Loucura é querer resultados diferentes
fazendo tudo exatamente igual
(Albert Einstein)
Josué atirou sua mochila no chão e se preparou para pisar
na terra poeirenta à beira da estrada. Pulou da caçamba do caminhão e acenou
aos caminhoneiros que gentilmente lhe deram uma carona até a localidade mais
próxima. Não sabia ao certo onde estava; se no nordeste, sudeste ou sul
brasileiro. A placa, meio suja de musgos e com tufos de capim que lhes saltavam
pelos cantos, apenas dizia “Bem vindo à São José das ilusões”. Uma via
estreita, com um asfalto defeituoso, adentrava um túnel de ipês amarelos e
pequenos coqueiros. Não se enxergava nenhuma casa. Josué calçou a mochila e se
foi em direção a estrada.
Caminhando
ele reparou que uma carroça vinha muito devagar, quase parando. A muito custo
cruzou o seu caminho. Cachorros latiam ao fundo. Em seguida um casal de moto
passou devagar e lhe acenou. Josué, amistosamente, retribuiu o gesto. “Que povo
hospitaleiro!”, pensou ele. Inspirado no filme Into the Wild, Josué era um mochileiro sem destino, que viajou
pelos quatro cantos do Brasil e da América do Sul. Pensava que esta seria a
forma de resistir à degeneração moral a qual todos nós somos obrigados a
vivenciar nas relações profissionais e sociais quando estamos sob jugo da
rotina.
O mochileiro
estava acostumado a uma vida errante, a caminhar muito e a comer pouco. Tinha
recém adentrado a uma rua de paralelepípedos que era um pouco mais movimentada,
de onde despontavam uma igrejinha, o pedaço de uma praça, um bar e uma casa de
tijolos à vista com flores na varanda. Encostada no muro estava uma moça, que
sorriu ao ver Josué. Pessoal do interior é assim: como passam muito tempo sem
ver movimento diferente, logo que percebem gente nova querem se aproximar para
prosear.
– Olá, tudo
bem? Eu me chamo Florisbela, mas pode me chamar de Flor ou de Bela, hi, hi, hi!
– disse ela sorrindo ao forasteiro.
– Olá! Eu
sou o Josué – respondeu ele prontamente.
Sem perder
tempo ela o convidou para entrar. Sentaram no sofá. A dona da casa ofereceu
bebida e comida para o forasteiro, que não titubeou em aceitar: estava faminto
e sedento! Conversaram sobre trivialidades. Josué sentiu que Florisbela lhe
olhava de um jeito diferente e se constrangeu um pouco. Ao sentir que o
convidado tinha ficado melindrado com seus olhares, ela começou imediatamente a
falar que “homem nenhum prestava”. Era hábito comum dos ilusinenses reclamar;
quase como um esporte oficial!
– Veja só –
ela dizia – ainda sou solteira! Quero muito arranjar um marido, mas os homens
daqui só querem saber de sexo e nada mais!
Florisbela ainda confessou a Josué
que já tinha transado com quase “meia cidade”, mas que no dia seguinte nenhum
deles ligava de volta. Ela se sentia triste, abandonada e incompreendida. Josué
ouvia tudo atentamente. Resolveu opinar:
– Florisbela, quem sabe você
esteja sendo um pouco precipitada com os homens e muitos deles estejam apenas
aproveitando-se desta sua rapidez? Ou talvez você não queira necessariamente um
marido no sentido tradicional?
– Que absurdo! – gritou ela,
saltando do sofá – Ponha-se daqui para rua, forasteiro!
Extremamente assustado Josué
recolheu sua mochila e saiu da casa de Florisbela. Nem sequer terminou de comer
e beber; saiu limpando a boca. Foi caminhando sem rumo pela avenida central até
desembocar na praça principal.
***
O céu matinal estava limpo e
radiante. Josué chegou até um dos grandes canteiros da praça central de São
José das ilusões e deparou-se com um senhor sentado em um banco, lendo um jornal.
Sentou-se ao lado dele e começou a remexer em sua mochila. Como todo bom
ilusinense, ao perceber que se tratava de um estranho, logo o senhor puxou
assunto com Josué. Ele se chamava Armando, pai de duas filhas que haviam se
mudado para a capital para fugir da “vida besta” do interior. Recentemente
enviuvara, o que aumentou a sua agonia e o desespero nos dias vindouros. Vendo
que Josué não teria onde ficar, o convidou para ficar em sua casa.
Seu Armando, como era conhecido
pelos vizinhos, morava em uma boa casa nas redondezas da praça central. Comia
bem, apesar de ter perdido a vontade de cozinhar em razão da morte da esposa.
Não estabelecia relações cordiais com os vizinhos, nem com ninguém da cidade.
Se afeiçoou a Josué justamente por se tratar de um forasteiro. A ele, seu
Armando disponibilizou o quarto da filha caçula, que ainda estava mobilhado.
– Bela casa! – elogiou Josué
enquanto olhava para a paisagem que se via da janela dos fundos.
– É sim! – concordou Armando – O
problema é quando chove!
Josué não tinha entendido a
advertência até dois dias após a sua chegada, quando uma grande chuva de verão
fez ver as inúmeras infiltrações na casa do viúvo: principalmente na sala e na
cozinha. “Parece uma cachoeira!”, queixava-se seu Armando passando o rodinho, o
balde e vários panos para Josué ajudar a enxugar. Era uma arrumação de móveis
daqui para lá, de lá para cá. Josué estava exausto. No final do dilúvio, bem
como nos outros dias, ele percebeu que seu Armando não subiu no telhado para
ver o tamanho dos reparos que deveria fazer; ele apenas modificava o sofá, a
geladeira, a mesa, a estante de lugar, como se isso fosse resolver o problema
das goteiras.
E não dava outra: nova chuva e um
novo alagamento. Seu Armando queixava-se choroso:
– Por que chove tanto nessa
cidade, meu Deus do céu! Por quê?
Olhava para o céu, benzia-se,
praguejava contra o céu, contra o tempo, contra a sua falta de sorte.
A cada nova chuva era um tumulto.
Correria de baldes, rodinhos, toalhas, bandejas. Certa feita, quando o relógio
marcava quase 3h da madrugada, Josué foi acordado às pressas para enxugar a
cozinha, que estava quase toda alagada. Pregado de sono, Josué levantou-se e
foi ajudar seu Armando. Quando o sol já estava quase nascendo e a chuva havia
dado uma pequena trégua, o ritual novamente começou. Lá ia seu Armando mudar de
lugar a estante, a mesa, o armário, quando Josué lhe perguntou:
– Seu Armando, por acaso o senhor
já pensou em olhar o telhado?
– O telhado? – espantou-se o velho
– Mas por que diabos eu olharia o telhado?
– Bem – disse Josué meio
constrangido –, porque os telhados foram feitos para conter as chuvas. Logo
seria importante dar uma olhada na...
– Você está insultando a minha
inteligência! – gritou Armando – Eu tenho o triplo da sua idade, rapaz! Ninguém
nunca me deu ordens ou duvidou do que eu fazia! Ponha-se daqui para a rua!
Lá foi Josué com a sua mochila
vagar pelas ruas de São José das ilusões outra vez. Como o céu estava nublado e
ameaçando um novo temporal, ele buscou guarida no bar do Tonico. Não tinha um
tostão para gastar, mas entrou mesmo assim para se proteger do tempo úmido e
foi bem recebido.
***
Poucas
pessoas estavam no bar naquele momento: apenas alguns bêbados nas paredes ou
falando e rindo no balcão. O cheiro era desprezível: galinha frita misturado
com sarro de cigarro. Ao longe, entre mesas e cadeiras vazias, Josué reconheceu
Florisbela, que estava sentada com um rapaz. Ela fingiu que não o conhecia;
Josué fez o mesmo.
O dono do
bar, Tonico Rezende, era uma pessoa condescendente e amiga. Se afeiçoou de
imediato quando viu Josué sentado num canto, prostrado. Lhe ofereceu cachaça e
torresmo. Como estava faminto, Josué aceitou. Conversa vai, conversa vem; os
dois ficaram amigos. Tonico percebeu que Josué era um forasteiro e que isso
poderia ser bom para alavancar o seu negócio. Empregou Josué como garçom e
atendente do balcão. Deu-lhe um quartinho nos fundos para morar enquanto
estivesse em São José
das ilusões. Não ganhava muito, mas o suficiente para poder acumular algum
dinheiro e poder seguir viagem.
Na primeira
semana de trabalho Josué percebeu que Tonico era compassivo: emprestava
dinheiro para qualquer um, vendia fiado, aceitava todo e qualquer desaforo. Os
ilusinenses eram hospitaleiros, mas brabos como zorrilhos quando contrariados.
Josué era um rapaz sagaz! Ficou observando os freqüentadores e o dono do bar
por semanas. A mulher de Tonico – uma senhora bem mais velha do que Josué, mas
ainda com apetite sexual – se insinuou diversas vezes para o novo atendente do
bar sem que Tonico expressasse qualquer desconforto em relação a isso. Ela se
insinuava não apenas para Josué, mas para todos os freqüentadores do bar.
Muitos amigos advertiam sobre a conduta de sua esposa, mas Tonico não fazia
nada para mudar a sua vida sexual, apenas dizia: “mulher é tudo igual, safadas
e interesseiras”.
A única
queixa que Josué ouvia de Tonico era durante a noite:
– Desse
jeito vou falir! Não dá pra sustentar o meu bar com tantos devedores!
Logo a
seguir adormecia.
***
Desde os
cantos do balcão central, quando não tinha muito serviço, Josué ficava de
ouvido atento e, dia após dia, ouvia uma história nova cujo desfecho era sempre
semelhante. Francisca Azevedo, ou simplesmente Chica calabresa, era uma mulher
obesa que corriqueiramente reclamava do seu peso, mas comia compulsoriamente.
Ao mesmo tempo em que comia, dizia: “amanhã vou começar uma dieta para
emagrecer”, mas na semana seguinte Josué ouvia ela se queixar que não tinha
conseguido. Pior do que isso: ela não se esforçava para praticar nenhum
exercício físico e novamente pedia seu tradicional xis calabresa com uma coca
diet. Josué pensou em lhe dar um conselho, porém, lembrou-se de como havia sido
tratado por alguns ilusinenses. Recuou.
Certa feita,
conheceu Benedita da Silva, que tinha o defeito de falar demais quando bebia.
Sempre que ia para o bar do Tonico tinha a intenção de beber. Logo, Josué
tornou-se o psicanalista informal de Benedita, que lhe confidenciou que o
marido lhe traía, dentre outras revelações íntimas. Quanto mais bebia, mais
falava. De repente explodia num choro convulsivo e caía no ombro de Josué.
– Meu marido
não presta! – e soluçava com as mãos tapando o rosto.
Josué pensou
em lhe aconselhar, mas lembrou-se de todas as outras vezes, então novamente
preferiu calar.
– Por que
ele faz isso comigo? – prosseguia ela com uma voz fininha de choro – Mas ele
vai melhorar, eu tenho certeza! – complementava logo em seguida, enxugando as
lágrimas com um guardanapo.
Mas o marido dela não melhorava,
senão que aprontava outra, e outra, e mais outra. E assim a vida seguia:
Benedita chorando e o seu marido fazendo o que bem entende. Quando ele chegava
em casa depois de uma nova noitada, dizia para ela que iria mudar; ela
reproduzia o discurso dele no bar para Josué, que sabia que tudo aquilo não passava
de um teatro. Contar para Josué parece que reforçava a convicção de Benedita na
mentira que ela não podia acreditar – justamente por ser uma mentira –, mas que
acreditava infalivelmente.
Já começando
a se afeiçoar à sua nova profissão de psicanalista de boteco, Josué conheceu Cristiano,
um rapaz trabalhador de uns 26 anos que se queixava de um crônico vazio
existencial. Dizia que iria se matar, pois não tinha mais razão para viver.
Contudo, pontualmente, todas as sextas feiras ele retornava ao bar do Tonico
para afogar as mágoas do seu vazio existencial. Como sentiu que se tratava de
um “amigo”, Josué tentou opinar:
– Cristiano,
tente enfrentar este sentimento olhando ele de frente! Todo mundo já sentiu
algum vazio existencial na vida; talvez todos vivam com algum tipo de vazio
existencial. Isso é natural! O que não é natural é se paralisar frente a este
vazio. É preciso encontrar razão para viver, querer encontrar razão para viver.
Uma boa fonte para isso é tentar viver para o social; tentar encontrar um
emprego ou uma arte onde a gente consiga se reproduzir; enfim, ter paciência e
perseverança.
Josué estava
também um pouco embalado pela bebida. Não tinha percebido o quanto falou.
Cristiano ficou atordoado. Se levantou da mesa, não foi agressivo com Josué,
como Florisbela e Armando haviam sido, mas nunca mais voltou para conversar com
o “amigo”. Josué entendeu o recado.
***
Quanta
ilusão e condescendência havia naquele pobre povoado. Josué já não suportava
mais viver naquele meio. Precisava de novos ares. Pensou em arrumar a sua
mochila e ir embora. Já era tempo de partir: o inverno estava terminando e a
primavera começava a se insinuar. Ele tinha o sonho de ir para a Amazônia viver
no meio de uma tribo indígena. Mesmo com todos estes pensamentos, Josué foi
ficando. As cigarras já cantavam na sua janela prenunciando que o verão estava
próximo.
Sentado na
beira de uma sanga, em um domingo ensolarado, Josué percebeu que todos os
ilusinenses se dirigiam para as duas principais igrejas da cidade: a católica,
que ficava de fronte à praça central e à prefeitura; e a evangélica, que há
pouco tempo havia sentado firma naquela comarca, mas que já contava com muitos
fiéis devotos.
Josué
aguçava o ouvido para ouvir o que falavam e cantavam de um lado: “Nosso Senhor,
por favor faça a nossa vida melhorar, nos livre do mal, amém”; e do outro: “Nós
não somos nada! Nosso Senhor Jesus Cristo que tudo pode e tudo vê é o nosso
caminho e a nossa salvação”. E todos, emocionados, se davam as mãos e diziam:
“a vida vai melhorar, graças a Deus, a vida vai melhorar!”.
Mas a vida não melhorava. Todas as
noites não apenas os clientes do bar do Tonico voltavam ao estabelecimento para
reclamar dos mesmos problemas de sempre, como a vizinhança ao lado continuava
padecendo dos mesmos males já conhecidos. Josué sentiu que sua saúde começava a
se abalar, tamanha era a sua indignação reprimida ao ver que todos tinham
interesses ocultos em cultivar aquelas ilusões para não ter que mudar nada de
sua vida real.
***
Josué ficou
sabendo, muito abismado, que São José das ilusões sofreu com desastres
naturais, que na verdade eram apenas parte da atividade de algumas
multinacionais que exploravam o seu solo sem nenhum tipo de preocupação com a
natureza ou com os seus habitantes. Certa vez, antes da chegada de Josué à
pequena cidade, uma barragem de uma grande mineradora rompeu espalhando
detritos metálicos por todos os cantos, destruindo casas, lavouras, matando
pessoas, animais e a vegetação. A prefeitura municipal nunca cobrou um centavo
de multa da tal mineradora. Pelo contrário, fez todo o possível para que a
rotina fosse matando qualquer tipo de protesto ou desconforto. O povo
ilusinense, depois de muito rezar e reclamar, logo esqueceu de tudo, mas as
cicatrizes ficaram nos corações e na natureza.
Outra
multinacional que explorava ouro, cobre e estanho na região, destruía inúmeras
jazidas de rocha e pedra e os resíduos de arsênio, resultantes dessa atividade,
eram levados pelo vento para o núcleo da cidade provocando doenças e mutações
genéticas na população. Ninguém reclamava! Ninguém sequer tinha consciência do
que estava em jogo. Josué
olhava para tudo isso apavorado e ao mesmo tempo olhava para os freqüentadores
do bar do Tonico, indiferentes! A vida seguia.
Com este
cenário econômico de exploração e rapinagem, Josué quis se inteirar mais da
política local. Descobriu que a prefeitura era dominada desde meados da década
de 1990 por apenas dois partidos: PSDB e PT, com os seus respectivos aliados. A
partir das coligações eleitorais a maioria dos partidos brasileiros já havia
passado pela prefeitura de São José das ilusões.
A corrupção era a marca registrada
de toda a administração daquela cidade. Roubavam com duas, três, quatro, cinco,
dez mãos! Governavam para as multinacionais e os bancos, de costas para o povo.
Na imprensa local posavam de bons moços defendendo a “democracia”; a alienação
e a rotina tratavam de cimentar o resto, isto é, a hipocrisia social que
garante que a vida siga normalmente. Todos sabiam que a corrupção era um problema
seríssimo, mas não faziam nada: só reclamavam e rezavam! “A vida vai melhorar”
– eles diziam em coro.
Já tinham votado no PSDB e nada
tinha mudado! Votaram por duas vezes no PT que não fez absolutamente nada de
diferente do PSDB: o povo continuava miserável, analfabeto, vivendo em
casebres, com todos os seus direitos mais básicos e elementares ameaçados.
***
As eleições se aproximavam! A
população estava indignada contra a prefeita do PT, que dizia apoiar os
trabalhadores locais e preservar direitos, o que não condizia com a sua
prática. Ela contava com o apoio do sindicato agrícola local, que dizia:
– Ruim com a prefeita do PT, pior
sem ela!
E era aplaudido por parte dos
ilusinenses. Josué ouvia tudo isso e engolia seco.
Outra parte da cidade, liderada
por seu Armando, dizia:
– Agora é a hora da renovação!
Chega dessa prefeita! Vamos tirá-la de lá! Vamos acabar com a corrupção dessa
prefeitura! Votem no candidato do PSDB!
Novamente engolindo seco, Josué
ficou com medo de intervir naquela briga inócua. Um grupo gritava contra o
outro. Os indecisos ficavam perdidos, batiam cabeça, choramingavam, reclamavam,
mas não questionavam nada além do votar num ou noutro.
Numa noite de bar cheio, Josué não
aguentou mais e resolveu desabafar:
– Pensem comigo: PSDB e PT já
estiveram à frente da prefeitura de São José das ilusões por mais de vinte
anos. Nada mudou na vida de vocês, a não ser algumas migalhas a mais da
prefeita atual. Mas ambos governaram para as multinacionais, para os bancos, de
costas para a população. A corrupção correu solta em ambos governos.
– É verdade! – muitos concordavam.
– Então – prosseguiu ele – O voto
já demonstrou que não muda a vida do povo. Ganhe quem ganhar, é a estrutura
econômica que é o determinante! Se nós não mexermos lá, podemos morrer votando
num ou noutro que a nossa vida seguirá piorando, com escândalos de corrupção
cada vez piores, com uma exploração desenfreada por parte dos patrões e dos
grandes empresários.
– É, você tem razão – disse Chica
calabresa –, mas o que propõe então?
– Este rapaz é um comunista,
comedor de criancinha! Vá para Cuba! – gritou-lhe seu Armando.
– Por acaso você está propondo uma
revolução? – questionou Cristiano, que estava sentado numa das extremidades do
bar.
– E por que não? – respondeu Josué
– Nestas eleições não haverá alternativa novamente. Todos os partidos
apresentados estão coligados, de uma forma ou de outra, defendendo, no
essencial, o mesmo programa. Em sua maioria, já governaram a cidade, direta ou
indiretamente. Seus governos foram apenas balcões de negócios para os
empresários e representaram o aumento da miséria e do sofrimento do povo. As
eleições são controladas pelo poder econômico dos bancos e das grandes
empresas, principalmente as multinacionais. Esta forma cômoda e pacífica de
“mudar a sociedade” é uma ilusão que prepara inúmeras armadilhas, reforçando a perniciosa
esperança de que um indivíduo eleito, uma espécie de “messias”, vai resolver
todos os nossos problemas sem que precisemos nos mobilizar para cumprir o nosso
protagonismo, que é indispensável. Deveríamos debater caminhos alternativos ao
mero voto no PT ou PSDB, o que representa apenas uma renovação fictícia. Vocês
precisam romper com o caminho da alienação política, do comodismo e do egoísmo!
Não tenham medo amigos! Nos desapeguemos do velho! Vamos abrir espaço para o
novo em nossos corações! Ou fazemos uma revolução ou o sistema econômico e
político seguirá o mesmo, e então, de nada adiantará reclamar!
– Deixar de reclamar? – indagou
gritando Chica calabresa, Tonico, Cristiano, seu Armando e Florisbela! – Você
está louco, forasteiro?
Uma chuva de garrafas e copos caiu
sobre Josué, que se esgueirou para escapar das mais pesadas. Correu para o seu
quarto, enfiou suas trouxas na mochila e picou a mula da cidade. “Até quando?”
se perguntava Josué em pensamentos enquanto corria para a BR 101, “até
quando?”. Lembrou-se daquele romance em que o velho coveiro esperava a morte dos
últimos habitantes, um casal de idosos, para abandonar a cidadezinha fantasma.
Concluiu que São José das ilusões já era uma cidade fantasma.
***
Como era bastante previsível, as
eleições municipais deram a vitória ao PSDB, que se elegeu com discurso de
mudança e renovação. Contudo, nada de novo aconteceu: a corrupção seguiu
correndo frouxa, as multinacionais explorando, roubando e destruindo o meio
ambiente, os direitos sociais que restavam foram impiedosamente retirados. Os
ilusinenses seguiram abandonados, pobres, endividados, mas sempre reclamando!
Num dia qualquer de outono, Chica
calabresa encontrou Cristiano no bar do Tonico com uma cara pálida de um bêbado
que virou sozinho uma garrafa de cachaça.
– Sabe Chica – disse o segundo
com a voz cambaleante –, sinto falta do Josué! Alguém precisa falar a verdade
por aqui. Foi a melhor coisa que aconteceu nessa cidade em vinte anos!
– Não seja bobo, Cristiano! –
respondeu a primeira – Aqui ele sempre foi um estranho no ninho.
– Não há dúvida de que sim – disse
Cristiano –, mas talvez ele quisesse apenas encurtar o nosso sofrimento. Será
que precisaremos viver um calvário de lágrimas e sofrimentos para entender a
mensagem que ele quis nos passar?
– Não sei! – disse Chica – Para
mim, aquele forasteiro nunca mais colocará os seus pés nesta terrinha.
***
No alto de
uma árvore, na Amazônia, Josué observava uma sanga que passava ao lado. Um
lapso em sua mente o fez lembrar dos ilusinenses. Seu peito sentiu um misto de
carinho, ódio e piedade. Viajou por muitos lugares diferentes, conheceu gente
nova, viu paisagens indescritíveis, aprendeu e vivenciou coisas renovadoras,
mas nunca mais colocou os pés em
São José das ilusões.