Quando
lemos as declarações e manifestos da esquerda brasileira – o que inclui este
blog – percebemos uma certa tendência para a apresentação de estratégias
mirabolantes e megalomaníacas. Até certo
ponto é compreensível, dado que a tarefa de revolucionar um país do tamanho
do Brasil é, de fato, um desafio gigante.
Por este e outros motivos, a esquerda
revolucionária lembra sempre das “grandes coisas” e esquece de observar com
atenção as pequenas, como se uma coisa nada tivesse a ver com a outra. Fala em
macroestruturas, em frentes políticas “anticapitalistas”, “antiimperialistas” e
“antifascistas”; clama por reforma agrária, expropriação econômica, e um longo
etc. Todos estes pontos são realmente muito importantes e devem entrar no
vocabulário do povo pela insistência pedagógica da repetição. Porém, ela
esquece de observar os sentimentos e a conduta do povo no cotidiano, como, por
exemplo, o problema de sua autoestima.
Se
ignorarmos certas carências subjetivas disseminadas em larga escala, como a da
autoestima, o discurso padrão de “frentes” e de “expropriações” soará muitas
vezes como frases ao vento, gritadas por carros de som e megafones, mas que não
encontrarão ouvidos receptivos, porque serão detidos por pequenos bloqueios psicológicos
sumariamente ignorados.
O campo da psicologia de massas na formação, agitação e propaganda continua
inexplorado. Só a grande burguesia neofascista
aposta suas fichas nisso – com grande êxito, diga-se de passagem. Há um
trabalho de propaganda para a reconstrução da autoestima do povo brasileiro,
que não acredita no país e, consequentemente, em si mesmo. Pode parecer bobagem
para os “marxistas ortodoxos”, mas essa é uma das questões subjetivas da
psicologia de massas que têm sido decisiva.
Desde as salas de aulas das escolas
públicas, até os botequins de esquina, passando por inúmeros locais de trabalho
e reuniões familiares país afora, pode-se perceber a mão pesada da ideologia
burguesa, propagada, sobretudo, a partir da classe média, de que “o Brasil não
tem jeito” e de que nada de bom pode nascer dele, a não ser corrupção, exploração,
miséria, violência e roubo. Trabalhado cuidadosamente desde a grande mídia e por
meio de muitos autores da “intelectualidade nacional”, esta noção é disseminada
subliminarmente com diversas doses de veneno ideológico, até transformar-se em
senso comum, passando de pai para filho, de irmão para irmão, vizinho para
vizinho, colega para colega.
A dissociação entre a economia voltada
para o mercado internacional às custas de uma exploração predatória –
praticamente desde 1500 – e a corrupção dos políticos, “do Estado”, do mercado e do setor privado (que
corrompe os primeiros) é completamente apagada e escondida. A confusão
veiculada todos os dias pelos noticiários neoliberais da grande mídia faz terra
arrasada do debate público e do imaginário popular, deixando espaço apenas para
os interesses empresariais privados – em especial o do agronegócio, o dos
bancos e das transnacionais, que são vendidos mentirosamente como a salvação do
país, quando são a real causa de seu atraso.
Esta ideia de dependência e da
inviabilidade do país está tão presente no imaginário popular que foi caçoada
por Lima Barreto no seu conto Miss Edith
e seu tio, onde é elucidada de forma bem humorada este culto quase
religioso à tudo o que vem dos países do norte – neste caso, o respeito submisso
dos residentes de uma pensão carioca a dois hóspedes da Inglaterra, pelo
simples fato de serem ingleses. Lima descreve: “Os hóspedes acharam neles não sei o quê de superior, de
superterrestre. Deslumbraram-se e encheram-se de um respeito religioso diante
daquelas banalíssimas criaturas nascidas numa ilha da Europa ocidental”[i]. E,
mais adiante, afirma que Miss Edith e seu tio – os hóspedes ingleses – “não se ligaram a ninguém na pensão e todos
suportavam aquele desprezo como justo e digno de entes tão superiores”[ii].
Mais tardiamente, celebrando o
movimento popular de resistência cultural na década de 1980, Jorge Aragão comporia
um samba que afirmará: “sabemos agora, nem
tudo o que é bom vem de fora”[iii].
Apesar do esforço de Jorge Aragão para expressar um pouco mais de consciência
da necessidade de superar este espírito de “vira-lata”, o povo brasileiro – e em
especial sua classe média – ainda sustenta que tudo o que é bom vem de fora.
Uma
vez que o povo abrace a ideia de que é inferior em todas as dimensões
importantes da vida, não é necessário se preocupar com a resistência popular,
dado que a guerra já está ganha de antemão e qualquer forma de mobilização se
tornará muito mais difícil, sempre com o mesmo discurso de que “o Brasil não
vale a pena”. É justamente assim que a grande burguesia brasileira deseja que o
povo pense: é ela que cria esta realidade de miséria e submissão às potências
estrangeiras, cultivando sutilmente a mentalidade correspondente. Existe um
trabalho de base anterior, longo e extenuante, que precisa ser feito, com
dedicação e afinco – e é justamente por aí que as organizações da esquerda
revolucionária deveriam investir sua agitação e propaganda, para limpar este
meio de campo.
À esquerda revolucionária cabe o papel
– dentre outros – de ser uma espécie de psicanalista
social da psicologia de massas; isto é: usar sua propaganda para tornar
consciente o estrago ideológico que foi plantado no inconsciente coletivo do
país. O Brasil “tem solução” desde que supere e vença a sua classe dominante –
a elite do atraso –, bem como supere o capitalismo, com sua economia totalmente
dependente da tecnologia estrangeira e das suas finanças – e isso precisa ser
dito diariamente, com todas as letras! Como se sabe, um trabalho pedagógico e
psicanalítico leva tempo, e precisa pautar-se por uma longa repetição de temas
e pautas. E o mais importante: é preciso ser coerente!
De nada adianta continuarmos gritando
palavras de ordem ao vento e, no geral, desconexas, desconsiderando a experiência
e a realidade psicológica da massa, submetida e adestrada através da “ética do
mercado”, com pitadas maquiavélicas da propaganda da grande mídia e da sua
intelectualidade, que destrói completamente qualquer autoestima popular. Sem
plantar uma nova semente, poderemos morrer propondo e clamando por frentes
anticapitalistas, antiimperialistas e antifascista, mas nenhuma mudança
substancial ocorrerá.
Para isso acontecer, evidentemente, um
passo importante a ser dado é que a esquerda revolucionária aprenda a ouvir, tentando
entender a natureza contraditória do povo, sobretudo a partir dos subterrâneos
das paixões, dos medos e das suas falas e compreensões cotidianas. Daí, então, poderá elaborar um programa e uma atuação
prática que leve estes medos e confusões inconscientes em severa consideração,
intervindo sobre eles para superá-los.
Cai de maduro que para o povo se
mobilizar visando uma revolução é necessário que supere essa mentalidade de
baixa autoestima, de descrença nas possibilidades do país e nas suas próprias
forças – isto é, que arranque estas ervas daninhas plantadas tão cuidadosamente
pela elite nacional ao longo da história do país. A propaganda petista começou
a trabalhar pontualmente certas questões relacionadas a isso, mas não foi além
de uma visão “liberal de esquerda”, que é até onde vai o seu programa. À
esquerda revolucionária cabe trabalhar cotidianamente esta baixa autoestima
através de diálogos, formações, agitações e propagandas didáticas e pedagógicas
permanentes.
Sem
fazer o povo acreditar em si mesmo, no país e nas suas forças, não há revolução
possível.
Referências
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