Wilhelm Reich (1897-1957) |
Faz-se fundamental, então, um
diálogo maior entre ambas filosofias. Vários marxistas, freudianos, escritores
e poetas já esboçaram tentativas nesse sentido: Trotsky (embora Lenin
equivocadamente discordasse da psicanálise), Eric Fromm, a escola de Frankfurt
(Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor Adorno, etc.), Slavoj Zizec, Jacques
Lacan, Paulo Leminski, etc. Contudo, o pensador que maiores e mais profundos
resultados atingiu nesse intento foi seguramente Wilhelm Reich (1897-1957). Ele
aprofundou e corrigiu erros do pensamento social freudiano a partir de uma base
marxista, ao mesmo tempo em que possibilitou a aproximação do pensamento
marxista com elementos da subjetividade a partir das conquistas da prática
psicanalítica.
Como todo o inovador, Reich sofreu
uma série de calúnias, difamações e incompreensões. Não foi diferente do que
sofreram Giordano Bruno, Galileu, Marx, Darwin e Freud. Tal como a Reforma Luterana,
em que as mudanças e críticas de Lutero ficaram restritas a limites toleráveis
à Igreja Católica, enquanto que o monge alemão Thomas Müntzer desejava realizar
“reformas” de maiores proporções e muito mais radicais, numa analogia
superficial, podemos dizer que Freud é Lutero e Reich, Thomas Müntzer.
Inicialmente apoiado por Freud,
Reich passa a dirigir seminários e clínicas psicanalíticas. Em 1927, mesmo ano
em que publica A função do orgasmo,
Reich estreita contato com o Partido Comunista Austríaco e abre clínicas
gratuitas de aconselhamento psicológico e sexual, com enorme afluxo de
operários e estudantes. Por suas posições enfáticas acerca do tema da
preponderância sexual e por questionar as disputas dentro do movimento
psicanalítico, terminou expulso deste e do movimento comunista (já hegemonizado
pelo stalinismo). Sua análise das mudanças sociais dentro da URSS, bem como dos
retrocessos a partir do período stalinista, são particularmente notáveis,
associando estas restaurações ao abandono das pautas sexuais (luta contra a
família patriarcal, a legalização do aborto, igualdade jurídica entre os sexos,
etc.) e reconhecendo graves desvios burocráticos. Por sua atuação política e
científica terminou perseguido pelo nazismo, que o obrigou a exilar-se. Em 1939
vai definitivamente para os EUA, onde leciona para classes lotadas na New School for Social Research. Em razão
das suas pesquisas controversas acerca de “estranhas caixas”, chamadas de
“acumuladores de orgônio”, é outra vez perseguido, só que agora pelo governo
estadunidense, que incrimina seus livros e os proíbe em território
norte-americano. Ainda que estas pesquisas possam ser questionáveis, proibir
livros tão importantes e profundos como os de Reich soa, no mínimo, como uma
atitude política medieval da tão festejada “democracia” norte americana, que
necessitava tanto quanto a alemã ou a brasileira conhecer e estudar melhor os
posicionamentos de Reich, que, diga-se de passagem, morreu sob circunstâncias
suspeitas.
O mais provável é que Reich, assim
como Demócrito de Abdera, apenas tenha lançado uma ideia revolucionária: tal
como o filósofo pré-socrático pensou o átomo (numa noção bem diferente do que
viria a ser o “átomo moderno”), o ex-discípulo de Freud apenas pensou o
orgônio. Cabe agora às sucessivas gerações de filósofos, cientistas e,
sobretudo, de revolucionários, terem que se debruçar sobre o seu pensamento
para depurá-lo e esculpi-lo.
Apesar de sofrer do mal da filosofia alemã, de querer produzir um
ambicioso sistema global que abarcasse todas as coisas possíveis e imagináveis
(ainda que isto falte profundamente à intelectualidade brasileira), o
pensamento de Reich nos fornece uma poderosa compreensão (e portanto, uma
poderosa arma) sobre o fenômeno nazi-fascista, que corretamente nos indicou ser
(tal como alguns marxistas) um fenômeno internacional. E, indo mais além dos
marxistas, penetrou nos meandros da subjetividade individual, fazendo uma fecunda
síntese do pensamento marxista e freudiano no seu livro Psicologia de massas do fascismo. Sua teoria padece um pouco do
messianismo dos referidos sistemas filosóficos alemães, dando preponderância aos problemas sexuais sobre os sociais (ainda que pese o fato
de que o debate sexual é absurdamente escondido sob mil véus de hipocrisia e
evitado com todas as forças). Seja como for, uma síntese entre o marxismo e o
freudianismo iria resultar em uma filosofia superior em comparação as
anteriores, ainda que toda a novidade cause dúvidas e medo.
No contexto mundial e brasileiro atual, através desta síntese, a
obra nos dá a chave para compreendermos muitos dos fenômenos aparentemente obscuros
e, talvez, algumas respostas ao que parece não ter explicação. Abaixo seguem alguns
trechos comentados do seu livro A função
do orgasmo (1927), onde ele dedica um capítulo especial ao irracionalismo fascista:
Todas as
discussões sobre a questão de saber se o homem é bom ou mal, se é um ser social
ou anti-social, são passatempos filosóficos. Se o homem é um ser anti-social ou
uma massa de protoplasma reagindo de um modo peculiar e irracional depende de
que suas necessidades biológicas básicas estejam em harmonia ou em desacordo
com as instituições que ele criou para si. (...) Uma de suas características mais essenciais veio a ser essa de
sentir-se felicíssimo em atirar sua responsabilidade para cima de algum führer
ou político, pois não se compreende mais e, na verdade, teme a si mesmo e às
suas instituições. Está desamparado, inapto para a liberdade e suspira pela
autoridade porque não pode reagir espontaneamente; está encouraçado e quer que
lhe seja dito o que deve fazer, pois é cheio de contradições e não pode confiar
em si mesmo.
A culta
burguesia europeia do século XIX e do início do século XX adotou as formas de
comportamento moralistas e compulsivas do feudalismo e transformou-as no ideal
da conduta humana.
Desnecessário dizer que as formas de comportamento da Idade Média
correspondem ao controle total e absoluto da Igreja sobre a conduta moral,
social e política dos seres-humanos.
Seguindo adiante e buscando as raízes da ascensão de Hitler ao
poder, Reich conclui:
(...) Hitler era meramente a
expressão da contradição trágica entre o anseio pela liberdade e o medo real
frente a ela.
O fascismo
alemão deixou bem claro que não operava com o pensamento e a sabedoria do povo,
mas com suas reações emocionais infantis. Nem seu programa político nem
qualquer das suas muitas e confusas promessas econômicas levou o fascismo ao
poder e o garantiu aí no período seguinte: mas sim, em grande parte, foi o
apelo a um sentimento místico e obscuro, a um desejo vago e nebuloso mas
extraordinário e poderoso. Aqueles que não entenderem isso não entenderam o
fascismo, que é um fenômeno internacional.
Aí está um dos pontos altos das formulações teóricas de Reich, que
precisamente reconhece o nazi-fascismo como um fenômeno internacional, muito
diferente da burguesia dos “países democráticos”, que tenta associá-lo estritamente
à Itália e à Alemanha para esconder o seu flerte permanente com ele. Indo mais
além, Reich demonstrará que a base do nazi-fascismo é a classe média (isto é,
os setores sociais mais reprimidos moral e sexualmente), cuja raiz se espalha
para outros setores sociais. Mais adiante ele afirmará que o fascismo “não é um problema alemão, mas um problema
internacional, pois o desejo de amor e o medo à genitalidade são fatos
internacionais”.
Tal como Bolsonaro faz no Brasil,
Hitler assegurou [aos
alemães] liquidar a discussão democrática
de opiniões. Milhões de pessoas congregaram-se em torno dele. Estavam cansadas
dessas discussões porque elas haviam sempre ignorado suas necessidades pessoais
diárias, isto é, aquilo que era subjetivamente importante. Não queria
discussões a respeito de “orçamento” ou dos “altos interesses partidários”. O
que queriam era um conhecimento verdadeiro e concreto a respeito da vida. Não
podendo consegui-lo atiraram-se às mãos de um guia autoritário e à ilusória
proteção que se lhes prometia.
Aqui há um indício dessa superestimação do poder sexual, quando
Reich afirma que o que queriam era “um
conhecimento verdadeiro e concreto a respeito da vida”; isto é, sobre sua
real satisfação sexual e ao livre florescimento da sua personalidade,
totalmente subjugada pelos pesados grilhões políticos, sociais e morais.
Contudo, por mais importante que isto seja, o nazi-fascismo foi hábil em
enganar as massas de que resolveria o “caos social” gerado pelas crises
econômicas do capitalismo. É necessário, para além da fundamental educação
sexual das massas, combatendo e superando os preconceitos, moralismos e
submissões, demonstrar concretamente um programa econômico e político
alternativo; isto é, concretizar o programa socialista (fato que a atual
esquerda deixa a desejar e, em parte, o próprio Reich).
Hitler
assegurou-lhes liquidar a liberdade individual e estabelecer a “liberdade
nacional”. Milhões de pessoas trocaram entusiasticamente a liberdade individual
por uma liberdade ilusória, isto é, uma liberdade através da identificação com
uma ideia. Esta liberdade ilusória livrava-as de toda a responsabilidade
individual. Suspiravam por uma “liberdade” que o führer iria conquistar e
garantir para elas: a liberdade de gritar; a liberdade de fugir da verdade para
as mentiras de um princípio político; a liberdade de serem sádicos; a liberdade
de jactar-se – a despeito da própria nulidade – de serem membros de uma “raça
superior”; a liberdade de sacrificar-se por alvos imperialistas, em vez de
sacrificar-se pela luta concreta por uma vida melhor, etc.
O fato de
que milhões de pessoas foram sempre ensinadas a reconhecer uma autoridade
tradicional, em vez de uma autoridade baseada no conhecimento dos fatos,
constituiu a base sobre a qual a exigência fascista de obediência pôde agir. (...)
O que era
novo no movimento fascista das massas era o fato de que a extrema reação
política conseguiu usar os profundos desejos de liberdade das multidões. Um anseio intenso de liberdade por parte das
massas mais o medo à responsabilidade que a liberdade acarreta produzem a mentalidade
fascista, quer esse desejo e esse medo se encontrem em um fascista ou em um
democrata. Novo no fascismo era que as massas populares asseguraram e
completaram sua própria submissão. A necessidade de uma autoridade provou que
era mais forte que a vontade de ser livre.
(...) O desapontamento por
parte de milhões de pessoas quanto às organizações liberais [e as
instituições da democracia burguesa],
mais a crise econômica, mais um irresistível desejo de liberdade produzem a
mentalidade fascista, isto é, o desejo de entregar-se a uma figura autoritária
de pai. (...) Agora Hitler chegava e prometia tornar a ideia de procriação, e
não a felicidade no amor, o princípio básico do seu programa cultural. Educados
para envergonhar-se de chamar as coisas pelo seu nome, obrigados por todas as
facetas do sistema social a dizer “procriação eugênica superior” quando tinham
em mente “felicidade no amor”, as massas congregaram-se em torno de Hitler,
pois ele juntara ao velho conceito uma emoção forte, embora irracional. Conceitos
reacionários mais excitações revolucionários produzem sentimentos fascistas.
(...) Brutalidade sádica mais misticismo
produzem a mentalidade fascista.
(...) A família alemã
autoritária típica, particularmente no campo e nas cidades pequenas, incubava a
mentalidade fascista aos milhões. Essas famílias moldavam a criança de acordo
com o modelo do dever compulsivo, da renúncia, da obediência absoluta, que
Hitler sabia como explorar tão brilhantemente. (...) Salientando a identidade emocional entre “família”, “nação” e “Estado”,
o fascismo tornou possível uma transição suave da estrutura da família para a
estrutura do Estado fascista. É verdade que nem um só problema da família, nem
as necessidades reais da nação eram resolvidos por essa transição: mas esta
permitia a milhões de pessoas transferir seus laços da família compulsiva para
a “família” maior, a “nação”. O fundamento estrutura dessa transferência havia
sido bem preparado durante milhares de anos. A “mãe Alemanha” e o “deus pai
Hitler” tornaram-se símbolos de emoções infantis profundamente arraigadas.
(...) A juventude congregava-se aos milhares em torno de Hitler. Ele não lhes
impunha qualquer responsabilidade; apenas construiu sobre suas estruturas, que
haviam sido previamente moldadas pelas famílias autoritárias. Hitler estava
vitorioso no movimento da juventude porque a sociedade democrática não havia
feito tudo o que fora possível para educar o jovem no sentido de levar uma vida
responsável e livre.
No
lugar da atividade espontânea, Hitler prometeu o princípio da disciplina
compulsiva e do trabalho obrigatório. Vários milhões de trabalhadores e
empregados alemães votaram em Hitler. As instituições democráticas não apenas
não haviam conseguido enfrentar o desemprego mas, quando ele sobreveio, se
haviam mostrado claramente temerosas de ensinar as multidões de trabalhadores a
assumir a responsabilidade pela realização do seu trabalho. Educados para não
entender nada a respeito do processo de trabalho (impedidos, na verdade, de
entendê-lo), acostumados a ser excluídos do controle da produção, e a receber
apenas seu salário, esses milhões de trabalhadores e empregados podiam aceitar
facilmente o velho princípio, de forma intensificada. Podiam agora identificar-se
com o “Estado” e a “nação”, que eram “grandes e fortes”. Hitler declarou
abertamente em seus escritos e discursos que, porque as massas populares eram
infantis e femininas, apenas repetiam o que era incutido nelas. Milhões de
pessoas o aclamaram, pois ali estava um homem que queria protegê-las.
(...) E aconteceu que as desapontadas massas
populares congregaram-se em torno de Hitler, que – embora misticamente –
recorria às suas forças vitais. A pregação a respeito da liberdade conduz ao
fascismo a menos que se faça um esforço decidido e consistente para inculcar
nas multidões uma vontade firme de assumir a responsabilidade da vida
cotidiana; e a menos que haja uma luta igualmente decidida e consistente para
estabelecer as pré-condições sociais dessa responsabilidade.
Aí está uma síntese das razões que
levaram Hitler e o nazi-fascismo ao poder. Explicam também a ascensão da
direita no mundo e, em particular, no Brasil. Não casualmente, todas elas
reforçam a noção de família-nação-Estado. Reich ainda diz, no mesmo texto, que “desde os tempos antigos a ‘preservação da
família’ foi, na Europa, um abstrato chavão, por trás do qual se escondiam os
pensamentos e ações mais reacionários”. A direita brasileira tem se
esforçado, com apoio ora aberto, ora dissimulado, da grande mídia, das igrejas
evangélicas e outros movimentos religiosos reacionários, a preparar as bases da
ascensão de um regime militar fascista. Sem nenhuma vergonha ou pudor levantam
tais bandeiras. Isto tudo só é possível graças aos sentimentos sexuais e morais
mal resolvidos em milhões de trabalhadores e membros da classe média, tal como
já alertava Reich. Estes sentimentos mal resolvidos foram a base da ascensão do
nazi-fascismo europeu e continuam sendo hoje em todos os cantos do mundo. Enquanto
não for resolvido, será sempre um terreno fértil pronto a ser semeado pelos
fascistas.
Como conclusão, Reich tenta apontar
as razões desta fácil manipulação das massas por parte do nazi-fascismo:
(...)
Esse anseio cósmico ou oceânico que as pessoas sentem não é senão a expressão
de seu desejo orgástico pela vida. Hitler fez um apelo a este desejo, e foi por
esta razão que as multidões o seguiram, e não aos secos racionalistas, que
tentavam sufocar esses vagos sentimentos de vida com estatísticas econômicas.
Esta
necessária alfinetada de Reich à esquerda europeia da época, que parece ainda
não ter superado os mesmos problemas daquele período, não nos dá maiores
sugestões “do que deve ser feito”, tal como uma resposta que deu a um jovem
fascista da Escandinávia, que o procurou pessoalmente para debater sobre a sua
crise de consciência em relação ao fascismo. Fica evidente que caberia à
vanguarda dos trabalhadores buscar o contato com este sentimento permeado pelo
anseio cósmico ou oceânico como expressão do seu desejo orgástico pela vida,
embora não nos dê maiores esclarecimentos de como fazer isso. Seria possível
dialogar com este anseio cósmico ou oceânico, tal como fez e faz a direita
nazi-fascista, sem recorrer ao charlatanismo e ao messianismo? Esta é
precisamente a pergunta que a esquerda e os seguidores de Reich precisam responder
para tentarmos superar esta peste emocional, assassina e predatória, que é o
nazi-fascismo.
NOTA_______________________________________________
Todas as citações deste texto foram extraídas do livro de W. Reich "A função do orgasmo".
Realmente este contexto é possível em nosso país.Nao consigo explicar o crescimento destas igrejas evangélicas e o fanatismo dos filiados numa época de tanta informação e a paixão por um lider inexpressivo surgido do nada e ungindo pela Ditadura.
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