quinta-feira, 29 de março de 2018

O legado de Wilhelm Reich e o que ele tem a nos ensinar sobre o atual fascismo brasileiro


Wilhelm Reich (1897-1957)
Talvez as duas maiores sínteses filosóficas do século XIX e XX tenham sido feitas pelo marxismo e o freudianismo (ambas influenciadas pelo pensamento darwinista). O primeiro, acertando contas com o materialismo mecanicista; e o segundo, com o campo filosófico idealista, dando-lhe uma sólida base materialista.
            Faz-se fundamental, então, um diálogo maior entre ambas filosofias. Vários marxistas, freudianos, escritores e poetas já esboçaram tentativas nesse sentido: Trotsky (embora Lenin equivocadamente discordasse da psicanálise), Eric Fromm, a escola de Frankfurt (Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor Adorno, etc.), Slavoj Zizec, Jacques Lacan, Paulo Leminski, etc. Contudo, o pensador que maiores e mais profundos resultados atingiu nesse intento foi seguramente Wilhelm Reich (1897-1957). Ele aprofundou e corrigiu erros do pensamento social freudiano a partir de uma base marxista, ao mesmo tempo em que possibilitou a aproximação do pensamento marxista com elementos da subjetividade a partir das conquistas da prática psicanalítica.
            Como todo o inovador, Reich sofreu uma série de calúnias, difamações e incompreensões. Não foi diferente do que sofreram Giordano Bruno, Galileu, Marx, Darwin e Freud. Tal como a Reforma Luterana, em que as mudanças e críticas de Lutero ficaram restritas a limites toleráveis à Igreja Católica, enquanto que o monge alemão Thomas Müntzer desejava realizar “reformas” de maiores proporções e muito mais radicais, numa analogia superficial, podemos dizer que Freud é Lutero e Reich, Thomas Müntzer.
            Inicialmente apoiado por Freud, Reich passa a dirigir seminários e clínicas psicanalíticas. Em 1927, mesmo ano em que publica A função do orgasmo, Reich estreita contato com o Partido Comunista Austríaco e abre clínicas gratuitas de aconselhamento psicológico e sexual, com enorme afluxo de operários e estudantes. Por suas posições enfáticas acerca do tema da preponderância sexual e por questionar as disputas dentro do movimento psicanalítico, terminou expulso deste e do movimento comunista (já hegemonizado pelo stalinismo). Sua análise das mudanças sociais dentro da URSS, bem como dos retrocessos a partir do período stalinista, são particularmente notáveis, associando estas restaurações ao abandono das pautas sexuais (luta contra a família patriarcal, a legalização do aborto, igualdade jurídica entre os sexos, etc.) e reconhecendo graves desvios burocráticos. Por sua atuação política e científica terminou perseguido pelo nazismo, que o obrigou a exilar-se. Em 1939 vai definitivamente para os EUA, onde leciona para classes lotadas na New School for Social Research. Em razão das suas pesquisas controversas acerca de “estranhas caixas”, chamadas de “acumuladores de orgônio”, é outra vez perseguido, só que agora pelo governo estadunidense, que incrimina seus livros e os proíbe em território norte-americano. Ainda que estas pesquisas possam ser questionáveis, proibir livros tão importantes e profundos como os de Reich soa, no mínimo, como uma atitude política medieval da tão festejada “democracia” norte americana, que necessitava tanto quanto a alemã ou a brasileira conhecer e estudar melhor os posicionamentos de Reich, que, diga-se de passagem, morreu sob circunstâncias suspeitas.
            O mais provável é que Reich, assim como Demócrito de Abdera, apenas tenha lançado uma ideia revolucionária: tal como o filósofo pré-socrático pensou o átomo (numa noção bem diferente do que viria a ser o “átomo moderno”), o ex-discípulo de Freud apenas pensou o orgônio. Cabe agora às sucessivas gerações de filósofos, cientistas e, sobretudo, de revolucionários, terem que se debruçar sobre o seu pensamento para depurá-lo e esculpi-lo.
Apesar de sofrer do mal da filosofia alemã, de querer produzir um ambicioso sistema global que abarcasse todas as coisas possíveis e imagináveis (ainda que isto falte profundamente à intelectualidade brasileira), o pensamento de Reich nos fornece uma poderosa compreensão (e portanto, uma poderosa arma) sobre o fenômeno nazi-fascista, que corretamente nos indicou ser (tal como alguns marxistas) um fenômeno internacional. E, indo mais além dos marxistas, penetrou nos meandros da subjetividade individual, fazendo uma fecunda síntese do pensamento marxista e freudiano no seu livro Psicologia de massas do fascismo. Sua teoria padece um pouco do messianismo dos referidos sistemas filosóficos alemães, dando preponderância aos problemas sexuais sobre os sociais (ainda que pese o fato de que o debate sexual é absurdamente escondido sob mil véus de hipocrisia e evitado com todas as forças). Seja como for, uma síntese entre o marxismo e o freudianismo iria resultar em uma filosofia superior em comparação as anteriores, ainda que toda a novidade cause dúvidas e medo.
No contexto mundial e brasileiro atual, através desta síntese, a obra nos dá a chave para compreendermos muitos dos fenômenos aparentemente obscuros e, talvez, algumas respostas ao que parece não ter explicação. Abaixo seguem alguns trechos comentados do seu livro A função do orgasmo (1927), onde ele dedica um capítulo especial ao irracionalismo fascista:

Todas as discussões sobre a questão de saber se o homem é bom ou mal, se é um ser social ou anti-social, são passatempos filosóficos. Se o homem é um ser anti-social ou uma massa de protoplasma reagindo de um modo peculiar e irracional depende de que suas necessidades biológicas básicas estejam em harmonia ou em desacordo com as instituições que ele criou para si. (...) Uma de suas características mais essenciais veio a ser essa de sentir-se felicíssimo em atirar sua responsabilidade para cima de algum führer ou político, pois não se compreende mais e, na verdade, teme a si mesmo e às suas instituições. Está desamparado, inapto para a liberdade e suspira pela autoridade porque não pode reagir espontaneamente; está encouraçado e quer que lhe seja dito o que deve fazer, pois é cheio de contradições e não pode confiar em si mesmo.
A culta burguesia europeia do século XIX e do início do século XX adotou as formas de comportamento moralistas e compulsivas do feudalismo e transformou-as no ideal da conduta humana.

Desnecessário dizer que as formas de comportamento da Idade Média correspondem ao controle total e absoluto da Igreja sobre a conduta moral, social e política dos seres-humanos.
Seguindo adiante e buscando as raízes da ascensão de Hitler ao poder, Reich conclui:

(...) Hitler era meramente a expressão da contradição trágica entre o anseio pela liberdade e o medo real frente a ela.
O fascismo alemão deixou bem claro que não operava com o pensamento e a sabedoria do povo, mas com suas reações emocionais infantis. Nem seu programa político nem qualquer das suas muitas e confusas promessas econômicas levou o fascismo ao poder e o garantiu aí no período seguinte: mas sim, em grande parte, foi o apelo a um sentimento místico e obscuro, a um desejo vago e nebuloso mas extraordinário e poderoso. Aqueles que não entenderem isso não entenderam o fascismo, que é um fenômeno internacional.

Aí está um dos pontos altos das formulações teóricas de Reich, que precisamente reconhece o nazi-fascismo como um fenômeno internacional, muito diferente da burguesia dos “países democráticos”, que tenta associá-lo estritamente à Itália e à Alemanha para esconder o seu flerte permanente com ele. Indo mais além, Reich demonstrará que a base do nazi-fascismo é a classe média (isto é, os setores sociais mais reprimidos moral e sexualmente), cuja raiz se espalha para outros setores sociais. Mais adiante ele afirmará que o fascismo “não é um problema alemão, mas um problema internacional, pois o desejo de amor e o medo à genitalidade são fatos internacionais”.
Tal como Bolsonaro faz no Brasil,

Hitler assegurou [aos alemães] liquidar a discussão democrática de opiniões. Milhões de pessoas congregaram-se em torno dele. Estavam cansadas dessas discussões porque elas haviam sempre ignorado suas necessidades pessoais diárias, isto é, aquilo que era subjetivamente importante. Não queria discussões a respeito de “orçamento” ou dos “altos interesses partidários”. O que queriam era um conhecimento verdadeiro e concreto a respeito da vida. Não podendo consegui-lo atiraram-se às mãos de um guia autoritário e à ilusória proteção que se lhes prometia.

Aqui há um indício dessa superestimação do poder sexual, quando Reich afirma que o que queriam era “um conhecimento verdadeiro e concreto a respeito da vida”; isto é, sobre sua real satisfação sexual e ao livre florescimento da sua personalidade, totalmente subjugada pelos pesados grilhões políticos, sociais e morais. Contudo, por mais importante que isto seja, o nazi-fascismo foi hábil em enganar as massas de que resolveria o “caos social” gerado pelas crises econômicas do capitalismo. É necessário, para além da fundamental educação sexual das massas, combatendo e superando os preconceitos, moralismos e submissões, demonstrar concretamente um programa econômico e político alternativo; isto é, concretizar o programa socialista (fato que a atual esquerda deixa a desejar e, em parte, o próprio Reich).

Hitler assegurou-lhes liquidar a liberdade individual e estabelecer a “liberdade nacional”. Milhões de pessoas trocaram entusiasticamente a liberdade individual por uma liberdade ilusória, isto é, uma liberdade através da identificação com uma ideia. Esta liberdade ilusória livrava-as de toda a responsabilidade individual. Suspiravam por uma “liberdade” que o führer iria conquistar e garantir para elas: a liberdade de gritar; a liberdade de fugir da verdade para as mentiras de um princípio político; a liberdade de serem sádicos; a liberdade de jactar-se – a despeito da própria nulidade – de serem membros de uma “raça superior”; a liberdade de sacrificar-se por alvos imperialistas, em vez de sacrificar-se pela luta concreta por uma vida melhor, etc.
O fato de que milhões de pessoas foram sempre ensinadas a reconhecer uma autoridade tradicional, em vez de uma autoridade baseada no conhecimento dos fatos, constituiu a base sobre a qual a exigência fascista de obediência pôde agir. (...)
O que era novo no movimento fascista das massas era o fato de que a extrema reação política conseguiu usar os profundos desejos de liberdade das multidões.  Um anseio intenso de liberdade por parte das massas mais o medo à responsabilidade que a liberdade acarreta produzem a mentalidade fascista, quer esse desejo e esse medo se encontrem em um fascista ou em um democrata. Novo no fascismo era que as massas populares asseguraram e completaram sua própria submissão. A necessidade de uma autoridade provou que era mais forte que a vontade de ser livre.
(...) O desapontamento por parte de milhões de pessoas quanto às organizações liberais [e as instituições da democracia burguesa], mais a crise econômica, mais um irresistível desejo de liberdade produzem a mentalidade fascista, isto é, o desejo de entregar-se a uma figura autoritária de pai. (...) Agora Hitler chegava e prometia tornar a ideia de procriação, e não a felicidade no amor, o princípio básico do seu programa cultural. Educados para envergonhar-se de chamar as coisas pelo seu nome, obrigados por todas as facetas do sistema social a dizer “procriação eugênica superior” quando tinham em mente “felicidade no amor”, as massas congregaram-se em torno de Hitler, pois ele juntara ao velho conceito uma emoção forte, embora irracional. Conceitos reacionários mais excitações revolucionários produzem sentimentos fascistas. (...) Brutalidade sádica mais misticismo produzem a mentalidade fascista.
(...) A família alemã autoritária típica, particularmente no campo e nas cidades pequenas, incubava a mentalidade fascista aos milhões. Essas famílias moldavam a criança de acordo com o modelo do dever compulsivo, da renúncia, da obediência absoluta, que Hitler sabia como explorar tão brilhantemente. (...) Salientando a identidade emocional entre “família”, “nação” e “Estado”, o fascismo tornou possível uma transição suave da estrutura da família para a estrutura do Estado fascista. É verdade que nem um só problema da família, nem as necessidades reais da nação eram resolvidos por essa transição: mas esta permitia a milhões de pessoas transferir seus laços da família compulsiva para a “família” maior, a “nação”. O fundamento estrutura dessa transferência havia sido bem preparado durante milhares de anos. A “mãe Alemanha” e o “deus pai Hitler” tornaram-se símbolos de emoções infantis profundamente arraigadas.
            (...) A juventude congregava-se aos milhares em torno de Hitler. Ele não lhes impunha qualquer responsabilidade; apenas construiu sobre suas estruturas, que haviam sido previamente moldadas pelas famílias autoritárias. Hitler estava vitorioso no movimento da juventude porque a sociedade democrática não havia feito tudo o que fora possível para educar o jovem no sentido de levar uma vida responsável e livre.
            No lugar da atividade espontânea, Hitler prometeu o princípio da disciplina compulsiva e do trabalho obrigatório. Vários milhões de trabalhadores e empregados alemães votaram em Hitler. As instituições democráticas não apenas não haviam conseguido enfrentar o desemprego mas, quando ele sobreveio, se haviam mostrado claramente temerosas de ensinar as multidões de trabalhadores a assumir a responsabilidade pela realização do seu trabalho. Educados para não entender nada a respeito do processo de trabalho (impedidos, na verdade, de entendê-lo), acostumados a ser excluídos do controle da produção, e a receber apenas seu salário, esses milhões de trabalhadores e empregados podiam aceitar facilmente o velho princípio, de forma intensificada. Podiam agora identificar-se com o “Estado” e a “nação”, que eram “grandes e fortes”. Hitler declarou abertamente em seus escritos e discursos que, porque as massas populares eram infantis e femininas, apenas repetiam o que era incutido nelas. Milhões de pessoas o aclamaram, pois ali estava um homem que queria protegê-las.
            (...) E aconteceu que as desapontadas massas populares congregaram-se em torno de Hitler, que – embora misticamente – recorria às suas forças vitais. A pregação a respeito da liberdade conduz ao fascismo a menos que se faça um esforço decidido e consistente para inculcar nas multidões uma vontade firme de assumir a responsabilidade da vida cotidiana; e a menos que haja uma luta igualmente decidida e consistente para estabelecer as pré-condições sociais dessa responsabilidade.

            Aí está uma síntese das razões que levaram Hitler e o nazi-fascismo ao poder. Explicam também a ascensão da direita no mundo e, em particular, no Brasil. Não casualmente, todas elas reforçam a noção de família-nação-Estado. Reich ainda diz, no mesmo texto, que “desde os tempos antigos a ‘preservação da família’ foi, na Europa, um abstrato chavão, por trás do qual se escondiam os pensamentos e ações mais reacionários”. A direita brasileira tem se esforçado, com apoio ora aberto, ora dissimulado, da grande mídia, das igrejas evangélicas e outros movimentos religiosos reacionários, a preparar as bases da ascensão de um regime militar fascista. Sem nenhuma vergonha ou pudor levantam tais bandeiras. Isto tudo só é possível graças aos sentimentos sexuais e morais mal resolvidos em milhões de trabalhadores e membros da classe média, tal como já alertava Reich. Estes sentimentos mal resolvidos foram a base da ascensão do nazi-fascismo europeu e continuam sendo hoje em todos os cantos do mundo. Enquanto não for resolvido, será sempre um terreno fértil pronto a ser semeado pelos fascistas.
            Como conclusão, Reich tenta apontar as razões desta fácil manipulação das massas por parte do nazi-fascismo:

            (...) Esse anseio cósmico ou oceânico que as pessoas sentem não é senão a expressão de seu desejo orgástico pela vida. Hitler fez um apelo a este desejo, e foi por esta razão que as multidões o seguiram, e não aos secos racionalistas, que tentavam sufocar esses vagos sentimentos de vida com estatísticas econômicas.

            Esta necessária alfinetada de Reich à esquerda europeia da época, que parece ainda não ter superado os mesmos problemas daquele período, não nos dá maiores sugestões “do que deve ser feito”, tal como uma resposta que deu a um jovem fascista da Escandinávia, que o procurou pessoalmente para debater sobre a sua crise de consciência em relação ao fascismo. Fica evidente que caberia à vanguarda dos trabalhadores buscar o contato com este sentimento permeado pelo anseio cósmico ou oceânico como expressão do seu desejo orgástico pela vida, embora não nos dê maiores esclarecimentos de como fazer isso. Seria possível dialogar com este anseio cósmico ou oceânico, tal como fez e faz a direita nazi-fascista, sem recorrer ao charlatanismo e ao messianismo? Esta é precisamente a pergunta que a esquerda e os seguidores de Reich precisam responder para tentarmos superar esta peste emocional, assassina e predatória, que é o nazi-fascismo.



NOTA_______________________________________________
Todas as citações deste texto foram extraídas do livro de W. Reich "A função do orgasmo".

Um comentário:

  1. Realmente este contexto é possível em nosso país.Nao consigo explicar o crescimento destas igrejas evangélicas e o fanatismo dos filiados numa época de tanta informação e a paixão por um lider inexpressivo surgido do nada e ungindo pela Ditadura.

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