfixia e atrofia no pensamento independente.
Uma vez que os grupos dominantes alternaram-se no poder, procurando manter e
desenvolver a sua estabilidade política e econômica – fato que se convencionou
chamar de “revolução passiva” –, os intelectuais que poderiam cumprir um papel
independente acabaram se subordinando a um deles para garantir seus meios de
subsistência. O modelo desta evolução econômica e os seus resultados
determinaram o relacionamento entre os intelectuais e as classes sociais.
Um dos modos de isolar os grupos
populares dos processos políticos constitui precisamente em “assimilar” os seus
possíveis representantes ideológicos conscientes, incluindo-os nos novos blocos
de poder que iam resultando dos processos de conciliação pelo alto. Isso se
faz, essencialmente, através dos vários mecanismos de cooptação das camadas
médias – em particular, dos intelectuais – pelas classes dominantes. Esses
mecanismos variam desde o “favor” concedido a homens livres, mas não
proprietários, na época da escravidão, passando pelo recrutamento da burocracia
civil e militar a partir da época do 2º Império e, sobretudo, do período
varguista, chegando até a criação pela ditadura militar, mediante mecanismos de
distribuição de renda, de um setor privilegiado de tecnocratas dotados de alto
poder de consumo. Em uma evolução social em que o Estado era tudo e a sociedade
civil primitiva e gelatinosa, com escassos aparelhos privados de hegemonia, bem
como de partidos políticos independentes, os intelectuais que se recusassem a
cooptação estavam condenados pelo capitalismo à marginalidade no plano cultural
e a seríssimos problemas no plano da subsistência econômica. Dispensados de
qualquer papel na produção, ao longo da história do Brasil os intelectuais
sustentaram-se através de empregos burocráticos, doações, prêmios, mecenato, e
outros. Com maior ou menor boa vontade, consciente ou inconscientemente,
voluntariamente ou a contragosto, e mesmo com raras exceções honrosas, os
intelectuais brasileiros aderiram à ideologia da classe dominante e procuraram
não enfrentar o Estado, do qual depende diretamente sua subsistência. O mesmo
processo se passou com os sindicatos.
A cooptação não obriga necessariamente
o intelectual a se colocar diretamente a serviço das classes dominantes
enquanto ideólogo. O que esta cooptação faz é induzi-lo através de várias
formas de pressão consciente ou inconsciente a optar por formulações culturais
“neutras”, capazes de ajudar a mitificar ou naturalizar a exploração
oligárquica e/ou burguesa. Há um compromisso tácito em não por em discussão e,
evidentemente, não combater os fundamentos do poder do qual depende. A
“neutralidade” da produção intelectual, artística, filosófica e científica
preconizada pela classe dominante brasileira é uma farsa, pois apenas esconde
que ela pressupõe uma unidade contra o povo: todas as correntes conservadoras,
religiosas ou leigas, otimistas ou pessimistas, metafísicas ou sociológicas,
moralistas ou cínicas, cientificistas ou místicas, concordam em um determinado
ponto essencial: impedir que as massas populares se organizem, reivindiquem,
façam política e criem a democracia socialista.
Esta condução autoritária na formação
da intelectualidade brasileira – baseada na ameaça da morte por inanição
daqueles que ousam pensar, criticar e produzir cultura de forma independente –
atingiu o seu ápice na ditadura militar. A prática sistemática da censura, que
sempre existiu, mas que durante o regime militar se intensificou, aliou-se a um
claro terrorismo ideológico, podendo ser considerado como a face aberta da política
cultural vigente após 1964.
A ditadura militar representou no campo econômico o
pleno ingresso do Brasil na fase imperialista; e no campo cultural, incentivou a
criação de tendências que estimulariam o florescimento de uma cultura
“neutralizadora” e socialmente desagregadora. As universidades nasceram com uma
missão limitada e unilateral; e na ditadura militar não apenas foram submetidas
a processos repressivos diretos, como também sofreram com uma crescente
“racionalização” capitalista, preparando a futura onda estéril pós-moderna.
Em síntese, podemos dizer que as
contradições do desenvolvimento do capitalismo no Brasil criaram, no geral, uma
intelectualidade acomodada, deformada e covarde, de costas para o povo. Basta
olhar o que produz a grande imprensa brasileira: uma “censura democrática” por
diversos meios eletrônicos, voltada a defender e sustentar a hegemonia burguesa
sobre a sociedade. Toda a grande imprensa burguesa do Brasil, transformada em
uma empresa altamente lucrativa, dependente do aval dos grandes centros
imperialistas internacionais, produzindo um jornalismo idêntico no essencial. A
grande mídia e a intelectualidade brasileira sempre cumpriram o papel de
cultivar na classe média[18]
uma mentalidade limitada, sádica, abstrata, abstencionista e voltada a defender
os interesses da grande burguesia como se fossem seus, mesmo que sua realidade
material seja, na maioria dos casos, completamente inferior. Ajudam a oprimir,
explorar e humilhar o seu próprio povo atrás de um pensamento que julgam “neutro”,
“ético” e “justo”. Em alguns casos humilham a si próprios. Não acreditam que o
povo organizado possa ter força e representar uma saída, mas apenas numa
homeopática ética, abstrata e distante do campo de batalha da realidade.
Desprezam o coletivo e voltam-se para si mesmos. Não compreendem o papel
limitado da grande burguesia e nem o lugar do capitalismo brasileiro na
história. Compram uma ideia de progresso utópica e reacionária, que cria o caos
social e ajuda, no concreto, a manutenção de um capitalismo dependente, que não
pode sair desta condição em razão de todo o exposto até aqui. Um manto de
hipocrisia e confusão faz o capitalismo parecer a esta classe média como a
única saída política e econômica possível para o país, mas ela não enxerga que é
este mesmo sistema que mantém o país como uma semi colônia, explorada e
estagnada. A miséria reinante nas periferias das grandes cidades – ou seja, um
dos resultados nefastos do capitalismo brasileiro – faz aumentar a violência
social, cujo reflexo se volta contra a própria classe média; que não combate as
suas causas, mas somente exige maior repressão policial. A sua produção
intelectual reflete os seus medos e a sua condição social. Por isso, não pode
se tornar num guia seguro para o desenvolvimento do país.
O pensamento pequeno burguês sustenta
que é possível haver desenvolvimento apenas por dentro do capitalismo –
rechaça, por várias razões ideológicas (dentre as quais a ignorância e a
lavagem cerebral), o socialismo. Sempre vê o problema no “povo”, que segundo
este pensamento, é classificado como despreparado para votar, preguiçoso,
ignorante, apático e festeiro. Exime totalmente o papel da burguesia brasileiro
no desenvolvimento histórico do país – inclusive na (de)formação intelectual,
política e econômica do próprio povo. A análise feita até aqui demonstra que
não é possível desenvolver o país dentro do capitalismo. As estruturas
econômicas e políticas do sistema não o permitem, a não ser até determinados e
rebaixados limites. A única possibilidade de evolução do Brasil dentro desta
lógica é continuar sendo um país periférico no mercado mundial, produtor de
commodities (matérias-primas); isto é: uma semi colônia voltada a abastecer os
países imperialistas com gêneros de primeira necessidade e a consumir deles
produtos de alta tecnologia e de alto valor agregado. Achar que o Brasil pode
se desenvolver nos limites do capitalismo pressupõe que o país possa se tornar
imperialista (ou no eufemismo burguês: “desenvolvido”), capaz de competir com
os demais países imperialistas, bem como disputar o monopólio de suas
indústrias. Além disso, esta esperança dissemina a ilusão de que a burguesia
brasileira pode ter outros interesses diferentes dos que desenvolveu até hoje;
ou seja: a produção de matérias-primas para o mercado mundial. Nem os países
imperialistas tolerariam tal pretensão, nem a burguesia nacional pode, em razão
de sua “natureza”, desenvolver outros interesses diferentes daqueles que
fizeram parte de sua formação histórica. A única política possível para o
“desenvolvimento” é a que a burguesia aplicou até aqui, causando grandes
sofrimentos para o povo: atração de capitais internacionais através da dívida
pública, isenção de impostos à grande indústria, tolerância com a sonegação de
impostos por parte dos grandes capitalistas, enquanto aumenta os impostos sobre
o povo e a classe média; instituições “democráticas” que funcionam por
intermédio do suborno e da corrupção.
Por suas condições materiais e
aspirações sociais, a pequena burguesia tende a seguir acriticamente a
burguesia, mesmo que por inércia; mas estas mesmas condições de vida – melhores
se comparadas ao povo em geral – são continuamente ameaçadas por este
capitalismo terceiro mundista através do aumento de impostos, dos impasses
econômicos, da ausência de uma possibilidade real de novas estratégias
econômicas e políticas, do alto custo da corrupção, etc. A tarefa teórica do
proletariado em relação ao pensamento pequeno burguês, amplamente disseminado
na sociedade, é demonstrar esta situação sem saída em que a burguesia nacional
jogou o país e da qual é incapaz de tirar. Somente o proletariado no poder,
aplicando métodos de construção socialista, pode dar uma nova perspectiva
política e econômica ao povo e à pequena burguesia. Para esta árdua tarefa é
necessário coerência entre os atos e as palavras, entre a política e o
programa, tenacidade e coragem, organização e consciência.
A formação de intelectuais autenticamente livres
depende da sua ligação com o povo e, particularmente, com o proletariado. O
primeiro passo é conquistar, via organização de um movimento proletário
autônomo, o fortalecimento da sociedade civil na perspectiva socialista e a possibilidade
material para que todos os intelectuais tenham independência financeira e de
subsistência – fato negado pela ditadura do mercado capitalista. Hoje a
desorganização dos trabalhadores impede que haja uma influência proletária
maior na sociedade civil, que está majoritariamente dominada pelo pensamento
burguês e pequeno burguês; mas uma vez que os seus instrumentos de organização
voltem a se fortalecer e a se tornar verdadeiramente independentes no campo
sindical e político, é possível começar a suprir esta demanda. Para que os
sindicatos possam superar a burocratização e o afastamento das suas bases de
representação, é preciso que rompam com a dependência estatal, voltando a se
organizar pela base através do respeito à representação direta. Um sindicato
capaz de incentivar a intelectualidade autônoma só pode surgir com o fim da
dependência do Estado. No campo político, apenas um partido revolucionário pode
trabalhar pela total independência de classe dos trabalhadores, pensando e
criando um caminho político independente dos diversos campos burgueses no
sentido de superação da sociedade de classes. Os intelectuais revolucionários
comprometidos com os trabalhadores somente surgirão no bojo de um movimento que
tenha estas premissas. São estes intelectuais e pensadores que ajudarão o
Brasil a superar a limitação do seu desenvolvimento capitalista peculiar,
limitado e dependente.
VII
A interpretação errônea da realidade
brasileira por parte das organizações de esquerda
O grande entrave para a superação dos problemas
sociais brasileiros continua sendo a crise de direção política. Muitas
organizações de esquerda interpretaram erroneamente a realidade econômica e
política do Brasil, propondo estratégias para supostamente superá-la. O que se passa, contudo, é que estas estratégias
são equivocadas, baseadas em uma leitura errada da dialética marxista e da realidade
brasileira. Através delas, os partidos de esquerda terminam por subordinar
politicamente os trabalhadores à burguesia.
A degeneração da antiga URSS deu origem ao regime
stalinista, que não apenas levou a Rússia à restauração do capitalismo na década
de 1980, como orientou inúmeros Partidos Comunistas pelo mundo a seguirem
estratégias catastróficas que desembocaram na traição aberta aos interesses
históricos do proletariado. Alguns desses casos puderam ser vistos na China, na
Alemanha, na Espanha, na França, na Iugoslávia, na Grécia, dentre outros. Em
todos estes países a visão teórica esquemática do stalinismo rompeu com o
marxismo e o leninismo – apesar do discurso em contrário – caindo num
doutrinarismo grosseiro. No Brasil, esta orientação levou o PCB a sustentar um
setor da burguesia, equivocadamente chamada por ele de “progressista”. Para
sustentar tal política, os teóricos stalinistas afirmavam que o Brasil era um
país semi-feudal, onde o capitalismo não havia se desenvolvido plenamente. Não
enxergavam (ou não queriam enxergar) que as limitações do desenvolvimento do
capitalismo no país eram reflexos da sua evolução tardia, combinando uma
modernização dependente com estagnações e retrocessos. Esta evolução tortuosa
foi o resultado da direção política de uma débil burguesia que não conseguiu
superar o passado colonial e agrário, mantendo certas práticas econômicas ultrapassadas
e uma localização periférica no mercado mundial.
Se por um lado a concepção teórica stalinista se
baseava em elementos corretos da realidade (como a herança da grande
propriedade, a insuficiente formação do proletariado brasileiro, a deficiência
da instauração plena do regime de trabalho assalariado); por outro lado, ignorava
não apenas a própria experiência da revolução russa de 1917, cuja débil
burguesia não conseguiu destruir o regime monárquico czarista, como também
desprezava o fato de que na época imperialista as burguesias coloniais se
tornaram conservadoras e sócias menores das burguesias imperialistas. Ou seja,
as tarefas da revolução burguesa recaem sobre os
ombros do proletariado e só podem ser resolvidas por este. O stalinismo não
foi apenas um regime burocrático ditatorial degenerado que esmagou o movimento
operário russo; ele também jogou pelo ralo toda a experiência da revolução
russa, ao mesmo tempo em que dizia ser sua maior representação.
Para o stalinismo, a tarefa do proletariado
brasileiro seria ajudar a burguesia “progressista” a desenvolver o capitalismo
“até o fim” para só depois, num futuro longínquo, realizar a revolução
proletária com vistas ao desenvolvimento do socialismo. Assim, em 1930 o PCB
passou de uma linha abstencionista, para o aventureirismo da malfadada intentona comunista de 1935, para, logo
a seguir, dar apoio descarado a Getúlio Vargas segundo a orientação stalinista
de “revolução por etapas”. Posteriormente apoiou os governos populistas
baseados na mesma lógica teórica. O PCdoB[19],
em pleno século 21, utiliza-se dos escombros destes argumentos teóricos para
sustentar politicamente os governos do PT, vistos como “progressistas” e nacional-desenvolvimentistas.
Foi por estas características que Trotsky chamou a
teoria stalinista de “revolução por etapas”, e a ela contrapôs a teoria da revolução
permanente, baseada na experiência das revoluções russas (1905 e 1917). Durante
a polêmica histórica entre o stalinismo e o trotskismo nos anos 1920-1930,
quando a URSS ainda existia e era uma ameaça real à burguesia, muitos ativistas
não conseguiam enxergar claramente o eixo central da divergência entre a
posição dos defensores da possibilidade de construir “o socialismo em um só
país” e a tática das “frentes populares” (stalinismo) e os defensores da teoria
da revolução permanente (trotskismo). Hoje, passado quase 100 anos destas
divergências, podemos constatar que a história deu razão ao trotskismo. O
capitalismo foi plenamente restaurado na URSS, leste europeu, Cuba, China. Não
é possível construir o socialismo em um só país.
***
O Brasil segue com um capitalismo tão dependente e
periférico quanto na década de 1930, apesar de todos os esforços do PCB para
“desenvolver o capitalismo brasileiro” visando o “socialismo”. Os argumentos
stalinistas, mantidos em pleno século 21, são mais retrógrados ainda, pois
escondem que o país já desenvolveu todas as características do regime
capitalista de produção, tornando a sua teoria, assim, em apenas mais uma ala
da social-democracia que vive de um reformismo sem reforma. Está aí o PCdoB que
não deixa margem à dúvidas.
A teoria da revolução permanente declarou guerra a
essa ordem de ideias e a essa disposição de espírito. Ela demonstrava que, na
época imperialista, o cumprimento das tarefas democráticas da revolução
burguesa (reforma agrária, fim dos restos coloniais, criação de uma verdadeira
república democrática) conduzia diretamente à revolução proletária e à ditadura
do proletariado, que colocam as tarefas socialistas na ordem do dia. Enquanto a
opinião stalinista considerava que o caminho para a ditadura do proletariado
passaria por um longo período de democracia burguesa, a teoria da revolução
permanente proclamava que, para os países atrasados, o caminho para a
democracia passaria pela ditadura do proletariado, que instauraria as
instituições capazes de garanti-la – os conselhos operários – e tiraria o poder
econômico das mãos da burguesia, sem o quê qualquer discurso sobre “democracia”
é uma ilusão. Por conseguinte, a democracia não poderia ser considerada como um
fim em si, que deveria durar dezenas de anos, mas como o prólogo imediato da
revolução socialista, à qual se ligava por vínculo indissolúvel. Dessa maneira,
tornava-se permanente o
desenvolvimento revolucionário que ia da revolução democrática à transformação
socialista da sociedade em um mesmo processo, ainda que a escala de tempo possa
variar de país para país.
Na nossa época, somente atacando a propriedade
privada burguesa – isto é, os grandes monopólios industriais – poderemos
resolver as questões democráticas mais básicas e elementares. A conclusão da
revolução burguesa em um país semi colonial como o Brasil só poderá realizar de
fato as suas tarefas no caso de o proletariado tomar o poder em suas mãos e
instaurar uma ditadura revolucionária (que nada tem a ver com o regime
stalinista). Em outras palavras, a ditadura do proletariado tornar-se-á a arma
com a qual serão alcançados os objetivos históricos da revolução burguesa
retardatária (reforma agrária, fim dos restos coloniais, verdadeira
independência nacional, etc.). Mas, uma vez no poder, o proletariado não
poderia se conter nestes pontos: ele seria obrigado a fazer incursões cada vez
mais profundas no domínio da propriedade privada em geral – sobretudo nos
grandes monopólios –, ou seja, o proletariado deverá empreender o rumo das
medidas socialistas concomitantemente à solução dos problemas retardatários da
revolução burguesa inconclusa.
O menchevismo e a teoria stalinista de “revolução
por etapas” partem do ponto de vista formal de que o papel dirigente numa
revolução burguesa só pode pertencer à burguesia. Mas os tempos são outros! Uma
vez que a burguesia dos países semi coloniais está ligada à grande propriedade
fundiária e aos restos coloniais por numerosos laços, a libertação
verdadeiramente democrática dos trabalhadores e do povo só pode realizar-se
pela cooperação destes contra a burguesia, que se tornou covarde e abertamente
reacionária, interessada na manutenção dos seus privilégios tais como são; nem
que para isso tenha que vender todo o país aos interesses imperialistas.
Na nossa época o grande capital imperialista domina
todos os países. Não existem mais monarquias absolutistas ou vestígios de
feudalismo. Todas as formas econômicas atrasadas estão plenamente integradas ao
capitalismo. A independência nacional – uma tarefa democrático-burguesa
inconclusa no Brasil – e a luta anti-imperialista estão relacionadas não só com
a expulsão militar do imperialismo, mas também com a expropriação das
multinacionais, que é uma tarefa socialista. A independência nacional é
impossível sem a expropriação do grande capital. No Brasil ainda existe o
latifúndio; mas é um latifúndio capitalista, onde predomina a empresa
capitalista (geralmente o agronegócio). O campo está esvaziado se comparado às grandes
cidades. É por essa característica da época imperialista que não é mais possível
a revolução democrática (ou “por etapas”), embora existindo ainda importantes tarefas
democrático-burguesas a serem completadas. A ditadura do proletariado é a
herdeira da revolução burguesa inconclusa.
***
Os atuais partidos ditos “marxistas” que ignoram
esta realidade cumprem o melhor papel de cúmplices da burguesia. Uma das
teorias de conciliação de classes mais nefasta no Brasil atualmente se deu com
o PT – em particular, com as teorias defendidas por Carlos Nelson Coutinho
(CNC) –, que resgataram a política stalinista de frente popular. Esta tática,
que levou o proletariado internacional à inúmeras derrotas na França, Espanha,
Chile, China, dentre outros, também serviu para afundar os trabalhadores
brasileiros no lamaçal da politicagem burguesa. A frente popular se caracteriza
por ser uma coligação entre partidos e organizações dos trabalhadores com
forças políticas burguesas. A despeito da participação dos trabalhadores nesta
frente levantando algumas reivindicações, o programa político é burguês.
Baseando-se na compreensão gramsciana de que no
ocidente os partidos comunistas deveriam adotar uma “tática diferente” do que o
enfrentamento revolucionário, buscando alianças na sociedade civil no sentido
de uma transição semi-pacífica, sobretudo eleitoral, CNC sustentou esta tese de
forma bastante obscura nos dois partidos em que ajudou a fundar e foi exímio
teórico-militante: PT e PSOL. Ora citava Lenin, procurando justificar uma
possível saída revolucionária; ora citava Gramsci, tentando conciliar uma transição
moderada e pacífica. Na verdade, CNC e o PT, procurando explicar a sua
conciliação de classes com uma justificativa de que no Brasil as transições se
deram a partir de uma “revolução passiva”, propuseram tacitamente uma
“revolução passiva” também para o socialismo, como se os trabalhadores
organizados em partido político pudessem disputar as instituições políticas
burguesas por dentro e fossem, pouco a pouco, modificando a correlação de força
em benefício do povo. Esta tática, conhecida como estratégia “democrático
popular”, que nada mais é do que o reformismo bersteiniano adaptado ao Brasil
de fins do século 20 e início do 21, levou o proletariado brasileiro a se
alimentar de inúmeras ilusões e a cultivar uma consciência pequeno-burguesa. Os
sindicatos foram “acalmados” e incorporados à ordem democrático-burguesa,
passando a ser uma correia de transmissão dos interesses das instituições
burguesas no seio dos movimentos de base dos trabalhadores. O grande objetivo
sindical passou a ser eleger parlamentares e governos petistas (como continua
sendo até hoje). O PT, que iniciou esta adaptação em fins de 1980, teve o seu
coroamento na eleição de Lula em 2002.
Os governos petistas não apenas não reformaram nada
da sociedade burguesa, como as instituições burguesas cooptaram o partido e
todas as suas organizações satélites (CUT, UNE, MST). Os limitados programas
sociais não representaram reformas estruturais, pois são apenas migalhas jogadas
a um povo miserável, podendo ser retirados facilmente através de uma política
de cortes orçamentários. A defesa do “socialismo” foi sendo gradativamente
esquecida, até se transformar totalmente numa capciosa e pragmática defesa de
um “capitalismo humanitário”. Os governos petistas, buscando alianças com toda
a velha elite decrépita do país, cavaram a própria cova e terminaram por sofrer
o golpe do impeachment, dado pelos
aliados “confiáveis” de ontem, encerrando não apenas um governo reformista sem
reformas, mas enterrando também as ilusões da própria estratégia reformista (democrático
popular) que pregava sutilmente a possibilidade de uma “revolução passiva” e de
uma transição pacífica para o socialismo em aliança com a burguesia.
***
Outras organizações que se situam no campo da
esquerda revolucionária cometem erros teóricos semelhantes à orientação
stalinista e reformista. Eles afirmam que os erros do petismo se situam na
falta de iniciativa do governo. Segundo este pensamento, durante o período de 2000 a 2008 (antes do
estopim da crise capitalista internacional), quando o preço das commodities era elevado e promissor, a
burguesia latino-americana não utilizou as receitas para “avançar num processo
de industrialização”. A grande renda oriunda do petróleo e dos minérios foi
utilizada apenas para os programas assistencialistas e não para transformar a
estrutura social de atraso e dependência.
Ora, atribuir à burguesia frente populista dos
países neocoloniais a tarefa de liquidar o atraso e a dependência é um
contrassenso teórico ou uma enganação. Como foi dito, a atual conjuntura
histórica delegou à burguesia dos países atrasados a tarefa de sócias menores
do imperialismo. É justamente o capitalismo periférico sustentado por estas
burguesias nacionais que garante a estrutura do atraso e da dependência, ao
mesmo tempo em que vendem ilusões de que estes países “podem vir a se tornar
nações desenvolvidas”, tais como os países imperialistas. As burguesias dos
países semi coloniais já deram inúmeras provas de que não estão dispostas a
romper o seu acordo com o imperialismo.
***
Outro setor da esquerda, que segue a
orientação teórica de Nahuel Moreno, defende o que ele designa como “revolução
democrática” ou de “fevereiro” (em alusão à revolução russa de fevereiro de
1917). Este setor é composto por PSOL (MES, CST e outros), PSTU e correntes
políticas menores. O morenismo se caracteriza por fazer uma revisão radical no
pensamento de Trotsky, negando não apenas o Programa de Transição – que ele
julgou “atualizar” –, mas, também, a teoria da revolução permanente. As
correntes morenistas dissociam a revolução democrática da revolução socialista.
Atribuem a direção destas revoluções a qualquer partido, seja ele reformista,
pequeno-burguês ou, até mesmo, burguês. Chegam ao absurdo de delegar esta
tarefa ao imperialismo, como se pôde ver no caso da Líbia e da Síria. O
processo revolucionário, em um primeiro momento estaria dissociado da revolução
socialista, passando por uma etapa democrático-burguesa que o proletariado
deveria se utilizar para preparar as bases da revolução proletária futura.
Isso não tem nada de novo. Dissociando as
“revoluções democráticas” da revolução socialista, o “trotskista” Nahuel Moreno
liquida com o método da revolução permanente. E ao negar os princípios básicos
da revolução permanente, o morenismo cai na mesma tática da “revolução por
etapas” do stalinismo, só que com outro nome e disfarçando-se com uma roupagem
trotskista.
Indo mais além, o morenismo atribui um poder mágico
às palavras de ordem e tarefas democrático-burguesas retardatárias. Para
Moreno, basta levantar uma palavra de ordem democrática (por exemplo: defesa da
reforma agrária) para lhe atribuir um caráter socialista por si só, não
precisando levantar as palavras de ordem autenticamente socialistas (controle
operário da produção, expropriação dos meios de produção, etc.). Sendo assim, o
morenismo cai no espontaneísmo mais rasteiro e ainda esconde-se atrás do nome
de Lenin e Trotsky.
Dentro da lógica desta “revolução democrática”, o
morenismo constata que uma mudança de regime dentro de um estado burguês e do
próprio capitalismo seria uma vitória das massas, mesmo que levasse ao poder
setores da burguesia “democrática” apoiada pelo imperialismo. Por exemplo: para
Moreno, a queda da ditadura militar brasileira e argentina representou uma
colossal revolução democrática, mesmo que tenha mantido o regime democrático
burguês e o próprio capitalismo, afastando os trabalhadores de qualquer
perspectiva de poder. Com estas “brilhantes” estratégias é bastante
compreensível a desorientação da esquerda brasileira.
***
É dentro destas perspectivas teóricas
oportunistas que a vanguarda proletária brasileira tem sido educada. Não foi
casual, portanto, que nenhuma organização de esquerda tenha conseguido cumprir
um papel dirigente do conjunto do proletariado brasileiro no sentido de
prepará-lo para a revolução socialista. Temos a necessidade histórica de passar
o pente fino nestas teorias e criticá-las, para que as gerações futuras de
ativistas de esquerda possam tirar as devidas lições e colocar o debate sobre a
revolução brasileira numa perspectiva teórica correta.
VIII
Conclusões
As iniqüidades e injustiças contra o
povo brasileiro são seculares e não serão solucionadas com reformas ou acordos
de bastidores entre as elites e os “representantes” do povo. Este sonho colorido
e cômodo não tem outra finalidade a não ser enganar os trabalhadores e
preservar a atual estrutura social. Não basta defender o “socialismo” em
palavras. É preciso dizer como chegaremos até ele. A esquerda brasileira cai
naquilo que Rosa Luxemburgo qualificou como “perseguir o possível”. Rebaixam
toda a luta teórica e política do proletariado brasileiro à mediocridade do
possível, daquilo que supostamente se
consegue a partir de alianças espúrias e de concessões de princípios, que nada
mais é do que o aceitável... para a burguesia!
Toda a estrutura destas organizações,
sua propaganda e formação teórica, levam seus militantes a conformar os
trabalhadores brasileiros. Alimentam aquela consciência de escravo – “pelo
menos o PT deu bolsa família”, “pelo menos o PT olha pelos pobres”, “pelo
menos...” – que precisa urgentemente ser superada. A demagogia e a bajulação,
sem nunca falar a verdade abertamente, fazem parte do seu método. É preciso
dizer ao proletariado que as nossas ilusões são grandes entraves à consciência
de classe; que não tem saída fora da perspectiva socialista e que só chegaremos
até ele através de uma revolução proletária. Para isso, é preciso um longo e paciente trabalho político de
educação e formação teórica. Nesta luta não existem atalhos e nem aliados no
campo da burguesia. A estratégia de frente popular do PT e de outros partidos
de esquerda pavimentam o caminho dos trabalhadores para a derrota e apenas
fortalecem a ascensão da direita. Toda a experiência política com o PT não
deixa dúvidas.
***
Em sua “crítica” ao Brasil, o senso
comum pequeno-burguês, que lamentavelmente impera na sociedade brasileira e foi
alimentado pelo PT, ignora toda a estrutura econômica em que o país foi
fundado. Para ele, trata-se apenas da corrupção dos políticos e da “vocação” do
país para ser atrasado. Existe sim uma moral degenerada que embasa e facilita a
corrupção, que é a marca da política burguesa no Brasil, mas ela está
alicerçada na referida estrutura econômica do país, cuja raiz é manter a
exploração internacional sobre o povo e as suas riquezas naturais.
Para superar a dependência econômica o
Brasil precisa industrializar-se, desenvolver tecnologia e capacidade de
produzir ciência por conta própria. Como vimos, a burguesia à frente do país é
incapaz de criar estas condições. Como toda a história do país atesta, seus
interesses são outros.
Sendo assim, aquele discurso que
sustenta que o Brasil é um “país em desenvolvimento” é mentiroso e cínico. O Brasil
nunca poderá se constituir em uma nação “desenvolvida” dentro do capitalismo,
que reservou para o nosso país o papel de produtor de matérias-primas na
divisão internacional do trabalho. Somente com a destruição do imperialismo e a
cooperação socialista internacional entre o proletariado de todos os países
poderemos tirar o Brasil e as nações dependentes desta condição de
desigualdade, penúria e miséria. A democracia burguesa e suas instituições já
nasceram limitadas e corrompidas pela evolução política e social da história do
país e do surgimento da burguesia. Nada podemos esperar delas, ainda que se
possa usá-las como tribuna revolucionária para mobilizar os trabalhadores e
destruí-las por dentro.
A revolução brasileira deve se dar na
perspectiva da revolução permanente. Não devemos buscar alianças com a
burguesia, mas com a massa de trabalhadores nas periferias, com os
desempregados, com a pequena-burguesia proletarizada dos grandes centros
urbanos. Um futuro partido revolucionário precisa lançar-se corajosamente em
uma longa campanha de propaganda teórica do socialismo e dos métodos
revolucionários. Deve inserir-se num paciencioso trabalho sindical, para
arrancá-los das mãos da burocracia e transformá-los em escolas de guerra do
socialismo revolucionário. A vanguarda proletária e parte da massa trabalhadora
estão desorientadas e descrentes no socialismo em razão da sua associação com
os crimes do stalinismo. É preciso desfazer a campanha midiática e acadêmica da
burguesia contra o socialismo. É preciso ganhar a vanguarda do proletariado
brasileiro para o autêntico projeto político de Marx, Engels, Lenin e Trotsky.
A crise política e econômica que se
arrasta por séculos no Brasil é fruto do seu capitalismo dependente. Com todas
as suas contradições o desenvolvimento do capitalismo brasileiro nos trouxe até
aqui, mas não pode ir além. Temos a necessidade imprescindível e inadiável de
preparar as bases para o desenvolvimento do socialismo.
Bibliografia:
-
“O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, de V.I. Lenin. Editora Abril
Cultural, São Paulo, 1982.
-
“História econômica do Brasil”, de Caio Prado Jr. Editora brasiliense, São
Paulo, 2004.
-
“A revolução permanente”, de Leon Trotsky. Expressão Popular, São Paulo, 2007.
-
“Na contracorrente da história – documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940” , de Fúlvio Abramo e
Dainis Karepovs (Orgs.). Editora José Luis e Rosa Sundermann, São Paulo, 2015.
-
“Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios sobre ideias e formas”, de Carlos
Nelson Coutinho. Expressão Popular, São Paulo, 2011
-
“Florestan Fernandes, sociologia crítica e militante”, de Octavio Ianni (Org.).
Expressão Popular São Paulo, 2013.
-
“Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. Companhia das Letras, São
Paulo, 2013.
-
“Historia del pueblo argentino (1500 – 1955)” – Edición definitiva. Milcíades
Peña, editora Emecé, Buenos Aires, 2014.
-
“Panorama da história dos EUA”, de Wood Gray & Richard Hofstadter. Editado
pelo Departamento Cultural da embaixada dos EUA no Brasil.
NOTAS
[1] Adaptado de “Esboço de uma análise da situação
econômica e social do Brasil”, de Mario Pedrosa e Lívio Xavier (dirigentes da Liga
Comunista), escrito em outubro de 1930. A Liga Comunista se tornaria a sessão
brasileira da IV Internacional. Nesta época era uma fração de esquerda do PCB,
correspondente à Oposição de Esquerda trotskista no seio da III Internacional.
[2] Adaptado de “Panorama da história dos EUA”, de Wood
Gray & Richard Hofstadter. Editado pelo Departamento Cultural da embaixada
dos EUA no Brasil.
[3] É um tipo de estratificação muito antigo, semelhante as
castas indianas, mas ainda presente em algumas sociedades, onde o indivíduo
desde o nascimento está obrigado a seguir um estilo de vida predeterminado,
reconhecido por lei e geralmente ligado ao conceito de honra e nobreza,
dificultando a mobilidade social. Historicamente, os estamentos caracterizaram
a sociedade feudal durante a Idade Média europeia. Na sociedade colonial
brasileira, os estamentos caracterizam a sociedade escravocrata, onde a
oligarquia branca era dona de terras e dos engenhos, os agricultores livres constituíam
uma espécie de "classe média" dependente dos senhores de engenho, mas
acima dos escravos, e estes trabalhavam para sustentar todo o ordenamento
social e não podiam sair desta condição, a não ser com a morte.
[4] “A sociedade escravista no Brasil”, de Florestan
Fernandes, in “Florestan Fernandes, sociologia crítica e militante”, de Octavio
Ianni (Org.). São Paulo, 2013, Editora Expressão Popular.
[5] “História econômica do Brasil”, de Caio Prado Jr.
Editora brasiliense, São Paulo, 2004.
[6] “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda.
Companhia das Letras, São Paulo, 2013.
[7] Idem.
[8] “A imagem do Brasil na obra de Caio Prado Júnior”, in
Carlos Nelson Coutinho, Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios sobre ideias e
formas. Expressão Popular, São Paulo, 2011
[9] “Historia del pueblo argentino (1500 – 1955)” – Edición
definitiva. Milcíades Peña, editora Emecé, Buenos Aires, 2014. Portanto, a análise stalinista força uma visão equivocada para que a “realidade” coincida com a sua proposta política de “revolução por etapas”.
[10] Adaptado de “Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios
sobre ideias e formas”, de Carlos Nelson Coutinho. Expressão Popular, São
Paulo, 2011
[11] Idem.
[12] Conforme: “A revolução burguesa” de Florestan
Fernandes, in Octavio Ianni. Florestan Fernandes: sociologia crítica e
militante. Editora Expressão Popular: São Paulo, 2013.
[13] “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, V.I.
Lenin. Editora Abril Cultural, São Paulo, 1982.
[14] “Projeto de teses sobre a situação nacional”, Liga
Comunista Internacionalista, escrito em 1933.
[15] “História econômica do Brasil”, de Caio Prado Jr.
Editora brasiliense, São Paulo, 2004.
[16] Cidadão, em francês: é sinônimo do protótipo do
ser-humano atuante na sociedade. Era o que se esperava criar com a Revolução
Francesa de 1789.
[17] Adaptado de “Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios
sobre ideias e formas”, de Carlos Nelson Coutinho. Expressão Popular, São
Paulo, 2011
[18] Neste texto a expressão genérica “classe média” é
entendida como sinônimo de “pequena burguesia”, procurando ter a mesma compreensão
sociológica que o marxismo tem a respeito desta classe.
[19] Criticam-se aqui apenas os partidos de “esquerda” (PCB,
PCdoB, PT, PSOL, PSTU) por falarem, de alguma forma, em estratégias “socialistas”.
Foram excluídos os partidos de “socialismo burguês”, que nem sequer falam em
socialismo ou criticam o capitalismo, mas apenas ajudam a administrá-lo usando
uma couraça de “socialismo”. São eles: PSB, PDT, PPS e PPL. A crítica feita ao
PCB e ao PCdoB se estende ao PCR (partido não legalizado, mas com origem comum
com os outros dois).